Resumo
O câncer de mama representa um problema de saúde pública por ser a neoplasia maligna de maior incidência em mulheres no mundo. A forma hereditária corresponde a cerca de 5% a 10% de todos os casos e está diretamente relacionada à herança de mutações genéticas, sendo as principais nos genes supressores de tumor BRCA1 e BRCA2. A identificação dessas mutações é de extrema importância pelo elevado risco de desenvolvimento de câncer de mama nessa população, permitindo estratégias de rastreamento diferenciado e adoção de medidas de redução de risco. Entretanto, é importante e necessário refletir sobre os aspectos éticos relacionados ao uso indiscriminado de testes genéticos. O objetivo deste trabalho foi avaliar o conhecimento e a opinião de médicos de um centro de referência oncológico sobre a indicação dos testes genéticos de suscetibilidade ao câncer de mama mediante dilemas éticos aos quais são submetidos na prática médica.
Palavras-chave: Neoplasias da mama; Testes genéticos; Genes BRCA1; Genes BRCA2; Ética médica
Abstract
Breast cancer is a public health problem because it is the malignant neoplasm with the highest incidence in women worldwide. The hereditary form corresponds to about 5% to 10% of all cases and is directly related to the inheritance of genetic mutations. The main ones occur in the BRCA1 and BRCA2 tumor suppressor genes. The identification of these mutations is extremely important because of the high risk of breast cancer development in this population, allowing differentiated screening strategies and the adoption of risk reduction measures. However, reflections on the ethical aspects related to the indiscriminate use of genetic testing are important and necessary. The objective of this study was to evaluate the knowledge and opinion of physicians of an oncology reference center on the indication of genetic tests for susceptibility to breast cancer given the ethical dilemmas to which they are submitted in medical practice.
Keywords: Breast neoplasms; Genetic testing; Genes, BRCA1; Genes, BRCA2; Ethics, medical
Resumen
El cáncer de mama representa un problema de salud pública, ya que es la neoplasia maligna con mayor incidencia en las mujeres de todo el mundo. La forma hereditaria corresponde a entre el 5% y el 10% de todos los casos y está directamente relacionada con la herencia de mutaciones genéticas, y las principales se dan en los genes supresores de tumores BRCA1 y BRCA2. La identificación de estas mutaciones es extremadamente importante debido al elevado riesgo de esta población de desarrollar cáncer de mama, además de permitir estrategias de rastreo diferenciadas y la adopción de medidas de reducción del riesgo. Sin embargo, es importante y necesario reflexionar sobre los aspectos éticos relacionados con el uso indiscriminado de las pruebas genéticas. El objetivo de este estudio fue evaluar el conocimiento y la opinión de los médicos de un centro oncológico de referencia sobre la indicación de las pruebas genéticas de susceptibilidad al cáncer de mama mediante los dilemas éticos a los que se ven sometidos en la práctica médica.
Palabras clave: Neoplasias de la mama; Pruebas genéticas; Genes BRCA1; Genes BRCA2; Ética médica
O câncer de mama (CM) representa um problema de saúde pública por ser a neoplasia maligna de maior incidência em mulheres e a primeira causa de mortalidade por neoplasia no sexo feminino. A etiologia do CM é multifatorial, tendo relação com fatores genéticos e ambientais. A forma hereditária corresponde a cerca de 5% a 10% de todos os casos e está diretamente relacionada à herança de mutações genéticas, sendo as principais nos genes supressores de tumor BRCA1 e BRCA2 1,2.
Estima-se que menos de 1% da população geral apresente mutação nos genes BRCA1 e BRCA2, no entanto, a identificação dessas mutações é de extrema importância pelo elevado risco de desenvolvimento de CM nessa população. Entre as pacientes sabidamente portadoras de mutações que elevam o risco para o CM, preconiza-se o rastreio precoce diferenciado ou a adoção de medidas de redução de risco, como a mastectomia bilateral profilática. Sob essa perspectiva, os testes genéticos assumem importância decisiva por corroborar o fortalecimento de uma medicina preventiva, que objetiva prever, evitar e amenizar os males ainda não manifestados 3.
Recomendações atuais sugerem que todas as mulheres, aos 30 anos de idade, devem realizar avaliação de risco para CM para orientar o aconselhamento sobre rastreamento, testes genéticos e tratamentos de redução de risco 4. Em geral, pacientes com história pessoal ou familiar de câncer de ovário em qualquer idade, CM abaixo dos 50 anos, CM bilateral ou do subtipo triplo-negativo em qualquer idade, CM masculino, ou herança judaica Ashkenazi devem ser considerados para aconselhamento genético 5. O médico geneticista determinará se deve realizar o teste e qual seria o teste apropriado para cada paciente, após discutir os riscos e benefícios de tal procedimento.
Nesse contexto, a abordagem molecular para detecção das mutações patogênicas vem adquirindo importância crucial. Contudo, problemas éticos, sociais e legais surgem concomitantemente. Algumas questões valem ser discutidas, como: o direito de realizar o teste em indivíduos sãos; direitos relacionados aos empregadores e seguradoras de saúde; preconceito e constrangimento perante familiares, amigos e sociedade; implicações psicológicas do conhecimento antecipado de uma patologia grave no futuro; vantagens e desvantagens envolvidas no processo; e confiabilidade do diagnóstico 2,6.
Em vista disso, há de se debruçar e refletir a respeito da problematização da recomendação dos testes genéticos. O rastreio de certas doenças pode incluir os pacientes em aparatos médicos com tecnologias avançadas ou excluí-los de uma vida social e laborativa, tornando-os estigmatizados. O objetivo deste trabalho foi avaliar o conhecimento e a opinião dos médicos de um centro de referência oncológico sobre a indicação dos testes genéticos de suscetibilidade ao CM mediante dilemas éticos aos quais são submetidos na prática médica.
Método
Trata-se de um estudo descritivo, de corte transversal, realizado por meio da aplicação de questionário a médicos de um centro de referência oncológico. O trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição e todos os participantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Foram incluídos médicos das seguintes especialidades: genética, mastologia, oncologia, radiologia, patologia e ginecologia.
O instrumento utilizado foi um questionário autoaplicável, adaptado daquele utilizado por Thies, Bockel e Bochdalofsky 7, composto por 28 questões objetivas e dois casos que visavam traçar os dados sociodemográficos da população. Além disso, os participantes foram questionados acerca de seus conhecimentos e opiniões sobre testes genéticos de suscetibilidade ao CM e suas implicações éticas na redução do risco de CM.
O software SPSS versão 20.0 foi utilizado para tabulação e análise dos dados, considerando significância estatística de p<0,05. Para caracterização dos achados, foram utilizados os parâmetros da estatística descritiva e, para a correlação entre variáveis categóricas, foram utilizados os testes qui-quadrado e teste exato de Fisher.
Resultados
Foram incluídos 75 profissionais da área médica, com idade média de 41,2 anos (variando de 28 a 68 anos), dos quais 40 eram homens (53,3%) e 35, mulheres (46,7%); incluíram-se 17 oncologistas (22,7%), três geneticistas (4%), sete mastologistas (9,3%), 11 patologistas (14,7%), 31 radiologistas (41,3%) e seis ginecologistas (8%). A maioria dos entrevistados (42,7%) tinha mais de 15 anos de formação, 32% tinham de 10 a 15 anos, e 21,3%, de cinco a 10 anos.
Quando questionados se conheciam os critérios para indicação do aconselhamento e testes genéticos, 47 afirmaram que sim (62,7%) e 28, que não (37,3%). As especialidades que apresentaram maior percentual de médicos que referiram não conhecer os critérios foram os patologistas (45,5%) e radiologistas (74,2%) (p<0,001).
O principal benefício apontado para realização de um teste genético foi orientar rastreio, recomendações e prevenção (n=57; 76%), seguido por obter estimativas mais precisas de risco de desenvolver câncer (n=25; 33,3%) e confirmar se o CM é hereditário (n=19; 25,3%). Quanto às limitações dos testes, 28 entrevistados (37,3%) consideraram que a principal limitação é que o resultado negativo não exclui o risco de desenvolver câncer esporádico, e 47 (62,7%), que o resultado negativo não exclui mutações em outros genes (variantes de significado incerto).
Em relação aos problemas que podem surgir à medida que forem realizados testes genéticos, o principal foi o efeito psicológico negativo sobre o paciente, apontado por 71 entrevistados (94,7%), seguido de reação social negativa (prejuízo no emprego, estigma de doente, etc.) e problemas com planos de saúde e seguro de vida, ambos apontados por 14 entrevistados (18,7%); problemas com proteção da privacidade das informações pessoais (13 entrevistados, 17,3%); aumento do risco de suicídio (seis entrevistados, 8%); e apenas um entrevistado (1,3%) acreditava que não surgiriam problemas.
Sobre o papel do aconselhamento genético, 58 profissionais (77,3%) responderam que o conselheiro deve apenas informar, e não persuadir, respeitando a individualidade do paciente; enquanto 14 (18,7%) acreditam que o conselheiro está na melhor posição para tomar uma decisão.
Após a consulta de aconselhamento genético, 20 entrevistados (26,7%) concordaram que é lícito desvendar determinados dados genéticos a terceiros, independentemente da vontade do paciente, sempre que esteja em causa a saúde dessas pessoas; e, para 55 (73,3%), os resultados são confidenciais, mesmo que essa atitude ponha em risco a saúde ou a integridade física de terceiros. A maioria (93,3%) concorda que empregadores e companhias de seguro-saúde não deveriam ter acesso aos resultados dos testes.
A grande maioria dos entrevistados acredita que o resultado molecular com mutação patogênica para CM deveria ser fornecido somente ao paciente na presença de um médico geneticista (90,7%) e que esse diagnóstico deveria ser realizado somente por serviços que contam com equipe multidisciplinar que possa oferecer aconselhamento genético, suporte psicossocial e acompanhamento médico aos usuários (97,3%). Após receber o resultado de um teste genético, 37,3% dos entrevistados acreditam que todos os pacientes deveriam realizar acompanhamento médico e/ou psicológico, enquanto 61,3% acreditam que somente os pacientes que tiverem teste positivo deveriam realizar acompanhamento.
Diante de paciente assintomática portadora de mutação patogênica, 38 profissionais (50,7%) indicaram que recomendariam mastectomia e anexectomia bilaterais redutoras de riscos; 33 (44%), a realização de exames de imagem periódicos; e quatro (5,3%), nenhuma das opções. Enquanto a maioria dos oncologistas, geneticistas, mastologistas e ginecologistas (82,4%, 66,7%, 57,1% e 83,3%, respectivamente) recomendaria mastectomia e anexectomia profiláticas, a maioria dos patologistas e radiologistas (81,8% e 64,5%, respectivamente) recomendaria a realização de exames de imagem periódicos para o diagnóstico precoce (p<0,001).
Discussão
É flagrante que a evolução de novas tecnologias na área das ciências biomédicas tem permitido diagnósticos cada vez mais precoces. A partir do mapeamento do genoma humano, os testes genéticos se tornaram uma realidade, desvendando a constituição do DNA e possibilitando a predição de determinadas patologias 8. O questionamento inicial diz respeito à necessidade da realização dos testes genéticos preditivos – ou seja, quem, quando e por que fazê-los. Toda tecnologia acaba sendo apropriada, principalmente na área da saúde, mesmo que seja transitória.
Assim, a descoberta de que a paciente é portadora ou não de mutações nos genes BRCA1 e BRCA2 permeia cada vez mais a prática médica, tornando-se comum validar o exame entre mulheres 9. Essa tendência facilita o tratamento em fases iniciais das doenças, permitindo melhorar seu prognóstico. Entretanto, apesar desses avanços, é importante e necessário refletir sobre o uso indiscriminado dos resultados dos testes genéticos. A divulgação dessas informações de forma descuidada pode trazer malefícios para a paciente, dificultando suas atividades sociolaborais devido ao preconceito.
Ou seja, é inegável a contribuição dos testes genéticos na prevenção de muitas doenças, alinhando-os na pesquisa de rotina moderna. Apesar disso, múltiplos questionamentos são feitos a partir de suas consequências individuais, familiares, sociais, psicológicas e éticas 2,10.
Este estudo, realizado por meio de pesquisa de campo, apresentou resultados relevantes a respeito do tema a ser debatido. A análise a seguir contempla a interseção entre os resultados encontrados comparados à literatura, ponderando os princípios bioéticos e jurídicos, por meio da perspectiva da dignidade da pessoa humana.
Inicialmente, observa-se uma abrangência na multiplicidade de especialidades médicas correlacionadas ao atendimento de mulheres com CM no sentido de compreender melhor sua opinião e conhecimento a respeito da testagem genética. Segundo a literatura, um grupo de profissionais trabalhando de forma transdisciplinar pode abarcar um conhecimento mais aprofundado e permitir melhor acolhimento 2,11.
Na amostra avaliada, não houve diferença significativa relacionada ao gênero, isto é, 53,3% eram homens e 46,7% mulheres. A maioria dos médicos incluídos no estudo apresentava tempo significativo de formação e, consequentemente, experiência na área de atuação e competência para compreender e discernir os saberes consolidados nesse campo.
A grande maioria informou ter ciência dos critérios para indicação do aconselhamento e testes genéticos. Entre a minoria que notificou desconhecimento, estão os médicos patologistas e radiologistas. Acredita-se que esse resultado se origina no fato de que, nessas especialidades, de modo geral, os médicos não têm contato direto com a paciente. Esses profissionais estão mais envolvidos com diagnóstico por imagem e anatomopatológico, podendo justificar o menor compromisso no conhecimento dos critérios para a indicação dos testes genéticos.
Os benefícios dos testes genéticos apontados pelos médicos entrevistados estão relacionados ao rastreio, recomendações e prevenção, seguidos pela possibilidade de obter estimativas mais precisas do risco de desenvolver CM e a confirmação relativa à hereditariedade. Esses dados vão ao encontro das recomendações do uso de testes genéticos para identificar variações patogênicas e hereditariedade 12,13. Testes genéticos relacionados a conhecimento, atitudes e comportamento de comunicação são cuidados primários na prevenção do CM, considerando que podem informar risco estratificado 14,15.
Quanto às limitações dos testes, 62% dos participantes da pesquisa sinalizaram que se preocupam com o resultado negativo. É importante orientar os indivíduos submetidos ao teste que ele não exclui mutações em outros genes não avaliados ou variantes que ainda não têm uma relação patogênica estabelecida, conhecidas como variantes de significado incerto. Além disso, o teste genético negativo não significa que o paciente não tem risco de desenvolver CM, e isso deve ficar claro para não haver prejuízo do rastreamento convencional 16.
No que se refere a problemas oriundos da realização dos testes genéticos, 94,7% apontaram que o principal era o efeito psicológico negativo sobre o paciente, seguido por reação social negativa, como prejuízo no emprego, estigma de doente e problemas relacionados aos planos de saúde e seguros de vida.
Alguns conceitos referentes aos testes genéticos preditivos devem ser mencionados, a fim de melhor clarear a compreensão entre as vantagens e desvantagens da aplicação dos citados testes na contemporaneidade.
Romeo-Malanda e Nicol 17 indicam que, de acordo com a recomendação 5 do Conselho da Europa, de 1997, dados médicos e genéticos apresentam concepções distintas: os primeiros consistem em qualquer informação relativa à saúde de uma pessoa, enquanto os últimos são características hereditárias de um indivíduo ou de um grupo de pessoas. Conforme disposto no inciso XII do artigo 2 da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos18, teste genético é concebido como método que permite detectar a presença, ausência ou modificação de um determinado cromossoma.
O uso inadequado dos resultados dos testes genéticos preditivos pode resultar em agravo e violação de direitos fundamentais do indivíduo 19, os quais estão inseridos no princípio da dignidade da pessoa humana, sendo premissa do Estado democrático de direito 20. Nesse aspecto, muitos países não dispõem de normatização sobre a matéria, sendo necessário o ordenamento jurídico para legitimar a assistência à saúde de forma adequada, conter abusos e pontuar valores éticos e morais.
O estudo evidencia que, no que tange ao papel do aconselhamento genético, houve destaque de 77,3% de respostas favoráveis à informação sem persuadir o paciente, respeitando, portanto, sua autonomia. Entende-se por aconselhamento genético o procedimento de explicar as consequências prováveis dos resultados de um teste ou rastreio genético, constatando seus riscos e benefícios 18. Este conceito remete aos princípios da bioética relativos à beneficência, e não maleficência, para a saúde física e psíquica do paciente, devido ao impacto que o resultado positivo pode provocar em sua psique 8,21.
No aconselhamento genético, é imperativo fornecer informações claras, objetivas, adequadas e apropriadas, além de solicitação antecipada do consentimento livre e esclarecido, expresso e revogável 8. A ausência do aconselhamento pode constituir omissão no processo de avaliação de risco. Essa orientação é usualmente indicada nas diretrizes e protocolos dos profissionais que realizam os testes genéticos preditivos.
Na coleta realizada, 73,3% dos entrevistados concordaram que os resultados devem ser mantidos em sigilo, mesmo que essa atitude ponha em risco a saúde do paciente e a integridade física de terceiros. Esse resultado contraria os postulados éticos e legais da grande maioria dos códigos de ética médica mundiais, segundo os quais o médico é obrigado a quebrar o sigilo para salvaguardar a vida humana. Sobre isso, a constituição de grande parte dos países, sob a égide do Estado democrático do direito, defende a acepção da tese de que a vida é um bem supremo, na sua integralidade e universalidade como pressuposto essencial.
Contudo, há controvérsias nesse tópico devido ao conceito de autonomia, considerada a capacidade de um indivíduo racional de tomar uma decisão não forçada baseada nas informações disponíveis. Na bioética, esse princípio permite ao paciente, estando lúcido e orientado, deliberar a respeito das condutas diagnósticas e terapêuticas de sua vida 21. Sendo assim, a melhor conduta, de acordo com os protocolos estabelecidos, pode contrariar a vontade do enfermo, sendo complexa e paradoxal a tomada de decisão por parte da equipe.
Apesar da pessoa ter o direito de saber as informações no tocante a sua saúde e doença, como Carvalho 22 indica, de acordo com a Convenção dos Direitos Humanos, de 1997, há também o direito oposto. Explicando melhor: se o paciente não deseja ser esclarecido, esse é um direito que lhe assiste – o direito de não saber. Da mesma forma, ele tem o direito de se recusar a se submeter a testes que revelem sua identidade genética. Vale lembrar que a negativa deve ser devidamente documentada e firmada pela paciente.
A maioria dos entrevistados (93,3%) acredita que empregadores e companhias de seguro-saúde não deveriam ter acesso aos resultados dos testes. Nesse percurso, o resultado detectado vai ao encontro dos postulados transcritos dos manuais de ética e bioética e da legislação vigente nos Estados democráticos de direito. É pertinente sacramentar esse princípio, com o propósito de proteger o paciente e as informações geradas pelos testes que podem relegá-lo à margem da sociedade, sofrendo todo tipo de discriminação e preconceito por parte dos próprios seguros-saúde e dificuldades de integração na vida social e laboral.
Em vista da entrega de resultado molecular com mutação patogênica para CM, 97,3% dos entrevistados opinaram que os testes deveriam ser realizados somente por serviços que contam com equipe multidisciplinar que possa oferecer aconselhamento genético, suporte psicossocial e acompanhamento médico aos usuários. Ao comparar os dados obtidos nesta pesquisa, nota-se que são coerentes com aqueles encontrados na literatura, sendo ambos favoráveis à necessidade de encaminhamento de famílias com doenças genéticas para aconselhamento genético e de que os profissionais dessa área invistam mais na humanização do atendimento, com atenção às dimensões psicológicas 11.
Abordagens psicológicas, psicoterapêuticas ou psicossociais devem ser amplamente utilizadas para apoiar e minimizar a angústia do conhecimento dos resultados positivos das testagens genéticas. Entre as justificativas para utilização de apoio terapêutico, pode-se descrever que os médicos percebem que as informações prestadas no Aconselhamento Genético não são neutras do ponto de vista psicológico, mas sim ameaçadoras do ego; a ocorrência da doença genética em uma família desencadeia um processo de luto ou de sofrimento23.
No entanto, esse parecer não encontra assentimento quando o resultado da testagem é negativo: 61,3% dos médicos pesquisados responderam que o acompanhamento psicológico deve ser indicado somente aos pacientes com resultado positivo.
Finalmente, 50,7% dos profissionais avaliados informaram que são favoráveis a procedimentos radicais em pacientes portadoras de mutação genética, mesmo que assintomáticas. Quanto a isso, estudo realizado na França, em 2000, com 700 médicos cirurgiões, ginecologistas e obstetras, revelou que cerca de 90% recomendaram a mamografia no rastreamento do CM, enquanto 18,7% acharam aceitável realizar a mastectomia profilática em casos de mulheres com mutação no gene para o CM, mas somente 10,9% indicaram esse procedimento a partir dos 30 anos de idade 24. Nos Estados Unidos, nota-se maior aceitação da mastectomia profilática, visto que 29% de um grupo de obstetras/ginecologistas e cerca de 50% de um grupo de cirurgiões gerais declararam que recomendariam essa alternativa para mulheres que apresentassem resultado positivo para os genes do CM 25.
Diante do exposto, conclui-se que a mastectomia apresenta caráter agressivo, mutilante e traumatizante para a vida e a saúde da mulher, visto que influencia a dimensão biopsicossocial do espectro feminino 9. Além disso, a mastectomia profilática é uma decisão pessoal, em virtude de possíveis complicações cirúrgicas e problemas psicológicos.
Das mulheres que se submetem à cirurgia, 30% têm complicações no momento e no seguimento cirúrgico e alguns estudos mostram arrependimento de 49% das pacientes 9. Por outro lado, estudos comprovaram que a maioria das mulheres mastectomizadas profilaticamente não apresentaram mudanças significativas em relação à sua autoestima, à satisfação com a aparência, à sensação de feminilidade, e em relação ao estresse e estabilidade emocional 26.
Apesar de tantas polêmicas no meio médico, há consenso de que o procedimento da mastectomia reduz a incidência do carcinoma mamário em mulheres com mutação nos genes BRCA1 e BRCA2 9. Quando realizada de forma profilática, é menos invasiva e gera menos sofrimento se a reconstrução for imediata, provavelmente devido ao resultado estético alcançado. Desde o emprego da técnica, ocorreram várias modificações: inicialmente era realizada a mastectomia radical, mais invasiva e traumatizante; recentemente, realiza-se a chamada mastectomia modificada, menos agressiva.
Considerações finais
De forma concisa, pode-se concluir que a temática abordada neste trabalho apresenta opiniões conflitantes a respeito da indicação dos testes genéticos preditivos. O eixo central do desenho da pesquisa é alinhado à opinião dos médicos, de especialidades distintas, que fazem parte das equipes de uma unidade dedicada ao diagnóstico e tratamento do câncer, especialmente do CM.
Com o progresso tecnológico, a realização de testes genéticos preditivos é uma realidade no mundo. As incertezas se relacionam a quem e quando recomendar os exames, além da indicação do tratamento. Nessa perspectiva, o ideário norteador consiste no maior benefício possível com o menor risco exequível, tanto para as condutas indicadas, quanto para a informação dos resultados.
A divulgação dos resultados dos testes é uma ameaça para a paciente, acarretando angústia, depressão e luto na dimensão psicológica. No prisma da guarda do sigilo, expõe a paciente ao risco de exclusão dos planos de seguro-saúde e do desemprego por preconceito e discriminação.
O aconselhamento genético, por meio de equipes multiprofissionais, tem sido sinalizado como fator preponderante para situar a paciente dentro da nova realidade, acolhendo sua dor e auxiliando suas dificuldades. É fundamental reconceituar os modelos atuais para que as equipes possam se comprometer com a paciente, estando conscientes da complexidade do problema.
À luz da bioética, a mastectomia profilática é ainda um assunto polêmico. É circundada por ambiguidades, com fortes questionamentos éticos, não encontrando consenso entre os médicos e a comunidade científica. Vale registrar que a decisão sobre o procedimento é inexoravelmente pessoal, depois da paciente conhecer e tomar consciência das alternativas e de suas consequências.
Tendo em vista os aspectos observados, acredita-se que os questionamentos aqui suscitados podem ajudar a nortear a decisão sobre a indicação de testes genéticos e seus efeitos. Portanto, recomenda-se instrumentar os médicos que atuam nessas equipes no sentido de ampliar seu conhecimento a respeito do conteúdo abordado, buscando reduzir o sofrimento e aprimorar a qualidade de vida das pacientes.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
28 Nov 2022 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2022
Histórico
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Recebido
28 Dez 2021 -
Revisado
11 Ago 2022 -
Aceito
17 Ago 2022