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Consentimento e esclarecimento: dever e direito à informação em odontologia

Resumo

Estudos acerca do consentimento informado de paciente no âmbito da odontologia são escassos e apresentam divergências, evidenciando a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre definições, dinâmica, atos normativos, jurisprudência e limites de responsabilidade diante de fatores diversos e riscos inerentes à profissão. Por meio de revisão bibliográfica que incluiu estudos indexados nas bases de dados SciELO e LILACS, bem como livros-texto, buscou-se definir o que se entende por consentimento livre e esclarecido do paciente, distinguir diferentes tipos e destacar a denominada “escolha esclarecida”, considerando que a atividade do cirurgião-dentista é classificada como serviço e é regulamentada pela Constituição Federal de 1988, Código de Defesa do Consumidor, Código Civil e leis especiais. Diante disso, busca-se verificar se é possível melhorar a obtenção do consentimento informado do paciente, transformando-a em processo de escolha esclarecida que considere tratamentos adequadamente indicados cuja finalidade principal é a saúde.

Palavras-chave
Odontologia; Consentimento livre e esclarecido; Preferência do paciente; Decretos

Abstract

Studies on informed patient consent in the field of dentistry are scarce and present divergences, highlighting the need to deepen knowledge about definitions, dynamics, normative acts, case law and limits of responsibility in the face of diverse factors and risks inherent to the profession. From a bibliographic review that included studies indexed in the SciELO and LILACS databases, as well as textbooks, this study aimed to define what is meant by a patient’s free and informed consent, distinguish different types and highlight the so-called “informed choice,” considering that the activity of the dental surgeon is classified as a service and is regulated by the 1988 Federal Constitution of Brazil, the Consumer Defense Code, the Civil Code and special laws. The aim is to see if it is possible to improve the process of obtaining informed consent from patients, transforming it into a process of informed choice that takes into account appropriately indicated treatments whose main purpose is health.

Keywords
Dentistry; Informed consent; Patient preference; Decrees

Resumen

Los estudios del consentimiento informado del paciente en odontología son escasos y presentan divergencias, lo que revela la necesidad de profundizar en el conocimiento en definiciones, dinámicas, actos normativos, jurisprudencia y límites de responsabilidad frente a diversos factores y riesgos relacionados a la profesión. A partir de una revisión bibliográfica en las bases de datos SciELO y LILACS, y en libros, se buscó definir qué se entiende por consentimiento informado del paciente, distinguir diferentes tipos e identificar la llamada “decisión aclarada”, considerando que la actividad del cirujano dental está clasificada como un servicio y reglamentada por la Constitución Federal de 1988, el Código de Defensa del Consumidor, el Código Civil y leyes especiales. Se busca identificar si es posible mejorar el consentimiento informado al convertirlo en un proceso de obtención de decisión aclarada que considere adecuadamente los tratamientos cuya principal finalidad sea la salud.

Palabras clave
Odontología; Consentimiento informado; Prioridad del paciente; Decretos

Apesar de atualmente constituir um ramo específico do saber situado na área de concentração das ciências da saúde e apresentar diversos segmentos, historicamente, a odontologia funcionou como um apêndice da medicina, sendo exercida por cirurgiões ou pelos chamados práticos, que não tinham formação técnico-científica 11. Starling HMM. Odontologia: história restaurada. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2007.,22. Brasil. Decreto nº 8.024, de 12 de março de 1881. Manda executar o regulamento para os exames das faculdades de medicina. Coleção de Leis do Império do Brasil [Internet]. Rio de Janeiro, vol. 1, pt. 2, p. 171, 1881 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/438jyY9
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. No Brasil, a odontologia foi reconhecida como curso superior apenas em 1884, com o Decreto 9.311/1884 33. Brasil. Decreto nº 9.311, de 25 de outubro de 1884. Dá novos estatutos às faculdades de medicina. Coleção de Leis do Império do Brasil [Internet]. Rio de Janeiro, vol. 1, pt. 2, p. 478, 1884 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3V7iAcF
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. No decorrer de sua trajetória, passou por dois períodos bem distintos: o pré-cientificismo (sem formação profissional) e o cientificismo (com formação e pesquisa) 44. Cunha E. História da odontologia no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Científica; 1921.,55. Rosenthal E. A odontologia no Brasil no século XX. São Paulo: Santos; 2001..

No século XXI, surgiram inúmeros avanços nos mais diversos setores, como: uso da membrana de L-PRF para diminuir o tempo de cicatrização de tecidos duros e moles; tecnologias computer-aided design/computer-aided manufacturing (desenho assistido por computador/manufatura assistida por computador – CAD/CAM) e 3D, que possibilitam a projeção e confecção de dentes em computador; ultrassonografia cirúrgica, para cortes de tecidos duros e preservação de tecidos moles; próteses de zircônia e porcelana; cirurgia guiada e escaneamento intraoral; células-tronco mesenquimais, visando a regeneração tecidual; aparelhos ortodônticos invisíveis; anestesia eletrônica; e o desenvolvimento de técnicas avançadas em cirurgia e traumatologia bucomaxilofaciais, utilizadas em casos como os de retenções dentárias, que podem ser tratadas por meio da apicectomia e da laçada dupla, e de pacientes com anquilose da articulação temporomandibular, que têm a opção de ser tratados com a artroplastia biconvexa de Puricelli 66. Ortega-Mejia H, Estrugo-Devesa A, Saka-Herrán C, Ayuso-Montero R, López-López J, Velasco-Ortega E. Plasma rico em plaquetas no aumento do seio maxilar: revisão sistemática. Materials (Basel) [Internet]. 2020 [acesso 23 fev 2024];13(3):622. DOI: 10.3390/ma13030622
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,77. Godoy AS. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas [Internet]. 1995 [acesso 23 fev 2024];35(2):57-63. Disponível: https://bit.ly/3ItxfaJ
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.

Essa evolução na odontologia, contudo, não foi suficiente para solucionar todos os casos, pois o sucesso de um tratamento odontológico depende de um conjunto de fatores, como a avaliação criteriosa, exames clínicos e complementares, diagnóstico preciso e planejamento adequado. Isso ocorre porque os dados podem apontar opções de terapias variadas, e é necessário que paciente seja adequadamente informado para aderir ao tratamento 55. Rosenthal E. A odontologia no Brasil no século XX. São Paulo: Santos; 2001.,66. Ortega-Mejia H, Estrugo-Devesa A, Saka-Herrán C, Ayuso-Montero R, López-López J, Velasco-Ortega E. Plasma rico em plaquetas no aumento do seio maxilar: revisão sistemática. Materials (Basel) [Internet]. 2020 [acesso 23 fev 2024];13(3):622. DOI: 10.3390/ma13030622
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Além disso, deve-se considerar fatores relacionados à ética profissional, que trata do estudo da moralidade aplicada à prática diária. A autonomia é um dos princípios mais importantes da bioética, sendo talvez o mais discutido na literatura da área, especialmente no que se refere à relação profissional-paciente e à obtenção de consentimento informado. Nesse contexto, considera-se que, para que o paciente exerça sua autonomia, nenhum procedimento terapêutico pode ser realizado sem o consentimento, verbal ou escrito, dele ou, se for o caso, de um representante legal 77. Godoy AS. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas [Internet]. 1995 [acesso 23 fev 2024];35(2):57-63. Disponível: https://bit.ly/3ItxfaJ
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,88. Capron AM. (Almost) everything you ever wanted to know about informed consent [Review of: Faden, RR and Beauchamp, TL. A history and theory of informed concsent. New York and Oxford: Oxford University Press, 1986]. Med Humanit Rev [Internet]. 1986 [acesso 23 fev 2024];1(1):78-82. Disponível: https://bit.ly/3Pczlj4
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Para garantir a perfeita a comunicação entre paciente e profissional, é necessário o consentimento informado, que consiste em esclarecer previamente o paciente quanto à prática profissional, preconizando, assim, o aperfeiçoamento da ética biomédica. Considerando a escassa literatura sobre o tema, esta revisão visa esclarecer a importância do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) na relação paciente-profissional. Com isso, busca-se evidenciar a necessidade de aprofundar o conhecimento sobre definições, dinâmica, atos normativos, jurisprudência, limites de responsabilidade diante de fatores diversos e riscos inerentes à profissão.

Para compreender um fenômeno em seu contexto de ocorrência, é necessário que ele seja analisado numa perspectiva integrada, por meio da qual informações dispersas sejam sintetizadas de forma lógica 77. Godoy AS. Introdução à pesquisa qualitativa e suas possibilidades. Revista de Administração de Empresas [Internet]. 1995 [acesso 23 fev 2024];35(2):57-63. Disponível: https://bit.ly/3ItxfaJ
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. Nesse sentido, utilizou-se a abordagem qualitativa a partir do método lógico-dedutivo, com enfoque explicativo 99. Lakatos EM, Marconi MA. Fundamentos da metodologia científica. 5ª ed. São Paulo: Atlas; 2003.. Para isso, realizou-se pesquisa bibliográfica 1010. Gil AC. Como elaborar projetos de pesquisa. 4ª ed. São Paulo: Atlas; 2008. que incluiu estudos indexados nas bases de dados SciELO e LILACS, bem como livros-texto editados nos últimos anos.

Revisão da literatura

A literatura especializada tem registrado a complexidade do trabalho do profissional da odontologia em seus mais diversos aspectos e competências. Para Kak, Burkhalter e Cooper 1111. Kak N, Burkhalter B, Cooper MA. Measuring the competence of healthcare providers. Operations Research Issue Paper [Internet]. 2001 [acesso 23 fev 2024];2(1):1-28. Disponível: https://bit.ly/3PeCTBd
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, habilidades clínicas e atributos pessoais, que incluem atitudes, autocontrole e autoconfiança, somados a habilidades de comunicação, interação interpessoal e raciocínio clínico, são alguns dos elementos das competências. Trata-se de um profissional multifacetado, versátil e abrangente.

É importante destacar que as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia informam, no art. 5º, que o profissional deve desenvolver as competências de forma articulada ao contexto social 1212. Brasil. Ministério da Educação. Resolução nº 3, de 21 de junho de 2021. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Odontologia e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 76-8, 22 jun 2021 [acesso 6 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3V07A0O
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. Na análise de Morita e Kriger 1313. Morita MC, Kriger L. Mudanças nos cursos de odontologia e a interação com o SUS. Rev ABENO [Internet]. 2004 [acesso 23 fev 2024];4(1):17-21. DOI: 10.30979/rev.abeno.v4i1.1495
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, o currículo desse profissional apresenta competências e habilidades oriundas das ciências humanas e sociais, às quais Zanetti e Sousa Nétto 1414. Zanetti CHG, Sousa Nétto OB. Para abrir a Ciência Odontológica: buscas epistêmicas para uma formação mais plural e democrática, humana e mundana. Rev ABENO [Internet]. 2022 [acesso 12 mar 2024];22(2):1726. DOI: 10.30979/revabeno.v22i2.1726
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acrescentam habilidades coletivas.

Nas últimas décadas, essa complexidade também foi abrangida pela legislação, com a responsabilização de profissionais por produtos ou serviços. Nesse sentido, a odontologia está regulamentada pela Lei 5.081/1966 1515. Brasil. Lei nº 5.081, de 24 de agosto de 1966. Regula o exercício da odontologia. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 1966 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://tny.im/ioLmm
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, cujas disposições são aplicadas às relações entre cirurgiões-dentistas e pacientes, da mesma forma que pelo Código Civil 1616. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2002 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/438h5gd
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e pelo Código de Defesa do Consumidor 1717. Brasil. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2012 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3SY1o6E
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, tendo em vista a existência de uma relação de consumo na prestação de serviços odontológicos.

Parece não haver consenso sobre se a obrigação do profissional da odontologia é de meio ou de resultado, entretanto, no Brasil, a maioria dos profissionais liberais tem obrigação contratual de meio 1818. Conselho Federal de Odontologia. Resolução nº 196, de 29 de janeiro de 2019. Autoriza a divulgação de autoretratos (selfie) e de imagens relativas ao diagnóstico e ao resultado final de tratamentos odontológicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 31 jan 2019 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/43dJFgn
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,1919. Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1238746 MS 2010/0046894-5. 4ª turma. Ministro Luis Felipe Salomão, de 18 de outubro de 2011. Superior Tribunal de Justiça [Internet]. 2011 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3V2EBJP
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. Portanto, o dever do dentista seria atuar com dedicação, desvelo e compromisso, empregando a melhor técnica e perícia ao caso, mas é preciso ter em conta que o resultado esperado pode não ser alcançado. Por outro lado, nas obrigações de resultado, o profissional assume a efetivação deste.

Paciente informado

Atualmente, o vínculo entre cirurgiões-dentistas e pacientes é de natureza personalíssima e tem como um de seus pilares a informação. O Código de Ética Odontológica, ao tratar do relacionamento com o paciente, dispõe no art. 11 que é infração ética:

IV – deixar de esclarecer adequadamente os propósitos, riscos, custos e alternativas do tratamento;

(…)

X – iniciar qualquer procedimento ou tratamento odontológico sem o consentimento prévio do paciente ou do seu responsável legal, exceto em casos de urgência ou emergência 2020. Conselho Federal de Odontologia. Resolução nº 118/2012. Revoga o Código de Ética Odontológica aprovado pela Resolução CFO-42/2003 e aprova outro em substituição. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2012 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3PaH5lk
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.

Na filosofia, Kant 2121. Kant I. Fundamentación de la metafísica de las costumbres. 7ª ed. Madrid: Espasa Calpe; 1981. entendia a autonomia como um princípio relacionado a um dos mais importantes aspectos do ser humano – sua vontade. Nessa perspectiva, enquanto for capaz de decidir o que deve ou não fazer, a pessoa é responsável por suas ações. Com base nisso, entende-se que o paciente precisa ser capaz de entender e decidir sobre seu próprio destino de forma voluntária e que, portanto, a informação sobre possíveis riscos e benefícios dos procedimentos deve ser fornecida de maneira clara e precisa 1616. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2002 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/438h5gd
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,2121. Kant I. Fundamentación de la metafísica de las costumbres. 7ª ed. Madrid: Espasa Calpe; 1981..

De forma similar ao que vem ocorrendo com outras ciências da saúde, a odontologia tem sofrido com a atribuição de um enfoque fortemente comercial a suas atividades 2222. Cavalcanti AL, Ó Silva AL, Santos BF, Azevedo CKR, Xavier AFC. Odontologia e o Código de Defesa do Consumidor: análise dos processos instaurados contra cirurgiões-dentistas e planos odontológicos em Campina Grande - Paraíba. Rev Odontol Unesp [Internet]. 2011 [acesso 23 fev 2024];40(1):6-11. Disponível: https://tny.im/a0Co8
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. Em alguns casos, isso ocorre porque o paciente que contrata serviços odontológicos almeja um resultado específico, não levando em conta a possibilidade de diferentes respostas biológicas e/ou intercorrências como rejeição, dor, sangramento e edema.

É preciso considerar que, em algumas circunstâncias, os próprios pacientes desconsideram, total ou parcialmente, o plano de tratamento indicado ao caso clínico, preferindo ser submetidos a procedimentos que consideram condizentes com seus interesses. Por esse e outros motivos, Latorraca, Flores e Silva 2323. Latorraca MM, Flores MRP, Silva RHA. Conhecimento dos aspectos legais da documentação odontológica de cirurgiões-dentistas do município de Franca, SP, Brasil. RFO UPF [Internet]. 2012 [acesso 23 fev 2024];17(3):268-72. Disponível: https://tny.im/7HAx
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mencionam a importância de o profissional orientar detalhadamente seus pacientes sobre opções de tratamento adequadas ao caso clínico e registrar em prontuário.

Cirurgião-dentista e obtenção do consentimento

Todo caso clínico é dotado de certa complexidade e particularidade, uma vez que dentes e boca são partes integrantes de um ser, que desempenham funções fisiológicas consideráveis e vitais para a saúde. Desse modo, a odontologia, como ciência e técnica, deve conciliar-se com as escolhas e demandas do paciente, e o cirurgião-dentista, estando ciente da impossibilidade de prever todas as ocorrências, vê-se então diante da necessidade de utilizar o consentimento informado.

Visando prevenir quaisquer incidentes de ordem jurídica, de modo geral, comunicação eficiente e documentação clínica bem estruturada (prontuário) são fundamentais e, muitas vezes, suficientes. A comunicação eficiente envolve alternativas de tratamento, possíveis riscos, efeitos, custos, momento em que o procedimento ou tratamento será iniciado e consentimento do paciente ou de seu responsável legal 2020. Conselho Federal de Odontologia. Resolução nº 118/2012. Revoga o Código de Ética Odontológica aprovado pela Resolução CFO-42/2003 e aprova outro em substituição. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2012 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3PaH5lk
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. Assim como o comportamento dos pacientes vem mudando com o avanço do desenvolvimento cultural e científico, profissionais têm se preocupado em construir um relacionamento sólido com seus pacientes, para que o tratamento possa ocorrer de forma transparente e amigável 2424. Piva F, Dal Magro C, Closs LQ, Freitas MPM, Nakamura E. Proposta de um modelo de consentimento informado para a clínica ortodôntica. Rev. Clín. Ortd. Dental Press [Internet] 2011 [acesso 23 fev 2024];10(3):52-6. Disponível: https://tny.im/ETQbo
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.

Atualmente, a relação profissional-paciente baseia-se em múltiplos instrumentos norma- tivos, tais como a Constituição Federal de 1988 2525. Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 1, 5 out 1988 [acesso 11 jan 2023]. Seção 1. Disponível: https://bit.ly/3Bcb8SS
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, o Código Civil brasileiro 1616. Brasil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2002 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/438h5gd
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, o Código de Ética Odontológica 2020. Conselho Federal de Odontologia. Resolução nº 118/2012. Revoga o Código de Ética Odontológica aprovado pela Resolução CFO-42/2003 e aprova outro em substituição. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2012 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3PaH5lk
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e o Código de Defesa do Consumidor 1717. Brasil. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, 2012 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3SY1o6E
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, que chega a tipificar a relação como de consumo (consumidor-prestador de serviço).

Ressalta-se que, além de ter finalidade meramente defensiva, como prova em eventual demanda judicial, o TCLE constitui a formalização de uma relação terapêutica de confiança, aceitação e bem-estar físico e psíquico entre o cirurgião-dentista e o paciente.

Para Roberto, o consentimento informado é o consentimento dado pelo paciente, baseado no conhecimento da natureza do procedimento a ser submetido e dos riscos, possíveis complicações, benefícios e alternativas de tratamento 2626. Roberto LM. Responsabilidade civil do profissional de saúde & consentimento informado. 2ª ed. Curitiba: Juruá Editora; 2008. p. 80.. Assim, fica claro que o processo de esclarecimento e de consentimento é, concomitantemente, direito e dever de ambas as partes.

O Superior Tribunal de Justiça, em decisão que revisou julgamento de caso cujo objeto foi a responsabilização do profissional, faz uma importante distinção entre informação genérica e específica. O ministro Luiz Felipe Salomão, relator do Recurso Especial 1.238.746/2010, deixou claro que há efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso concreto do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica 1919. Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1238746 MS 2010/0046894-5. 4ª turma. Ministro Luis Felipe Salomão, de 18 de outubro de 2011. Superior Tribunal de Justiça [Internet]. 2011 [acesso 23 fev 2024]. Disponível: https://bit.ly/3V2EBJP
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.

Uma questão que ainda não foi devidamente solucionada é referente a quais informações devem ser prestadas ao paciente. Pereira 2727. Pereira AD. O Consentimento Informado na relação médico-paciente. Coimbra: Coimbra Editora; 2004.relata a possibilidade de utilizar o critério do paciente concreto, isto é, dar as informações que determinada pessoa, de acordo com seu conjunto cognitivo, precisa e desejaria saber para tomar sua decisão.

Considerações finais

Este trabalho não objetivou abranger todos os aspectos inerentes ao consentimento informado e sua complexa dinâmica. Em vez disso, buscou-se assinalar pontos críticos, como direitos e deveres implicados numa relação de consumo definida nos moldes do Código de Defesa do Consumidor e de acordo com a visão mais atual do Superior Tribunal de Justiça quanto à informação específica.

Levando em conta princípios bioéticos e legais, como racionalidade, autonomia (ou autodeterminação), informação, consentimento e paciente concreto, desponta a possibilidade de aperfeiçoar o atual sistema de obtenção do consentimento do paciente, transmudando-o em um processo de terapêutica da confiança e consequente escolha esclarecida. Nessa dinâmica, não se pode esquecer dos diversos tipos de pessoas com suas singularidades, o que afasta o uso de um padrão uno na obtenção da declaração de vontade.

É preciso fazer uma crítica ao consentimento meramente formal, a fim de valorizar o consentimento informado, por meio do qual, a partir de elementos compreensíveis, o paciente pode consentir, optar por outra alternativa ou até recusar intervenções propostas. A saudável relação entre cirurgião-dentista e paciente não deve ser reduzida à assinatura de um documento impresso com palavras e expressões muitas vezes não lidas nem compreendidas. Além disso, é certo que o processo de consentimento não é um fim em si mesmo, bem como que a ausência de alguma informação não caracteriza atitude negligente.

Referências

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    Starling HMM. Odontologia: história restaurada. Belo Horizonte: Editora UFMG; 2007.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Ago 2023
  • Revisado
    26 Fev 2024
  • Aceito
    27 Fev 2024
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