Open-access PREAMBULARES MACHADIANAS EM PERSPECTIVA RETÓRICA: CAPTAÇÃO DE BENEVOLÊNCIA E AÇÃO DIRETIVA SOBRE O LEITOR

PREFACES BY MACHADO DE ASSIS IN A RHETORIC PERSPECTIVE: CAPTIVATING THE BENEVOLENCE AND ACTING DIRECTLY UPON THE READER

Resumo

Este artigo visa a analisar os textos preambulares de autoria de Machado de Assis ou de instâncias ficcionais por ele criadas, tanto os autorais, como os alógrafos. O exame dessas páginas pré-textuais enquanto espécies de exórdios baseia-se em aproximações preliminares entre literatura e retórica e entre livro e discurso. Esboçada essa ponte entre retórica antiga e tradição tipográfica, investigam-se os antelóquios machadianos no exercício de múltiplas funções, que convergem no desejo do autor em direcionar a leitura de suas obras. Embora muitos dos prefácios alógrafos de Machado tenham sido recolhidos nas Obras completas do autor, trazemos, em anexo, uma proposta de edição desses escritos com o intuito de facilitar seu exame em conjunto, enquadrando-os em seus respectivos contextos de publicação.

Palavras-chave: Machado de Assis; prefácios; retórica

Abstract

This article aims to analyze the preambular texts written either by Machado de Assis or by a fictional creation of his, whether those texts were for his own works or for the works of others. The investigation of these documents as types of exordium is based on the approximations between literature and rhetoric and between book and discourse. After drafting the bridge between the old rhetoric and the typographic tradition, the article focuses on Machado's prefaces exercising multiple functions, which converge in his desire to direct the reading. Although many of his allograph prefaces were assembled in Obras Completas, we included an appendix with an edition of these texts, in order to frame them in the context of their publishing.

Keywords: Machado de Assis; prefaces; rhetoric

Introdução

Machado de Assis publicou 26 livros e, até falecer, em 1908, promoveu dez reedições de títulos que fazem parte desse expressivo conjunto. Do total de edições e reedições (36), 23 contaram com advertências, notas preliminares, prólogos e prefácios, ou seja, algo em torno de 65% delas.1 O escritor, portanto, se valia das preambulares com assiduidade, conferindo-lhes as mais diversas funções que, em regra, visavam a captar a benevolência do público, persuadindo-o a respeito da jornada de leitura que tais textos iniciais prenunciavam. De modo análogo, ao prefaciar livros de terceiros, onze ao todo, Machado buscava angariar a simpatia e a adesão do leitorado, bem como orientá-lo, sem deixar, todavia, de fazer as vezes de crítico aos novatos e contemporâneos ou homenagear aqueles que se foram. Em ambos os casos, empresta seu nome e seu prestígio a autores e obras por ele apresentados.

Para se examinar em perspectiva retórica esse conjunto de textos preambulares de autoria do próprio Machado de Assis ou de instâncias ficcionais por ele criadas como espécies de exórdios (parte inicial da dispositio, que ordena os argumentos conforme a conveniência dos gêneros), duas aproximações antes se fazem necessárias. A primeira leva em conta a afluência entre literatura e retórica, pois se admite que a exegese deve examinar não apenas o texto, mas também o ato enunciativo de sua emissão, bem como seus efeitos persuasivos sobre o leitor. Ao considerar as circunstâncias da comunicação artística, tal perspectiva aproxima o gênero epidítico do atual conceito de discurso literário.2 Essa modalidade entende que a posição do ouvinte perante o discurso assemelha-se à de um espectador, cuja atenção recai sobre o presente, e que o intento semiótico do poeta se centra no deleite a partir do louvor ou da censura das ações encenadas pela narrativa. Assim, mesmo contemporaneamente, o texto literário pode ser visto como uma elocução ornada, que se reveste de figuras, tropos e demais recursos expressivos para intensificar seu potencial de persuasão. Em resumo, trata-se da essência do discurso convincente (TEIXEIRA, 2023).

Paralelamente, a proposta aqui ensejada pressupõe uma analogia entre obra impressa e discurso. Na definição da dupla natureza do livro, Chartier retoma a interrogação formulada por Kant, em 1796, na "Doutrina do Direito" da Metafísica dos costumes para destacar a distinção entre o livro como objeto material, pertencente àquele que o adquire, e "o livro como discurso dirigido a um público, que permanece como propriedade de seu autor e só pode ser distribuído por aqueles que são seus mandatários" (CHARTIER, 2010, p. 16). Essa dupla natureza, base das várias metáforas em torno do livro e da noção de propriedade literária, permite também encarar o suporte livresco como discurso verbal impresso e elemento da comunicação discursiva, pois "é debatido em um diálogo direto e vivo, e, além disso, é orientado para uma percepção ativa" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 219). Em outras palavras, participaria de uma espécie de discussão ideológica em escala ampliada: "responde, refuta ou confirma algo, antecipa as respostas e críticas possíveis, busca apoio e assim por diante" (VOLÓCHINOV, 2017, p. 219).

Considerando as pontes aqui esboçadas e, sobretudo, a dimensão simbólica do livro,3 note-se que os textos preambulares, ao servirem como pórticos, cumprem a finalidade de abrir e guiar a enunciação proposta pelas obras, desempenhando, assim, uma ação retórica cujos efeitos repercutem no complexo representado por todo o conjunto. Desse modo, têm o objetivo de explicar por que e como se deve ler, exercendo papel ativo no pacto de leitura instaurado.

Preambulares, Pré-textuais

Na retórica de Aristóteles (1998, p. 208), o proêmio figura como preparação de caminho, predispondo o espírito do público e dando o tom da composição. Os inícios dos diferentes gêneros demandariam estratégias persuasivas distintas. Os proêmios dos discursos epidíticos seriam marcados pelo louvor, censura, conselho, dissuasão e apelos ao auditório, mostrando-se ou familiares, ou estranhos ao assunto do discurso. Nos poemas épicos e trágicos, prevalece a apresentação de uma amostra do conteúdo do discurso, pois "o indefinido causa dispersão. Aquele que coloca o início como que nas mãos do auditório faz com que este o acompanhe no discurso" (ARISTÓTELES, 1998, p. 210).

Ao apontar a divisão do discurso em seis partes (exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e conclusão), a Retórica a Herênio refere-se à primeira como um momento crucial, voltado a dispor, logo de saída, o ânimo do ouvinte. Haveria dois tipos de exórdios: a introdução (emprego de arrazoados explícitos) e a insinuação (uso da dissimulação), chamados pelos gregos respectivamente de prooemium e éphodos. Ambos visariam à obtenção de um auditório benevolente e atento, e seus empregos variariam em função dos gêneros de causa do discurso.4 A brevidade e a promessa de um assunto importante favoreceriam a disposição favorável do público. Em contrapartida, deveriam ser evitados exórdios vulgares, comuns, aqueles que soem excessivamente preparados e extensos. Especificando os usos e efeitos do exórdio, o autor sinaliza, em diálogo com os três meios de obtenção da persuasão definidos por Aristóteles (ethos, pathos e logos), que o processo de captação da benevolência poderia dar-se de quatro modos: considerando a pessoa que fala, os adversários dela, os ouvintes ou a própria matéria abordada (RETÓRICA..., 2005, p. 59-60).

Quintiliano dedicou o livro IV de suas Instituições oratórias para tratar do "proêmio", trecho do discurso encarado não apenas como o começo, mas como parte a ser dita antes de se entrar propriamente no assunto, com vistas a tornar a causa conhecida de antemão. Embora os vincule majoritariamente ao gênero judicial, ao definir os textos exordiais, seu estilo, vícios e virtudes, o autor os encara como parte da composição, enfatizando que seu único propósito seria preparar a audiência de modo a angariar-lhe a benevolência e a atenção. Para tanto, conviria ser claro e breve, assim como Homero e Virgílio teriam feito nos exórdios de suas obras (QUINTILIANO, 2015, p. 35).

O estudo das pré-textuais livrescas começou a ganhar contornos mais nítidos no século XX. Em 1974, Jorge Luis Borges indagava que até então não havia uma teoria do prólogo. Contrapõe os textos preambulares que não passariam de oratória de sobremesa ou de panegíricos fúnebres, recheados de hipérboles, àqueles que, indissociáveis do texto que apresentam, teriam o estatuto de "espécie lateral de crítica", fugindo da condição subalterna de simples brindes (BORGES, 1985, p. 8-9).

Mais de uma década depois, Genette consagrava à instância prefacial parte considerável do seu Seuil. Ao historicizar esse gênero de paratextos, categorizá-lo, considerando algumas balizas elementares (forma, lugar, momento, destinadores e destinatários), e destacar-lhe suas múltiplas funções, o crítico francês conecta a tradição retórica antiga em torno da prática exordial com as particularidades dos discursos preambulares pós-Gutemberg. Segundo Genette (2009, p. 151), as únicas rupturas entre os diferentes momentos se deveriam, sobretudo, à mudança de regime: do oral e do manuscrito para o livro impresso. Não por acaso, depois de especificar o truísmo de que caberia a um prefácio garantir ao texto uma boa leitura, o autor faz referência à captatio benevolentiae preconizada pela retórica latina como estratégia persuasiva de retenção do leitor. Por meio dela, procurava-se dignificar a obra sem indispor aquele que lê com uma valorização imodesta demais daquele que escreve (GENETTE, 2009, p. 176-177).

Machado prefaciador de si mesmo

Jean-Michel Massa (2001, p. 29), ao se referir à ausência de Cícero na hoje incompleta biblioteca de Machado de Assis, observava que certamente o gênero oratório não agradava ao contista brasileiro, "ele mesmo pouco orador e até antiorador". Para além do fato de Machado ter proferido discursos em diferentes solenidades (MACHADO, 2021, p. 395), a arte da persuasão ganha corpo em sua obra. Alguns críticos, por exemplo, associaram Machado e retórica a partir de elementos que ele empregava na construção de suas personagens.5 Ao mesmo tempo sua consciência tipográfica e envolvimento com o processo editorial faziam com que se detivesse não apenas sobre a textualidade, mas também sobre a materialidade da obra (SALLA; SALGADO, 2020).

Nesse sentido, não causa estranheza o investimento permanente de Machado em textos preambulares. Desde a tradução Queda que as mulheres têm pelos tolos (1861), advertências, prefácios etc. abrem uma parcela considerável de seus livros. Como pórtico do referido opúsculo, as primeiras linhas da advertência já sinalizam movimentos comuns aos textos preambulares: o rebaixamento da obra apresentada; a referência, por meio de dêiticos, ao espaço discursivo do próprio texto, de modo a particularizá-lo e aproximá-lo do leitor; e a ironia do enunciador, que diz se vangloriar com pesar da obra ofertada ao público, frente aos riscos que ela lhe trazia perante a audiência: "Falar do amor das mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?" (ASSIS, 1861, p. 5). Essa preocupação com a recepção dará o tom dos textos exordiais de Machado.

Dois anos depois, ao publicar seu primeiro volume de teatro, Machado inclui como prólogo uma troca de cartas com o amigo Quintino Bocaiuva. Detalhe: o iniciante utiliza um diálogo missivístico entre ele e o jornalista renomado, e não apenas a resposta deste, cuja reputação avalizaria a obra. Tem-se, assim, um misto de prefácio autoral e alógrafo, em que o autor moço recorre à "autoridade literária" do crítico, a quem pede opiniões: "Mas o que recebeu na cena o batismo do aplauso pode, sem inconveniente, ser trasladado para o papel?" (ASSIS, 1863a, s. p.). Nessa passagem, o jovem teatrólogo acaba por explicitar outra diretriz recorrente em seus textos preambulares: a preocupação com as implicações que a passagem de um meio de divulgação a outro poderia acarretar. Bocaiuva avalia como positiva a empreitada, julgando que as peças machadianas ganhavam mais ao serem lidas do que representadas.

Outro lugar construído por Machado em suas preambulares é o de crítico, o que mobiliza estratégias de persuasão baseadas no ethos e no logos. No referido volume de teatro, depois de rebaixar-se perante o leitor, sublinha que o patamar a ser alcançado pela comédia teatral deveria conciliar o estudo dos caracteres, a observação da sociedade e o conhecimento prático das condições da espécie literária em questão. No entanto, como duvida do próprio juízo para obter tais resultados, convoca o aval de Quintino Bocaiuva.

Na advertência de Americanas, adesão tardia de Machado ao indianismo, após ligar o título da obra ao recorte temático proposto, ele relativiza as opiniões extremas de que ou toda a poesia brasileira deveria concentrar-se no elemento indígena, ou excluí-lo por completo. Tudo pertenceria à invenção poética desde que proporcionasse o belo e satisfizesse as condições da arte. A partir de tal premissa, aproxima as epopeias gregas e latinas de nossa poesia indigenista por considerar que o essencial retratado tanto naquelas como nesta seria a alma do homem e não diferenças exteriores. Assim, eleva a matéria de seu canto, isto é, a índole virtuosa de nossas populações originárias como "raça forte". Ouvem-se aqui ecos do seu rumoroso ensaio "Instinto de nacionalidade", publicado dois anos antes.

As preambulares machadianas abrem espaço também para a exposição de bastidores da produção de textos, o que favorece a construção da cumplicidade entre autor e leitor, bem como direciona o caminho a ser trilhado por este último. Nos livros e opúsculos voltados à sua produção teatral, essa estratégia ganha força. Na nota preliminar de Quase ministro (1863b), o autor aponta que tal comédia foi escrita para ser representada num sarau literário, e faz uma crônica do evento. Quase vinte anos depois, na advertência de Tu só, tu, puro amor…, peça sobre os amores palacianos de Camões, avultam as circunstâncias de criação, encenação e publicação do texto (ASSIS, 1881).6 Paralelamente a isso, deixa explícitas, pela negativa, suas intenções como autor: não conferir ao poeta português feições épicas, apresentando-o como contemporâneo a seus amores; e não produzir tão somente um quadro da corte de d. João III. De modo análogo, na página exordial de A mão e a luva, o romancista relembra a escritura da obra, tendo em vista sua publicação parcelada e diária na imprensa, o que teria repercussões negativas sobre a narração e o estilo (ASSIS, 1874). Em sentido oposto, portanto, a rememoração da gênese do livro funcionaria aqui como argumento de defesa.

Considerando a carreira literária do escritor, as preambulares ajudam a construir uma rede que conecta o conjunto de suas obras, de modo a conferir unidade ao disperso, sinalizar boa acolhida de seus títulos anteriores e mostrar a amplitude e envergadura de seu trabalho. Na abertura da advertência a Ressurreição (ASSIS, 1872a), Machado menciona a boa acolhida de sua coletânea de textos avulsos, Contos fluminenses (1870). No texto preambular de Histórias da meia-noite (ASSIS, 1873), o escritor agradece a generosidade com que receberam seu romance de estreia, bem como anuncia um livro então em processo de conclusão (A mão e a luva, de 1874). Na nota-prefácio de Várias histórias (ASSIS, 1896), comenta que o leitor tinha em mãos sua quinta coleção de contos.

Nas advertências às segundas e terceiras edições, as remissões à própria obra se intensificam. É o caso das segundas edições de Ressurreição (ASSIS, 1905b, p. II) e Helena (ASSIS, 1905a, s. p.), em que, respectivamente, trata o romance apresentado como pertencente à "primeira fase de [sua] vida literária" e como um "capítulo da história do [seu] espírito", valendo-se, nesse último caso, da recorrente metáfora da vida como um livro. Na terceira edição de Quincas Borba (ASSIS, 1899b), relata o aparente sucesso na venda das edições anteriores e alude à proposta de um confrade ilustre: Araripe Júnior teria sugerido que seu próximo livro fosse continuação da narrativa em torno de Rubião, de modo a fechar a trilogia iniciada com as Memórias póstumas. Embora recuse tal hipótese, a apresentação dela no princípio de uma nova edição de Quincas Borba revela a precedência do relato de Brás Cubas, evidenciando o esforço do artista em unir as páginas de sua obra com vistas a compor um todo coerentemente organizado (SANTIAGO, 2008, p. 27).

Em suas coletâneas e miscelâneas, partindo do conceito aristotélico de que o indefinido causa dispersão, as preambulares de Machado ganham duas funções precípuas e correlatas mais específicas, comuns a esse gênero de obras: explicar o título e expor uma espécie de princípio orientador dos volumes, de modo a amenizar o efeito de disjunção que a edição conjunta de textos desirmanados em sua origem costuma gerar. Com exceção de Contos fluminenses,7 todas as outras coleções de textos do escritor contam com notas exordiais, e cinco procuram esclarecer os títulos empregados. Na advertência a Papéis avulsos, como estratégia de defesa contra um possível reproche, confessa que o nome do livro depunha contra sua unidade. No entanto, tratar-se-ia da reunião de escritos avulsos, sim, mas aparentados, daí usar a imagem de que seriam "pessoas de uma só família, que a obrigação do pai faz sentar à mesma mesa" (ASSIS, 1882, p. I).8 Já ao fim de sua trajetória, em Relíquias de casa velha (ASSIS, 1906), procura aclarar o título por meio de uma alegoria que relaciona a vida do artista a uma casa (vista como um inventário de memórias), ao passo que o livro figuraria como espaço exterior à intimidade do lar, repositório das relíquias-textos.

A orientação do leitorado também se dá pela própria determinação deste, e Machado se vale usualmente desse expediente em suas preambulares. No prefácio ficcional das Memórias póstumas (ASSIS, 1899a), Brás Cubas especula sobre os possíveis leitores de sua obra, trata do problema de recepção do texto em meio a duas rígidas balizas de opinião, bem como revela seu desejo de ser aceito e de entreter o leitor: não quer explicitamente convencê-lo, mas chamar sua atenção, num contexto em que a função estética voltada a um horizonte de leitura mais concreto se sobrepunha ao didatismo romântico dirigido a um auditório supostamente universal. Em Ressurreição, há a configuração de um destinatário específico: os críticos literários de "intenção benévola, mas expressão franca e justa" (ASSIS, 1872a, p. II). Caberia a eles decidir se seu romance de estreia corresponderia ao intuito do autor neófito no gênero e dimensionar se ele teria talento para o ofício.

No que diz respeito à segunda maneira dos romances de Machado, observa-se a crescente ficcionalização das preambulares enquanto elementos textuais e não apenas pré-textuais. Nelas, emerge uma instância discursiva ambígua, situada entre o escritor e o narrador (GUIMARÃES, 2004, p. 183), fazendo com que tais textos iniciais se descolassem de uma função mais referencial e passassem a se ligar de modo mais orgânico com as narrativas. Nas Memórias póstumas, tem-se o que Genette (2009) nomeia de prefácio "actoral fictício": o narrador ficcional endereça o prólogo ao leitor. Tal paratexto seria a parte proemial da obra, na qual Brás Cubas já se introduz a seus receptores, antecipando movimentos que irão caracterizar essa voz narrativa: ênfase na interlocução, pseudorrebaixamento, pseudoagressividade, conexão de sua narrativa com figuras de relevo, correspondência do prólogo curto e pouco explícito com os capítulos breves, mixórdia de referências e raciocínios aparentemente desconexos que marcaram a estruturação de suas memórias.

O ápice desse movimento de ficcionalidade do paratexto, relacionado com o próprio conceito de autoria ficcional e de ficção do livro (solicitação do livro reivindicada pelo autor ficcional) (BAPTISTA, 2003), ocorre em Dom Casmurro, em que os dois primeiros capítulos podem ser tomados como exórdios. Tem-se aí o que Genette nomeia de prefácio integrado. Em Esaú e Jacó e Memorial de Aires, as advertências, ao ecoarem as prerrogativas do organizador e editor ficcional dos volumes, mantêm elevado grau de integração narrativa, convertendo-se em instâncias fundamentais para a instituição do jogo literário que se estabelece em torno da identidade do narrador-autor.

Machado prefaciador de terceiros

Bastante diversa, a restrita atividade de Machado como prefaciador de obras alheias tem início nos anos 1860 com o juízo crítico à peça Fumo sem fogo (1861), do português Antônio Moutinho de Sousa, e, sete anos depois, com o prólogo a A casa de João Jacques Rousseau: episódio de uma viagem na Suíça (1868), de Ernesto Cybrão, mas concentra-se nas décadas de 1870 e 1880. Dos onze prefácios alógrafos por ele escritos, a maioria foi a livros de poesia, algumas de estreantes, e há também elogios póstumos a amigos.

Na obra de Cybrão, o prefácio de Machado (ASSIS, 1868) é um pouco tímido. Sendo ainda relativamente recente sua inserção na sociedade intelectual carioca, o jovem escritor era conhecido majoritariamente como poeta, dramaturgo, jornalista e cronista. Ao apresentar o livro, mostra-se elogioso. Com o intuito de controlar as rédeas da leitura, não deixa de corrigir caminhos interpretativos equivocados. Para tanto, diferentemente do que o título poderia sugerir, esclarece que se tratava de um romance, e não de uma querela de antiquários, uma discussão de cronistas. Dirimidas possíveis falhas na leitura, encerra sua introdução com mais um comentário positivo.

O tom de elogio incondicional se dissipa já na obra seguinte, um prefácio para Poesias póstumas (1870), de Faustino Xavier de Novaes, seu grande amigo e cunhado. Aqui, Machado já fala que as qualidades notáveis do livro serão suficientes para "escurecer ou desculpar os senões que por ventura lhes aponte a crítica severa" (ASSIS, 1870, p. II). A estratégia de mencionar também as pequenas deficiências da obra com o objetivo de enaltecer as qualidades dela é algo que irá perdurar em quase todos os proêmios a partir de então, como desdobramento da crença de Machado na atuação direta sobre o público, sem o comprometimento de seu ethos enunciativo. O prefaciador, realizando uma espécie lateral de crítica e de biografia, faz questão de apontar que o português era não só bom poeta satírico, mas também bom poeta lírico e melancólico.

A apresentação do livro de Faustino é o primeiro de dois prefácios alógrafos póstumos que Machado escreveu. O segundo aparece dezessete anos depois, quando de uma nova edição de O guarani, de José de Alencar: Machado comenta a biografia do amigo de forma bastante elogiosa. Segundo Gérard Genette (2009, p. 234), "A informação sobre a gênese da obra é, sobretudo, característica dos prefácios póstumos, porque com o autor ainda vivo pareceria incongruente que um terceiro se encarregasse disso em seu lugar".

Assim, o proêmio de Machado àquela que seria considerada até os dias de hoje uma das mais expressivas obras da literatura nacional não só reforça a importância do romance - tendo em vista que, em 1887, Machado já era dotado de grande prestígio -, mas também tem por objetivo aproximar o leitor de então de José de Alencar, mediante a apresentação de dados sobre sua vida e sobre a gênese do livro. Para tanto, retoma as circunstâncias adversas à arte de sua primeira publicação em periódico e, aludindo às críticas negativas por ele recebidas, releva-as mediante a afirmação de que, em Alencar, "a imaginação dá a realidade os mais opulentos atavios" no retrato do "melhor da alma brasileira" (ASSIS, 1894, p. 414). O prefácio para O guarani destaca-se como o mais longo que Machado escreve com esse propósito, e, depois de recuperar sua relação pessoal com o homenageado, ele encerra suas reflexões afirmando, em chave alegórica, que a obra do autor cearense viverá para além de seu tempo, por se tratar de um grande escritor que compunha páginas e personagens magníficas.

Além de prefácios póstumos, outro elemento que se repete nas introduções escritas por Machado são as missivas enviadas aos autores e convertidas em apresentações. São quatro preambulares nessas condições: a primeira aparece em 1872, com Névoas matutinas, de Lúcio de Mendonça; a segunda, em 1878, quando da publicação de Harmonias errantes, de Francisco de Castro; a terceira, Miragens, escrito por Enéias Galvão, data de 1885; e a última é publicada em 1886, para Tipos e quadros, sonetos, de Luís Leopoldo Fernandes Pinheiro Júnior.

Tanto os proêmios encaminhados por cartas quanto os outros visam a um objetivo similar: desfrutar do prestígio que a figura de Machado de Assis emprestava para referendar o talento e a qualidade do autor e da obra. Como aponta Genette (2009, p. 236), essa é, desde sempre, uma das funções primeiras dos prefácios alógrafos originais.

Machado se mostra plenamente ciente de sua função como prefaciador de outrem. Em Névoas matutinas (ASSIS, 1872b), como nas aberturas de suas próprias obras, faz questão de apontar a importância da brevidade dos prefácios para que o leitor de fato as aprecie. Além disso, ajustando-se ao gênero epidítico, aqui também ele usa sua estratégia retórica de colocar-se como enunciador imparcial, capaz de reconhecer os defeitos da obra, ainda que diminutos. Assim, louvava censurando. Nesse processo, destacava que a jovem idade do autor justificava eventuais deslizes, embora ele mesmo tivesse pouco mais de trinta anos.

A partir de 1878, os introitos de Machado para as obras passam a ter traços que os alinham à polêmica com Eça de Queirós, iniciada pelas críticas ao Primo Basílio, publicadas no mesmo ano no jornal O Cruzeiro. Nelas, Machado faz reproches de cunho moral e estilístico à escola realista. O carioca não era adepto daquilo que encarava como "estética de inventário", além de não valorizar as estratégias dos realistas para criticar os hábitos da burguesia do século XIX. Para Paulo Franchetti (2007, p. 186), as visões de Machado sobre a literatura do período, que transparecem em seus prefácios, estabelecem diretrizes referentes àquilo que o artista queria ver na literatura nacional.

Desse modo, as páginas exordiais serviram de espaço a uma causa mais ampla, além da recomendação ou censura do livro em questão. Como menciona Franchetti, essa tentativa de orientação dos moços poetas e do leitorado, mediante a exposição de padrões de gosto e de valor, não ficaria restrita a apenas uma obra prefaciada. Ela aparece pela primeira vez em 1878, com Harmonias errantes, de Francisco de Castro. Machado argumenta que o jovem autor estaria em busca de "uma forma substitutiva da que lhe deixou a geração passada" (ASSIS, 1878, p. IX), e que se a antiga talvez já estivesse fatigada, mesmo que bela, a mais nova se revelaria ainda confusa. Aproveita o ensejo para tecer elogios a dois mestres do passado (Basílio da Gama e Gonçalves Dias), sinalizando que o novo não poderia atropelar o eterno.

A questão da escola realista vai aparecer mais uma vez em dois prefácios publicados nos anos seguintes: o de Sinfonias, de Raimundo Correia; e o de Meridionais, de Alberto de Oliveira. No primeiro, Machado adota estratégia oposta àquela utilizada em Harmonias errantes para captar a boa vontade do leitor, trabalhando com a honestidade: ele não só comenta que o papel dos prefácios não é o de fazer críticas severas, como também aponta que a autoridade do prefaciador perante o público interfere no crédito que o leitor dará ao proêmio. A seguir, aproveita para exaltar os poemas de Correia por sua forma esmerada, enquanto recrimina certas produções mais militantes (nas quais ele se manifesta como "republicano e revolucionário"), afirmando crer "que o artista aí é menor, e as ideias menos originais" (ASSIS, 1883, p. 8).

No caso de Meridionais, Machado retoma a crítica que fizera ao livro de estreia de Alberto de Oliveira em "A nova geração" (1879). Deseja compreender a escolha que este fizera quanto ao prefaciador, e destacar que seu conselho "não foi desprezado" (ASSIS, 1884, p. III). Mais uma vez, aponta que há defeitos na obra, mas não decorrentes de descuido, e sim de requinte. Avulta aí, portanto, o Machado mestre-escola: para além da recomendação do livro em particular, utiliza a plataforma preambular para impor padrões poéticos pautados por um antirrealismo conservador voltado à consolidação de nosso parnasianismo. Não por acaso, entre os poemas do livro que metonimicamente mais o caracterizariam, escolhe comentar "O leque", "uma redução do escudo de Aquiles", versos de "um fino cultor de formas belas" (ASSIS, 1884, p. V-VI).

Em 1885, Machado escreve uma introdução para a obra Miragens, de Enéias Galvão. Nela, retoma o argumento de que os livros de estreia trazem deslizes da mocidade, mas ao mesmo tempo comenta que eles ofertam um "aroma primitivo", que se esvai com o tempo (ASSIS, 1885, s. p.). De modo geral, é elogioso ao talento do autor e o incentiva a seguir na poesia.

No ano seguinte, Machado responde a mais um pedido feito por carta, agora do poeta Luís Leopoldo Fernandes Pinheiro Júnior para o volume Tipos e quadros, sonetos. O missivista-prefaciador comenta sua surpresa com o fato de parecer o poeta tão desiludido, apesar de sua jovem idade. Ao final, recomenda que continue a escrever poesia, advertência recorrente que encoraja o jovem poeta a superar os aleijões apontados, além de manifestar a crença na ação do tempo e do trabalho no aperfeiçoamento do artista (ASSIS, 1886).

A última preambular de Machado aqui examinada atende a uma demanda do professor teuto-brasileiro Carlos Jansen, pioneiro na literatura infantil nacional. Este traduziu, direto do alemão, uma versão de Contos seletos das Mil e uma noites (1882?, segunda edição de 1908), que integra uma coleção de obras literárias traduzidas e capitaneadas pelo referido docente do colégio Dom Pedro II e publicadas pela Laemmert, em edições de boa qualidade gráfica, bem encadernadas e adornadas com cromos. Para cada título dessa biblioteca juvenil, com vistas a legitimá-la, escalou-se um nome de peso para a apresentação.9 Machado, nesse antelóquio, elogia a iniciativa de trazer/adaptar estórias da tradição árabe para a juventude brasileira daquele momento. E, mediante diálogo construído com o público-alvo da edição, o prefaciador elogia a tradução de Carlos Jansen. O texto termina com uma convocação direta dos moços à leitura, o que reforça sua postura, em regra, de controle (ASSIS, 1908).

Conclusão

Na advertência de Ressurreição, Machado aproxima as preambulares dos arrebiques de uma dama elegante que deseja realçar suas graças naturais (ASSIS, 1872a, p. I). Tratar-se-ia, assim, de um gênero que combinaria pseudo-humildade, vaidade e ambição. Longe de uma forma subalterna de brinde, os prefácios machadianos, quer os autorais, quer os alógrafos, evidenciariam a consciência retórica e tipográfica do autor. Tais páginas exerceriam múltiplas funções, todas convergentes em certa maneira para o desejo do artista de captar a benevolência do público e dirigir-lhe a leitura.

Enquanto prefaciador de si mesmo, exerce uma espécie lateral de crítica, expõe a gênese dos textos, constrói uma teia articulada que conecta sua obra, explica títulos e o enquadramento relativo ao gênero, converte as pré-textuais de seus romances em textuais em meio a um crescente processo de ficcionalização da autoria e do livro. Não por acaso, as preambulares se constituiriam na parte mais evidente do interesse de Machado em controlar a recepção de sua obra (GUIMARÃES, 2004, p. 286).

Paralelamente, os apontamentos de Machado em seus textos exordiais a livros de terceiros contribuiriam não só para elevar as obras por ele apresentadas (no papel de crítico encorajador, louva censurando), mas também para estabelecer padrões de gosto e preceitos que guiariam a emergência de uma nova escola literária no Brasil. Esse movimento articulado reforça a amplitude de sua postura diretiva materializada em suas páginas preambulares.

Referências

  • ARISTÓTELES. Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Júnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1998.
  • ASSIS, Machado de. Advertência. In: ______. Queda que as mulheres têm para os tolos. Tradução do Snr. Machado de Assis. Rio de Janeiro: Tipografia de F. de Paula Brito, 1861. p. 5.
  • ______. Carta a Quintino Bocaiuva. In: ______. Teatro, Volume I. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1863a. s. p.
  • ______. Nota preliminar. In: ______. Quase ministro: comédia em um ato. Rio de Janeiro: Tip. da Escola do Editor Serafim José Alves, 1863b. p. VII-VIII.
  • ______. A história d'este livro (…). In: CYBRÃO, Ernesto. A casa de João Jacques Rousseau: episódio de uma viagem na Suíça. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1868. p. V-VIII.
  • ______. Foi este livro para mim (…). In: NOVAES, Faustino Xavier de. Poesias póstumas. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1870. p. I-III.
  • ______. Advertência. In: ______. Ressureição. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1872a. p. I-III.
  • ______. Carta preliminar. In: MENDONÇA, Lúcio de. Névoas matutinas. Rio de Janeiro: Editor Frederico Thompson, 1872b. p. VII-XII.
  • ______. Advertência. In: ______. Histórias da meia-noite. Rio de Janeiro: B. L. Garnier, 1873. p. 5.
  • ______. Advertência. In: ______. A mão e a luva. Rio de Janeiro: Gomes de Oliveira & C.; Tipografia do Globo, 1874. p. V.
  • ______. Introdução. In: CASTRO, Francisco de. Harmonias errantes. Rio de Janeiro: Tip. De Moreira, Maximino & C., 1878. p. VII-XII.
  • ______. Advertência. In: ______. Tu só, tu, puro amor…: comédia. Rio de Janeiro: Lombaerts, 1881. p. V-VII.
  • ______. Advertência. In: ______. Papéis avulsos. Rio de Janeiro: Tipografia e Litografia a Vapor, Encadernação e Livraria Lombaerts & C., 1882. p. I-II.
  • ______. Introdução. In: CORREIA, Raimundo. Sinfonias. Rio de Janeiro: Livraria Editora de Faro & Lino, 1883. p. 5-9.
  • ______. Quando em 1879, na Revista Brasileira (…). In: OLIVEIRA, Alberto de. Meridionais. Rio de Janeiro: Tipografia da Gazeta de Notícias, 1884. p. III-IX.
  • ______. Meu caro poeta (…). In: GALVÃO, Enéias. Miragens. Rio de Janeiro: Tip. de G. Leuzinger & Filhos, 1885. s. p.
  • ______. Se tão tarde (...). In: PINHEIRO JÚNIOR, Luís Leopoldo Fernandes. Tipos e quadros, sonetos. Rio de Janeiro: Tip. União, 1886, s. p.
  • ______. Um prefácio. O Álbum, Rio de Janeiro, ano 1, n. 52, out. 1894. p. 413-415.
  • ______. As várias histórias que formam este volume (...). In: ______. Várias histórias. Rio de Janeiro: Laemmert, 1896. p. V-VI.
  • ______. Ao leitor. In: ______. Memórias póstumas de Brás Cubas: quarta edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899a. p. IX-X.
  • ______. Prólogo da terceira edição. In: ______. Quincas Borba: terceira edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1899b. s. p.
  • ______. Advertência. In: ______. Helena: nova edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1905a. s. p.
  • ______. Advertência da nova edição. In: ______. Ressurreição: nova edição. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1905b. p. II.
  • ______. Advertência. In: ______. Relíquias de casa velha. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1906. p. I.
  • ______. Prefácio. In: JANSEN, Carlos. Contos seletos das Mil e uma noites. Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1908. p. V-IX.
  • BAPTISTA, Abel Barros. Autobibliografias. Campinas: Editora da Unicamp, 2003.
  • BORGES, Jorge Luis. Prólogos com um prólogo dos prólogos. Tradução de Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
  • CATITA, Flávia Barretto Correa. Antes e depois de 'O Almada': percurso editorial e transcrição diplomática do manuscrito do poema herói-cômico de Machado de Assis. 2019. 575 f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.
  • CHARTIER, Roger. Escutar os mortos com os olhos. Estudos Avançados, v. 24, n. 69, p. 7-30, 2010.
  • FRANCHETTI, Paulo. O Primo Basílio e a batalha do realismo no Brasil. In: ______. Estudos de literatura brasileira e portuguesa. Cotia: Ateliê Editorial, 2007, p. 171-191.
  • GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Cotia: Ateliê Editorial , 2009.
  • GUIMARÃES, Hélio de Seixas. Os leitores de Machado de Assis: o romance machadiano e o público de literatura no século XIX. São Paulo: Nankin Editorial; Edusp, 2004.
  • HANSEN, João Adolfo. O que é um livro? Cotia: Ateliê Editorial ; São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019.
  • MACHADO, Ubiratan. Dicionário de Machado de Assis. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Lisboa: Imprensa Nacional, 2021.
  • MASSA, Jean-Michel. A biblioteca de Machado de Assis. In: JOBIM, José Luís (Org.). A biblioteca de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras ; Topbooks, 2001.
  • QUINTILIANO, Marcos Fábio. Instituições oratórias. Tradução, apresentação e notas de Bruno Fregni Bassetto. Campinas: Editora da Unicamp , livro IV, tomo II, 2015.
  • RETÓRICA a Herênio. Tradução e introdução de Ana Paula Celestino Faria e Adriana Seabra. São Paulo: Hedra, 2005.
  • SALLA, Thiago Mio; SALGADO, Lara Cammarota. Machado de Assis editor e as suas páginas recolhidas. Machado de Assis em Linha, v. 13, n. 29, p. 13-32, jan.-abr. 2020.
  • SANTIAGO, Silviano. Retórica da verossimilhança. In: GUIDIN, Márcia Lígia et al. (Orgs.). Machado de Assis: Ensaio da crítica contemporânea. São Paulo: Editora Unesp, 2008, p. 141-177.
  • TEIXEIRA, Ivan. Machado de Assis & o costume retórico dos caracteres. Revista IEB, n. 51, p. 67-98, p. 139-148, mar.-set. 2010.
  • ______. Retórica e literatura. In: ______. Anatomia do crítico. São Paulo: Com-Arte, 2023 (no prelo).
  • VOLÓCHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.
  • 1
    Consideram-se aqui apenas as obras editadas em vida e em livro. Sendo assim, a advertência à composição final problemática de O Almada - poema herói-cômico em oito cantos ficou de fora, uma vez que publicada postumamente em 1910 na coletânea Outras relíquias (Rio de Janeiro: H. Garnier, Livreiro-Editor, 1910). Cf. Catita (2019).
  • 2
    Diferentemente dos gêneros judiciário (de causa passada) e deliberativo (de causa futura), o epidítico não visa levar a uma ação imediata, mas se volta para o louvor ou censura das ações encenadas, o que lhe conferiria certa ficcionalidade (TEIXEIRA, 2023).
  • 3
    Conforme aponta Hansen, o livro, objeto simbólico, constitui-se como um texto que tem "uma comunicação como relação retórica estabelecida entre o autor, como forma de sensibilidade simbólica, com o destinatário textual, e como relação do texto com o leitor empírico" (HANSEN, 2019, p. 9). Deve-se ter em vista também a dimensão material do livro e suas implicações para a organização do conteúdo. No caso das páginas preambulares, segundo lembra Genette, "o prefácio separado do texto pelos meios de apresentação que hoje conhecemos" (antes tínhamos o prefácio integrado) seria uma prática moderna ligada à existência do livro (GENETTE, 2009, p. 147).
  • 4
    Segundo o anônimo, os gêneros de causa do discurso seriam quatro: honesto, torpe, dúbio e humilde (RETÓRICA..., 2005, p. 57).
  • 5
    Podem-se citar aqui, entre outros, Ivan Teixeira (2010) e Silviano Santiago (2008). O primeiro defende que, na construção dos personagens da novela "O alienista", Machado teria se valido do costume retórico do retrato moral a partir d'Os caracteres de Teofrasto. O segundo crítico aborda a questão da retórica da verossimilhança e os aspectos forense e moral-religioso do discurso apriorístico de Bentinho, visando a convencer o leitor.
  • 6
    Comédia escrita em caráter de urgência para as comemorações do tricentenário de Luís de Camões realizadas pelo Gabinete Português de Leitura. A peça foi representada no teatro de d. Pedro II.
  • 7
    Somando-se à explicitação do gênero textual, o gentílico empregado no título parece circunscrever a interpretação deste e conferir-lhe maior estabilidade semântica. Em certa medida, pode-se atribuir a isso, por hipótese, a ausência de pré-textuais prefaciais em tal coletânea.
  • 8
    Além de comentar o título de modo a relativizar a aparente dispersão do todo, refere-se ainda a uma aparente falta de unidade das composições recolhidas quanto ao gênero textual: umas pareciam contos, outras não. Trata-se de outro estratagema usual para Machado.
  • 9
    Sílvio Romero prefaciou Robinson Crusoé (1885); Ferreira Araújo, Dom Quixote de la Mancha (1886); Rui Barbosa, As viagens de Gulliver a terras desconhecidas (1888).
  • 10
    Neste conjunto de mais de uma dezena de preambulares do autor de Dom Casmurro, não se está considerando um comentário crítico incluído por Machado de Assis em Páginas recolhidas (1899) e posteriormente reaproveitado como prefácio, mais de quarenta anos depois, no livro Cartas íntimas (1842-1845), precedidas de minha irmã Henriette (1946), de Ernest e Henriette Renan. Em tal texto, o crítico brasileiro comenta a relação dos dois irmãos e os principais pontos de suas vidas sem o objetivo claro de introduzir a obra.
  • 11
    MACHADO, Ubiratan. Dicionário de Machado de Assis. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Lisboa: Imprensa Nacional, 2021, p. 436.
  • 12
    SOUZA, J. Galante de. Bibliografia de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura; Instituto Nacional do Livro, 1955, p. 167-169.
  • 13
    BIBLIOTECA NACIONAL (Brasil). Exposição comemorativa do sexagésimo aniversário de falecimento de Joaquim Maria Machado de Assis (29/IX/1908-29/IX/1968). Rio de Janeiro, 1968, p. 30.
  • 14
    Haveria também uma terceira exceção: a edição princeps de Contos seletos das mil e uma noites (1882?), com tradução de Carlos Jansen, consta apenas, pelo que se sabe, do acervo de obras gerais da Biblioteca Nacional. Todavia, como a segunda edição dessa obra data de 1908, ano da morte da Machado, ela foi tomada como base e também integra o acervo da BBM/USP.
  • 15
    Tip. A. O. de França Guerra, 1861, 113 p. Texto posteriormente apresentado por Jean-Michel Massa no artigo "Un ami portugais de Machado de Assis: Antônio Moutinho de Sousa" (In: Miscelânea de estudos em honra do Prof. Vitorino Nemésio. Lisboa: Publicações da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1971, p. 241-254). Uma versão traduzida por Lúcia Granja do ensaio do pesquisador francês encontra-se nesta mesma Machado de Assis em Linha (v. 5, n. 10, p. 10-25, dez. 2012). O prefácio de Moutinho pode ainda ser encontrado em outro escrito de Massa publicado no Brasil com dois títulos diferentes em dois suportes diferentes: "A década do teatro: 1859-1869" (In: INSTITUTO MOREIRA SALLES. Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis, n. 23 e 24, p. 219-239, jul. 2008); e "Reabilitação de Machado de Assis" (In: ANTUNES, Benedito; MOTTA, Sérgio Vicente (Orgs.). Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: Editora Unesp, 2009, p. 33-54).
  • 16
    Antônio Moutinho de Sousa (1834-1899) foi um teatrólogo, ator e poeta português, amigo de Faustino Xavier de Novais e de Machado de Assis.
  • 17
    Conforme destaca Massa, "Na verdade, esse prefácio nada mais é que uma crítica, bem ao gosto daquelas que havia quase dois anos o escritor publicava nas revistas do Rio" (MASSA, Jean-Michel. Um amigo português de Machado de Assis: Antônio Moutinho de Sousa. Tradução de Lúcia Granja. Machado de Assis em Linha, v. 5, n. 10, p. 22, dez. 2012).
  • 18
    O teatro Ginásio Dramático foi inaugurado em 1855. Nele, apresentavam-se as principais novidades francesas que conquistavam muitos dos intelectuais da época interessados em teatro, como foi o caso do próprio Machado de Assis.
  • 19
    Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1868.
  • 20
    Ernesto Pego de Kruger Cybrão (1836-?) foi um poeta, teatrólogo e jornalista português, que desembarcou no Brasil em 1858. A casa de João Jacques Rousseau constitui livro de memórias de sua viagem para a Suíça. Quando da publicação da obra, Machado e Ernesto já eram amigos há alguns anos, sendo que o português inclusive representou um papel na peça machadiana Quase ministro em um sarau literário em 1862.
  • 21
    A indicação do nome desta pré-textual aparece apenas na folha de rosto do volume.
  • 22
    Anne-Louise Germaine de Staël-Holstein (1766-1817), mais conhecida como Madame de Staël, foi uma romancista e intelectual francesa e uma das mais conhecidas opositoras a Napoleão.
  • 23
    Em tradução livre, "viajar é, não importa o que se diga, um dos mais tristes prazeres da vida".
  • 24
    Laurence Sterne (1713-1768), escritor irlandês muito caro a Machado, cuja obra é referenciada no prefácio de Memórias póstumas de Brás Cubas.
  • 25
    Unidade regional da Grécia, na região do Peloponeso.
  • 26
    Túmulo coletivo da família patrícia dos Cipiões durante a República Romana.
  • 27
    Próspero e Ariel são personagens d'A tempestade (1610-1611), de William Shakespeare.
  • 28
    Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1870.
  • 29
    Faustino Xavier de Novaes (1820-1869) foi poeta, jornalista e escritor português, grande amigo de Machado de Assis e irmão de Carolina Augusta Xavier de Novais, esposa de Machado. Em Poesias póstumas, reúnem-se os poemas de Faustino que se afastam um pouco da tendência satírica mais comum nas obras do autor. Em Crisálidas (1864), num gesto de admiração, Machado publica o poema "Embirração", da lavra desse poeta, bem como dedica a ele o poema "Aspiração".
  • 30
    Rio de Janeiro: Frederico Thompson, 1872.
  • 31
    Lúcio Eugênio de Meneses e Vasconcelos Drummond Furtado de Mendonça (1854-1909) foi um advogado, escritor, jornalista e magistrado brasileiro. Notabilizou-se também como fundador da Academia Brasileira de Letras. Conhece Machado de Assis no início da década de 1870, na redação do jornal A República. Névoas matutinas é seu livro de estreia.
  • 32
    Rio de Janeiro: Tip. de Moreira, Maximino & C., 1878.
  • 33
    Francisco de Castro (1857-1901) notabilizou-se como médico, poeta e professor. Foi grande amigo de Guilherme de Castro Alves, irmão do célebre poeta, amizade que despertou em Francisco o interesse pela literatura e pela poesia. Harmonias errantes, seu livro de estreia, reúne poemas de inspiração romântica que tinham antes sido publicados sob o pseudônimo Luciano de Mendazza.
  • 34
    Aqui, Machado refere-se ao poema épico O uraguay, de Basílio de Gama (1741-1795), poeta arcadista brasileiro.
  • 35
    Poema épico inacabado de Gonçalves Dias (1823-1864), poeta, professor, jornalista e teatrólogo brasileiro, considerado um dos maiores poetas indianistas do Brasil.
  • 36
    Aqui, Machado dispõe do nome de mais dois grandes poetas da história da literatura para argumentar que há algo na poesia que atravessa os diferentes séculos. Se antes citara dois poetas brasileiros, aqui lança mão de um grego da Antiguidade (Homero - 928 a.C.-898 a.C.), conhecido por seus épicos Ilíada e Odisseia, e de um inglês do auge do romantismo.
  • 37
    Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1882?. A edição princeps não apresenta data, mas supõe-se que ela tenha sido publicada em 1882 não só pelo fato de o prefácio de Machado trazer a notação "Outubro de 1882", mas também em virtude de terem sido localizados recortes de jornal de dezembro do referido ano que dão conta do primor dos exemplares da obra em questão postos em circulação pela Laemmert (Cf. Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ano III, n. 357, p. 1, 24 dez. 1882). A segunda edição, feita pela mesma editora, data de 1908.
  • 38
    O clássico da cultura árabe foi traduzido por Carl Jacob Anton Christian Jansen (1829-1889), também conhecido apenas como Carlos Jansen, e publicado pela Laemmert com o objetivo de alcançar os jovens brasileiros. A obra integrava a biblioteca juvenil de Jansen, composta por outros quatro títulos: Robinson Crusoe (1885), com prefácio de Sílvio Romero; D. Quixote de la Mancha (1886), com prefácio de Ferreira de Araújo; As viagens de Gulliver a terras desconhecidas (1888), com prefácio de Rui Barbosa; e Aventuras pasmosas do celebérrimo Barão de Münchhausen (1891), sem prefaciador.
  • 39
    Tendo em vista que Eduardo Laemmert morreu em 1880 e que o texto de Machado foi escrito em outubro de 1882, trata-se aqui apenas de Henrique, o qual, sozinho, ficou responsável pela editora após a morte do irmão.
  • 40
    Rio de Janeiro: Livraria Editora de Faro & Lino, 1883. Livro dedicado a Valentim Magalhães.
  • 41
    Raimundo Correia (1859-1911) foi um juiz e poeta brasileiro. Se seu primeiro livro tinha fortes influências do Romantismo, a partir de Sinfonias, livro prefaciado por Machado, ele assume posição no parnasianismo, fazendo parte da chamada "tríade parnasiana" ao lado de Olavo Bilac e Alberto de Oliveira.
  • 42
    Machado compara duas figuras da mitologia antiga: Hércules, filho de Zeus com uma mortal, célebre por sua força e inteligência; e Baco, filho de Júpiter com uma mortal, deus da embriaguez e apreciador da paz, geralmente associado às festas e à libertinagem.
  • 43
    Episódio da mitologia em que Baco, numa disputa com o rei da Índia, Deríades, faz vinho das águas de um rio, levando os sedentos indianos ao delírio e dando ao deus a oportunidade de conquistar a região.
  • 44
    Étienne-Claude-Jean-Baptiste-Théodore-Faullain de Banville, mais conhecido somente como Théodore de Banville (1823-1891), foi um dos líderes do movimento parnasiano francês.
  • 45
    Rio de Janeiro: Tipografia da Gazeta de Notícias, 1884.
  • 46
    Antônio Mariano Alberto de Oliveira, mais conhecido apenas como Alberto de Oliveira (1857-1937), foi um poeta, professor e farmacêutico brasileiro. Assim como Raimundo Correia, fez parte da "tríade parnasiana". Conheceu Machado de Assis na Gazeta de Notícias, o que lhe garantiu a citação em "A nova geração" e posteriormente o prefácio de Meridionais, visto como marco do estilo parnasiano.
  • 47
    A indicação do nome desta pré-textual aparece apenas na folha de rosto do volume.
  • 48
    Poeta grego da Antiguidade que viveu por volta de 150 a.C. e se destacou pela escrita de poemas de cunho bastante bucólico.
  • 49
    ASSIS, Machado de. A nova geração. In: ______. Obra completa. 3 vols. Organizada por Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, v. 3, p. 826.
  • 50
    Rio de Janeiro: Tip. de G. Leuzinger & Filhos, 1885.
  • 51
    Enéias Galvão (1863-1916) foi bacharel em direito, visconde de Maracayá e ministro do Supremo Tribunal Federal. Miragens foi seu primeiro e único livro de poemas, bem recebido entre os poetas parnasianos do período.
  • 52
    O anúncio do nome desta pré-textual aparece apenas na folha de rosto do volume.
  • 53
    Anacreonte (563 a.C.-489 a.C.) foi um poeta lírico da Antiguidade.
  • 54
    Rio de Janeiro: Tip. União, 1886.
  • 55
    Luiz Leopoldo Fernandes Pinheiro Júnior (1855-1955) foi poeta, cronista, romancista, tradutor, professor, jornalista, historiador e geógrafo. Envolvido com diversas funções nas áreas das humanidades, Tipos e quadros constitui seu terceiro livro de poemas, circunscrito por contos e até mesmo por estudos.
  • 56
    Sobre essa edição inconclusa d'O guarani, destaca Ubiratan Machado: "Em 1887, os editores Pedro Sátiro de Sousa da Silveira e Ernesto Gonçalves Guimarães planejaram lançar uma edição especial da obra, em fascículos, em formato grande com gravuras de páginas e prefácio de Machado. A impressão coube à tipografia a vapor de Lombaerts & Cia. [...] O primeiro fascículo, com o prefácio machadiano, saiu em julho de 1887. A edição não chegou a ser completada. Foram publicados apenas treze fascículos, sendo o último lançado em julho de 1888" (MACHADO, Ubiratan. Dicionário de Machado de Assis. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras; Lisboa: Imprensa Nacional, 2021, p. 250-251). Com o título de "Um prefácio", esta preambular foi reproduzida nas páginas de O Álbum, periódico dirigido por Arthur de Azevedo (ano 1, n. 52, p. 413-415, out. 1894), e trazia a seguinte nota introdutória: "Em 1887 foi iniciada nesta capital a publicação de O guarani, de José de Alencar, numa grande edição de luxo. / O trabalho começou com entusiasmo; entretanto, por motivos que não nos cumpre averiguar, foi suspenso quando já se achavam impressas cento e tantas páginas, e nunca mais prosseguiu, e provavelmente já agora não será levado a cabo. / Para essa edição monumental escreveu Machado de Assis o magnífico prefácio que, em seguida, transcrevemos, e que é, por bem dizer, inédito. / Folgamos de arquivar nas colunas do Álbum essa esplêndida página do Mestre, que nas letras nacionais contemporâneas ocupa incontestavelmente o primeiro lugar".
  • 57
    José de Alencar (1829-1877) foi um dos maiores romancistas de nosso país, além de dramaturgo, jornalista, advogado e político. Publicou diversas obras vistas como pilares do romantismo brasileiro, incluindo romances urbanos, históricos, regionalistas e indianistas. O guarani, livro prefaciado por Machado, faz parte dessa última tradição, e é visto como uma das maiores obras da literatura nacional.
  • 58
    Francisco Otaviano de Almeida Rosa (1826-1889) foi um poeta, advogado, jornalista e político brasileiro.
  • 59
    Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878) foi um militar, historiador e diplomata brasileiro, recebendo o título de Visconde de Porto Seguro.
  • 60
    Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) foi um romancista, professor, jornalista e poeta brasileiro, célebre por seu romance A moreninha (1844).
  • 61
    Manuel José de Araújo Porto-Alegre (1806-1879), também conhecido como Barão de Santo Ângelo, foi um poeta, jornalista, diplomata, professor e pintor brasileiro. Fundou, com Macedo e Gonçalves Dias, a revista Guanabara (1849).
  • 62
    Bernardo Joaquim da Silva Guimarães (1825-1884) foi um magistrado, romancista e poeta brasileiro. Seu romance A escrava Isaura (1875) seria responsável por situá-lo na campanha abolicionista.
  • 63
    Manuel Antônio Álvares de Azevedo (1831-1852) foi um poeta e contista brasileiro e um dos principais expoentes do Romantismo no Brasil.
  • 64
    O rio Paquequer é o principal curso de água do município de Teresópolis, no Rio de Janeiro.
  • 65
    Um dos mais célebres romances de Alexandre Dumas (1802-1870), romancista e dramaturgo francês.
  • 66
    Dom Antônio de Mariz (1536-1584) foi um fidalgo português, imortalizado no romance de Alencar como pai de Ceci.
  • 67
    Trata-se do teatro Ginásio Dramático, inaugurado em 1855, onde eram representadas as mais recentes peças vindas da França (Cf. nota 18 deste anexo).
  • 68
    Thomas Babington Macaulay (1800-1859), 1º Barão de Macaulay, foi um poeta, historiador e político britânico.
  • 69
    Antoine François Prévost (1697-1763), também conhecido como Abade Prévost, foi um escritor francês, famoso sobretudo por Histoire du chevalier des Grieux et de Manon Lescaut, única obra de sua autoria que se imortalizou, sobretudo, graças a uma ópera nela baseada.

ANEXO: PROPOSTA DE EDIÇÃO DOS TEXTOS PREAMBULARES QUE MACHADO DE ASSIS ESCREVEU PARA OUTROS AUTORES

Nota Editorial

Esta proposta de edição fidedigna procurou reunir o conjunto de onze textos preambulares a obras de terceiros de autoria de Machado de Assis.10 Tomaram-se como base, para a identificação desse material, levantamentos realizados por Ubiratan Machado,11 Galante de Souza12 e pela seção de exposições da Biblioteca Nacional, pautada na coleção Plinio Doyle, na ocasião do aniversário de sessenta anos da morte do escritor.13 Para a localização e posterior transcrição dos escritos aqui coligidos, definiu-se como fonte principal o acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM/USP). Praticamente todas as páginas exordiais assinadas pelo autor encontram-se em livros e periódicos pertencentes a tal instituição. Há apenas duas exceções: a carta-prefácio publicada em Tipos e quadros (1886), de Luís Leopoldo Fernandes Pinheiro Júnior, cujo único exemplar se localizou na Biblioteca Nacional brasileira; e o juízo crítico alçado a pré-textual da peça Fumo sem fogo (1861), de Antônio Moutinho de Sousa, obra que não consta dos acervos das bibliotecas nacionais de Portugal, do Reino Unido, da França e nem na brasileira, no Rio de Janeiro. Esse texto, tido como o primeiro prefácio da lavra de Machado, tornou-se conhecido apenas no início dos anos 1970, quando Jean-Michel Massa o transcreveu no artigo "Un ami portugais de Machado de Assis: Antônio Moutinho de Sousa", publicado no volume Miscelânea de estudos em honra do Prof. Vitorino Nemésio (1971).14

Sempre que possível, o estabelecimento de cada texto tomou como base suas fontes primárias impressas. Fogem a essa regra apenas o já mencionado primeiro prefácio machadiano, tendo em vista a impossibilidade de se acessar a raríssima edição princeps da peça de Antônio Moutinho de Sousa, e as páginas proemiais de uma edição inconclusa de O guarani, de José de Alencar, publicada em fascículos, a partir de julho de 1887. No que diz respeito à disposição dos textos aqui recolhidos, eles foram organizados seguindo a ordem cronológica de publicação dos livros nos quais figuram como antelóquios. A entrada de cada um deles dá-se pelo título da obra, acompanhado da data da edição em que foi encontrado o texto e do nome do autor do livro.

Tendo em vista que o conjunto aqui apresentado foi publicado ao longo das décadas de 1860, 1870 e 1880, por diferentes casas editoriais e durante a vigência da incerta "ortografia usual", optou-se por realizar a atualização de todos os prefácios em conformidade com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990. A pontuação foi respeitada, apesar de terem sido realizadas intervenções pontualíssimas, sobretudo quanto ao uso de vírgulas, de modo a favorecer a leiturabilidade. Realizou-se também a solução ocasional de erros tipográficos.

Por fim, notas de rodapé foram confeccionadas não apenas com o objetivo de fornecer informações sobre as obras prefaciadas e seus autores, mas também para esclarecer outras dúvidas que possam surgir ao longo da leitura dos textos, de forma a retomar, quando possível, os diálogos e referências que se faziam presentes no momento de sua publicação original. Sendo assim, embora mínimo, tal aparato procurou favorecer a possibilidade de examinar as preambulares machadianas em conjunto, bem como enquadrá-las em seus respectivos contextos de divulgação.

1. Fumo sem fogo: drama original em três atos, representado no teatro de S. João da Bahia (1861), 15 de Antônio Moutinho de Sousa. 16

Juízo crítico 17

Moutinho,

Pediste-me que transladasse para o papel as impressões recebidas com o teu drama. Vou comunicar-tas tais quais as tenho presentes no espírito.

Previno-te desde já que isto não é, não pode ser nunca uma crítica. Sem modéstia, a crítica é uma função que recomenda predicados e habilitações que, com ingenuidade confesso, não existem em mim.

As considerações que te vou comunicar são as que a todos é dado fazer sem incorrer nas graves responsabilidades de que está investida a crítica.

Eu podia, à semelhança de alguns que estão nas minhas circunstâncias, arriscar-me a tomar a toga do censor e julgar da tua obra com o entorno de oráculo já feito.

À semelhança desses, eu podia ainda, sem possuir uma toesa de terra, retalhar à vontade no teu mundo e tratar dele como se tratasse de morgadio próprio.

Parece que a bazófia não é ainda privilégio exclusivo de ninguém.

Não será esse entretanto o tom das considerações que te vou fazer.

Escrevo a um amigo, no canto de uma folha de papel, com a singeleza de uma conversa íntima, manifestando a impressão recebida sem outro comentário.

Essas palavras que aí vão escritas, à guisa de preâmbulo, têm um fim. Indicar-te o ponto de vista em que te deves colocar a respeito desta singela carta.

Tomaste por assunto do teu drama o sacrifício perseverante e clandestino da mulher, pela felicidade e reabilitação de seu marido, que se perde na carreira do vício e da devassidão. Não podias melhor enobrecer a tua protagonista. O papel que lhe dás constitui um protesto a favor dessa parte do gênero humano que tanto consegue e de tanto dispõe, empregando os próprios esforços na escala que a sociedade e a natureza lhe marcam.

Basta esta ideia geral, aliás já tratada, para tornar a tua peça uma composição simpática.

Partindo dela, conduzes o drama, através de peripécias diversas, com felicidade, até à frase final, donde tiras o título da composição.

A intriga com que motivaste o drama parece-me bem cabida. Mais ainda, completa o tipo da mulher virtuosa que quiseste dar-nos em Eulália. Bastava já que ela vendesse suas joias, a ocultas do esposo, para acudir às necessidades domésticas, ao passo que ele se empenhava no vício do jogo. Julgaste pouco; ao lado dessas colocastes outras tribulações, resistindo às quais, Eulália se engrandece e renobilita.

Puseste, pois, a tua protagonista entre os desregramentos do esposo e o amor sensual de um barão sem outras considerações que a satisfação de suas aspirações brutais. Corrigir um e resistir ao outro, eis o grande papel de Eulália de Magalhães.

Efetivamente, o desenvolvimento deste plano devia conduzir, através do enredo, à consequência moral vertida no pensamento que serve de base à composição.

Eis o que de largo se pode apreciar encarando a tua concepção.

Na execução dela, as figuras concebidas estão um pouco incorretas e frouxas, e os acontecimentos não parecem às vezes justificados.

Por exemplo, a carta de Eulália no terceiro ato, carta importante que dá a Augusto a revelação de uma perfídia que não existe, não está justificada com as palavras de Eulália na cena 14ª. Se ela ainda tinha o dinheiro, a carta era escusa, visto que, saldadas as dívidas, cessava a necessidade do paliativo empregado sempre por ela.

Eu corrigiria também a cena em que se declara que o barão de Sapal é pai de Eulália. O barão, apesar da sensualidade e do cinismo mesmo de que mais de uma vez dá tristíssima cópia, devia elevar-se ali pelo arrependimento e pela vergonha. Vendo uma filha na mulher que perseguia com os seus desejos de sensualidade, cumpria que o barão ficasse, ao menos por um momento, homem de bem. As palavras que profere e a cordialidade que parece reinar até o fim da cena entre todos não são por certo uma consequência dos acontecimentos que fazem o drama.

Colocaste ao lado de Eulália, como que para remi-la da funesta afeição que inspirou a seu pai, o amor ideal de Avelino Leão. A intenção foi boa e a execução, feliz. Que há de mais sublime que o amor sem esperança, puro e desinteressado, alimentado na sombra e no segredo, vivendo das ilusões, estremecendo pela menor nuvem que passa e sombreia a fronte adorada da mulher que se ama?...

Essas afeições contemplativas são menos raras do que se pensa. Não é pueril crer nelas. Cá fora, no mundo real, causa riso e custa-se a tomar ao sério o homem que vê na folha que treme, na fonte que chora, no lírio que reverdece às solidões do vale, a imagem de uma mulher que se traz na mente e no coração e diante da qual o impossível levantou eternas barreiras... Ainda bem que tu, poeta, tu, homem de coração e de espírito, tens alma para essas compreensões e não recusaste em criar Avelino Leão. Para Avelino Leão, Eulália, como ele mesmo diz, não é menos pura que suas irmãs, nem sua própria mãe mais santa que ela!

Um reparo porém. Nem a pureza do amor de Avelino, nem a indiferença da sociedade vão ao ponto de justificarem, da parte daquele, a declaração que faz na cena sétima ao próprio marido. Nenhum homem nas condições de Augusto ouviria com placidez as palavras de Avelino e muito menos lhe estenderia a mão em testemunho da fé que lhe põe nas palavras. Augusto tem recebido do barão uma carta em que aquele lhe diz ser Avelino amante de Eulália. A simples peroração de Avelino não pode convencer Augusto de que o barão mentia. A declaração de um amor puro não podia ser um embuste? E por que acreditar mais em Avelino do que no barão?...

Despertada a fibra do ciúme, não era dado a Augusto, que saía das loucuras do jogo e que estava estragado pelo vício, ter dessas confianças em palavras, quando a suspeita lhe havia entrado no espírito. Depois, é preciso também não admitir uma cega confiança em Avelino, a ponto de o fazer revelar o segredo de seu coração ao próprio de quem ele devia ocultá-lo. É verdade que a franqueza e a confiança são próprias dos caracteres leais como o de Avelino, mas tratava-se de um ponto de honra ofendido, e as palavras sinceras do amante platônico não convinham decerto na ocasião.

Mas fora isso, fora algumas palavras arrebatadas de Avelino a Eulália no primeiro ato, o papel é em geral bem sustentado, e a figura de Avelino Leão contribui como um raio suave de luz para o grupo dos outros personagens.

Augusto é um papel desenvolvido com verossimilhança. Tem, porém, às vezes teorias filosóficas demais para um jogador de profissão.

Há no teu drama cenas que, ou eu me engano, ou posso asseverar-te que hão de produzir grande efeito na execução do tablado. Escritas com cores vivas de sentimento de paixão, sendo representadas por aqueles artistas que as tuas personagens estão indicando, hão de elas arrancar do fervor do público a sanção do valioso merecimento que eu, o menos próprio de julgar, aqui te confesso.

Venceste com felicidade a dificuldade de remover as tuas quatro personagens de Portugal para o Rio de Janeiro; dificuldade que, aliás, ficaria superada fazendo todos os atos nesta última localidade.

Em geral, a tua peça tem movimento, principalmente as cenas do jogo no segundo ato, e todas as do terceiro.

Para fugir e arcar com grandes dificuldades dramáticas, simplificaste teu enredo. Está bem assim. Eu não conheço nenhuma outra peça tua; mas creio que nesta é que puseste maior cuidado e exame. Se assim é, andaste assisado em estreitar o círculo da tua ação.

Confio em que tua peça há de merecer do público os aplausos com que ele coroa os trabalhos que se lhe apresentam asselados de verdadeiro merecimento. Deves sabê-lo, tu que és artista e que estás acostumado a tocar o coração das plateias.

Quando li a tua peça imaginei-me sentado em uma cadeira do Ginásio.18 As observações que aí vão escritas são as que se fazem depois de cair o pano, nos corredores e no saguão.

Um mérito levo eu nelas e do qual ninguém me esbulhará: é que eu falei franco e sincero, sem precedência de cálculo ou embuste.

No resto, serão sempre, ao contrário do amor de Avelino Leão - puramente fumo sem fogo.

Rio; janeiro de 1861

J. M. Machado de Assis

2. A casa de João Jacques Rousseau: episódio de uma viagem na Suíça ( 1868 ), 19 de Ernesto Cybrão. 20

Prólogo 21

A história deste livro passa-se naquela Suíça, onde viveu a baronesa de Staël,22 a mesma que disse das viagens: "Voyager est, quoi qu'on en dise, un des plus tristes plaisirs de la vie".23 Não prevaleceu a opinião no espírito do autor deste episódio, que, durante largo tempo, gozou do prazer, triste ou alegre, de ver coisas novas e novos homens.

Para que lhe aproveitasse a viagem bastava ser poeta, o que importa dizer que soube viajar; porque há uma ciência de viajar, como há uma ciência de viver. O conselho de Sterne,24 quando recomendava que se introduzisse a arte na vida, bem pode ser aplicado ao viajar, que pede igualmente uma arte, e que arte! Vão lá perguntar por isso aos que não seriam capazes de dar dois passos para ir ver os museus da Itália ou as montanhas da Suíça.

O autor deste livro, que é poeta e artista, não foi, é verdade, acordar os ecos da planície lacedemônia,25 nem visitar o sepulcro dos Cipiões;26 mas, em compensação, viu muitas outras cousas que os artistas e os poetas sabem ver. Levava a musa consigo, e esta companheira de viagem é de todo ponto incorrigível. É viajante que não faz acréscimo de despesa, nem ocupa lugar nos trens de ferro ou à mesa das hospedarias. Acompanha o poeta como uma sombra invisível; e quando ele a evoca, surge como o gênio do Velho Próspero, aquele travesso e obediente Ariel,27 que sabia levantar as tempestades e acalmar os furacões; também ela possui o condão de dominar a natureza; ninguém melhor do que ela interroga uma ruína, desenrola um[a] paisagem, devaneia à beira dos lagos ou no top[o] das montanhas. É tão preciosa na quietação do lar como nas fadigas do caminho. Lépida e corajosa, não há serras que lhe detenham os pés delicados, nem torrentes que lhe amedrontem os olhos curiosos. Tinha o autor esta excelente companheira de viagem, e creio que soube aproveitá-la, coisa que não podia deixar de fazer, porque era de todo impossível tapar-lhe os olhos para não ver e os lábios para não contar. Quis versos, e ela deu-lhos, - deu-lhos como a musa os sabe dar, como as flores dão os seus perfumes, - sem esforço, nem retribuição, nem arrependimento. Quis livros, e ela gastou alguns serões em reler e coordenar as notas esparsas do viajante, preparando assim uma série de livros que o autor promete ir apresentando ao público a seu tempo.

Este é filho da Suíça, alentou-se daqueles ares que Voltaire, que Rousseau, que Staël respiraram, como ares de liberdade. Se a origem obrigava, a obra não a desmentiu: é uma página do coração humano. Não é propriamente uma narração de viagem, é um romance, cujo herói o autor foi encontrar junto ao lago de Genebra, um romance que lhe caía do céu, quando menos o esperava, e tão simples, tão dramático, tão interessante, que o autor, como delicioso poeta que é, fez dos elementos diversos uma obra, pondo-lhe o selo de um estilo ameno, original e puro.

O título do romance não é, como pode parecer a alguns, um meio de sedução; longe de ser um incidente, a casa de João Jacques é a origem da ação e o principal elemento da luta; e não se infira daqui que o que se vai ler é uma querela de antiquários, uma discussão de cronistas. Os personagens não sabem de uma esfera modesta, e os amores de duas jovens criaturas, que nada tem com o autor do Contrato social, enchem mór parte das páginas deste livro. Não é este o lugar de apreciar João Jacques. O autor do Emílio está julgado nas suas ideias. O que importa notar, a propósito deste romance, é que fazendo da memória de Rousseau o elemento capital da ação, o autor honrou a um tempo a figura do grande filósofo e a gratidão dos cidadãos de Genebra. Ou seja verídica, ou seja imaginária a luta de Pedro Olten e João Cessy, a propósito de João Jacques, essa luta exprime a veneração póstuma consagrada ao gênio, fora das controvérsias de escola e das convenções de partido. Bastaria este pensamento para angariar em favor do livro todas as simpatias do leitor.

Analisar por menor a ação de um romance, que aparece pela primeira vez, não é o que mais convém neste lugar. Limitar-me-ei a afirmar que nenhum leitor se arrependerá de ler este livro, e que todos acharão nele um crescente interesse, cenas comoventes, belas paisagens, e por vezes algumas páginas eruditas. A figura do imortal filósofo é de excelente efeito. Voltem os leitores a página e conhecerão melhor a obra.

É o primeiro romance do autor que tive ocasião de ler, podendo garantir que este deixa-me tão agradável e firme impressão como os belos dramas que o autor já apresentou ao público fluminense. Estou que este será o juízo dos leitores, e, predizendo ao livro um sucesso decisivo, aplaudo desde já o poeta, e o convido para novos cometimentos.

Machado de Assis.

Rio de Janeiro, 1º de dezembro de 1868.

3. Poesias póstumas ( 1870 ), 28 de Faustino Xavier de Novaes. 29

Foi este livro para mim, e há de ser para o público, uma revelação e um contraste.

Faustino Xavier de Novaes desceu ao túmulo com a reputação de poeta satírico, rapidamente criada em ambos os países de língua portuguesa. Mas a sátira não resumia todo o seu talento: era, digamo-lo assim, a face que ele voltava para o mundo exterior. Todos o admiravam como um brilhante castigador das coisas ridículas do tempo, que observava com rara sagacidade e fustigava com singular intrepidez. E todavia aquela gargalhada honesta e galhofeira não era a única expressão do poeta, que também sabia suspirar e chorar.

Abram este livro, e verão que ele conhecia também a musa melancólica, pessoal, egoísta, - a musa indiferente e superior aos vícios do mundo, eterna devaneadora de fugitivas quimeras. Guardava porém esses versos de sua inspiração solitária, e se alguns raros deu à imprensa, fê-lo com supostos nomes, - não sei se por modéstia do talento, se por orgulho do coração.

Nesses versos, - que aqui vão em grande cópia, - achará o público qualidades notáveis e verdadeiro mérito, quanto baste para escurecer ou desculpar os senões que por ventura lhes aponte a crítica severa. Lancemos entretanto à conta da morte uma parte da culpa, que não era o autor deste livro daqueles escritores para quem a inspiração dispensa a reflexão.

Não sei se, além da morte, será cúmplice nisto certo desânimo que parecia quebrantar as forças morais do poeta e despi-lo às vezes de toda a ambição literária. Talvez. Mas num espírito como o dele, por maior que fosse esse desânimo, não seria nunca um estado definitivo. Suceder ao desânimo a exaltação era cousa extremamente fácil naquela organização passiva e dócil a todas as impressões exteriores.

Como poeta satírico, já o disse, teve Faustino de Novaes a boa fortuna de granjear com rapidez uma popularidade indisputável. O livro de suas estreias foi a data da sua reputação. Daí para cá poliu a forma, dominou o estro, adquiriu novos títulos à estima dos sabedores; mas não aumentou o nome que já havia conquistado desde o primeiro dia.

Por que razão arrepiou caminho durante algum tempo nesse gênero em que colhera os primeiros triunfos? Este livro o dirá.

Compete à crítica apreciar agora os livros do poeta, apontar o bom, notar o mau, analisar as tendências e as feições da sua musa, que era rude e singela. Ao biógrafo convirá dizer que era este poeta filho exclusivo de suas obras, não tendo tido a fortuna de passar da academia para os labores literários, e alcançando o que sabia por simples esforço de vontade. Aos amigos cabe apenas chorá-lo. Há cinco anos escrevia Alexandre Herculano a Faustino de Novaes estas palavras: "Deus sumiu o segredo da paz do espírito no abraço do filho com a mãe, do homem com a terra". Falava da vida agrícola o grande escritor; o nosso poeta deu mais amplo sentido ao conselho, como se lhe parecesse precária toda a paz que não fosse eterna. E porque do claro engenho que Deus lhe deu já havia deixado vivos sinais nas obras anteriores, quis que nesta lhe ficasse o coração.

M. A.

4. Névoas matutinas ( 1872 ), 30 de Lúcio de Mendonça. 31

Carta preliminar

Meu caro poeta.

Estou que quer fazer destas linhas o introito do seu livro. Cumpre-me ser breve para não tomar tempo ao leitor. O louvor e a censura fazem-se com poucas palavras. E todavia o ensejo era bom para uma longa dissertação que começasse nas origens da poesia helênica, e acabasse nos destinos prováveis da humanidade. Ao poeta daria de coração um away, com duas ou três citações mais, que um estilista deve trazer sempre na algibeira, como o médico o seu estojo, para estes casos de força maior.

O ensejo era bom, porque um livro de versos, e versos de amores, todo cheio de confidências íntimas e pessoais, quando todos vivemos e sentimos em prosa, é caso para reflexões de largo fôlego.

Eu sou mais razoável.

Aperto-lhe primeiramente a mão. Conhecia já há tempo o seu nome, ainda agora nascente, e duas ou três composições avulsas; nada mais. Este seu livro, que daqui a pouco será do público, veio mostrar-me mais amplamente o seu talento, que o tem, bem como os seus defeitos, que não podia deixar de os ter. Defeitos não fazem mal, quando há vontade e poder de os corrigir. A sua idade os explica, e não sei até se os pede; são por assim dizer estranhezas de menina, quase moça; a compostura de mulher virá com o tempo.

E para liquidar de uma vez este ponto dos senões, permita-me dizer-lhe que o principal deles é realizar o livro a ideia do título. Chamou-lhe acertadamente Névoas matutinas. Mas por que névoas? Não as tem a sua idade, que é antes de céu limpo e azul, de entusiasmo, de arrebatamento e de fé. É isso geralmente o que se espera ver num livro de rapaz. Imagina o leitor, e com razão, que, de envolta com algumas perpétuas, virão muitas rosas de boa cor, e acha que estas são raras. Há aqui mais saudades que esperanças, e ainda mais desesperanças que saudades.

É plena primavera, diz o senhor na dedicatória do seu livro; e contudo, o que é que envia à dileta de sua alma? Ide, pálidas folhas peregrinas, exclama logo adiante com suavidade e graça. Não o diz por necessidade de compor o verso; mas porque efetivamente é assim; porque nesta sua primavera há mais folhas pálidas que verdes.

A razão, meu caro poeta, não a procure tanto em si, como no tempo; é do tempo esta poesia prematuramente melancólica. Não lhe negarei que há na sua lira uma corda sensivelmente elegíaca, e desde que a há, cumpria tangê-la. O defeito está em torná-la exclusiva. Nisto cede à tendência comum, e quem sabe também se a alguma intimidade intelectual? O estudo constante de alguns poetas talvez influísse na feição geral do seu livro.

Quando o senhor suspira estes belos versos:

À terra morta num inverno inteiro Voltam a primavera e as andorinhas E nunca mais vireis, oh crenças minhas, Nunca mais voltarás, amor primeiro!

nenhuma objeção lhes faço, creio na dor que eles exprimem, acho que são um eco sincero do coração. Mas, quando o senhor chama à sua alma uma ruína, já me achará mais incrédulo.

Isto lhe digo eu com conhecimento de causa, porque também eu cedi nas minhas estreias e esse pendor do tempo.

Sentimento, versos cadentes e naturais, ideais poéticas, ainda que pouco variadas, são qualidades que a crítica lhe achará neste livro. Se ela lhe disser, e deve dizer-lho, que a forma nem sempre é correta, e que a linguagem não tem ainda o conveniente alinho, pode responder-lhe que tais senões o estudo se incumbirá de os apagar.

O público vai examinar por si mesmo o livro. Reconhecerá o talento do poeta, a brandura do seu verso (que por isso mesmo se não adapta aos assuntos políticos, de que há algumas estâncias neste livro), e saberá escolher entre estas flores as mais belas, das quais algumas mencionarei, como sejam: "Tu, campesina", "A volta", "Galope infernal".

Se, como eu suponho, for o seu livro recebido com as simpatias e animações que merece, não durma sobre os ouros. Não se contente com uma ruidosa nomeada; reaja contra as sugestões complacentes do seu próprio espírito; aplique o seu alento a um estudo continuado e severo; seja enfim o mais austero crítico de si mesmo.

Deste modo conquistará certamente o lugar a que tem pleno direito. Assim o deseja e espera o seu colega

Machado de Assis.

Rio, 24 de janeiro de 1872.

5. Harmonias errantes ( 1878 ), 32 de Francisco de Castro. 33

Introdução

Meu caro poeta,

Pede-me a mais fácil e a mais inútil das tarefas literárias: apresentar um poeta ao público. Custa pouco dizer em algumas linhas ou em algumas páginas, de um modo simpático e benévolo, - porque a benevolência é necessária aos talentos sinceros, como o seu, - custa pouco dizer que impressões nos deixaram os primeiros produtos de uma vocação juvenil. Mas não é, ao mesmo tempo, uma tarefa inútil? Um livro é um livro; vale o que efetivamente é. O leitor quer julgá-lo por si mesmo; e, se não acha no escrito que o precede, - ou a autoridade do nome, - ou a perfeição do estilo e a justeza das ideias, - mal se pode furtar a um tal ou qual sentimento de enfado. O estilo e as ideias dar-lhe-iam a ler uma boa página, - um regalo de sobra; a autoridade do nome enchê-lo-ia de orgulho, se a impressão da crítica coincidisse com a dele. Suponho ter ideias justas; mas onde estão as outras duas vantagens? Seu livro vai ter uma página inútil.

Sei que o senhor supõe o contrário; ilusão de poeta e de moço, filha de uma afeição antes instintiva que experimentada, e, em todo o caso, recente e generosa; seu coração de poeta leu talvez, através de algumas estrofes que aí me ficaram no caminho, este amor de poesia, esta fé viva em alguma cousa superior às nossas labutações sem frusto, primeiro sonho da mocidade e última saudade da vida. Leu isso; compreendeu que há ídolos que se não quebram e cultos que não morrem, e veio ter comigo, de seu próprio movimento, cheio daquela cândida confiança de sacerdote novo, resoluto e pio. Veio bem e mal; bem para a minha simpatia, mal para o seu interesse; mas, segundo já disse, nem bem nem mal para o público, diante de quem esta página é demais.

E contudo, meu caro poeta, é difícil esquivar-se um homem que ama as musas a não falar de um poeta novo, em um tempo que precisa deles, quando há necessidade de animar todas as vocações, as mais arrojadas e as mais modestas, para que se não quebre a cadeia de nossa poesia nacional.

Creio que o senhor pertence a essa juventude laboriosa e ambiciosa, que hesita entre o ideal de ontem e uma nova aspiração, que busca sinceramente uma forma substitutiva da que lhe deixou a geração passada. Nesse tatear, nesse hesitar entre duas coisas, - uma bela, mas porventura fatigada, outra confusa, mas nova, - não há ainda o que se possa chamar movimento definido. Basta, porém, que haja talento, boa vontade e disciplina; o movimento se fará por si, e a poesia brasileira não perderá o verdor nativo, nem desmentirá a tradição que nos deixaram o autor do Uruguay34 e o autor dos Timbiras.35

Citei dois mestres; poderia citar mais de um talento original e cedo extinto, a fim de lembrar à recente geração, que, qualquer que seja o caminho da nova poesia, convém não perder de vista o que há essencial e eterno nessa expressão da alma humana. Que a evolução natural das coisas modifique as feições, a parte externa, ninguém jamais o negará; mas há alguma cousa que liga, através dos séculos, Homero e lord Byron,36 alguma cousa inalterável, universal e comum, que fala a todos os homens e a todos os tempos. Ninguém o desconhece, decerto, entre as novas vocações; o esforço empregado em achar e aperfeiçoar a forma, não prejudica, nem poderia alterar a parte substancial da poesia, - ou esta não seria o que é e deve ser.

Venhamos depressa ao seu livro, que o leitor tem ânsia de folhear e conhecer. Estou que se o ler com ânimo repousado, com vista simpática e justa, reconhecerá que é um livro de estreia, incerto em partes, com as imperfeições naturais de uma primeira produção. Não se envergonhe de imperfeições, nem se vexe de as ver apontadas; agradeça-o antes. A modéstia é um merecimento. Poderia lastimar-se se não sentisse em si a força necessária para emendar os senões inerentes aos trabalhos de primeira mão. Mas será esse o seu caso? Há nos seus versos uma espontaneidade de bom agouro, uma natural singeleza, que a arte guiará melhor e a ação do tempo aperfeiçoará.

Alguns pedirão à sua poesia maior originalidade; também eu lha peço. Este seu primeiro livro não pode dar ainda todos os traços de sua fisionomia poética. A poesia pessoal, cultivada nele, está, para assim dizer, exausta; e daí vem a dificuldade de cantar coisas novas. Há páginas que não provêm dela; e, visto que aí o seu verso é espontâneo, cuido que deve buscar uma fonte de inspiração fora de um gênero, em que houve tanto triunfo a par de tanta queda. Para que a poesia pessoal renasça um dia, é preciso que lhe deem outra roupagem e diferentes cores; é precisa outra evolução literária.

O perigo destes prefácios, meu caro poeta, é dizer demais; é ocupar maior espaço do que o leitor pode razoavelmente conceder a uma lauda inútil. Eu creio haver dito o bastante para um homem sem autoridade. Viu que não o louvei em excesso, nem o censurei com insistência; aponto-lhe o melhor dos mestres, o estudo; e a melhor das disciplinas, o trabalho. Estudo, trabalho e talento são a tríplice arma com que se conquista o triunfo.

Machado de Assis.

Rio de Janeiro, 4 de agosto de 1878.

6. Contos seletos das Mil e uma noites, extraídos e redigidos para a mocidade brasileira, segundo o plano de Franz Hoffmann ( 1882 ?), 37 com tradução de Carlos Jansen. 38

O Sr. Carlos Jansen tomou a si dar à mocidade brasileira uma escolha daqueles famosos contos árabes das Mil e uma noites, adotando o plano do educacionista alemão Franz Hoffmann. Esta escolha é conveniente; a mocidade terá assim uma amostra interessante e apurada das fantasias daquele livro, alguns dos seus melhores contos, que estão aqui, não como nas noites de Sheherazade, ligados por uma fábula própria do Oriente, mas em forma de um repositório de coisas alegres e sãs.

Para os nossos jovens patrícios creio que é isto novidade completa. Outrora conhecia-se, entre nós, esse maravilhoso livro, tão peculiar e variado, tão cintilante de pedrarias, de olhos belos, tão opulento de sequins, tão povoado de vizires e sultanas, de ideias morais e lições graciosas. Era popular; e, conquanto não se lesse então muito, liam-se e reliam-se as Mil e uma noites. A outra geração tinha, é verdade, a boa-fé precisa, uma certa ingenuidade, não para crer tudo, porque a mesma princesa narradora avisava a gente das suas invenções, mas para achar nestas um recreio, um gozo, um embevecimento, que ia de par com [as] lágrimas, que então arrancavam algumas obras romanescas, hoje insípidas. E nisto se mostra o valor das Mil e uma noites: porque os anos passaram, o gosto mudou, poderá voltar e perder-se outra vez, como é próprio das correntes públicas, mas o mérito do livro é o mesmo. Essa galeria de contos, que Macaulay citava algumas vezes, com prazer, é ainda interessante e bela, ao passo que outras histórias do Ocidente, que encantaram a geração passada, com ela desapareceram.

Os melhores daqueles, ou alguns dos melhores, estão encerrados neste livro do Sr. Carlos Jansen. As figuras de Simbad, Ali-Babá, Harune Arraxide, o Aladdin da lâmpada misteriosa, passão aqui, ao fundo azul do Oriente, a que a linha curva do camelo e a fachada árabe dos palácios dão o tom pitoresco e mágico daqueles outros contos de fadas da nossa infância. Algumas dessas figuras andam até vulgarizadas em peças mágicas de teatro, pois aconteceu às Mil e uma noites o que se deu com muitas outras invenções: foram exploradas e saqueadas para a cena. Era inevitável, como por outro lado era inevitável que os compositores pegassem das criações mais pessoais e sublimes dos poetas para amoldá-las à sua inspiração, que é por certo fecunda, elevada e grande, mas não deixa de ser parasita. Nem Shakespeare escapou, o divino Shakespeare, como se Macbeth precisasse do comentário de nenhuma outra arte, ou fosse empresa fácil traduzir musicalmente a alma de Hamlet. Não obstante a vulgarização pela mágica de algumas daquelas figuras árabes, elas aí estão com cunho primitivo, esse que dá o silêncio do livro, ajudado da imaginação do leitor.

Este, se ao cabo de poucas páginas vier a espantar-se de que o Sr. Carlos Jansen, brasileiro de adoção, seja alemão de nascimento, e escreva de um modo tão correntio a nossa língua, não provará outra coisa mais do que negligência de sua parte. A imprensa tem recebido muitas confidências literárias do Sr. Carlos Jansen; a Revista Brasileira (para citar somente esta minha saudade) tem nas suas páginas um romance do nosso autor. E conhecer e escrever uma língua, como a nossa, não é tarefa de pouca monta, ainda para um homem de talento e aplicação. O Sr. Carlos Jansen maneja-se com muita precisão e facilidade, e dispõe de um vocabulário numeroso. Este livro é uma prova disso, embora a crítica lhe possa notar uma ou outra locução substituível, uma ou outra frase melhorável. São minúcias que não diminuem o valor do todo.

Esquecia-me que o livro é para adolescentes, e que estes pedem-lhe, antes de tudo, interesse e novidade. Digo-lhes que os acharão aqui. Um descendente de teutões conta-lhes pela língua de Alencar e Garrett umas histórias mouriscas: com aquele operário, esse instrumento e esta matéria, dá-lhes o S. Laemmert,39 velho editor incansável, um brinquedo graciosíssimo, com que podem entreter algumas horas dos seus anos em flor. Sobra-lhes para isso a ingenuidade necessária; e a ingenuidade não é mais do que a primeira porção do unguento misterioso, cuja história é contada nestas mesmas páginas. Esfregado na pálpebra esquerda de Abdallah, deu-lhe o espetáculo de todas as riquezas da terra; mas o pobre-diabo era ambicioso, e, para possuir o que via, pediu ao dervixe que lhe ungisse também a pálpebra direita, com o que cegou de todo. Creio que esta outra porção do unguento é a experiência. Depressa, moços, enquanto o dervixe não unge a outra pálpebra!

Outubro de 1882.

Machado de Assis.

7. Sinfonias ( 1883 ), 40 de Raimundo Correia. 41

Introdução

Suponho que o leitor, antes de folhear o livro, deixa cair um olhar curioso nesta primeira página. Sabe que não vem achar aqui uma crítica severa, tal não é o ofício dos prefácios; - vem apenas lobrigar, através da frase atenuada ou calculada, os impulsos de simpatia ou de favor; e, na medida da confiança que o prefacista lhe merecer, assim lerá ou não a obra. Mas para os leitores maliciosos é que se fizeram os prefácios astutos, desses que trocam todas as voltas, e vão aguardar o leitor onde este não espera por eles. É o nosso caso. Em vez de lhe dizer, desde logo, o que penso do poeta, com palavras que a incredulidade pode converter em puro obséquio literário, antecipo uma página do livro; e, com essa outra malícia, dou-lhe a melhor das opiniões, porque é impossível que o leitor não sinta a beleza destes versos do Dr. Raimundo Correia:

MAL SECRETO Se a cólera que espuma, a dor que mora N'alma, e destrói cada ilusão que nasce, Tudo o que punge, tudo o que devora O coração, no rosto se estampasse; Se se pudesse o espírito que chora, Ver através da máscara da face, Quanta gente, talvez, que inveja agora Nos causa, então piedade nos causasse! Quanta gente que ri, talvez, consigo Guarda um atroz, recôndito inimigo, Como invisível chaga cancerosa! Quanta gente que ri talvez existe, Cuja ventura única consiste Em parecer aos outros venturosa!

Aí está o poeta, com a sua sensibilidade, o seu verso natural e correntio, o seu amor à arte de dizer as coisas, fugindo à vulgaridade, sem cair na afetação. Ele pode não ser sempre a mesma coisa, no conceito e no estilo, mas é poeta, e fio que esta seja a opinião dos leitores, para quem o nome do Dr. Raimundo Correia for inteira novidade. Para outros, naturalmente a maioria, o nome do Dr. Raimundo Correia está apenso a um livro, saído dos prelos de S. Paulo, em 1879, quando o poeta tinha apenas dezenove anos. Esse livro, Primeiros sonhos, é uma coleção de ensaios poéticos, alguns datados de 1877, versos de adolescência, em que, não Hércules menino, mas Baco infante,42 agita no ar os pâmpanos, à espera de crescer para invadir a Índia.43 Não posso dizer longamente o que é esse livro; confesso que há nele o cheiro romântico da decadência, e um certo aspecto flácido; mas tais defeitos, a mesma afetação de algumas páginas, a vulgaridade de outras, não suprimem a individualidade do poeta, nem excluem movimento e a melodia da estrofe. Creio mesmo que algumas composições daquele livro podiam figurar neste sem desdizer do tom nem quebrar-lhe a unidade.

Não foram esses os primeiros versos que li do Dr. Raimundo Correia. Li os primeiros neste mesmo ano de 1882, uns versos satíricos, triolets sonoros, modelados com apuro, que não me pareceram versos de qualquer. Semanas depois, conheci pessoalmente o poeta, e confesso uma desilusão. Tinha deduzido dos versos lindos um mancebo expansivo, alegre e vibrante, aguçado como as suas rimas, coruscante como os seus esdrúxulos, e achei uma figura concentrada, pensativa, que sorri às vezes, ou faz crer que sorri, e não sei se riu nunca. Mas a desilusão não foi uma queda. A figura trazia a nota simpática; o acanho das maneiras vestia a modéstia sincera, de boa raça, lastro do engenho, necessário ao equilíbrio. Achei o poeta deste livro, ou de uma parte deste livro: - um contemplativo e um artista, coração mordido daquele amor misterioso e cruel que é a um tempo a dor e o feitiço das vítimas.

Mas, enfim, Baco conquistou a Índia? Não digo tanto, porque preciso ser sincero, ainda mesmo nos prefácios. Trocou os pâmpanos da puerícia, jungiu ao carro as panteras que o levarão à terra indiana, e não a vencerá, se não quiser. Em termos chãos, o Dr. Raimundo Correia não dá ainda neste livro tudo o que se pode esperar do seu talento, mas dá muito mais do que dera antes; afirma-se, toma lugar entre os primeiros da nova geração. Estuda e trabalha. Dizem-me que compõe com grande facilidade, e, todavia, o livro não é sobejo, ao passo que os versos manifestam o labor de artista sincero e paciente, que não pensa no público senão para respeitá-lo. Não quero transcrever mais nada; o leitor sentirá que há no Dr. Raimundo Correia a massa de um artista, lendo, entre outras páginas, "No banho", o "Anoitecer", "No circo", e os sonetos sob o título de "Perfis românticos", galeria de mulheres, à maneira de Banville.44 Não é sempre puro o estilo, nem a linguagem escoimada de descuidos, e a direção do espírito podia às vezes ser outra; mas as boas qualidades dominam, e isto já é um saldo a favor.

Uma parte desta coleção é militante, não contemplativa, porque o Dr. Raimundo Correia, em política, tem opiniões radicais: é republicano e revolucionário. Creio que o artista aí é menor e as ideias menos originais; as apóstrofes parecem-me mais violentas do que espontâneas, e o poeta mais agressivo do que apaixonado. Note o leitor que não ponho em dúvida a sinceridade dos sentimentos do Dr. Raimundo Correia; limito-me a citar a forma lírica e a expressão poética; do mesmo modo que não desrespeito as suas convicções políticas, dizendo que uma parte, ao menos, do atual excesso ir-se-á com o tempo.

E agora, passe o leitor aos versos, leia-os como se devem ler moços, com simpatia. Onde achar que falta a comoção, advirta que a forma é esmerada, e, se as traduções, que também as há, lhe parecerem numerosas, reconheça ao menos que ele as perfez com o amor dos originais, e, em muitos casos, com habilidade de primeira ordem. É um poeta; e, no momento em que os velhos cantores brasileiros vão desaparecendo na morte, outros no silêncio, deixa que estes venham a ti; anima-os, que eles trabalham para todos.

Julho de 1882.

Machado de Assis

8. Meridionais ( 1884 ), 45 de Alberto de Oliveira. 46

Introdução 47

Quando em 1879, na Revista Brasileira, tratei da nova geração de poetas, falei naturalmente do Sr. Alberto de Oliveira. Vinha de ler o seu primeiro livro, Canções românticas, de lhe dizer que havia ali inspiração e forma, embora acanhadas pela ação de influências exteriores. Achava-lhe no estilo alguma coisa flutuante e indecisa; e, quanto à matéria dos versos, como o poeta dissesse a outro, que também sabia folhear a lenda dos gigantes, dei-lhe este conselho: "Que lhe importa o guerreiro que lá vai à Palestina? Deixe-se ficar no castelo com a filha dele… Não é diminuir-se o poeta; é ser o que lhe pede a natureza. Homero ou Mosckos".48 49 Concluía dizendo-lhe que se afirmasse.

Não trago essa reminiscência crítica (e deixo de transcrever as expressões de merecido louvor), senão para explicar, em primeiro lugar, a escolha que o poeta fez da minha pessoa para abrir este outro livro; e, em segundo lugar, para dizer que a exortação final da minha crítica tem aqui uma brilhante resposta, e que o conselho não foi desprezado, porque o poeta deixou-se estar efetivamente no castelo, não com a filha, mas com as filhas do castelão, o que é ainda mais do que eu lhe pedia naquele tempo.

Que há de ele fazer no castelo, senão amar as castelãs? Ama-as, contempla-as, sai a caçar com elas, fita bem os olhos de uma para ver o que há dentro dos olhos azuis, vai com outra contar as estrelas do céu, ou então pega do leque de uma terceira para descrevê-lo minuciosamente. Esse "Leque", que é uma das páginas características do livro, chega a coincidir com o meu conselho de 1879, como se o poeta, abrindo mão dos heróis, quisesse dar às reminiscências épicas uma transcrição moderna e de camarim: - esse "Leque", é uma redução do escudo de Aquiles. Homero, pela mão de Vulcano, pôs naquele escudo uma profusão de coisas, a terra, o céu, o mar, o sol, a lua e as estrelas, cidades e bodas, pórticos e debates, exércitos e rebanhos. O nosso poeta aplicou o mesmo processo a um simples leque de senhora, com tanta opulência de imaginação no estilo, e tão grego no próprio assunto dos quadros pintados, que fez daquilo uma parelha do broquel homérico. Mas não é isso que me dá o característico da página; é o resumo que ali acho, não de todo, mas de quase todo o poeta: - imaginoso, vibrante, musical, despreocupado dos problemas da alma humana, fino cultor das formas belas, amando porventura as lágrimas, contanto que elas caiam de uns olhos bonitos.

Conclua o leitor, e concluirá bem, que a emoção deste poeta está sempre sujeita ao influxo das graças externas. Não achará aqui o desespero, nem o fastio, nem a ironia do século. Se há alguma gota amarga no fundo da taça de ouro em que ele bebe a poesia, é a saudade do passado ou do futuro, alguma cousa remota no tempo e no espaço, que não seja a vulgaridade presente. Daí essa volta frequente das reminiscências helênicas ou medievais, os belos sonetos em que nos conta o nascimento de Vênus, e tantos outros quadros antigos, ou alusões espalhadas por versos e estrofes. Daí também uma feição peculiar do poeta, o amor da natureza. Não quero fazer extratos, porque o leitor vai ler o livro inteiro; mas o soneto XLI, "Magia selvagem", lhe dará uma expressão enérgica dessa paixão dos espetáculos naturais, ante os quais o poeta exclama:

Todo, ajoelhado e trêmulo, me abisma Cego de assombro extático de gozo.

Cegueira e êxtase: é o limite da adoração. Assim também o "Conselho", página em que ele receita para uma dor moral o contato da floresta; e ainda mais a anterior, "Falando ao sol", em que caracteriza a intensidade e um grande pesar, que então o oprime, afirmando que para esse, nem mesmo a natureza, - "a grande natureza," - pode servir de remédio.

A maior parte das composições são quadros feitos sem outra intenção mais do que fixar um momento ou um aspecto. Geralmente são curtas, em grande parte sonetos, forma que os modernos restauraram, e luzidamente cultivam, pode ser até que com excessiva assiduidade. Os versos do nosso poeta são trabalhados com perfeição. Os defeitos, que os há, não são obra de descuido; ele pertence a uma geração que não peca por esse lado. Nascem, - ora de um momento não propício, - ora do requinte mesmo do lavor; causa esta que já um velho poeta da nossa língua denunciava, e não era o primeiro, com esta comparação: "o muito mimo empece a planta." Mas, em todo caso, se isto é culpa, felix culpa; a troco de algumas partes laboriosas, acabadas demais, ficam as que foram a ponto, e fica principalmente o costume, o respeito da arte, o culto do estilo.

"Manhã de caça", "A volta da galera", "Contraste", "Em caminho", "A janela de Julieta", e não cito mais para não parecer que excluo as restantes, darão ao leitor essa feição do nosso poeta, o amor voluptuoso da forma.

Não lhe pergunteis, por exemplo, na "Manhã de caça", onde é que estão as aves que ele matou. O poeta saiu principalmente à caça de belos versos, e trouxe-os, argentinos e sonoros, um troféu de sonetos. Assim também noutras partes. Nada obsta que os versos bonitos tragam felizes pensamentos, como pintam quadros graciosos. Uns e outros aí estão. Se alguma vez, e rara, a ação descrita parecer que desmente da estrita verdade, ou não trouxer toda a nitidez precisa, podeis descontar essa lacuna, na impressão geral do livro, que ainda vos fica muito; fica-vos um largo saldo de artista e de poeta, - poeta e artista dos melhores da atual geração.

Machado de Assis

14 de janeiro de 1884.

9. Miragens ( 1885 ), 50 de Enéias Galvão. 51

Carta 52

Meu caro poeta,

Este seu livro, com as lacunas próprias de um livro de estreia, tem as qualidades correspondentes, aquelas que são, a certo respeito, as melhores de toda a obra de um escritor. Com os anos, adquire-se a firmeza, domina-se a arte, multiplicam-se os recursos, busca-se a perfeição, que é a ambição e o dever de todos os que tomam da pena para traduzir no papel as suas ideias e sensações. Mas há um aroma primitivo que se perde; há uma expansão ingênua, quase infantil, que o tempo limita e retrai. Compreendê-lo-á mais tarde, meu caro poeta, quando essa hora bendita houver passado, e com ela uma multidão de coisas que não voltam, posto deem lugar a outras que as compensam.

Por enquanto fiquemos na hora presente. É a das confidências pessoais, dos quadros íntimos, é a deste livro. Ao que lho arguirem, pode responder que sempre haverá tempo de alargar a vista a outros horizontes. Pode também advertir que é um pequeno livro, escolhido, que não cansa, e eu acrescentarei, por minha conta, que se pode ler com prazer, e fechar com louvor.

Que há nele alguns leves descuidos, uma ou outra impropriedade, é certo; contudo vê-se que a composição do verso acha da sua parte a atenção que é hoje indispensável na poesia, e, uma vez que enriqueça o vocabulário, ele lhe sairá perfeito. Vê-se também que é sincero, que exprime os sentimentos próprios, que estes são bons, que há no poeta um homem, e no homem um coração.

Ou eu me engano, ou tem aí com que tentar outros livros. Não restrinja então a matéria, lance os olhos além de si mesmo, sem prejuízo, contudo, do talento. Constrangê-lo é o maior pecado em arte. Anacreonte,53 se quisesse trocar a flauta pela tuba, ficaria sem tuba nem flauta; assim também Homero, se tentasse fazer Anacreonte, não chegaria a dar-nos, a troco das suas imortais batalhas, uma das cantigas do poeta de Teos.

Desculpe a vulgaridade do conceito; ele é indispensável aos que começam. Outro que também me parece cabido é que, no esmero do verso, não vá ao ponto de cercear a inspiração. Esta é a alma da poesia, e como toda a alma precisa de um corpo, força é dar-lho, e, quanto mais belo, melhor; mas nem tudo ser corpo. A perfeição, neste caso, é a harmonia das partes.

Adeus, meu caro poeta. Crer nas musas é ainda uma das coisas melhores da vida. Creia nelas, e ame-as.

30 de julho de 1885.

Machado de Assis.

10. Tipos e quadros, sonetos ( 1886 ), 54 de L. L. Fernandes Pinheiro Júnior. 55

Se tão tarde lhe dou a resposta prometida é que não queria imitar o descoco do crítico, objeto de um dos sonetos, que leu a primeira página de dois livros, e louvou justamente o mau, e censurou o bom. Daí a demora, daí e de mil outras circunstâncias, que não aponto aqui para não demorar a carta.

Li o seu livro todo, de princípio a fim, e digo-lhe que absolutamente descabido no livro só acho o último soneto, em que declara não poder acreditar que seja poeta. Outros há que poderiam ser emendados aqui e ali, a matéria de alguns parece menos apropriada; mas, em geral, reconheço com muito prazer que domina o verso, que ele lhe sai expressivo e flexível.

Também notei, em muitas composições, um como que desencanto que me admira nos seus verdes anos. Há nessas uma intenção formal de desfazer nas ações humanas, dando-lhes ou apontando-lhes a causa secreta e pessoal, ou então pondo-lhes ao lado a ação ou o fato contrário. Deus me livre de lhe dizer que não tenha razão em muitos pontos, e ainda menos de lhe aconselhar que faça outra coisa. Noto apenas a minha impressão, diante dos versos de um moço, que eu supunha inteiramente moço.

E aqui observo que um dos mais bonitos sonetos é aquele que tem por título "Aparências", em que se trata de um amigo do poeta, festivo e divertido, mas que leva na alma o espinho da agonia. Vendo a alegria do livro, e a tristeza fundamental de algumas páginas, era capaz de jurar que o amigo do poeta era o próprio poeta.

Não me diga nada em prosa, continue a dizê-lo em verso. Aperta-lhe a mão o Amigo

Machado de Assis.

11. O guarani (1887, 1894), 56 de José de Alencar. 57

Um dia, respondendo a Alencar em carta pública, dizia-lhe eu, com referência a um tópico da sua, - que ele tinha por si, contra a conspiração do silêncio, a conspiração da posteridade. Era fácil antevê-lo: O guarani e Iracema estavam publicados; muitos outros livros davam ao nosso autor o primeiro lugar na literatura brasileira. Há dez anos apenas que morreu; ei-lo que renasce para as edições monumentais, com a primeira daquelas obras, tão fresca e tão nova, como quando viu a luz, há trinta anos, nas colunas do Diário do Rio. É a conspiração que começa.

O guarani foi a sua grande estreia. Os primeiros ensaios fê-los no Correio Mercantil, em 1853, onde substituiu F. Otaviano58 na crônica. Curto era o espaço, pouca a matéria; mas a imaginação de Alencar supria ou alargava as coisas, e com o seu pó de ouro borrifava as vulgaridades da semana. A vida fluminense era então outra, mais concentrada, menos ruidosa. O mundo ainda não nos falava todos os dias pelo telégrafo, nem a Europa nos mandava duas e três vezes por semana, às braçadas, os seus jornais. A chácara de 1853 não estava, como a de hoje, contígua à Rua do Ouvidor por muitas linhas de tramways, mas em arrabaldes verdadeiramente remotos, ligados ao centro por tardos ônibus e carruagens particulares, ou públicas. Naturalmente, a nossa principal rua era muito menos percorrida. Poucos eram os teatros, casas fechadas, onde os espectadores iam tranquilamente assistir a dramas e comédias, que perderam o viço com o tempo. Três deles foram demolidos; resta um, com uso intermitente. A animação da cidade era menor e de diferente caráter. A de hoje é o fruto natural do progresso dos tempos e da população; mas é claro que nem o progresso nem a vida são dons gratuitos. A facilidade e a celeridade do movimento desenvolvem a curiosidade múltipla e de curto fôlego e muitas coisas perderam o interesse cordial e duradouro, ao passo que vieram outras novas e inumeráveis. A fantasia de Alencar, porém, fazia render a matéria que tinha, e não tardou que se visse no jovem estreante um mestre futuro, como Otaviano, que lhe entregara a pena.

Efetivamente, daí a três anos, aparecia O guarani. Entre a crônica e este romance, mediaram, além da direção do Diário do Rio, a famosa crítica da Confederação dos tamoios, e duas narrativas, Cinco minutos e A viuvinha. A crítica ocupou a atenção da cidade durante longos dias, objetos de réplicas, debates, conversações. Em verdade, Alencar não vinha conquistar uma ilha deserta. Quando se aparelhava para o combate e a produção literária, mais de um engenho vivia e dominava, além do próprio autor da Confederação, e para citar só alguns mortos, basta escrever os nomes de Gonçalves Dias, Varnhagen,59 Macedo,60 Porto Alegre,61 Bernardo Guimarães;62 e entre esses, posto que já então finado, aquele cujo livro acabava de revelar ao Brasil um poeta genial: Álvares de Azevedo.63 Não importa; ele chegou, impaciente e ousado, criticou, inventou, compôs. As duas primeiras narrativas trouxeram logo a nota pessoal e nova; foram lidas como uma revelação. Era o bater das asas do espírito, que ia pouco depois arrojar voo até às margens do Paquequer.64

Aqui estão as margens do Paquequer; aqui vem este livro, que foi o primeiro alicerce da reputação de romancista do nosso autor. É a obra pujante da mocidade. Escreve-a à medida da publicação, ajustando-se a matéria ao espaço da folha, condições adversas à arte, excelentes para granjear a atenção pública. Vencer essas condições no que elas eram opostas, e utilizá-las no que eram propícias, foi a grande vitória de Alencar, como tinha sido a do autor d'Os três mosqueteiros.65

Não venho criticar O guarani. Lá ficou, em páginas idas, o meu juízo sobre ele. Quaisquer que sejam as influências estranhas a que obedeceu, este livro é essencialmente nacional. A natureza brasileira, com as exuberâncias que Burke opõe à nossa carreira de civilização, aqui a tendes, vista por vários aspectos; e a vida interior no começo do século XVII devia ser a que o autor nos descreve, salvo o colorido literário e os toques da imaginação, que, ainda quando abusa, delicia. Aqui se encontrará a nota maviosa, tão característica do autor, ao lado do rasgo másculo, como lho pedia o contato e o contraste da vida selvagem e da vida civil. Desde a entrada estamos em puro e largo Romantismo. A maneira grave e aparatosa com que D. Antônio de Mariz66 toma conta de suas terras lembra os velhos fidalgos portugueses, vistos através da solenidade de Herculano; mas já depois intervém a luta do goitacá com a onça, e entramos no coração da América. A imaginação dá à realidade os mais opulentos atavios. Que importa que às vezes a cubram demais? Que importam os reparos que possamos fazer na psicologia do indígena? Fica-nos neste o exemplar da dedicação, como em Cecília o da candura e faceirice; ao todo, uma obra em que palpita o melhor da alma brasileira.

Outros livros vieram depois. Veio a deliciosa Iracema; vieram as Minas de prata, mais vasto que ambos, superior a outros do mesmo autor, e menos lidos que eles; vieram aqueles dois estudos de mulher, Diva e Lucíola, que foram dos mais famosos. Nenhum produziu o mesmo efeito d'O guarani. O processo não era novo; a originalidade do autor estava na imaginação fecunda, - ridente ou possante, - e na magia do estilo. Os nossos raros ensaios de narrativa careciam, em geral, desses dois predicados, embora tivessem outros que lhes davam justa nomeada e estima. Alencar trazia-os, com alguma coisa mais que espertava a atenção: o poder descritivo e a arte de interessar. Curava antes dos sentimentos gerais; fazia-o, porém, com largueza e felicidade; as fisionomias particulares eram-lhes menos aceitas. A língua, já numerosa, fez-se rica pelo tempo adiante. Censurado por deturpá-la, é certo que a estudava nos grandes mestres; mas persistiu em algumas formas e construções, a título de nacionalidade.

Não pude reler este livro, sem recordar e comparar a primeira fase da vida do autor com a segunda. 1856 e 1876 são duas almas da mesma pessoa. A primeira data é a do período inicial da produção, quando a obra paga o esforço, e a imaginação não cuida mais que de florir, sem curar dos frutos nem de quem lhos apanhe. Na segunda, estava desenganado. Descontada a vida íntima, os seus últimos tempos foram de misantropo. Era o que ressumbrava dos escritos e do aspecto do homem. Lembram-me ainda algumas manhãs, quando ia achá-lo nas alamedas solitárias do Passeio Público, andando e meditando, e punha-me a andar com ele, e a escutar-lhe a palavra doente, sem vibração de esperanças, nem já de saudades. Sentia o pior que pode sentir o orgulho de um grande engenho: a indiferença pública, depois da aclamação pública. Começara como Voltaire para acabar como Rousseau. E baste um só cotejo. A primeira de suas comédias, Verso e reverso, obrazinha em dois atos, representada no antigo Ginásio,67 em 1857, excitou a curiosidade do Rio de Janeiro, a literária e a elegante; era uma simples estreia. Dezoito anos depois, em 1875, foram pedir-lhe um drama, escrito desde muito, e guardado inédito. Chamava-se O jesuíta, e ajustava-se fortuitamente, pelo título, às preocupações maçônico-eclesiásticas da ocasião, nem creio que lho fossem pedir por outro motivo. Pois nem o nome do autor, se faltasse outra excitação, conseguiu encher o teatro, na primeira, e creio que única, representação da peça.

Esses e outros sinais dos tempos tinham-lhe azedado a alma. O eco da quadra ruidosa vinha contrastar com o atual silêncio; não achava a fidelidade da admiração. Acrescia a política, em que tão rápido se elevou como caiu, e donde trouxe a primeira gota de amargor. Quando um ministro de Estado, interpelado por ele, retorquiu-lhe com palavras que traziam, mais ou menos, este sentido - que a vida partidária exige a graduação dos postos e a submissão aos chefes, - usou de uma linguagem exata e clara para toda a Câmara, mas ininteligível para Alencar, cujo sentimento não se acomodava às disciplinas menores dos partidos.

Entretanto, é certo que a política foi uma de suas ambições, senão por si mesma, ao menos pelo relevo que dão as altas funções do Estado. A política tomou-o em sua nave de ouro; fê-lo polemista ardente e brilhante, e levantou-o logo ao leme do governo. Não faltava a Alencar mais que uma qualidade parlamentar, a eloquência. Não possuía a eloquência, antes parecia ter em si todas as qualidades que lhe eram contrárias; mas, fez-se orador parlamentar, com esforço, desde que viu que era preciso. Compreendera que sem a oratória, tinha de ficar na meia obscuridade. Se o talento da palavra é a primeira condição do parlamento, no dizer de Macaulay,68 - que escreveu essa espécie de truísmo, suponho, para acrescentar sarcasticamente que a oratória tem a vantagem de dispensar qualquer outra faculdade, e pode muita vez cobrir a ignorância, a fraqueza, a temeridade e os mais graves e fatais erros -, sabemos que para o nosso Alencar, como para os melhores, era um talento complementar, não substitutivo. Deu com ele algumas batalhas duras contra adversários de primeira ordem. Mas tudo isso foi rápido. Teve os gozos intensos da política, não os teve duradouros. As letras, posto que mais gratas que ela, apenas o consolaram; já lhes não achou o sabor primitivo. Voltou a elas inteiramente, mas solitário e desenganado.

A morte veio tomá-lo depressa. Jamais me esqueceu a impressão que recebi quando dei com o cadáver de Alencar no alto da essa, prestes a ser transferido para o cemitério. O homem estava ligado aos anos das minhas estreias. Tinha-lhe afeto, conhecia-o desde o tempo em que ele ria, não me podia acostumar à ideia de que a trivialidade da morte houvesse desfeito esse artista fadado para distribuir a vida.

A posteridade dará a este livro o lugar que definitivamente lhe competir. Nem todos chegam intactos aos olhos dela; casos há em que um só resume tudo o que o escritor deixou neste mundo. Manon Lescaut, por exemplo, é a imortal novela daquele padre que escreveu tantas outras, agora esquecidas.69 O autor de Iracema e d'O guarani pode esperar confiado. Há aqui mesmo uma inconsciente alegoria. Quando o Paraíba alaga tudo, Peri, para salvar Cecília, arranca uma palmeira, a poder de grandes esforços. Ninguém ainda esqueceu essa página magnífica. A palmeira tomba, Cecília é depositada nela, Peri murmura ao ouvido da moça: Tu viverás, e vão ambos por ali abaixo, entre água e céu, até que se somem no horizonte. Cecília é a alma do grande escritor, a árvore é a pátria que a leva na grande torrente dos tempos. Tu viverás!

Referências

  • ASSIS, Machado de. “Juízo Crítico”. In: MASSA, Jean-Michel. "Un ami portugais de Machado de Assis: Antônio Moutinho de Sousa". In: MISCELÂNEA DE ESTUDOS EM HONRA DO PROF. VITORINO NEMÉSIO. Lisboa: Publicações da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1971, p. 241-254.
  • ______. “Juízo Crítico”. In: MASSA, Jean-Michel. “Um amigo português de Machado de Assis: Antônio Moutinho de Sousa”. Trad. Lúcia Granja. Machado de Assis em Linha, vol. 5, n. 10, p. 10-25, dez. 2012.
  • ______. “Juízo Crítico”. In: MASSA, Jean-Michel. "A década do teatro: 1859-1869". Cadernos de Literatura Brasileira: Machado de Assis. São Paulo, INSTITUTO MOREIRA SALLES, n. 23 e 24, p. 219-239, jul. 2008.
  • ______. “Juízo Crítico”. IN: MASSA, Jean-Michel. "Reabilitação de Machado de Assis". In: ANTUNES, Benedito; MOTTA, Sérgio Vicente (Orgs.). Machado de Assis e a crítica internacional. São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 33-54.
  • ______. A história d'este livro (…). In: CYBRÃO, Ernesto. A casa de João Jacques Rousseau: episódio de uma viagem na Suíça. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1868. p. V-VIII.
  • ______. Foi este livro para mim (…). In: NOVAES, Faustino Xavier de. Poesias póstumas. Rio de Janeiro: Tipografia do Imperial Instituto Artístico, 1870. p. I-III.
  • ______. Carta Preliminar. In: MENDONÇA, Lúcio de. Névoas matutinas. Rio de Janeiro: Editor Frederico Thompson. 1872b. p. VII-XII.
  • ______. Introdução. In: CASTRO, Francisco de. Harmonias errantes. Rio de Janeiro: Tip. De Moreira, Maximino & C., 1878. p. VII-XII.
  • ______. Prefácio. In: JANSEN, Carlos. Contos seletos das Mil e uma noites. Rio de Janeiro: Laemmert & C., 1908. p. V-IX.
  • ______. Introdução. In: CORREIA, Raimundo. Sinfonias. Rio de Janeiro: Livraria Editora de Faro & Lino, 1883. p. 5-9.
  • ______. Quando em 1879, na Revista Brasileira (…). In: OLIVEIRA, Alberto de. Meridionais. Rio de Janeiro: Tipografia da Gazeta de Notícias, 1884. p. III-IX.
  • ______. Meu caro poeta (…). In: GALVÃO, Enéias. Miragens. Rio de Janeiro: Tip. de G. Leuzinger & Filhos, 1885. s. p.
  • ______. Se tão tarde (...). In: PINHEIRO JÚNIOR, Luís Leopoldo Fernandes. Tipos e quadros, sonetos. Rio de Janeiro: Tip. União, 1886, s. p.
  • ______. Um Prefácio. O Álbum. Rio de Janeiro, ano 1, n. 52, out. 1894, pp. 413-415.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2023
  • Aceito
    28 Fev 2023
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