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Diretivas antecipadas de vontade como temática da educação médica

Resumo

A pesquisa investigou o conhecimento de professores e alunos do internato médico acerca das diretivas antecipadas de vontade, que visam assegurar os direitos dos pacientes de registrar sua preferência pelos cuidados médicos a que serão submetidos quando estiverem incapacitados de tomar decisões. Trata-se de estudo transversal, descritivo, observacional, com abordagem majoritariamente quantitativa, que contou com a participação de 30 professores do curso de medicina e 121 acadêmicos de medicina vinculados a duas instituições de ensino localizadas em Belém/PA. Os resultados revelaram lacunas no conhecimento a respeito do tema, apontando a necessidade de uma abordagem mais aprofundada durante a formação e a prática médica. Conclui-se que é necessário intensificar a divulgação de diretivas antecipadas de vontade no âmbito do ensino médico, de forma a favorecer a autonomia e o compartilhamento das decisões.

Palavras-chave
Diretivas antecipadas; Assistência terminal; Educação médica; Conhecimento; Bioética

Abstract

This study investigated the knowledge of medical professors and students during internship regarding advance directives, a device that aims to ensure the right of patients to record their preference for medical care they will be subject to when incapable of making decisions. This is a cross-sectional, descriptive and observational study with a mostly quantitative approach, of which participated 30 professors and 121 medical students from two teaching institutions in Belém/PA. The results identified gaps in the knowledge about the topic, pointing to the need for a deeper approach during medical training and practice. It is concluded that the divulging of advance directives in medical training should be more intense to favor autonomy and share decision making.

Keywords
Advance directives; Terminal care; Education, medical; Knowledge; Bioethics

Resumen

Esta investigación analizó el conocimiento de profesores y estudiantes de medicina sobre las directivas anticipadas, cuyo objetivo es garantizar los derechos de los pacientes a expresar su preferencia por la atención médica cuando ya no son capaces de comunicarse. Se trata de un estudio transversal, descriptivo, observacional, con enfoque mayoritariamente cuantitativo, en el que participaron 30 profesores de medicina y 121 estudiantes de medicina de dos instituciones de enseñanza situadas en Belém/PA. Los resultados revelaron vacíos en el conocimiento sobre el tema, lo que demuestra la necesidad de un abordaje en profundidad durante la formación y la práctica médica. Se concluye que hay una necesidad de intensificar el conocimiento de las voluntades anticipadas en la formación médica para favorecer la autonomía y la toma de decisiones compartida.

Palabras clave
Directivas anticipadas; Cuidado terminal; Educación médica; Conocimiento; Bioética

Nos últimos anos, tem se intensificado a discussão sobre o respeito à autonomia do paciente como diretriz ética das práticas médicas. Embora a autonomia constitua um dos pilares da ética médica, estudiosos chamam atenção para as dificuldades em sua aplicabilidade prática, particularmente nos países latino-americanos. Um dos entraves à operacionalização recai no predomínio de práticas hierárquicas e paternalistas que caracterizam o cenário das relações entre médicos e pacientes, tema que tem ganhado progressiva visibilidade no âmbito da bioética, com impactos no ensino e na prática profissional 11. Garrafa V, Martorell LB, Nascimento WF. Críticas ao principialismo em bioética: perspectivas desde o norte e desde o sul. Saúde Soc [Internet]. 2016 [acesso 5 mar 2024];25(2):442-45. DOI: 10.1590/S0104-12902016150801
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,22. Santos M, Alves MCF. Diretivas antecipadas de vontade (DAV) e autonomia da vontade: uma materialização de direitos fundamentais. Revista Brasileira de Direitos e Garantias Fundamentais [Internet]. 2023 [acesso 5 mar 2024];9(1):21-37. DOI: 10.26668/IndexLawJournals/2526-0111/2023.v9i1.9587
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.

Além do paternalismo médico, em muitos países, a exemplo do Brasil, o desejo dos familiares costuma prevalecer em contraposição à manifestação de vontade do paciente, resultando na ideia de que a família tem autoridade, inclusive legal, para decidir pelo paciente 33. Lima AFA, Machado FIS. Médico como arquiteto da escolha: paternalismo e respeito à autonomia. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2021 [acesso 5 mar 2024];29(1):44-54. DOI: 10.1590/1983-80422021291445
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. Embora sejam compreensíveis cuidados e restrições em relação a crianças, adolescentes e pessoas sem competência legal para a tomada de decisões, a autonomia ainda é um desafio a ser enfrentado 44. Kipper DJ. Limites do poder familiar nas decisões sobre a saúde de seus filhos - diretrizes. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2015 [acesso 5 mar 2024];23(1):40-50. DOI: 10.1590/1983-80422015231044
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5. Albuquerque R, Garrafa V. Autonomia e indivíduos sem a capacidade para consentir: o caso dos menores de idade. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2016 [acesso 5 mar 2024];24(3):452-8. DOI: 10.1590/1983-80422016243144
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-66. Oliveira JS, Bruzaca RD. A interpretação dos tribunais de justiça estaduais brasileiros sobre papel das diretivas antecipadas de vontade para preservação da autonomia do paciente. Revista Jurídica da FA7 [Internet]. 2022 [acesso 5 mar 2024];19(2):87-104. DOI: 10.24067/rjfa7;19.2:1667
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.

Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), diretivas antecipadas de vontade (DAV) são um conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 5 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://tny.im/s5K8r
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. Para o CFM, as DAV prevalecerão sobre qualquer outro parecer não médico, inclusive sobre os desejos de familiares.

Além disso, caso o paciente tenha designado um representante, suas informações também serão levadas em consideração pelo profissional médico. Ainda, em caso de dúvidas, o médico deverá recorrer ao comitê de ética médica da instituição, ao Conselho Regional de Medicina (CRM) ou ao CFM, visando ajustar suas decisões ao melhor interesse do paciente 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 5 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://tny.im/s5K8r
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.

Vale ressaltar que o CFM é o único órgão de classe que deliberou sobre as DAV como aspecto da ética profissional. Isso porque, no atual ordenamento jurídico brasileiro, ao contrário do que já ocorre em outros países, documentos de manifestação de vontade do paciente ainda não são devidamente legalizados, a exemplo das DAV e protocolos de reanimação cardiopulmonar (do not ressucitate). A ausência de tais referenciais enseja inúmeros desafios para o cuidado em saúde, demandando a criação de normativas éticas com aporte jurídico na defesa dos interesses e direitos dos pacientes 88. Gauw JH, Albuquerque ALA, Lins IKFG, Chaves JHB. Diretivas antecipadas de vontade: a necessidade de um maior conhecimento desde a graduação. Revista Científica da Faculdade de Medicina de Campos [Internet]. 2017 [acesso 5 mar 2024];12(1):22-5. Disponível: https://tny.im/IHMeh
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,99. Silva CO, Crippa A, Bonhemberger M. Diretivas antecipadas de vontade: busca pela autonomia do paciente. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2021 [acesso 5 mar 2024];29(4):688-96. DOI: 10.1590/1983-80422021294502
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É válido ressaltar que, mesmo com um crescente debate sobre o direito a autonomia, muitos profissionais, inclusive médicos, desconhecem as DAV e se sentem inseguros em determinadas situações do cotidiano clínico 1010. Mendes MVG, Silva JCDO, Ericeira MAL, Pinheiro AN. Testamento vital: conhecimentos e atitudes de alunos internos de um curso de medicina. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2019 [acesso 5 mar 2024];43(2):25-31. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180117
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. Como resultado, profissionais e familiares acabam assumindo a responsabilidade pela tomada de decisões, o que pode levar a conflitos éticos e a intervenções que desconsideram os desejos do paciente 1111. Guirro ÚBDP, Ferreira FDS, Vinne LVD, Miranda GFDF. Conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade em hospital-escola. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 5 mar 2024];30(1):116-25. DOI: 10.1590/1983-80422022301512PT
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. Considerando esse contexto, este artigo busca analisar a inserção das DAV como conteúdo da educação médica, sob a ótica de alunos e professores do internato de duas universidades paraenses.

Método

Trata-se de estudo com corte descritivo, transversal e exploratório, de abordagem quantitativa e qualitativa, realizado em duas instituições que ofertam o curso de medicina, sendo uma pública e uma privada – respectivamente, Universidade do Estado do Pará (Uepa) e Centro Universitário do Pará (Cesupa) –, após aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) de cada instituição.

A coleta de dados ocorreu mediante aplicação de questionário elaborado pelos autores, o qual continha perguntas objetivas, de múltipla escolha, conforme escala de Likert, formuladas com o intuito de investigar o grau de concordância em relação a determinadas afirmações. O instrumento de pesquisa tinha uma versão direcionada a alunos e outra, a professores, e as questões foram adaptadas ao formato eletrônico, com utilização da plataforma Google Forms. Ambas as versões tinham as seguintes categorias de interesse: dados sociodemográficos, conhecimento sobre DAV, abordagem do tema nas atividades teóricas e práticas do curso, opinião sobre DAV e desafios a sua operacionalização.

O instrumento foi submetido a um pré-teste, visando aperfeiçoar o enunciado das perguntas e corrigir eventuais inadequações de compreensão. O envio do protocolo de pesquisa aos participantes contou com o apoio das coordenações administrativas dos dois cursos, que intermediaram o contato dos pesquisadores com os alunos e professores vinculados ao internato, correspondente ao quinto e sexto anos do curso.

Os dados foram organizados no programa Microsoft Excel 2010 e, para elaboração de gráficos e tabelas, utilizaram-se os programas Microsoft Word, Microsoft Excel e Bioestat 5.5. As variáveis quantitativas foram descritas por média e desvio-padrão, e as variáveis qualitativas, por frequência e percentagem. A independência ou associação entre duas variáveis categóricas foi verificada pelo teste qui-quadrado ou exato de Fisher, conforme o caso.

As associações significativas foram detalhadas pela análise de resíduos padronizados, para identificar as categorias que mais contribuíram para o resultado. Para comparar uma variável numérica entre dois grupos, utilizou-se o teste de Mann-Whitney, equivalente não paramétrico do teste t de Student. Os resultados com p ≤ 0,05 (bilateral) foram considerados estatisticamente significativos.

Resultados

Composição da amostra

A amostra foi composta por 151 participantes, sendo 92 (60,9%) vinculados à Uepa e 59 (39,1%), ao Cesupa. Quanto à função, 121 (80,1%) eram alunos e 30 (19,9%) eram professores do internato de medicina. Do total de alunos, 65 (53,7%) eram do sexo feminino e 56 (46,3%), do masculino; 112 (92,5%) tinham entre 20 e 29 anos e 9 (7,5%), de 30 a 39; 51 (42,1%) eram da instituição particular e 70 (57,9%), da pública. Em relação aos professores, 19 (63,3%) eram do sexo feminino e 11 (36,7%), do masculino; 5 (16,6%) tinham entre 30 e 39 anos, 12 (40%) tinham entre 40 e 49 anos, 9 (30%) tinham entre 50 e 59 anos e 4 (13,4%) tinham 60 anos ou mais; 8 (26,7%) eram da instituição particular e 22 (73,3%), da pública.

Abordagem das DAV na formação acadêmica

Quando se pediu aos alunos do internato que informassem a frequência com que as DAV foram abordadas durante a formação acadêmica, 2 (1,6%) afirmaram “sempre”, 26 (21,5%) respon- deram “às vezes”, 51 (42,1%) “raramente”, 39 (32,3%) “nunca” e 3 (2,5%) não souberam dizer. Quanto aos professores, 4 (13,3%) afirmaram raramente, 25 (83,4%) alegaram que nunca tiveram contato com o tema e 1 (3,3%) não soube dizer.

Quando feita a análise comparativa entre discentes da instituição pública e da particular, houve significância estatística (p=0,024), de forma que 31,4% (16 de 51) dos discentes do Cesupa afirmaram “às vezes”, enquanto esse percentual foi de apenas 14,3% (10 de 70) na Uepa. Além disso, 41,4% (29 de 70) dos discentes da universidade pública afirmaram que o tema nunca foi abordado, enquanto no centro de ensino particular esse percentual foi de 19,6% (10 de 51), o que indica maior tendência de abordagem do tema na universidade particular, na perspectiva dos alunos. Não houve significância estatística quando comparados os grupos dos professores de universidade pública e particular (p=0,336).

Dos 88 participantes que afirmaram que as DAV foram abordadas durante a educação médica, 14 (16,9%) alunos e 1 (20%) professor responderam que isso se deu em atividades teóricas e práticas; 59 (71,1%) alunos e 2 (40%) professores afirmaram que o assunto foi abordado somente em atividade teórica; e 10 (12%) alunos e 2 (40%) professores disseram que somente em atividades práticas. Não houve significância estatística entre os grupos alunos e professores.

Conhecimentos sobre DAV

Cerca de 62% dos participantes contemplados na casuística não sabiam definir com precisão o significado das DAV. Quando perguntados sobre o assunto, 12 (40%) professores declararam que não saberiam definir, 3 (10%) não souberam responder e 15 (50%) responderam afirmativamente. Em relação aos alunos, 63 (52,1%) declararam que não saberiam definir, 23 (19%) não souberam responder e 35 (28,9%) responderam afirmativamente.

Ao serem questionados se conheciam alguma resolução do CFM sobre DAV, 8 (26,7%) professores responderam afirmativamente, tal como ocorreu com 21 (17,4%) alunos. Entretanto, 98 (64,9%) não se sentiam aptos a definir com precisão o significado de expressão “testamento vital”, sendo 84 (69,4%) alunos e 14 (46,7%) professores. 6 (5%) alunos e 6 (20%) professores afirmaram que DAV e testamento vital eram a mesma coisa, enquanto 58 (47,9%) alunos e 11 (36,66%) professores alegaram tratar-se de conceitos diferentes; e 57 (47,1%) alunos e 13 (43,33%) professores afirmaram que não sabiam responder.

Apenas 29 (19,2%) participantes sabiam o significado das expressões “procuração para cuidados em saúde” ou “mandato duradouro”, sendo 19 (15,7%) alunos e 10 (33,4%) professores. Cabe destacar, ainda, que 20 (16,5%) alunos e 9 (30%) professores afirmaram que tinham conhecimento de alguma regulação do CFM sobre o direito a recusa terapêutica.

As comparações quanto ao conhecimento sobre as DAV, entre alunos e professores, bem como entre as duas instituições foram agrupadas nas Tabelas 1 e 2, respectivamente. Uma proporção significativamente maior de professores afirmou saber definir o que é testamento vital (46,7% dos professores versus 10,7% dos alunos, p < 0,001) e procuração para cuidados da saúde (33,3% dos professores versus 15,7% dos alunos, p = 0,039). No entanto, também foi expressivamente maior a proporção de professores que afirmaram, erroneamente, que DAV e testamento vital significavam a mesma coisa (20% dos professores versus 5% dos alunos, p = 0,023).

Tabela 1
Relação entre tipo de vínculo, conhecimentos autodeclarados sobre DAV e testamento vital
Tabela 2
Relação entre tipo de instituição, conhecimentos autodeclarados sobre DAV e testamento vital, segundo os alunos

Quando comparados os discentes das duas instituições de ensino, houve associação significativa entre a origem do discente e afirmar conhecer o significado de DAV e/ou a resolução do CFM sobre DAV. Assim, a proporção de discentes do Cesupa que informou saber o significado de DAV foi maior (43,1% versus 18,6% dos alunos Uepa, p=0,002), bem como foi maior nessa instituição a proporção dos que indicaram conhecer resolução sobre DAV (31,4% versus 5,7% dos alunos da Uepa, p<0,001). Não houve relação significativa entre tipo de instituição e frequência de acertos nas demais questões relacionadas à DAV, quando comparados os dois grupos.

Opiniões pessoais acerca das DAV

Ao todo, 98 (81%) alunos e 26 (86,6%) professores concordaram total ou parcialmente com a afirmação de que a autonomia é um princípio ético valorizado na medicina. Ainda, 7 (23,3%) professores e 21 (17,3%) alunos concordaram totalmente com a afirmação de que a autonomia do paciente deve prevalecer sobre as decisões tomadas. Os grupos diferiram significativamente quando comparadas as respostas (se discordavam da afirmativa, ou se concordavam/não sabiam) – 32,2% dos alunos acham que a autonomia do paciente não deve prevalecer, enquanto 10% dos professores responderam negativamente à questão (p = 0,027).

Do total, 130 (86,1%) participantes acreditavam que há limites para o exercício da autonomia do paciente, sendo 106 (87,6%) alunos e 24 (80%) professores. 88 (58,3%) participantes, sendo 69 (57,02%) alunos e 19 (63,3%) profes- sores, declararam ser justificável ir contra a vontade do paciente nas decisões médicas envolvendo risco de morte.

Quanto à afirmação de que o médico deve fornecer informações sobre tudo o que diz respeito à condição clínica do paciente, a fim de que as decisões possam ser tomadas de forma conjunta, 103 (68,2%) concordaram totalmente, sendo 80 (66,1%) alunos e 23 (76,6%) profes- sores. Em complemento à pergunta, do total de médicos, 23 (76,6%) responderam que realiza- vam isso “sempre”, 4 (13,4%) “às vezes”, 2 (6,6%) “raramente” e 1 (3,4%) não soube dizer.

89 (59%) participantes concordaram que a recusa de tratamento/intervenção é um direito do paciente, independentemente do tipo de circunstância, 41 (27,1%) discordaram, e 21 (13,9%) não souberam dizer. Ainda, 108 (71,5%) participantes, 87 (71,9%) alunos e 21 (70%) professores, afirmaram que teriam dificuldade de lidar com uma recusa de tratamento, caso isso pudesse levar a um desfecho desfavorável, tal como o óbito do paciente.

Ao serem perguntados se a resposta seria diferente se não houvesse o risco de morte, 96 (63,6%) responderam “sim”, 45 (29,8%) “não”, e 10 (6,6%) não souberam dizer. Dentre os que responderam sim, 20 (66,6%) eram professores e 76 (62,8%) eram alunos.

Nesse aspecto, quando perguntados se concordavam com a afirmação de que o desejo dos familiares é tão importante quanto o desejo do paciente, devendo em alguns casos prevalecer sobre as decisões médicas, 93 (61,6%) participantes, sendo 76 (62,8%) alunos e 17 (56,6%) professores, discordaram. Do total, 43 (28,5%) concordavam, sendo 33 (27,27%) alunos e 10 (33,33%) professores, entretanto 15 (9,9%) não souberam responder. Além disso, 130 (86%) participantes concordaram que o paciente tem direito de escolher onde morrer (por exemplo, em casa ou no hospital), sendo 28 (93,3%) professores e 102 (84,3%) alunos.

Experiência pessoal dos participantes com as DAV

Acerca da frequência com que já conversaram com algum médico e/ou familiar sobre suas preferências pessoais em caso de doença grave ou irreversível, 23 participantes (15,2%) afirmaram conversar “sempre”, dos quais 15 (12,4%) são alunos e 8 (26,66%) professores; 30 (19,9%) “às vezes”, sendo 21 (17,3%) alunos e 9 (30%) professores; 37 (24,5%) “raramente”, divididos em 31 (25,6%) alunos e 6 (20%) professores; e 54 (35,8%) “nunca”, sendo 47 (38,8%) alunos e 7 (23,33%) professores. Além disso, 7 (4,6%) participantes não souberam responder a essa pergunta, sendo que todos eram alunos.

Ao serem perguntados se já tinham experimentado algum conflito para atender às preferências de um paciente contrárias à recomendação médica, 80 (53%) participantes, dos quais 56 (46,3%) são alunos e 24 (80%), professores, afirmaram “sim”; 63 (41,7%), sendo 57 (47,1%) alunos e 6 (20%) professores, disseram “não”; e 8 (5,3%) afirmaram que não sabiam dizer, todos alunos. O padrão de respostas de professores divergiu significativamente dos discentes, de forma que 80% (24/30) dos professores afirmaram já ter vivenciado o conflito, enquanto 46,3% dos alunos (56/121) fizeram essa afirmação (p=0,003).

Por fim, foi solicitado aos participantes que indicassem a ordem de importância em relação à forma como gostariam de ser tratados caso estivessem em uma situação de cuidados de fim de vida. Conforme demonstrado na Figura 1, o cui- dado no ambiente domiciliar e o acompanha- mento por uma equipe de cuidados paliativos foram as respostas com maior frequência. Além disso, 81 (53,6%) participantes, sendo 63 (52%) alunos e 18 (60,0%) professores, afirmaram que seria importante ou muito importante não receber tratamentos apenas para prolongar a vida.

Figura 1
Grau de importância que as alternativas teriam em caso de cuidados em fim de vida

UTI: unidade de terapia intensiva


Discussão

A proporção de docentes que não tiveram contato com o tema das DAV durante sua formação prévia foi bastante elevada quando comparada à de alunos. Possivelmente, esse dado está relacionado à escassez de debates dessa natureza em épocas anteriores, quando a autonomia e o consentimento informado não eram assuntos tão discutidos no contexto da medicina. Na atualidade, entretanto, as DAV estimularam uma ruptura com o paternalismo médico, exigindo do médico postura mais acolhedora e dialógica 33. Lima AFA, Machado FIS. Médico como arquiteto da escolha: paternalismo e respeito à autonomia. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2021 [acesso 5 mar 2024];29(1):44-54. DOI: 10.1590/1983-80422021291445
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Embora a formação médica esteja continuamente sendo revista e atualizada em razão das mudanças nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de medicina, temáticas relacionadas à autonomia e às decisões compartilhadas ainda precisam ganhar maior destaque nas atividades de ensino. Neste estudo, os resultados obtidos em ambas as categorias reforçam dados encontrados em pesquisa realizada em hospital-escola do Sistema Único de Saúde (SUS), na qual observou-se que apenas um quarto dos profissionais de saúde e 4,2% dos usuários conhecia as DAV, o que confirma que ainda se trata de assunto pouco conhecido, mesmo entre os médicos, os quais deveriam ser responsáveis por essa abordagem 1111. Guirro ÚBDP, Ferreira FDS, Vinne LVD, Miranda GFDF. Conhecimento sobre diretivas antecipadas de vontade em hospital-escola. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 5 mar 2024];30(1):116-25. DOI: 10.1590/1983-80422022301512PT
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Vale ressaltar que mais da metade dos participantes (62%) contemplados na casuística não sabiam definir com precisão o significado das DAV, corroborando o demonstrado por Gomes e colaboradores 1212. Gomes BMM, Salomão LA, Simões AC, Rebouças BO, Dadalto L, Barbosa MT. Diretivas antecipadas de vontade em geriatria. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 5 mar 2024];26(3):429-39. DOI: 10.1590/1983-80422018263263
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, que revelam que professores e alunos de medicina ainda têm pouco conhecimento sobre as DAV. Poucos participantes sabiam definir com precisão termos importantes como “testamento vital”, “procuração para cuidados em saúde” ou “mandato duradouro”, bem como a diferença entre DAV e testamento vital.

O testamento vital é um tipo de DAV usado em casos de incapacidade por doença em fase terminal, e o mandato duradouro, que também se enquadra como um tipo de DAV, prevê a nomeação de um procurador, que representará o paciente nas decisões sobre sua saúde 1313. Dadalto L. Distorções acerca do testamento vital no Brasil (ou o porquê é necessário falar sobre uma declaração prévia de vontade do paciente terminal). Rev Bioét Derecho [Internet]. 2013 [acesso 5 mar 2024];(28):61-71. DOI: 10.4321/S1886-58872013000200006
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. As respostas obtidas em relação a esse item demonstraram que parcela significativa dos participantes ainda desconhecia a diferença entre os dois institutos, denotando a necessidade de que sejam esclarecidas as diferenças conceituais e a natureza jurídica desses documentos. Tal resultado é semelhante ao encontrado na pesquisa de Murasse e Ribeiro 1414. Murasse LS, Ribeiro URVCO. Diretivas antecipadas de vontade: conhecimento e utilização por médicos residentes. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 5 mar 2024];30(3):598-609. DOI: 10.1590/1983-80422022303553PT
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, em que foi constatado que médicos residentes se sentiam inseguros em relação a aspectos conceituais e jurídicos das DAV.

O pouco conhecimento acerca das DAV deve ser problematizado pelas instituições responsáveis pela educação médica. Os dados revelam que, transcorrida uma década desde a publicação da Resolução 1.995/2.012 do CFM 77. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM nº 1.995, de 9 de agosto de 2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. Diário Oficial da União [Internet]. Brasília, p. 269-70, 31 ago 2012 [acesso 5 mar 2024]. Seção 1. Disponível: https://tny.im/s5K8r
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, as DAV têm sido contempladas no currículo médico de maneira superficial, revelando um fato preocupante, haja vista que o desconhecimento das normativas vigentes pode acarretar sérios prejuízos à autonomia do paciente e a sua participação nas decisões médicas 1515. Scottini MA, Siqueira JE, Moritz RD. Direito dos pacientes às diretivas antecipadas de vontade. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 5 mar 2024];26(3):440-50. DOI: 10.1590/1983-80422018263264
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.

Além disso, é esperado que os alunos tenham contato com essa temática desde a graduação, como parte de sua formação ética e visando incentivar a escuta e validação dos desejos e/ou preferências dos pacientes. Dos 88 participantes que afirmaram que as DAV foram abordadas durante a educação médica, a maior parte dos alunos e dos professores indicou que isso ocorreu somente em atividade teórica.

Ainda, em relação ao contato com DAV durante a faculdade, bem como ao conhecimento do significado de DAV, alunos provenientes da instituição privada obtiveram maior significância estatística quando comparados com os da universidade pública, o que pode indicar uma abordagem mais aprofundada do tema durante a formação nesse cenário. No entanto, tais resultados são passíveis de relativização, necessitando de mais estudos e evidências que corroborem os achados. Além disso, a quantidade de acertos entre as duas instituições não divergiu significativamente no que tange às demais questões sobre DAV.

Os resultados alcançados demonstram que há necessidade de incentivar as discussões sobre o tema no contexto do internato, para que alunos tenham a oportunidade de aprimorar conhecimentos e habilidades, especialmente aqueles adquiridos ao longo dos ciclos básico e clínico. Além disso, é esperado que, no internato, o aluno aprimore suas competências para a “práxis médica”, revisitando e reinventando o fazer profissional, de forma a atender as novas demandas da sociedade 1616. Teixeira LDAS, Spicacci FB, Melo IBD, Takao MMV, Dornelas AG, Pardi GR, Bollela V. Internato médico: o desafio da diversificação dos cenários da prática. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2015 [acesso 5 mar 2024];39(2):226-32. DOI: 10.1590/1981-52712015v39n2e00332014
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O pouco contato com o tema nas atividades práticas pode justificar as lacunas no conhecimento de alguns alunos do internato, uma vez que a maior parte deles teve contato com o assunto apenas por meio de abordagem teórica. Cabe ressaltar, ainda, que a utilização de metodologias ativas tem se mostrado eficaz no aprendizado e no treinamento das habilidades profissionais em comparação com a utilização de metodologias tradicionais, e pode representar uma estratégia metodológica relevante no ensino da temática 1717. Mattar J, Aguiar APS. Metodologias ativas: aprendizagem baseada em problemas, problematização e método do caso. Cadernos de Educação Tecnologia e Sociedade [Internet]. 2018 [acesso 5 mar 2024];11(3):404-15. DOI: 10.14571/brajets.v11.n3.404-415
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Em contraste com outros países, o Brasil não dispõe de legislação que torne obrigatórias as DAV, embora elas tenham sido objeto de normativa ética do CFM. Desse modo, é frequente que médicos e familiares desrespeitem a vontade e as escolhas prévias do paciente, o que constitui violação de sua autonomia, e um retrato do despreparo para lidar com tal temática 1818. Cogo SB, Badke MR, Malheiros LCS, Araújo D, Ilha AG. Concepções médicas e dos cuidadores familiares diante das diretivas antecipadas de vontade. Rev Enferm UFSM [Internet]. 2019 [acesso 5 mar 2024];9:e34. DOI: 10.5902/2179769233083
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. A ausência de aparato jurídico sobre as DAV, particularmente em situações envolvendo terminalidade, faz que médicos não se sintam seguros em relação à legitimidade do instrumento, ainda que concordem com a necessidade de respeito à autonomia 1919. Lima JS, Lima JGSR, Lima SISR, Alves HKDL, Rodrigues WF. Diretivas antecipadas da vontade: autonomia do paciente e segurança profissional. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 5 mar 2024];30(4):769-79. DOI: 10.1590/1983-80422022304568PT
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Um número considerável de participantes afirmou acreditar haver limites para o exercício da autonomia do doente, além de declarar ser justificável ir contra a vontade deste em decisões médicas envolvendo risco de morte. É bem verdade que, nas situações emergenciais, muitos profissionais se sentem compelidos a salvar a vida de seus pacientes, em razão do receio de serem processados, ou mesmo em consequência da culpa e/ou do sentimento de fracasso, o que pode levá-los a desconsiderar as preferências do paciente. Embora o tema seja bastante complexo, em se tratando de cuidados em fim de vida, é necessário que a comunicação com o paciente seja priorizada sempre que possível 1515. Scottini MA, Siqueira JE, Moritz RD. Direito dos pacientes às diretivas antecipadas de vontade. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 5 mar 2024];26(3):440-50. DOI: 10.1590/1983-80422018263264
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O respeito à autonomia do paciente a partir do reconhecimento e legitimação de seus desejos não significa transferir a responsabilidade pelas decisões, mas criar um espaço acolhedor para que ele se sinta à vontade para expressar seus desejos, a partir do que faz sentido em sua vida. A inclusão do paciente no processo dialógico ajuda a evitar o prolongamento da vida a qualquer custo, diminuindo a possibilidade de intervenções médicas que poderiam intensificar mais ainda seu sofrimento 2020. Almeida NPC, Lessa PHC, Vieira RF, Mendonça AVPDM. Ortotanásia na formação médica: tabus e desvelamentos. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2021 [acesso 5 mar 2024];29(4):782-790. DOI: 10.1590/1983-80422021294511
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Nesse sentido, perguntou-se aos participantes se concordavam com a afirmação de que o médico deve fornecer informações sobre tudo o que diz respeito à condição clínica do paciente, a fim de que as decisões possam ser tomadas de forma conjunta. Aproximadamente dois terços deles responderam que concordavam totalmente, corroborando os achados referidos na literatura. Assim, apesar dos enormes avanços da valorização da autonomia, ainda há necessidade de evitar que o paternalismo médico predomine sobre a vontade dos doentes, sendo a tomada de decisão conjunta um dos caminhos para assegurar seus direitos 33. Lima AFA, Machado FIS. Médico como arquiteto da escolha: paternalismo e respeito à autonomia. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2021 [acesso 5 mar 2024];29(1):44-54. DOI: 10.1590/1983-80422021291445
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Poucos participantes afirmaram que conheciam alguma resolução do CFM sobre o direito a recusa terapêutica, demonstrando a necessidade de maior problematização do assunto, particularmente em cenários de urgência e emergência, uma vez que a falta de conhecimento prévio pode inviabilizar a implementação das DAV 2121. Gomes PA, Goldim JR. Diretivas antecipadas de vontade em unidade de emergência hospitalar. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2022 [acesso 5 mar 2024];30(1):106-15. DOI: 10.1590/1983-80422022301511PT
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Os dados acerca da opinião dos partici- pantes quanto ao direito do paciente de recusar tratamento médico revelaram que a recusa ao trata- mento também representa uma situação deli- cada sob o ponto de vista da autonomia. Isso ocorre particularmente quando há prognóstico de desfecho desfavorável, até mesmo entre médicos já formados, que lidam constantemente com o processo de morte. As respostas a essa questão também corroboram a posição dos participantes em relação aos limites à autonomia, conforme discutido anteriormente.

Como no atual ordenamento jurídico brasileiro os documentos de manifestação de vontade do paciente ainda não são devidamente legalizados, as decisões do paciente dependem da validação da equipe de saúde para serem consideradas legítimas. Tal situação pode ocasionar embates técnicos e éticos, particularmente em situações potencialmente ameaçadoras à vida 2222. Silva LA, Pacheco EIH, Dadalto L. Obstinação terapêutica: quando a intervenção médica fere a dignidade humana. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2021 [acesso 5 mar 2024];29(4):798-805. DOI: 10.1590/1983-80422021294513
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. Dessa forma, é muito importante que o assunto seja priorizado nas atividades de ensino, mediante simulações e/ou discussão de casos clínicos, de modo que professores e alunos possam deliberar sobre as atitudes recomendadas na condução de situações do cotidiano clínico.

Além disso, no Brasil, com frequência a família também assume a responsabilidade pelas decisões em nome do paciente, especialmente em situações em que há risco de morte. Merece atenção o número de participantes que concordaram com a afirmação de que o desejo dos familiares é tão importante quanto o desejo do paciente, devendo em alguns casos prevalecer sobre as decisões médicas, especialmente no que diz respeito à opinião dos professores, uma vez que as DAV visam assegurar ao paciente que sua decisão será respeitada, em detrimento da influência ou desejo dos familiares 2323. Barreto AL, Capelas ML. Conhecimento dos profissionais de saúde sobre as diretivas antecipadas de vontade. Cadernos de Saúde [Internet]. 2020 [acesso 5 mar 2024];12(1):36-40. DOI: 10.34632/cadernosdesaude.2020.5834
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Entretanto, estudos realizados no cenário dos cuidados paliativos têm demonstrado que familiares costumam intermediar a comunicação com a equipe médica, frequentemente omitindo do paciente informações desfavoráveis, o que produz o fenômeno conhecido como “conspiração do silêncio” 2424. Machado JC, Reis HFT, Sena ELDS, Silva RSD, Boery RNSDO, Vilela ABA. O fenômeno da conspiração do silêncio em pacientes em cuidados paliativos: uma revisão integrativa. Enferm Actual Costa Rica [Internet]. 2019 [acesso 5 mar 2024];36:92-103. DOI: 10.15517/revenf.v0i36.34235
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Apesar de a maioria dos participantes ter considerado esse um tema importante a ser inserido nas atividades de ensino, os resultados evidenciam um desafio já observado na literatura científica, ao revelarem que as DAV ainda não são efetivadas no cotidiano da clínica. Além disso, seu desconhecimento resulta no desrespeito aos direitos de pacientes, além de conflitos éticos 1515. Scottini MA, Siqueira JE, Moritz RD. Direito dos pacientes às diretivas antecipadas de vontade. Rev. bioét. (Impr.) [Internet]. 2018 [acesso 5 mar 2024];26(3):440-50. DOI: 10.1590/1983-80422018263264
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. Nesse aspecto, vale dizer que, quando questionados se já tinham vivenciado algum conflito para atender às preferências de um paciente contrárias à recomendação médica, uma parte considerável respondeu afirmativamente (53% dos participantes).

Quando se analisam as respostas, deve-se considerar a variável cultural do país, visto que ainda existe um estranhamento acerca das discussões sobre finitude da vida, mesmo entre os profissionais já graduados 2525. Mendes EAR, Teixeira FB, Silva JAB Jr., Farias MLL, Araújo PRL, Soeiro ACV. Comunicação médica, cuidados paliativos e oncopediatria: uma revisão integrativa da literatura. Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação [Internet]. 2023 [acesso 5 mar 2024];9(6):1593-611. DOI: 10.51891/rease.v9i6.10346
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. Apesar de a classe médica lidar constantemente com doenças graves e ameaçadoras da vida, ainda há um longo caminho a percorrer no que diz respeito ao desenvolvimento de habilidades para lidar com o luto e as temáticas relacionadas ao fim de vida 2626. Meireles AAV, Amaral CD, Souza VBD, Silva SGD. Sobre a morte e o morrer: percepções de acadêmicos de medicina do norte do Brasil. Rev Bras Educ Méd [Internet].2022 [acesso 5 mar 2024];46(2):e057. DOI: 10.1590/1981-5271v46.2-20210081
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,2727. Santos TF, Pintarelli VL. Educação para o processo do morrer e da morte pelos estudantes de medicina e médicos residentes. Rev Bras Educ Méd [Internet]. 2019 [acesso 5 mar 2024]43(2):5-14. DOI: 10.1590/1981-52712015v43n2RB20180058
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Ao serem questionados sobre o direito do paciente escolher onde morrer, a maioria (86%) dos participantes respondeu afirmativamente à pergunta. Tais resultados, além de indicarem a valorização das preferências individuais, reforçam a importância do compartilhamento de informações e esclarecimentos acerca da viabilidade para essa tomada de decisão, incluindo riscos e benefícios. Trata-se de uma decisão a ser tomada com prudência, visto que há procedimentos que não podem ser realizados no domicílio do paciente, ainda que esse seja o ambiente de sua preferência.

Cabe mencionar que as respostas obtidas por professores e alunos merecem ser consideradas de forma distinta, uma vez que é esperado que docentes tenham alguma experiência com o assunto, além de terem mais maturidade pessoal e profissional para lidar com as questões complexas que atravessam esse debate. Dessa forma, embora o estudo não contextualize de forma aprofundada as diferenças encontradas, serve como parâmetro para que as instituições de ensino examinem a forma como as DAV têm sido abordadas no currículo médico.

Também é válido destacar que discussões sobre autonomia e DAV têm ganhado destaque no âmbito da formação médica somente nos últimos anos, particularmente devido às inúmeras contribuições das humanidades médicas, da ética médica e da bioética. Sem dúvida, tais referenciais exercem influência positiva na formação acadêmica dos futuros profissionais, ao reafirmar a defesa dos direitos dos pacientes. Entretanto, é necessário que tais debates sejam incentivados por meio da educação continuada e capacitação docente, estimulando também naqueles que ensinam um olhar crítico sobre a forma como a autonomia tem sido abordada nas atividades de ensino.

Por fim, dentre as limitações do estudo, é válido ressaltar o número amostral de alunos e de professores, uma vez que não representa o total dos estudantes e docentes de todas as instituições de ensino médico da região metropolitana de Belém, o que indica a necessidade de mais pesquisas sobre o tema. Outro ponto a ser destacado refere-se ao instrumento utilizado para avaliar o conhecimento e a experiência dos participantes, uma vez que não foi encontrado na literatura científica um instrumento sobre a temática que já tivesse sido submetido a validação prévia por juízes especialistas.

Considerações finais

Apesar da intensificação do debate sobre o direito à autonomia, os achados deste estudo revelaram que as DAV ainda representam um assunto a ser explorado no campo da educação médica. O fato de alunos e professores do internato das duas instituições terem tido pouco contato com a temática ao longo de sua formação acadêmica é indicador importante da forma como a questão vem sendo abordada pela medicina.

Além disso, embora professores e alunos reconheçam a importância da autonomia como um valor ético e compromisso profissional, demonstram dificuldades para agir em consonância com esse princípio em determinadas situações do cotidiano clínico, particularmente aquelas envolvendo cuidados de fim de vida. Tal dificuldade deriva também de questões técnicas, éticas e legais relacionadas à finitude da vida e ao papel do médico nesse cenário de intervenção, o que pode comprometer a operacionalização das DAV.

Os achados apontam a necessidade de discutir as DAV ao longo da educação médica, de modo a promover o aprimoramento das decisões e intervenções no contexto da prática profissional. Não obstante, em razão da diversidade de contextos e particularidades existentes, é necessário que a autonomia possa ser pensada em sua complexidade, o que requer estudo e aprofundamento da temática desde a formação acadêmica.

Considerando que as DAV intermedeiam importantes decisões médicas, é preciso que alunos e professores também estejam aptos a dialogar sobre elas, revisitando seus próprios valores e criando espaços relacionais nos quais pacientes e familiares possam se sentir acolhidos em suas dúvidas, como também em suas decisões e preferências de cuidado. Para que essa realidade se concretize, é necessário estimular atitudes reflexivas, críticas e éticas, de modo a evitar que as DAV se tornem mero protocolo médico, e, ao invés disso, possam representar importante conquista na defesa dos direitos dos pacientes.

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  • Aprovação CEP/Uepa 5.633.498

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2023
  • Revisado
    06 Mar 2024
  • Aceito
    12 Mar 2024
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