Resumos
Este estudo tem como objetivo conhecer expectativas e anseios de uma comunidade em relação à implantação de um grupo de saúde mental na atenção básica. Trata-se de um estudo qualitativo que utiliza como abordagem de investigação a pesquisa convergente-assistencial (PCA). Os dados foram obtidos por meio de oficinas com usuários, em uso de psicofármacos acompanhados por Unidade Básica da Região Sul do Brasil. A primeira oficina apontou para reflexão e elaboração de estratégias no enfrentamento ao modelo asilar. A segunda discutiu a importância de espaços de convivência que fortaleçam vínculos afetivos e atuem como meio de prevenção de agravos em saúde mental. A terceira discutiu a questão do cerceamento de liberdade imposto pelo sofrimento mental. Constatou-se que espaços voltados à saúde mental no contexto da atenção básica contribuirão para a efetivação de práticas e construção de novos saberes para a produção de saúde e vida no território existencial dos sujeitos.
Saúde mental; Atenção primária à saúde; Reforma dos serviços de saúde
Este estudio pretende conocer expectativas y necesidades de una comunidad sobre la implantación de un grupo de salud mental en la atención primaria en salud. Se trata de un estudio cualitativo, con abordaje convergente-asistencial. Se han realizados tres talleres con usuarios en el uso de psicotrópicos acompañado por una Unidad Básica de Salud de una ciudad de la Región Sur de Brasil. El primer taller ha apuntado la reflexión y elaboración de estrategias para enfrentar el modelo psiquiátrico tradicional. El según taller ha discutido la importancia de espacios de convivencia para fortalecer el vínculo afectivo para prevenir los problemas de salud mental. El tercer taller ha discutido la inhibición de la libertad causada por el sufrimiento mental. Con eso, es importante la inserción de espacios relacionados con la salud mental en el contexto de la atención primaria en salud, contribuyendo para el proceso de rehabilitación psicosocial.
Salud mental; Atención primaria de salud; Reforma de la atención de salud
This study aims to comprehend the expectations and aspirations of a community about the deployment of a group of mental health in primary care. This is a qualitative study that uses the assistant convergent research approach. The data were collected through workshops with psychotropics users, accompanied by Primary Care in the South of Brazil. The first workshop aimed to reflect and develop strategies to dealing with asylum model. The second discussed the importance of spaces that strengthen bonds of affection and act as means prevention in mental health. The third discussed the issue of restriction of liberty imposed by mental suffering. It was found that spaces dedicated to mental health in the primary care will add to effectiveness the practices and the new knowledge to output the user's health and life.
Mental health; Primary health care; Health care reform
ARTIGO ORIGINAL
Saúde mental na atenção básica: uma abordagem convergente assistencial1 1 Recorte do trabalho de conclusão do Curso de Graduação em Enfermagem apresentado em 2009 na Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
Salud mental en atención primaria: un abordaje convergente-asistencial
Mental health in primary care: an assistant research approach
Milena Hohmann AntonacciI; Leandro Barbosa de PinhoII
IEnfermeira, Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFPel, Bolsista Demanda Social da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil
IIDoutor em Enfermagem Psiquiátrica, Professor Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil
Endereço da autora Endereço da autora : Milena Hohmann Antonacci Rua Padre Anchieta, 4156, ap. 201, Centro 96015-420, Pelotas, RS E-mail: miantonacci@hotmail.com
RESUMO
Este estudo tem como objetivo conhecer expectativas e anseios de uma comunidade em relação à implantação de um grupo de saúde mental na atenção básica. Trata-se de um estudo qualitativo que utiliza como abordagem de investigação a pesquisa convergente-assistencial (PCA). Os dados foram obtidos por meio de oficinas com usuários, em uso de psicofármacos acompanhados por Unidade Básica da Região Sul do Brasil. A primeira oficina apontou para reflexão e elaboração de estratégias no enfrentamento ao modelo asilar. A segunda discutiu a importância de espaços de convivência que fortaleçam vínculos afetivos e atuem como meio de prevenção de agravos em saúde mental. A terceira discutiu a questão do cerceamento de liberdade imposto pelo sofrimento mental. Constatou-se que espaços voltados à saúde mental no contexto da atenção básica contribuirão para a efetivação de práticas e construção de novos saberes para a produção de saúde e vida no território existencial dos sujeitos.
Descritores: Saúde mental. Atenção primária à saúde. Reforma dos serviços de saúde.
RESUMEN
Este estudio pretende conocer expectativas y necesidades de una comunidad sobre la implantación de un grupo de salud mental en la atención primaria en salud. Se trata de un estudio cualitativo, con abordaje convergente-asistencial. Se han realizados tres talleres con usuarios en el uso de psicotrópicos acompañado por una Unidad Básica de Salud de una ciudad de la Región Sur de Brasil. El primer taller ha apuntado la reflexión y elaboración de estrategias para enfrentar el modelo psiquiátrico tradicional. El según taller ha discutido la importancia de espacios de convivencia para fortalecer el vínculo afectivo para prevenir los problemas de salud mental. El tercer taller ha discutido la inhibición de la libertad causada por el sufrimiento mental. Con eso, es importante la inserción de espacios relacionados con la salud mental en el contexto de la atención primaria en salud, contribuyendo para el proceso de rehabilitación psicosocial.
Descriptores: Salud mental. Atención primaria de salud. Reforma de la atención de salud.
ABSTRACT
This study aims to comprehend the expectations and aspirations of a community about the deployment of a group of mental health in primary care. This is a qualitative study that uses the assistant convergent research approach. The data were collected through workshops with psychotropics users, accompanied by Primary Care in the South of Brazil. The first workshop aimed to reflect and develop strategies to dealing with asylum model. The second discussed the importance of spaces that strengthen bonds of affection and act as means prevention in mental health. The third discussed the issue of restriction of liberty imposed by mental suffering. It was found that spaces dedicated to mental health in the primary care will add to effectiveness the practices and the new knowledge to output the user's health and life.
Descriptors: Mental health. Primary health care. Health care reform.
INTRODUÇÃO
Com o processo de redemocratização brasileira, no início dos anos 80, fortalece-se o movimento pela reforma sanitária, tendo como bandeiras: a melhoria das condições de saúde da população, o reconhecimento da saúde como direito universal, a reorganização da atenção a partir dos princípios da integralidade e da equidade e a responsabilidade da garantia do direito à saúde como sendo dever do Estado(1).
No contexto de transformações propostas pela reforma sanitária, temos o movimento de reforma psiquiátrica, que pode ser considerado como parte integrante de um movimento social por reformas políticas e sociais no campo da saúde mental.
A reforma psiquiátrica vem sendo concebida como um movimento que busca a desconstrução de conceitos e práticas baseadas no isolamento e na exclusão social do fenômeno da loucura. Essa nova ótica de tratamento procura deslocar o atendimento centrado no hospital para um atendimento mais ampliado, que possa contemplar a família, as relações sociais e os vínculos do sujeito que vivencia uma situação de sofrimento. Mais do que isso, que o sujeito possa ser acompanhado dentro do território onde vive, ou seja, na comunidade, com ações de promoção, prevenção, tratamento e reabilitação.
Com essas propostas, pode-se pensar na necessidade da parceria entre a saúde mental e a atenção básica para a ampliação do arsenal terapêutico, e também para evitar o distanciamento entre a comunidade e determinados fenômenos nascidos no interior desta, como a loucura. Essa articulação é vista como um dos eixos estratégicos para repensar o atendimento em saúde na comunidade, tendo em vista que as dimensões sociais e culturais influenciam e são influenciadas pelos determinantes fisiológicos e psicológicos do adoecimento.
Nesse sentido, destaca-se o trabalho em grupo como um dos agentes de reabilitação psicossocial dentro da perspectiva de parceria Saúde Mental/Atenção Básica. No trabalho em grupo, o usuário passa a ser parte integrante de um microgrupo, no qual pode reconhecer-se em sua singularidade e, ao mesmo tempo, manter ações interativas com os outros componentes desse mesmo microgrupo. Os vínculos, as trocas, a afetividade e a convivência reproduzidos entre os indivíduos participantes do microgrupo subsidiam o processo de re-inclusão social.
Dessa forma, o presente estudo pretende conhecer anseios e expectativas de usuários de uma Unidade Básica de Saúde de uma comunidade em relação à implantação de um grupo de saúde mental no contexto da atenção básica.
MÉTODO
Trata-se de um recorte da monografia intitulada "Saúde Mental na Atenção Básica: expectativas e anseios de uma comunidade"(2), a qual utiliza como abordagem de investigação a pesquisa convergente-assistencial (PCA), por se tratar de uma abordagem que se relaciona diretamente ao contexto da prática. Assim, o foco da PCA está na síntese criativa de um processo associativo da abordagem de pesquisa e prática em caráter de simultaneidade(3).
Quando utilizada pela enfermagem, a PCA inclui atividades de cuidado e assistência, contudo não se consolida com o ato de cuidar ou de assistir, sendo apenas parte do processo de pesquisa. Essa modalidade de pesquisa procura descobrir realidades, resolver problemas ou introduzir inovações num determinado contexto da prática assistencial(4).
A PCA requer participação ativa dos sujeitos, estando orientada como um tipo de pesquisa que, em seu desenvolvimento, sustenta estreita relação com a situação social e objetiva encontrar soluções para problemas específicos da prática. Também busca promover a mudança e a introdução de inovações na situação social, levando à construções teóricas comprometidas com a melhora direta do contexto social pesquisado, com a imersão do pesquisador na assistência(4).
O cenário do estudo foi uma Unidade Básica de Saúde (UBS), vinculada à Estratégia de Saúde da Família (ESF) de uma cidade da Região Sul do Brasil que atende a seis micro áreas, exercendo uma cobertura populacional em torno de 5000 pessoas. Entre os profissionais que integram a equipe estão: uma enfermeira, um médico, uma auxiliar e uma técnica de enfermagem, um técnico administrativo, além de dois profissionais que não fazem parte da ESF dentista e assistente social.
Foram realizadas três oficinas de sensibilização de usuários vinculados a esta UBS, que apresentavam algum tipo de transtorno mental e em uso de psicofármacos acompanhados pela Unidade, com vistas à posterior implementação de um grupo de saúde mental no território. As oficinas foram desenvolvidas no interior da unidade, sendo coordenadas pelos autores do estudo e contando com a participação da enfermeira responsável pela UBS, na condição de observadora. Cada oficina teve a duração de aproximadamente 1h30min e foi realizada no período compreendido entre junho e julho de 2009.
Para fins de registro e organização de informações, os encontros foram gravados em áudio e posteriormente transcritos na íntegra, acrescidos de informações sobre comportamentos e estados afetivos percebidos durante a observação dos participantes das oficinas.
Foram considerados sujeitos do estudo os usuários do serviço que se encontram em uso de psicofármacos e em acompanhamento pela unidade, isto é, aqueles usuários que recebem receitas controladas mensalmente e que possuem consultas de revisão agendadas a cada três meses. Como critérios de exclusão dos participantes, adotou-se os seguintes: menores de 18 anos, pacientes com quadros orgânicos, dificuldades de fala ou de locomoção até a UBS, déficits intelectuais e/ou em estado psicótico no momento da seleção. A partir da definição dos critérios de exclusão, todos os sujeitos que se enquadravam na proposta foram convidados a participar das oficinas, por meio de convites entregues pelos autores do estudo juntamente com os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), não havendo a obrigatoriedade do comparecimento às oficinas. Houve uma média de participação de 13 usuários, sendo que a primeira oficina contou com 16, a segunda com 12 e a terceira com 10 usuários. Com a finalidade de garantir o sigilo e o anonimato dos participantes, os mesmos foram identificados pela letra "U" (usuário), seguida pela ordem em que apareceram nas gravações.
O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Enfermagem e Obstetrícia da Universidade Federal de Pelotas, sendo aprovado sob o ofício de nº 10/2009 e protocolo interno nº 21/2009. Foram mantidos os preceitos éticos constantes na resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que diz respeito a pesquisas envolvendo seres humanos(5).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O primeiro encontro foi denominado Oficina "Acolhimento", na qual foram apresentados, pelos autores, todos os objetivos do projeto. Essa oficina apontou para uma riqueza de informações que podem contribuir para reflexão e elaboração de estratégias e/ou experiências no enfrentamento ao modelo psiquiátrico tradicional, centrado no hospital. Passaremos a discuti-la a seguir.
Oficina "Acolhimento"
O primeiro encontro, denominado "Oficina de Acolhimento", teve como objetivo a produção de escutas e estratégias de corresponsabilização em relação às demandas dos usuários, atuando no fortalecimento dos vínculos entre serviços, usuários e trabalhadores.
A relevância da proposta do cuidar no território está representada no depoimento a seguir:
Eu acho muito importante tratar da cabeça aqui no postinho. É bom pra gente não ficar louco de vez, porque desde que perdi meus filhos, eu sei que não to bem, não consigo mais apagar a luz pra dormir, nem gosto mais de ficar sozinho dentro de casa. Pode ser que agora com apoio dos meus amigos [referindo-se aos participantes da oficina] eu fique bom de uma vez (U3).
Compreende-se o território como o locus onde se verifica a interação de uma população específica, vivendo em tempo e espaços singulares, com problemas e necessidades de saúde determinados, os quais, para a sua resolução, devem ser compreendidos e visualizados de forma diferenciada. O território considera o coletivo, não apenas entendido como conjunto de pessoas, famílias e outros agrupamentos sociais, mas como conjunto heterogêneo, com elementos formalizados e intensivos, os quais projetam condições de vida e de saúde de uma população(6).
Assim, distinguir território de área geográfica parece ser o primeiro e mais importante passo para que os atores envolvidos no processo de atenção à saúde tomem para si a responsabilidade de cuidar, de modo a permitir a construção de espaços onde a dor, a angústia, o sofrimento profundo, o transtorno possa ter escuta e, se necessário, tratamento(7).
Ainda é possível explorar, na fala do sujeito, a valorização dos demais participantes da oficina em seu processo de reabilitação. O sujeito vê naquele espaço um ambiente de escuta e troca de experiências, para o qual ele entrega suas particularidades e recebe, como retorno, suporte para o enfrentamento de suas dificuldades.
Entende-se que o enfrentamento das situações complexas da vida, como as perdas de pessoas da família ou de seu círculo de amizades traz importantes reflexões acerca de grupos desenvolvidos de forma terapêutica. Esses espaços mostram-se como possibilidades concretas de valorização da subjetividade e realização de trocas interativas no desenvolvimento psicológico humano(8).
A fim de que o espaço dialógico dentro da UBS seja construído respeitando a horizontalidade proposta pelo modelo antimanicomial, foi concedido aos participantes um espaço para conhecer o que eles esperavam daqueles encontros. As respostas que melhor representaram o coletivo seguem a seguir:
Conversar com esses amigos aqui, né? Dividir as coisas do dia-a-dia que nos incomodam... Se abrir mesmo! (U5).
Acho que convivendo com quem tem um problema parecido com o nosso, pode ser que a gente encontre uma saída pros nossos problemas também, ou ver que o meu problema não é tão grave quanto o de outros amigos daqui (U6).
Através dos depoimentos, é possível perceber que os sujeitos vêm apontando a necessidade das oficinas constituírem-se em espaços de troca e, principalmente de escuta atenta com finalidade dialógica. Dessa forma, a proposta das oficinas subsequentes deveria permear atitudes de aproximação e de disponibilidade para dialetizar conflitos. Nesse sentido, desenvolveu-se a Oficina "Amizade", a qual buscou a integração e o fortalecimento da relação entre o serviço, o usuário e a comunidade onde ele está inserido.
Oficina "Amizade"
Nesta oficina foi proposta uma técnica de dinâmica de grupo relacionada à Amizade, que se mostrou um elemento muito rico de integração e fortalecimento de laços afetivos entre os participantes. Nesse momento parece que ficou característico a necessidade de expressar os sentimentos de esperança e de melhora no enfrentamento dos encargos provenientes do sofrimento mental, como revelados através dos depoimentos a seguir:
Ah, sim! Pra mim mudou [...] eu até falei pro filho e pro velho que agora parece que tem uma luz no fim do túnel pra gente sair dessa? (U1).
Reportando-se à fala de U1, ao expressar que vê a oficina como "uma luz no fim do túnel", o sujeito mostra sua confiança no trabalho, seu desejo de diminuir as limitações que o sofrimento lhe impõe e de aumentar a autonomia que lhe foi cerceada pelo sofrimento mental. Além disso, o sentimento de continência no grupo estreita vínculos e relações interpessoais, estimulando em cada participante a esperança da reabilitação.
A atenção prestada ao portador de sofrimento psíquico deve transcender as ações meramente clínicas, permeando o campo da convivência e da liberdade. Sob esta ótica, alguns impasses surgem na proposta de promover a autonomia e cidadania ao indivíduo, uma vez que a internação foi, por muito tempo, vista como principal forma de tratamento, e a medicação como principal técnica de alívio do sofrimento(9).
Entende-se, nesse sentido, que a promoção de espaços de trocas se consolida como uma estratégia assistencial pertinente, enquanto dimensão educativa, participativa e de empoderamento(10) dos usuários e da comunidade. O empoderamento cria oportunidades de educação para cidadania, socialização de informações, envolvimento ativo no diagnóstico e no aumento da autonomia do usuário.
Outro ponto importante discutido foi o estreitamento das relações interpessoais. Essa questão ficou clara durante o desenvolvimento da dinâmica de grupo, onde foram relatadas situações de luto e todos os sentimentos que permeiam essa situação, dando início a um movimento espontâneo de ajuda mútua entre os participantes:
Eu perdi minha filha [choro]. Já faz tempo, não foi agora, já faz cinco anos, mas eu não consigo esquecer [choro] ela era a mais pegada em mim, tava sempre na minha volta (U8).
Eu perdi o gosto de viver desde o acidente do meu filho, é uma tristeza, uma tristeza [...] eu vou na igreja e me ajuda bastante, mas daqui a pouco começa tudo de novo. Porque ele era muito meu amigo [choro] (U4).
Neste contexto emerge a importância da abertura de espaços de escuta atenta, uma vez que esses espaços despertam nos sujeitos o desejo de dividir com os demais participantes seus sentimentos mais íntimos, mostrando sua necessidade de serem escutados.
A escuta pode ser entendida como um instrumento, sendo definida como uma disponibilização de compreender a fala do outro, não só o que está explícito, mas o que está implícito em seu relato(11). A partir de uma escuta atenta é possível estabelecer e estreitar relações interpessoais. Essas relações são processos que tem como premissa a mutualidade, ou seja, o convívio, as trocas entre os indivíduos. Por isso, as relações interpessoais são intensamente mediadas pelos sentimentos, evidenciando a importância de um diálogo franco como meio de evitar distanciamento, superficialidade e incomunicabilidade(12).
Assim, percebe-se que, dentro do grupo, cada pessoa é independente, mas, na necessidade de convivência e na busca por um crescimento, as diferenças existentes são superadas. Isso parece permitir que o indivíduo se ajude e possa ajudar o outro, onde todos devem ter oportunidade de escutar e serem escutados, de modo a produzir vida e novas relações interpessoais nesses espaços sociais.
Pode-se entender que a relevância dessas ações de reinserção social voltadas para a compreensão e a intervenção sobre as demandas dos sujeitos no território, onde vivem, são livres e estabelecem relações. Foi com o foco na liberdade que a terceira oficina atuou, buscando resgatar o conhecimento sobre o assunto para minimizar os encargos do sofrimento mental, bem como potencializar a produção de autonomia para a vida na comunidade.
Oficina "Liberdade"
A proposta para trabalhar a liberdade partiu de uma pergunta inicial, a qual deveria ser respondida pelo grupo: "O que, em sua opinião, significa liberdade?" Contudo, surgiu um movimento no qual os sujeitos não se concentravam em dizer o que é liberdade, mas a falta dela. Isso tem uma repercussão importante na análise, porque diz respeito ao fato de que o sofrimento mental gera uma limitação que leva à ausência da liberdade, ou seja, aprisionando os sujeitos em seu mundo restrito focalizado na crise e nas experiências negativas desse sofrimento.
Os relatos dos sujeitos se estenderam por quase toda a oficina, deixando claro o sentimento de continência que o sofrimento impõe a essas pessoas. Para elas, o simples fato de sair de casa gera uma gama de emoções e sentimentos contraditórios, uma vez que há o desejo de sair de casa, porém isso parece ser superado pelos sentimentos que circundam o sofrimento mental.
Os depoimentos dos usuários, na terceira oficina, mostraram o sofrimento mental como potencial limitante, na medida em que os relatos permeiam dificuldades em realizar atividades simples do dia-a-dia, como sair de casa:
Eu acho que liberdade é poder fazer o que a gente quer. Eu mesmo quero conseguir sair de casa sem ficar pensando em voltar [...] queria conseguir ficar mais nos lugares, mas me dá um nervoso e dai vou embora (U2).
Eu já nem saio [...] eu fecho toda a casa quando meu marido vai trabalhar, apago todas as luzes, ligo a televisão e fico deitada (U4).
A partir dos depoimentos, é possível notar que a gravidade e a longa duração dos sintomas, os fracassos sociais, as dificuldades de comunicação e interação dos portadores de sofrimento mental produzem frustração e desespero, e estes são fatores para um progressivo isolamento da vida comunitária(13).
A perspectiva de liberdade também apresenta suas contradições, uma vez que a exclusão pode ser muito mais refinada, sutil e eficaz do que os muros e grades concretamente identificados no tecido social. Ou seja, no contexto investigado é dizer que os sujeitos são livres para ir e vir, pois circulam livremente no espaço do território, ao mesmo tempo em que têm sua liberdade cerceada pelas demandas complexas impostas pela condição de sofrimento mental(14).
Aqui novamente destaca-se a importância do investimento em ações estratégias no contexto da atenção básica, o que, seria uma das "instituições da desinstitucionalização"(15). Dessa forma, é possível centralizar o cuidado na invenção de novos recursos que sustentem e viabilizem a participação ativa das pessoas, com experiência de sofrimento mental, nas relações sociais. A partir dessa atitude, podem-se gerar novas práticas no interior e no exterior dos muros das unidades de saúde, que proponham a integração do usuário, da família e dos profissionais, com o objetivo de promover a efetiva reabilitação psicossocial.
Outra questão importante que emergiu no decorrer dessa oficina não foi somente o fato de que o sofrimento gera uma limitação à vida cotidiana do sujeito, o que é de conhecimento de todos, mas de que essa limitação acaba sendo mascarada pelos trabalhadores com o uso de medicações controladas:
Pra gente se libertar dessas nossas doenças e desse monte de remédios que a gente toma todo dia. Isso limita muito nossa vida? (U5).
Eu queria muito encontrar um apoio pra sair dessa depressão [...] eu queria mesmo era não ter mais que tomar esses remédios, ou pelo menos diminuir (U1).
A necessidade de tratar o indivíduo, não só com enfoque na medicação, mas articulando novas práticas que busquem a restituição da vida, fica clara a partir das falas de U1 e U5. Isso porque, para eles, o uso constante de psicofármacos gera um sentimento de limitação, de exclusão, como se estivessem presos a si mesmos. Além disso, a interrupção do medicamento pode ocasionar o reaparecimento de crises, o que dificulta a adaptação e o processo de reinclusão social dessas pessoas.
O processo de medicalização iniciou no século XVIII. Historicamente apareceu acoplado com o processo de reorganização dos hospitais psiquiátricos, o qual se deu através da instituição da disciplina, ou seja, de uma "nova maneira de gerir os homens, controlar suas multiplicidades, utilizá-los ao máximo e majorar o efeito útil de seu trabalho e sua atividade"(16). E é justamente "a introdução dos mecanismos disciplinares no espaço confuso do hospital que vai possibilitar sua medicalização"(16).
Essa forma de exercício do poder, denominado de disciplina ou poder disciplinar é uma forma de controle sobre o louco e sua loucura que funciona por meio de um processo contínuo de estabelecimento de poder terapêutico e de adestramento dos sujeitos(16).
Diante de um contexto de transformações da assistência psiquiátrica, compatível com as premissas constantes do modo psicossocial de fazer saúde mental, os psicofármacos devem ser considerados como parte integrante do arsenal terapêutico para o tratamento dos transtornos mentais, e não como a única alternativa cabível. Nesse contexto, surge a importância de construir um novo olhar para o cuidado em saúde mental, que não se restrinja ao contexto do sintoma e da sua contenção, mas que inclua a história de vida, a reconstrução dos laços afetivos, a convivência e o incentivo às tarefas cotidianas como propostas de libertação das amarras ocasionadas pelo sofrimento mental.
Desse modo, adotando como orientação a lógica antimanicomial torna-se necessário pensar na reconquista subjetiva e simbólica do espaço singular das pessoas, em suas diferentes dimensões, o que é potencializado pelo uso concomitante do psicofármaco. No entanto, afirmar que a medicação potencializa o processo de reabilitação psicossocial não é defender que ela deva ser totalizadora das ações desenvolvidas pelos trabalhadores dos serviços de saúde. Esse pensamento deve fazer parte do cotidiano da prática assistencial, pois incluir, assistir, acolher e cuidar produz dimensões muito mais complexas, que não podem ser explicadas por modelos de assistência em saúde mais tradicionais, focados no biológico.
Assim, através das oficinas, cada participante conseguiu formar novos vínculos, desamarrar-se de seus próprios sofrimentos, como também fortalecer o elo entre o serviço e a comunidade local. Esses espaços, portanto, parecem se transformar em espaços portadores de poder, que libertam e autonomizam as pessoas. Essa proposta não somente cuida, mas também liberta os sujeitos, sendo compatível com o modo psicossocial de produzir saúde e vida nos espaços da comunidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo buscou refletir sobre os caminhos do cuidado em saúde mental na comunidade, visando estabelecer uma ponte entre o sujeito em sofrimento mental e o seu contexto de vida. Nesse caso, o trabalho em grupo, materializado na forma de oficinas de sensibilização, ressaltou a necessidade de formação de novos vínculos, novas trocas, novas relações de afetividade e de convivência, fundamentais para a reinclusão social. Também possibilitaram pensar na loucura como uma das muitas dimensões do processo de viver e que carece de espaços não excludentes e que possam problematizar demandas, necessidades e formar novas opiniões.
Nesse sentido, a ação conjunta entre a saúde mental e a atenção básica configura-se como uma possibilidade concreta diante do contingente de pessoas que sofrem com transtornos mentais e que hoje podem ser atendidas no seu território, com as pessoas de seu círculo social ao seu redor. No enfrentamento desses desafios, algumas questões devem ser priorizadas, tais como: promover espaços, como esses propostos pelo estudo; qualificar o atendimento, por meio de educação continuada, do suporte matricial, quando necessário e da incorporação dos casos de transtornos psíquicos graves à assistência no território.
Nessa perspectiva, cumpre destacar que os trabalhadores devem incentivar a superação de conceitos organicistas e centrados na lógica da exclusão, de modo a eliminar o hiato criado durante séculos pela psiquiatria tradicional e que não totaliza o conhecimento sobre esse fenômeno tão complexo que é a loucura. A conclusão deste estudo permite uma caracterização inicial das ações de saúde mental na atenção básica, reforçando a necessidade de novas interlocuções, para orientar a organização do cuidado especializado no contexto da comunidade.
Recebido em: 22/09/2010
Aprovado em: 17/01/2011
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Ago 2011 -
Data do Fascículo
Mar 2011
Histórico
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Recebido
22 Set 2010 -
Aceito
17 Jan 2011