Resumo
O presente artigo tem como intuito analisar a categoria “consentimento”, deslocando o debate dos direitos sexuais para vidas e relacionamentos íntimos. Neste universo dos afetos no âmbito do ordinário, é possível vislumbrar as vicissitudes em que o consentimento é experienciado em meio às diversas negociações de fronteiras simbólicas e morais. O esforço aqui é compreender as limitações na interpretação do consentimento como um exercício da autonomia e da razão frente às torções que a intimidade lhe imprime, possibilitando outras gramáticas do consentir e evidenciando seu caráter poroso, ambivalente e amiudado. Para tal, apresentaremos três etnografias que estão comprometidas com um olhar fenomenológico da vida ordinária: sobre mulheres trans e travestis que buscam relações e casamentos estáveis, sobre mães ‘nervosas’ e seus ‘corpos abertos’ em territórios de precariedade social e sobre negociações complicadas na inserção de um familiar condenado por estupro.
Palavras-chave: consentimento; intimidade; afetos; autonomia; relacionalidade
Abstract
This article analyzes the category “consent” by shifting the debate on sexual rights to lives and intimate relationships. In this scenario of everyday affections, it is possible to glimpse the vicissitudes in which consent is experienced in the midst of the various negotiations of symbolic and moral boundaries. Hence, the efforts to understand the limitations in the interpretation of consent as an exercise in autonomy and reason, lays in the torsions that intimacy imprints on it, enabling other dynamics of consent and highlighting its porose, ambivalent, repetitive character. To this end, we will present three ethnographies that are committed to a phenomenological view of everyday life: trans and transvestite (“travesti”) women who seek stable relationships and marriages, ‘nervous’ mothers and their ‘open bodies’ in territories of social precariousness, and the complicated negotiations regarding the insertion of a family member convicted of rape.
Keywords: consent; intimacy; affection; autonomy; relationality
Resumen
Este artículo tiene el objetivo de analizar la categoría “consentimiento” desplazando el debate del ámbito de los derechos sexuales a las vidas y las relaciones íntimas. En este universo de afectos en el cotidiano es posible vislumbrar las vicisitudes en las que se experimenta el consentimiento en medio de diversas negociaciones de límites simbólicos y morales. El esfuerzo aquí es comprender las limitaciones en la interpretación del consentimiento como un ejercicio de autonomía y razón frente a las torsiones que la intimidad le imprime, permitiendo otras gramáticas del consentir y dejando en evidencia su carácter poroso y ambivalente. Con este fin, presentaremos tres etnografías que están comprometidas con una visión fenomenológica de la vida ordinaria sobre mujeres trans y travestis que buscan relaciones y matrimonios estables; madres ‘nerviosas’ y sus ‘cuerpos abiertos’ en territorios de precariedad social y negociaciones complicadas en la inserción de un miembro de la familia condenado por violación sexual.
Palabras clave: consentimiento; intimidad; afectos; autonomía; relacionalidad
Introdução
O consentimento é uma categoria sujeita a contradições, muito embora sua definição e sua tradução em leis sejam delimitadas. Remetendo à filosofia do Iluminismo do final do século XVIII (Vigarello, 1998), o pensamento liberal define o consentimento como um ato de livre vontade, vinculando-o à capacidade dos sujeitos de atuar de modo autônomo e racional no governo de si. Nesse sentido, aquele que pode consentir é, antes e tudo, um sujeito que no pleno uso de sua capacidade de agência e discernimento faz escolhas na ausência de constrangimento ou de qualquer coação de sua vontade.
O consentimento tornou-se modelo de regulação jurídica da sexualidade e principal critério de definição da licitude de um ato sexual (Lowenkron, 2008; Pérez, 2017). O impasse da aplicação do conceito em termos legais está ligado justamente à nebulosidade da autonomia quando pensada a partir de experiências pontuais, bem como a partir dos desafios da definição sobre quem é sujeito, especialmente sujeito de direitos. A respeito deste último, só para recapitular e oferecer um exemplo local, vale lembrar que, no Código Penal Brasileiro de 1890, as ofensas sexuais estavam enquadradas como “crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor”, não sendo consideradas ofensa contra a pessoa (mulher) violentada em si. A luta empreendida pelos movimentos feministas da década de 1980 se deu em direção à “inclusão dos crimes sexuais no capítulo ‘dos crimes contra a pessoa’, demarcando, assim, um espaço discursivo em defesa dos direitos individuais das mulheres” (Vieira, 2007, p. 18), e já não mais da honra familiar.
No ordenamento jurídico nacional, a noção de consentimento se vincula à definição dos direitos de crianças e adolescentes no que diz respeito ao exercício de sua sexualidade. Tendo como principal marco a aprovação da Convenção sobre os Direitos da Criança pela Organização das Nações Unidas (ONU), em 1989, as crianças passaram a ser entendidas como sujeitos de direitos especiais, isto é, sujeitos que devem ser tutelados e protegidos pela sociedade, a família e o Estado.
Às crianças e adolescentes, adjudica-se uma condição de vulnerabilidade, isto é, a ideia de que, à diferença das pessoas adultas, eles não possuem maturidade nem psicológica, nem física, nem moral para fazer escolhas autônomas sobre sua sexualidade, não sendo sujeitos aptos para administrar o consentimento. Juridicamente, o sexo com crianças é ilegal porque viola os princípios do consentimento e da igualdade.1 A “menoridade sexual” (Lowenkron, 2015) ou “idade do consentimento” é o principal dispositivo de regulação jurídica do crime sexual, que, em princípio, não deixaria brechas para interpretações e suspeições - como não raro acontece diante das denúncias de estupro feitas por mulheres adultas em sede policial. Dizemos “em princípio” porque sabemos que no curso do exercício da Lei existem situações de desconstrução da menoridade, baseadas na suposta maturidade e experiência sexual de menores que se encontram vinculados a processos judiciais por estupro de vulnerável.2
Em poucas palavras, o consentimento, tal como pensado jurídica e filosoficamente, localiza-se na linha oposta da violência. Assim, a violência sexual existe quando se viola o consentimento do sujeito (Zilli, 2018) ou quando a violência pode ser presumida, a exemplificar pelo estupro de pessoas consideradas juridicamente vulneráveis. A vulnerabilidade é um aspecto que impacta diretamente a almejada autonomia do sujeito que consente e que serve juridicamente como justificativa para anular o consentimento, como é o caso do tráfico e pessoas para fins de “exploração sexual”.3
Este artigo tem como objetivo problematizar a noção de consentimento, deslocando o debate dos direitos sexuais para o plano das relações caracterizadas pela intimidade. Nossa proposta é refletir sobre os modos como o consentimento é vivido em situações de afeto, isto é, atravessadas por sentimentos que os sujeitos definem como amor, cuidado, compromisso e afins. Ao falar de intimidade, não estamos a ela outorgando um significado unívoco, mas situando diversos modos de se viver neste território de relações estreitas que podem se constituir como laços de família (de conjugalidades, de amizade e de vizinhança) em suas múltiplas qualidades morais, emocionais e conflituosas. Em grande parte, inspirados no trabalho de Viviana Zelizer (2011), não entendemos intimidade somente relacionada a ideias sobre autenticidade e bem-estar, mas de modo polifônico e aberto à interpretação dos diferentes estados morais e contradições contidos nos afetos.
Autonomia, sujeito, vulnerabilidade e violência são noções que definem o dispositivo do consentimento e são fundamentais em nossa argumentação, pois através delas e de suas torções pretendemos analisar os modos como o consentimento opera frente a emoções, compromissos, constrangimentos, expectativas e condições materiais. Quais categorias, no nível do ordinário, nomeiam, configuram e tensionam o consentimento? O que se negocia nas relações e como?
O artigo está escrito a quatro mãos porque surge de conversas entre os autores sobre as suas etnografias. Discorreremos sobre mulheres mães em situações de precariedade social, apontadas como sendo “nervosas” em suas relações com os filhos; mulheres trans/travestis que procuram se estabelecer em casamentos estáveis; e sobre os tecidos relacionais de homens condenados por estupro. Um quarto campo de pesquisa, que não receberá aqui a mesma dedicação que os anteriores - mulheres que “aguentam” companheiros que as humilham por elas possuírem um passado de “liberdade” sexual -, atravessa a discussão. Trata-se de etnografias que nos possibilitam pensar em conjunto as derivas e vicissitudes do consentimento no interior de relações familiares e conjugais imantadas de conflito, entendendo a relacionalidade (Carsten, 2004) como produto de dinâmicas afetivo-morais em que os marcadores sociais da diferença (gênero, classe, raça, etc.) atuam e também como processos de produção do parentesco em territorialidades específicas.
Procuramos analisar o consentimento nesses contextos não como algo que é dado, mas como algo que é continuamente negociado nos contornos da intimidade. O exercício de olhar para as formas miúdas em que essas experiências são vividas revela o quanto o consentimento existe em (e por meio das) relações, inventando suas próprias fronteiras, gramáticas e porosidades, de acordo com os modos como os sujeitos esticam ou comprimem seus limites morais.
Sobre o consentimento e suas porosidades
Na luta contra a violência sexual, há décadas o movimento feminista questiona se é possível pensar em um consentimento genuíno e autônomo quando as escolhas das pessoas se fazem possíveis em contextos assimétricos e caracterizados pela opressão (Paterman, 1980; Biroli, 2013). Vertentes feministas pro sex anunciaram, na metade da década de 1980, que a sexualidade feminina se caracterizaria pela dupla prazer e perigo (Vance, 1984). O perigo faz alusão às possibilidades sempre abertas para a má interpretação social da experiência sexual das mulheres; às expectativas de que sejam elas as encarregadas de conter os impulsos masculinos e de conter a própria sexualidade para não incitar os homens a atuar; e aos ataques violentos sobre seus corpos. Esse perigo faz alusão às possibilidades de vulnerabilização do corpo das mulheres nos contextos em que o consentimento é irrompido pela violência. Por isso, até hoje, para os movimentos feministas, o consentimento continua a ser um dispositivo chave de denúncia e mobilização de narrativas e multidões contra a violência. Prova disto são campanhas como “Não é não”, “Na boa, pode, à força, não” ou “Respeite o Não”, no Brasil; “This Doesn’t Mean Yes”, no Reino Unido; “Pas de relations sexuelles sans consentimento”, na França; “Consent is sexy”, nos Estados Unidos; a reatualização de conceitos como “cultura do estupro”; e o impacto mundial da performance “Um estuprador em teu caminho”, do coletivo chileno Latesis. A proposta feminista inscrita nessas campanhas diz respeito ao consentimento afirmativo (cf. Perez, 2017): sim significando sim, não significando não, sem brechas para as ambiguidades. Essas manifestações se fazem necessárias frente às suspeições, geralmente do sujeito feminino, que algumas situações entre adultos levantam em relação ao consentimento e que interferem na aplicação das leis - especialmente quando os envolvidos integram um casal, quando houve uso de bebidas ou de drogas ou quando se participa da sedução até certo ponto e depois não mais se deseja continuar.
Se, por um lado, vulnerabilidade é algo que juízes, defensores e outros agentes do Estado podem utilizar como ferramenta para demonstrar que determinado sujeito não teve capacidade de consentir, por outro lado, a vulnerabilidade é também uma categoria nativa generificada, é algo que mulheres cis e trans, lésbicas e heterossexuais, assim como homens homossexuais (especialmente os afeminados) dizem sentir em situações e locais específicos. É também uma categoria que diz respeito às condições de precarização das vidas, segundo marcas de classe e raça inscritas em territórios e corpos alvos de violências específicas.
Autonomia e consentimento, como ideais racionais - segundo o pensamento liberal e no ordenamento jurídico -, não são impenetráveis nas experiências vitais pelas emoções, nem é possível que sejam desatrelados de condições materiais específicas. Quem vive em situações de precariedade sabe muito bem o quanto sua autonomia é constrangida e até mesmo impossibilitada. Quem habita um compromisso familiar profundo sabe que as suas vontades se veem contaminadas. Vários de nós escutamos em campo que, diante de uma intensa paixão, é impossível tomar decisões que não estejam “viciadas”, mesmo quando se tem “consciência” da necessidade de se tomar uma atitude radical, como a separação. Note-se que categorias como “contaminação” e “viciado” utilizadas aqui para falar de consentimentos, no plano da afetividade, são as mesmas categorias utilizadas juridicamente para invalidar consentimentos sexuais que sejam considerados produtos de algum tipo de coerção, isto é, longe da total autonomia e razão.
As expectativas de reconciliação da vida em família, da manutenção das relacionalidades ou da educação dos filhos são, como veremos adiante, algumas das causas do engajamento em negociações que não claramente os sujeitos consentem. As pessoas que acompanhamos “aguentam”, “toleram”, “silenciam”, tentam levar a vida adiante em cenários de conflitos e assimetrias. O que o esforço de uma filha para perdoar o pai que a estuprou ou a batalha de uma moça para suportar seu tio estuprador e dividir com ele momentos de comensalidade têm a dizer sobre consentimento? O quanto os sujeitos se engajam em relações em que se negocia o cuidado e o controle, e, o que isso tem a dizer sobre consentimento? Como uma condição socioeconômica precária leva a certos repertórios de consentimento, inclusive esticando a categoria na direção daquilo que é considerado abusivo? São algumas das perguntas que tentamos problematizar. Mais do que corpos autônomos, nosso texto está repleto de corpos “enredados” em relações, ou até mesmo de “corpos abertos”, porque são dependentes das ações dos outros, como iremos demonstrar. Nossas etnografias atravessam situações em que se combinam de forma assimétrica os marcadores classe, raça, gênero, sexualidade e geração, em meio às derivas existenciais complexas que se intrincam nas tessituras das emoções.
Embora estejamos falando de situações de conflito e mencionando a categoria violência como fundamental para a definição jurídica e filosófica do consentimento, na nossa análise não partimos de um significado unívoco do que é violência nem pretendemos defini-la de modo per se.4 Acreditamos que o consentimento não dá conta de explicar a violência, inclusive porque, para sujeitos envolvidos em relações complicadas - aquilo que politicamente chamamos de violência - é, por eles, nas dinâmicas do ordinário, vivido e significado de múltiplas formas. Acreditamos que não é suficiente pensar em autonomia quando o sujeito está envolvido ou engajado em relações em que os constrangimentos impostos pelo afeto obnubilam a tomada de decisões.
Sabemos que as relações são atravessadas por compromissos, muitos deles hierárquicos, que levam os sujeitos a diversas formas de sujeição e sabemos, também, que a sujeição não é vivida obrigatoriamente no plano da aflição, mas, ao contrário, que os sujeitos podem aceitar situações de sujeição como formas de agência (Mahmood, 2005) ou, inclusive, habitá-las com prazer e regozijo.
Isso que estamos aqui chamando de porosidades foi, em outro contexto, chamado de fissuras por María Elvira Díaz Benítez (2015). Essa noção, que originalmente fazia alusão a momentos em que, no âmbito das práticas sexuais extremas, é possível borrar os limites do consentimento para se passar ao abuso, logo se mostrou útil para a análise das relações afetivas. Em um artigo dedicado a mulheres que tinham trabalhado como atrizes pornô, que anos depois e longe desse universo enxergavam seu passado com receio (algumas com arrependimento), notou-se que elas, ao tentarem estabelecer um casamento comprometido, diziam aguentar humilhações de seus pares porque “mereciam”, ou porque estavam agradecidas por serem amadas “apesar de”, ou ainda porque nutriam a expectativa de uma “vida normal”. As interlocutoras de Díaz-Benítez a levaram a pensar sobre o quanto algumas emoções e negociações da intimidade faziam com que as relações de amor fossem eminentemente fissuradas, ao ponto de as pessoas se engajarem em situações em que se passa, com certa flexibilidade, do abuso ao consentimento (Díaz-Benítez, 2019). Autoras que têm pesquisado sobre violência conjugal (Gregori 1993; Andrade, 2018) e em universos de grupos de “mulheres que amam demais” (Branco, 2012) têm relatado os múltiplos nós do consentimento e, assim como Díaz-Benítez (Ibid), têm se indagado sobre as múltiplas contradições da razão e da autonomia quando se trata das relações de intimidade.5
O consentimento depende das relações. E mesmo em relações mais ou menos estáveis, o consentimento pode existir como uma moeda de transação. Nos próximos apartes deste artigo desejamos nos debruçar sobre situações “complicadas” ou “complexas” que, de um ou outro modo, dizem a respeito de vulnerabilidades, de assimetrias e desigualdades e que estão imersas em negociações e discernimentos porosos.
Para finalizar, tentaremos refletir sobre as maneiras em que os enunciados sobre o consentimento no plano íntimo se enfrentam a enunciados no terreno político e público, onde as porosidades precisam ser borradas. Enquanto leis e ativismos demarcam pontualmente os significados e fronteiras do consentimento, as vidas dentro das relações o desfiam e novamente o refazem. Acreditamos que esses embates demonstram modos diversos de visualização das relações, modos diversos de engajamento que, por sua vez, atentam para múltiplas formas de se pensar e de se viver a violência.
Corrente de tolerância ou outras gramáticas do consentir
Em sua etnografia de mestrado, Oswaldo Zampiroli (2017) investigou as tramas mais cotidianas envolvendo família e conjugalidade em trajetórias de mulheres trans e travestis que se prostituem.6 A pesquisa se debruçou acerca das constantes reclamações destas mulheres de que “homem para levar travesti a sério é difícil”, dos sentimentos de solidão acometidos pela falta de amores conjugais e familiares e, sobretudo, uma vez que embarcavam numa relação amorosa, das negociações de fronteiras simbólicas. Isto é, no cenário em que de um lado há mulheres trans e travestis e de outro, homens cisgêneros, um modelo muito específico de relação passa a ser esquadrinhado, particularidade essa que pode ser situada em dois pontos principais: o ocultamento dos corpos transexuais nas redes do parceiro (o qual o autor nomeia de “amor subterrâneo”) e as negociações do ofício de prostituta (Ibid). “Namoro de travesti tem prazo de validade”; “por ser trans, tenho muitas inseguranças” (Schneider 2020); “aprendemos e somos obrigadas a lidar e conviver com a solitude e a solidão” (Rivera 2019); “não só para mim, mas para muitas de nós, a ausência do outro pode significar estar incompleta” (Rodrigues 2019); “uma trans conseguir homem que assuma ela assim é como ganhar na loteria [por sorte e por ser raríssimo]” (Soares 2018). Estes são alguns dos depoimentos da constelação de materiais etnográficos que viemos coletando nos últimos anos. Eles ilustram bem o que hoje vem sendo chamado de “a solidão da mulher trans”7. Como já viemos mostrando até aqui, as emoções que são articuladas como pedra de toque das subjetividades de pessoas vulneráveis estão sempre atreladas ao caráter relacional, familiar e conjugal. Assim, nesse cenário, ter um parceiro leal ou uma família “que aceita” é fundamental para o bem-estar dessas mulheres.
Seja na centralidade que o papel de esposa passa a assumir nestes relacionamentos, seja na maneira pela qual o sentimento de amor povoa o conjunto de expectativas de Ana, Donatela e Paula (três interlocutoras de Zampiroli8), palavras como “tolerar”, “aguentar”, “ceder”,9 “lidar” e “aceitar” são recorrentemente usadas. “É muito fácil perceber a diferença entre aceitação e tolerância”, disse Paula acerca da relação com o pai depois de se assumir trans. Aqui, Paula cria uma diferença entre “aceitar” e “tolerar”, que por outras vezes são tomadas como sinônimos, sobretudo quando o assunto era a prostituição, “Meu namorado, aceita, mas...”.
A partir desta etnografia, gostaríamos de tensionar as possibilidades epistemológicas ao nos questionarmos: o que acontece se passamos a compreender a tolerância como uma extensão da gramática do consentimento? Ou seja, expressões como “tolerar”, aguentar”, etc. são, ao nível do cotidiano, as usadas para comunicar as produções de limites simbólicos entre afetos, corpos, violência e relações. Nesta sessão, usaremos a ideia de “tolerância” como expressão unificadora das várias formas de que a ideia de “consentimento” pode aparecer numa “descida ao cotidiano” (Das 2007).
Donatela foi a única das quatro mulheres trans e travestis da pesquisa que, em certo grau, saiu do subterrâneo e foi apresentada para a família de seu namorado italiano, o qual namorou por quatro anos. Mesmo assim, os pais “não reagiram muito bem” com a revelação e ela, num momento em que ficou sem teto, teve que morar escondida dentro do carro do parceiro na garagem da casa de seu sogro e sua sogra. Todas as outras interlocutoras tiverem namoros ainda mais curtos, mesmo que vividos de modo intenso. O fim das relações sempre pendia para dois lados: ou a prostituição, fonte de renda e autonomia destas mulheres, não era bem aceita pelos parceiros;10 ou o corpo transsexual/travesti não era inserido nas redes familiares do parceiro.
Essas duas forças agonísticas produzem intensas negociações de intimidade (Zelizer, 2011), fazendo com que Donatela, Ana e Paula “tolerassem” diversos “excessos” de seus parceiros para que as relações sobrevivessem. É importante pontuar aqui a confiança como subproduto das negociações, assim como o amor como produto principal, que “dá nome e forma à fragilidade das fronteiras” (Díaz-Benítez, 2019, p. 67). Destarte, amor e confiança flexibilizam os limites das negociações, que são profundamente porosas, permitem alguns “excessos” e, portanto “[o amor] é provavelmente o sentimento que mais permite a passagem do abuso ao consentimento” (Ibid, p. 67).
Tem-se, então, novas modalidades de monogamia que são produzidas nessas negociações. Ana, Alice e Donatela, por exemplo, exigiam exclusividade sexual e afetiva, e os homens tentavam “lidar” com a não exclusividade sexual, exigindo a afetiva. Isto é, uma espécie de monogamia afetiva bilateral e monogamia sexual unilateral.11 O casal criava uma miríade de “regrinhas” em prol da manutenção da relação. Desse modo, a estabilidade do casal aparecia nas diversas regulações internas, no fluxo das tênues fronteiras do que Zampiroli chama de “dobra do cuidado e controle” (Zampiroli, 2017). Por exemplo, Donatela era proibida por seu namorado italiano, Alexandre, de sentar-se na cama com a roupa de trabalho. “Ele me buscava todos os dias meia noite ou uma hora da manhã e não me beijava. Eu tinha que chegar em casa, escovar os dentes, tomar banho. Eu tinha que botar uma roupa limpa. Não podia sentar suja na cama”. Ela diz
Pra uma pessoa pedir pra você tomar um banho “vai se lavar”. Eu era obrigada. Mas enquanto eu estava me lavando, ele estava preparando meu lanche antes de dormir. Tá entendendo? Era uma pessoa que me obrigava a tomar um banho, mas se preocupava de ir lá na cozinha preparar um lanche. Ele adorava fazer sanduíche e preparava sanduíches de todas as formas. Ele fazia um lanche pra mim. Ele não gostava que eu comesse na rua. Quando eu falava “vem me buscar no Polinario” que é onde vende lanche, tipo um foodtruck, ele não gostava porque ele sabia que eu não iria comer em casa. É complexo (Zampiroli, 2018a, p. 63).
Ou seja, nas negociações que eram travadas cotidianamente pelo casal, fica explícito que cuidado e controle são dois lados da mesma moeda - mesmo que não sejam negociações estáveis. Isto implica numa construção diária dos limites da relação, dos novos limites quando os anteriores são excedidos e do que é intolerável. Estas negociações são produzidas também a partir de uma gestão cuidadosa de informações.
Romário, namorado de Ana, preferia encontrá-la depois que houvessem transcorridas várias horas depois do fim de sua jornada de trabalho. Ele pedia que ela trabalhasse no período da manhã para poder vê-la a noite como se o tempo de não-trabalho ou de ócio realizasse nela uma espécie de purificação. Além do mais, quando os dois estivessem juntos, ela não poderia atender o celular na sua frente e nem falar sobre seu trabalho quando ele não perguntava. Caso Romário perguntasse, “era uma perguntação sem fim. Trabalhou hoje? Sim. De tarde? Eu falava de manhã. Quantos Clientes? Poucos. Era feio? Eu falava que era feio e velho. Repetido? Eu falava que não. Beijou na boca? Não. Chupou sem camisinha? Não. Tinha que falar isso tudo pra ele, tadinho”. Ademais, Ana era muito enfática com Romário ao falar do “nojo” que sentia de se prostituir.12
Acreditamos que seja importante compreender como a decisão de pertencer e de ser incluída aos modelos hegemônicos de família e conjugalidade tem como pecha esses entremeios no processo difícil e descontínuo que é a aceitação, tanto de uma carreira dissidente quanto de um corpo dissidente quando diante de uma relação tão assimétrica. Essa dinâmica de tolerância está o tempo todo transpassando as esferas públicas e privadas da vida dos sujeitos, como numa espécie de corrente de tolerância. Quando uma mulher trans e travesti se apaixona, ela tem que, em algum momento, “confessar” sua identidade e pode estar sujeita a algum tipo de violência.13 Quando um casal trans-cis engata numa relação afetiva, a pessoa cis em algum momento deve revelar a identidade trans do cônjuge. Quando a família aceita a nova membra trans, deve lidar com os olhares públicos dos vizinhos. Em todas essas esferas há a expectativa da tolerância.
O olhar mais cotidiano voltado aos processos de negociações relacionais de fronteiras simbólicas e morais, a partir destas outras gramáticas do consentimento, possibilita uma expansão epistemológica que não apenas captura a essência fenomenológica da experiência particular de sujeitos de diferentes marcadores sociais em determinado contexto, mas também põe em relevo as ambivalências de sentidos (mais evidentes aqui na dobradura cuidado e controle), subjetividades, moralidades e emoções que são construídas nas micropolíticas (Rezende e Coelho, 2010) dos tecidos relacionais da vida ordinária. A conjugação entre a busca por autonomia através do trabalho na prostituição, a desigualdade imposta pela dissidência de sexo e gênero e o desejo por habitar a norma (Mahmood, 2005), em configurações hegemônicas de família e conjugalidade, cria um cenário ambivalente e particular em que a porosidade das relações íntimas, dos corpos e das agências se apresenta com pujança. Desse modo, é revelado um destacamento importante entre as expectativas de gênero para si e as possibilidade reais de ocupar o espaço que se deseja habitar. As negociações da vida íntima, assim, passam a ser o trânsito que conecta o terreno acidentado do cotidiano imediato à vontade da aceitação definitiva - a tolerância, a ponte.
O consentimento frente à interdependência de corpos abertos
No contexto da pesquisa que Camila Fernandes (2017) realizou com mulheres moradoras de favelas, adentramos no campo de relações vividas entre mulheres mães e seus filhos no cotidiano de cuidados.14 Durante a escuta dos profissionais que atuam nas instituições públicas locais, como creches e escolas, e em conversa com os moradores, algumas mulheres são apontadas como “nervosas” na criação dos filhos. As falas localizam mulheres que “não têm paciência com criança” e “por qualquer coisa perdem a cabeça”, indicando um olhar de reprovação e crítica em relação a tais formas de conduta.
Ao escutar as mulheres apontadas como “nervosas” sobre o cotidiano dos cuidados, elas afirmam a necessidade da execução de determinados gestos, tais como bater, xingar e gritar com as crianças. Esses gestos são vistos como importantes para “educação” e “segurança” dos filhos: “se a gente não ensinar em casa, amanhã pode apanhar de bandido ou da polícia”. A necessidade dos castigos físicos é evocada em relação à “violência do mundo”, localizada por vezes na ação policial presente no território ou na atuação dos “bandidos”, agentes do poder armado local. Ensinar as crianças a “ser fortes” faz parte de um aprendizado no qual os castigos físicos são fundamentais na produção de uma pessoa apta para habitar um mundo de injustiças. A relação entre o aprendizado com a dor e através da dor deve ser compreendida a partir de uma articulação dos marcadores sociais de gênero, raça, classe e território que são fundamentais para pensar as noções de agência e vulnerabilidade enquanto termos relacionados ao debate sobre consentimento.
A dimensão racializada de um aprendizado através da dor se passa num contexto em que “saber se defender”, “saber reagir”, faz parte de uma perspectiva na qual a morte ou a possibilidade de ser castigado é perene e incide sobre populações negras e moradoras de territórios periféricos alvos de militarização15. Nesse sentido, localizam-se os momentos em que mulheres ensinam às crianças a importância de “não levar desaforo para casa”, uma vez “aceitar”, “não revidar” ou “não responder” a ofensa vivida na rua é alvo de reprovação no espaço do lar. Em situações na escola ou no morro, crianças e adolescentes por vezes se envolvem em confusões que podem chegar a ameaças e brigas com agressões físicas. Uma interlocutora adolescente de 13 anos conta que, caso ela apanhe em uma briga de rua, sua mãe é capaz de bater nela em casa: “minha mãe é assim, se eu apanhar na rua eu apanho em casa. Por isso que, naquele dia que a menina arrumou uma confusão comigo, eu tive que bater nela, bati muito!”. Estamos falando de mulheres, crianças e famílias majoritariamente negras (pretas e pardas), incluindo pessoas brancas que são racializadas em função de morar em um território “favelado”. Num contexto e território racializado e racializador, aprender a suportar a dor faz parte, paradoxalmente, de um aprendizado pela própria sobrevivência.
Ao analisar as dinâmicas de resistência nas plantations durante os regimes e práticas escravocratas, Angela Davis mostra que a realidade de castigos físicos cotidianos passa pelo aprendizado da suportação da dor em meio a inúmeros atos de resistência que permitem a manutenção da família negra em contextos de assujeitamento. Trata-se de um aprendizado duro em meio a uma realidade de intensa exploração de pessoas negras (Davis, 2016). Através dessas conexões entre realidades distintas, podemos compreender que os conflitos entre mães e filhos nas suas vivências de intimidade devem ser olhados a partir da dimensão racial desses afetos enquanto um componente que modula e impele relações de manutenção da continuidade da vida.
Outra linha de tensão acerca do “nervoso” feminino é explicada a partir das afirmações sobre exaustão emocional, na qual mulheres mães são as principais e/ ou únicas responsáveis pelo cuidado dos filhos. O conjunto de atividades como alimentar, levar e buscar da creche ou escola, prover a transmissão de valores, garantir o sustento material entre todas as infindáveis tarefas relativas ao trabalho reprodutivo de cuidado são majoritariamente de responsabilidade das mulheres mães. Nesse sentido, cabe refletir sobre formas de engajamento e descompromisso relacionadas ao universo dos cuidados que se estruturam conforme as dinâmicas de gênero. No plano cultural dos comportamentos sociais, é permitido aos homens uma maior margem de ação e mobilidade em relação a tarefas de cuidado. Aqui, nos deslocamos da ideia de um consentimento dependente da atitude de sujeitos isolados, mas podemos pensar em convenções sociais que permitem aos sujeitos masculinos uma maior capacidade de abstenção das atividades reprodutivas de manutenção da vida. Logo, as situações nas quais mulheres mães se identificam como “sozinhas para tudo” falam de um conjunto de ações em que a obrigação de resolução de demandas ao lado da incapacidade de atender a necessidade de um filho é sentida a partir de uma “raiva” ou “nervoso” que pode levar à “explosão”. Essas são situações que envolvem a precariedade das condições de uma classe pobre e trabalhadora que muitas vezes deve atender sozinha a fome de seus filhos. É duro constatar que algumas cenas de enfrentamento entre mães e filhos ocorrem, por exemplo, na mediação da disputa de um biscoito entre irmãos para abrandar a fome. Esta estrutura de desigualdades se aprofundam durante a pandemia do coronavírus, momento em que famílias pobres relatam diariamente o aumento das situações de fome, ansiedade e “nervoso” entre mães e filhos.
Nesse contexto, a utilização de castigos físicos, tais como esporros e xingamentos, podem ser acionados como formas de educação das crianças, ainda que esses gestos passem pela reprovação da moralidade local e institucional. Importante dizer que o consentimento das mulheres e da moralidade local em relação a tais formas de conduta possui uma ética particular, na qual os castigos se diferenciam da “violência”, do “abuso” e da “maldade”. Na conduta das mulheres mães, elas afirmam a importância de “saber bater”, “bater e não deixar marcas”, “bater sem machucar”, como expertises de caráter pedagógico, que não devem produzir a chamada fissura desenvolvida por Díaz-Benítez (2015), enquanto momento em que uma “palmadinha” pode se converter em uma “violência” ou um “abuso”, conforme aludem as falas das mães, indicando situações nas quais as relações de intimidade podem produzir zonas de sofrimento e excesso.16
É pertinente se questionar sobre as reações que tais “cenas”, no sentido elaborado por Maria Filomena Gregori (1993), têm para as crianças. Como dito anteriormente, há aqui uma relação de poder e uma assimetria geracional, legal e corporal que atravessa crianças, adolescentes e adultos. Essa múltipla assimetria esvazia a capacidade de falar em consentimento das crianças, sujeitos vulneráveis. Ainda assim, relações que envolvem castigos físicos, apesar de rechaçados publicamente, podem ser tolerados em determinadas circunstâncias relativas aos marcadores de raça, gênero e território, enquanto forças e estruturas mensuradas pelas pessoas na reflexão sobre tais formas de relação. Cabe refletir de que forma o ideário sobre o amor materno, gênero e autoridade familiar podem ser elementos que modulam um relativo repertório cultural acerca de tais atitudes, uma vez que agressões feitas por homens pais, tios e/ou padrastros recebem outras formas de qualificação e são comumente reprovadas em grande parte das circunstâncias quando dirigidas aos filhos.
A partir dos corpos infantis e vulneráveis, podemos refletir sobre a interdependência que constitui a condição humana. A zona dos castigos físicos mostra que, diante de determinados contextos, mesmo um corpo digno de proteção pode ser aberto a ação dos outros. Por outro lado, mulheres também se encontram em regimes de vulnerabilidade e seus corpos também aparecem abertos à regulação da alteridade. Algumas situações do cotidiano podem ajudar a compreender de que forma esses corpos adultos e femininos são assujeitados pela moralidade local. Em uma ocasião, uma interlocutora foi repreendida pelos moradores em reprovação a sua conduta. De acordo com as explicações locais, a mulher havia saído de casa e deixado as crianças “soltas” e “largadas” no morro. Durante esse tempo, a polícia militar invadiu a favela e houve tiros entre policiais e “bandidos”. As crianças que estavam na rua foram identificadas por alguns moradores logo após o ocorrido. Nessa situação, a mãe das crianças foi cobrada por ter “deixado as crianças na rua”. As cobranças foram feitas por alguns vizinhos e vieram na forma de xingamento e ameaças contra sua vida.
Outra interlocutora, vez em quando utilizava substâncias do comércio de drogas local e foi repreendida pelos “meninos da boca” quando souberam que ela estava grávida de uma criança. Foi feito um buraco no chão de terra e a mulher foi enterrada viva como uma forma de punição por sua conduta. Nessas ocasiões, não há possibilidade de reportar essas práticas à polícia, visto que tais atitudes podem desencadear em novas ameaças e retaliações.
Em algumas situações, a condição de vulnerabilidade atribuída à criança é possível de ser estendida, dada as devidas proporções, também às mulheres e às mães. O próprio território favela, enquanto um lugar em constante ataque militarizado pelas forças estatais, também pode ser pensado como um corpo aberto à invasão (McClintock, 2010). No plano da vida ordinária, os sujeitos se fazem a partir das suas relacionalidades, logo, a ideia de um indivíduo autônomo não está dada a priori, mas deve ser conquistada através de um intenso trabalho relacional de cuidado de si e dos seus.
A noção ampliada de um corpo aberto está presente em muitos aspectos. A densidade do território apresenta casas que possuem estreita proximidade umas com as outras. A dinâmica de circulação de crianças e o cuidado partilhado implica em uma criação mediada não apenas pela família de origem, mas pela comunidade e diferentes instituições. Devemos lembrar que diferentes ativismos denunciam que os moradores não têm o poder de consentir sobre as intervenções compulsórias e belicosas feitas no local de sua intimidade. Logo, se partimos de uma visão normativa sobre o corpo vulnerável das crianças, dotadas do direito à proteção e autonomia, veremos que na vida ordinária, crianças são bens coletivos. Portanto, pensar na ideia de consentimento implica necessariamente em um olhar para os circuitos locais de cuidado dos quais estas crianças e famílias participam (Fernandes, 2020), uma vez que esses se dão em conjuntos densos de relações Os processos de individualização são feitos mediante as forças pungentes de uma coletividade que cobra, zela e constrange determinados sujeitos ao universo da reprodução da vida. Nesse sentido, as crianças e mulheres mães estão em uma linha de produção da comensalidade que, ao mesmo tempo que as faz vulneráveis, também produz a sustentação da vida coletiva através dos gestos de cuidar e ser cuidado. Aqui, cabe pensar sobre que tipo de autonomia pode ser produzida em ambientes relacionais de densa territorialização e em meio a regimes generificados e racializados da formação de sujeitos morais.
“É complicado...”
O que torna, em certas paisagens, a vida vivível com homens acusados e condenados por crimes sexuais? Em sua etnografia, Rangel (2020) buscou responder a essa pergunta reconhecendo os custos, mas também os prazeres que recaem sobre os ombros daqueles que dizem através das palavras, dos sentimentos ou dos atos “esse não é um estuprador” ou “esse não é somente um estuprador”.17 Ele argumentou que, quando um homem é acusado de praticar algum crime sexual no seio de uma família, emerge um corte entre aqueles que acreditam que a acusação é verdadeira e aqueles que não. As pessoas que pensam que a acusação é falsa passam a habitar no presente o tecido relacional (Rangel, 2020) em que narrativas de injustiça a respeito de acontecimentos passados são cotidianamente alimentadas, mesmo após a condenação. Nesse sentido, a expressão tecido relacional é uma forma de demarcar tanto o enquadramento das relações promovido por aqueles que creem continuamente no discurso moral da injustiça, quanto a extensão limitada das relações que facultam a possibilidade do condenado ser alguém a quem algum “bem” pode ser feito. A condenação é um momento de acirramento dos cortes relacionais. É o momento em que frases como “ela queria, agora tá inventando isso”, “fulana disse que estuprei pra ficar com o meu carro” e “ele é um bom pai, não tem nada disso de pedofilia” perdem força ilocucionária diante da Justiça e matizam com novas tintas as fronteiras dos tecidos relacionais. Era comum que as falas dos homens sobre a injustiça da Justiça - fabulações sobre consentimento e crimes sexuais, do ponto de vista de muitos deles, apontassem a existência de uma plêiade de trabalhos relacionais - femininos, majoritariamente - de amortização do impacto da verdade jurídica e da figura do monstro.
A amortização desse impacto entre próximos pode inclusive se dar através da redução ou estancamento dos movimentos de afastamento. Rangel (Ibid) chamou de “conciliação fraturada” a forma de vida que emerge quando cortes relacionais existem, mas são cruzados, retorcidos e costurados: quando o pai - severamente adoecido - é o violador da filha que, em face ao sofrimento dele, se esforça para perdoar o que considera imperdoável; quando o fato de uma senhora saber que o seu affair estuprou dezenas de mulheres não impede que ela lhe dê abrigo, mas repercute no momento em que ele morre, a casa se esvazia e a possibilidade do luto se vê ameaçada pelo que ela sabe; quando o condenado que diz ser uma “máquina de fazer dinheiro” se vê sem emprego, casa e negócio, incapaz de pagar a faculdade da filha e destratado pelos parentes que o estigmatizam como estuprador, ainda que essa filha, segundo ele, afirme nunca ter sido estuprada. A questão que nos interessa é a de entender o que a ideia de conciliação fraturada diz sobre a de consentimento no plano das relações entre próximos. Ou melhor, trata-se de um movimento analítico que propõe descer a noção de consentimento ao ordinário (Das, 2007) e colocá-la em relação à dinâmica da tolerância, anteriormente mencionada e cabível também ao terceiro caso etnográfico a ser apresentado. A essa altura, deve-se sinalizar ao leitor que não estamos advogando em nome da tolerância, e sim tentando entender o que importava para os nossos interlocutores nas situações em que com eles interagimos ou, mais precisamente, no interior dos tecidos relacionais em que eles habitavam e que foram drasticamente afetados por crimes sexuais, bem como costurados por práticas morais, afetivas e/ou econômicas. Na impossibilidade de produzir aqui reflexão sobre esses crimes e essas práticas em sentido mais amplo e minucioso, queremos destacar uma situação em que valores liberais - consentimento e autonomia, por exemplo - se acomodam à atribuição de valor à dinâmica da tolerância e, no curso desse ajustamento precário, fraturam a conciliação angariada entre pessoas que têm perspectivas diferentes sobre um parente condenado pelo estupro da própria filha.
Alice dizia que seu tio tinha estuprado não somente uma de suas duas filhas, a que menos se parecia fisicamente com ele, como também, décadas antes, uma das irmãs dele. Já Lurdes, mãe de Alice, negava veemente os dois estupros: o da criança, que redundou em sentença condenatória, seria uma falácia; e o da irmã, jamais mencionou ao etnógrafo. A teoria de Alice era a de que sua mãe não falava sobre esse estupro porque “ninguém” quer admitir que tem um “pedófilo” na família. O silêncio seria a forma que os parentes da geração de Lurdes encontraram para lidar com o primeiro estupro decorrido na família. Ivan, do ponto de vista de sua sobrinha, não deveria ver as filhas, menos ainda a que teria estuprado. Do ponto de vista de Lurdes, falar sobre a criança como vítima - e, por conseguinte, sobre a violência juridicamente presumida dada a impossibilidade de consentimento - era um ato injusto com o seu irmão. Alice não concordava com a sua mãe, mas desistiu de tentar fazê-la ver o que via em Ivan. O amor de Alice por Lurdes trabalhou no sentido de fazer a primeira, ainda que sob desconforto, respeitar a segunda tolerando os almoços com o tio, que não se envergonhava de tratar as mulheres como “pratos de comida” que estavam a seu dispor, mas negava ser um “pedófilo”. Lurdes pensava que o seu irmão era um bom pai, ainda que soubesse que, antes de ser preso, ele levava uma vida percebida como errante: mulheres, bebidas, jogos, etc. Segundo Alice, sua mãe podia até insistir em dizer que o seu tio tinha mudado da água para o vinho através conversão religiosa, mas a aproximação a Deus não fazia mudar o passado, nem mesmo o fato de Lurdes não gostar que as suas filhas se sentassem no colo do irmão, dos homens em geral, quando eram crianças.
Na casa de Lurdes, Rangel conheceu Alice, seu filho e seu marido. As pessoas presentes - o que incluiu Ivan e a filha mais nova de Lurdes - almoçaram juntas a comida preparada pela matriarca dessa família para recepção do antropólogo - jornalista, ela insistia. A cotidianidade daquela situação de comensalidade foi perturbada apenas de modo breve, no momento que o neto de Lurdes, por algum motivo desconhecido, perguntou para a sua mãe o que era “pedofilia”. Não era esse o assunto sobre o qual se falava, nem sobre o qual se passou discutir. Alice rapidamente silenciou ao menino e lhe disse que depois explicaria. Ela foi tão rápida que o mais provável é que ninguém tenha escutado a pergunta elaborada em tom baixo e num canto do terraço onde todos estavam. Ao brincar com fogo, a criança permitiu que a filha de Lurdes agisse como a sua mãe, mimetizando momentaneamente o valor atribuído ao silenciamento18 do estupro e à tolerância em relação a Ivan. Como Alice em outras situações criticava o machismo do tio e os crimes por ele cometidos, é possível dizer que ela entendia o silêncio que repetia em almoços de família como uma forma de lidar com Ivan que o beneficiava na medida que não impunha a ele a necessidade de reconhecer a violência sexual e os seus efeitos nefastos. Desse ângulo, a repetição de um padrão de conduta masculino normativo, centrado na repetição do machismo e da violência sexual - primeiro dirigida por esse homem contra a sua irmã e depois contra a própria filha -, não poderia ser separada plenamente do silêncio enquanto prática de perpetuação do mundo patriarcal que Alice denunciava. A reatualização da normatividade de gênero estaria contida até mesmo nos esforços de Lurdes para fazer Alice enxergar Ivan como um arrimo de família e um injustiçado, alguém a quem a família não podia dar as costas e com quem situações de comensalidade poderiam transcorrer através da prática do silenciamento e do compartilhamento subjetivo do valor da tolerância, ainda que Alice cultivasse valores como aqueles pautados pelos feminismos: autonomia, liberdade e consentimento.
A atitude conciliatória de Alice soldava como podia uma fratura entre pessoas e valores que tinha notável marca geracional. Esse aspecto sociológico da fratura somente se tornou visível no momento que Rangel percebeu que sua interlocutora conversava com ele mobilizando diversos símbolos de juventude, tais como festas, cerveja e mesmo o vanguardismo das atitudes descoladas. A identificação etária produziu tanto a possibilidade de ele contar para Alice sobre os machismos do seu tio, precisamente sobre as referências que ele fazia a mulheres como “pratos de comida” - ora “quentes” e saborosos, ora “frios” e indesejáveis -, quanto de ela contar a ele o que Lurdes jamais lhe disse: que Ivan havia estuprado uma das suas irmãs. Acreditamos que Rangel e Alice, e muitos de nós, pertencem a uma geração que vem sendo ensinada que estupros podem ser combatidos através da enunciação, a considerar pela disseminação de campanhas como “#metoo” e pelas passeatas em que vítimas narram as violências sexuais que sofreram. Se não temos dificuldade de imaginar Alice dando suporte político a causas e a eventos vinculados às pautas feministas, temos dificuldade de vê-la enunciando em público os estupros praticados pelo seu tio. A nossa impressão é a de que, como as práticas relacionais de manejamento do estupro por ela acionadas derivavam da não aceitação totalizante do “mandato transgeracional” (Duarte, 2011) de silenciamento, era necessário encontrar os espaços onde a enunciação da violência sexual não colidisse com a narrativa de injustiça de Lurdes e seu irmão. O aspecto arbitrário do mandato releva-se nesse caso através de uma negação da reprodução do silêncio em toda e qualquer circunstância e da aceitação do valor deste último nos almoços de família. A conciliação fraturada não é cisão absoluta, nem compromisso intersubjetivo unívoco, e sim corte relacional que se alimenta das tensões relativas ao universo dos valores sociais, mas que se acomoda, costura ou ajusta como podem as pessoas e as relações.
Algumas considerações finais
Neste artigo, procuramos descrever de que maneira a ideia de consentimento conflita e/ou se ajusta com noções que, como a de “tolerância” e a de “saber bater”, povoam as relações dos nossos interlocutores que se encontram em posições de vulnerabilidade e fazem o que podem para tornar as suas vidas vivíveis. Buscando levar a sério a “complicação” e a “complexidade” como categorias êmicas, demonstramos como os atos das mães “nervosas” em relação aos seus filhos são levados a cabo em territórios racializados que projetam sobre os ombros delas o peso das políticas de morte; como mulheres trans-travestis veiculam expectativas amorosas que seus parceiros assumem para si mesmos de forma restrita, quando assumem; e, finalmente, como uma família vivencia o drama da convivência com um parente condenado pelo estupro de sua filha, mas cuja condenação não é tratada por todos da mesma maneira. Esses exemplos etnográficos nos permitem terminar insistindo na importância de não somente reconhecermos como os nossos interlocutores percebem as pessoas com as quais convivem e as relações nas quais estão imersos, mas também as alterações que essas percepções sofrem no tempo e no espaço. Sabemos que tolerância tem os seus limites, pois não é estática, nem compromisso assumido pelos sujeitos de uma vez por todas. Não podemos fixar os sentidos dos prazeres e danos provocados pelas pessoas e relações sem incorrer ao risco de congelar a vida e perder de vista as tonalidades (Das, 2018) e texturas (Lambek, 2015) do cotidiano.
Parece-nos importante também insistir que as distinções entre o público e o privado, os amores subterrâneos e os amores normativos, o consentimento e a violência não sejam tomadas como dadas, mas como objetos aos quais se deve atentar a partir dos “jogos de escala” (Revel, 1998) “inscritos nas formas nativas de pensar e atuar” (Neiburg, 2003, p. 2). Esse último exercício faculta a possibilidade de observarmos a categoria consentimento em operação nas relações em que os nossos interlocutores habitam e a partir das quais eles complicam o significado liberal que tendemos a associar ao consentimento em uma sociedade de direitos. No âmbito das relações de intimidade, existem “consensos” locais sobre as formas de infligir dor que podem chegar, inclusive, a ser contraditórios. Tal é o caso das mães “nervosas”, pois o que em tese se classificaria como “maus tratos” são atos percebidos pelos interlocutores de Fernandes (2017) como práticas de educação, modos de ensinar a ser que, se por um lado são vivenciados pelas crianças em bases assimétricas, por outro lado são controlados pelos adultos através do “saber bater”. Constrói-se assim uma “positivação do negativo” via repertórios emocionais que permitem que as mães lidem com a precariedade a que estão expostas, bem como tentem manter os seus filhos vivos. Os tapas que os códigos legais convencionaram classificar como “abusivos” não são de antemão pensados por essas mulheres nesses termos.
O convite que estamos fazendo através dessas ponderações é tanto o de se perceber a necessidade de levarmos a sério as dimensões racializadas das aprendizagens que se dão através da dor, quanto o de nos questionarmos sobre o que elas dizem a respeito da lógica do consentimento. Essas experiências nos impelem, enfim, a pensar sobre os modos como as pessoas lidam com as suas mazelas, contornando da maneira como podem o que lhes imprime sujeição. Se suportar a dor é uma forma de ação, um modo de habitar ativamente a sujeição, vale problematizar como a reprodução desse tipo de agência reproduz a própria sujeição. Dizemos isto pensando nos desafios que enfrentamos como antropólogos que cultivam um olhar fenomenológico das realidades existenciais. Observar o mundo “como ele se apresenta”, diria Merleau Ponty, nos permite conhecer as diferentes formas como os sujeitos se relacionam com as normas e os mais diversos valores sociais. Se as mães “nervosas” nos impelem a questionar que tipo de autonomia é possível em ambientes relacionais de densa territorialização e normatização dos comportamentos femininos, Donatela e Ana, envolvidas em grandes paixões e expectativas de amor romântico, desdobram os múltiplos modos em que cuidado e violência, ou cuidado e controle, se amalgamam nas veredas da vida ordinária. Para corpos trans e prostituídos, aos quais socialmente é negado o casamento, viver o amor subterrâneo, tolerar habitar relações que não são como aquelas que foram sonhadas e aceitar tanto quanto podem segredos e silêncios são mecanismos - artes da existência, para usarmos um termo foucaultiano - que permitem que a vida seja tocada para frente, enquanto se angaria um pouco da almejada felicidade.
Alice é um exemplo importante daquilo que queremos expressar quando falamos sobre a importância de nos atentarmos aos “jogos de escala” efetuados pelos nossos interlocutores, quando eles definem, separam, transitam e/ou juntam o íntimo, o familiar, o político e o público. Se estamos certos ao dizer que Alice poderia ter participado de manifestações contra a violência sexual, poderia ter empregado o termo “cultura do estupro” nos momentos em que usou a palavra “machismo” e a categoria “pedofilia” para referir-se ao seu tio e poderia até mesmo ver nos seus atos e nos atos da sua mãe a reprodução dos valores que criticava, por que as situações de comensalidade assumiam a forma que assumiam? De início, cabe dizer que a pergunta em si parece velar uma expectativa normativa em torno do comportamento adequado, como se ela devesse quebrar as formas de silêncio que imperavam no tecido relacional em que habitava e como se as pessoas e os seus atos fossem sempre coerentes em relação aos valores que professam. Se a vida em proximidade de fato é “complexa”, a triangulação da relação entre mãe, filha e tio/irmão comporta um tipo de “complicação” que, do ponto de vista de Alice, não se reduz ao que no plano das disputas políticas vem sendo chamado de “cultura do estupro”, ainda que esse conceito possa lhe ser relativamente familiar. O afeto da filha pela mãe, o senso de respeito da primeira em relação à segunda e as qualidades mais inconscientes desse vínculo permanecem subdimensionados se considerados apenas como sentimentos que resguardam Ivan. Até mesmo porque esse resguardo é um resultado que, embora real, não deixa de ser desconfortável, seja para Alice, seja para Lurdes. A forma de conciliação fraturada a que chamamos atenção é azeda, se sustenta como um nó que não desce da garganta e depende da projeção sobre os ombros das mulheres do peso dos trabalhos relacionais hercúleos, quase insuportáveis; mas que, por vezes, não deixam de conter uma camada de prazer, isto é, um senso de autoconclamação em torno do dever cumprido e do bem feito ao outro.
Simultaneamente, como antropólogos e sujeitos políticos, somos movidos por desejos éticos que nos fazem idealizar outro mundo e por ele lutar. Assim, expressões como “cultura do estupro” e “patriarcado” podem ser percebidas como palavras-atos, modos de dizer que as relações de gênero assumem formas normativas, não-consensuais e violentas; isto é, podem culminar em estupros praticados não somente por desconhecidos, mas também, e sobretudo, por pais, tios, maridos, irmãos. São, portanto, modos de visualização do mundo, em suas paisagens pretéritas, atuais e vindouras. Ainda que, no plano das lutas políticas, seja estratégica a caracterização da violência sexual como o resultado mais crítico de uma cultura continuamente reproduzida (Segato, 2003), dada a lentidão das transformações comportamentais e suas consequências brutais para as mulheres e as crianças, a transposição não mediada da compreensão estrutural das relações de gênero ao plano ordinário tende a esmagar as experiências e as relações tais como vividas. Não queremos assim desqualificar as desigualdades macrossociais, nem as formas da violência, mas explicitar de que maneira as desigualdades, as violências e os amores habitam cotidianamente as relações interpessoais. Afinal, sabemos que violência é polissêmica, pois, ao mesmo tempo que habilita certas formas de viração, desmantela os sujeitos.
Insistimos que as respostas para as questões levantadas ao longo deste artigo, se existem, são “complicadas” e/ou “complexas”, pois englobam fatores que extrapolam os sentidos jurídicos das categorias consentimento e vulnerabilidade, mas também a eles se conectam através dos trânsitos e “jogos de escala” realizados por nossos interlocutores. Estamos defendendo a rentabilidade da análise das formas de violência a partir das condutas que as pessoas forjam e sustentam quando a negam, a reconhecem e, a duras penas, levam as suas vidas adiante. Essa é uma proposta analítica devedora da leitura dos “eventos críticos” a partir dos tentáculos que lançam em direção à vida ordinária (Das, 2007) e fundamentalmente interessada nas dinâmicas locais, nos trânsitos entre mundos, nos modos como as pessoas dão significado aos eventos e à própria vida que levam - dos amores subterrâneos marcados pela tolerância às mães que se veem “sozinhas para tudo” e “explodem”. Revela-se assim que a percepção segundo a qual “se há consentimento, não há violência” não é completamente verdadeira.
Se procuramos interpretar a violência a partir dos modos como ela é significada, construída e vivida pelos sujeitos em suas experiências - evitando partir de uma definição per se da mesma -, é porque buscamos sublinhar através de nossas etnografias a dimensão mais fenomenológica das relações afetivas, das assimetrias de gênero e cuidado, das desigualdades e das violências. Este exercício, contudo, não nega a relevância política de análises de corte mais estrutural do que processual, que partam de definições e nomeações mais fixas. Do nosso ponto de vista, trata-se menos de abordagens incomensuráveis do que de modalidades de visualização das relações de gênero e da violência, modalidades produtoras de efeitos políticos diferentes e passíveis de serem combinadas. A calibragem entre as duas estratégias de visualização não é uma tarefa fácil, seja porque os excessos estruturais com muita facilidade soterram as sinuosidades do ordinário, seja porque o foco na polissemia das dinâmicas micro dificulta as generalizações e a construção de essencialismos estratégicos relevantes à luta política.
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Delito de estupro de vulnerável: Art. 217-A do Código Penal (1940) incluído pela Lei nº 12.015 de 2009 e definido como “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”. O 1º parágrafo do código adiciona que “Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”.
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2
Ver a análise de Laura Lowenkron (2008) sobre uma menor de 14 anos, em que controvérsias e desconfianças sobre seu não consentimento em relacionamento com homem de 24 anos foram criadas e julgadas, levando a um processo de desconstrução de sua menoridade. Após essa experiência, a possibilidade de relativização da violência em função da maturidade sexual sofreu duras críticas e levou, em 2009, à inserção legislativa do tipo autônomo “estupro de vulnerável”. No entanto, “a alteração legislativa [...] não afastou a polêmica, pois agora se trava o debate sobre ser a ‘vulnerabilidade’ relativa ou absoluta, principalmente nos casos de adolescentes na faixa de 12 a 14 anos” (Castilhos, 2013, p. 138, apud Lowenkron 2016, p. 12). Sobre “menoridade”, ver Vianna (2002).
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A criminalização do chamado tráfico de pessoas para fins de exploração sexual e da própria prostituição se vê atravessada por contenciosos que tomam a condição de mulheres cis e trans de países do terceiro mundo como vulnerabilidade, tornando-a um argumento legítimo que contradiz qualquer capacidade de agência desses sujeitos. Nesses casos, a vulnerabilidade implica uma amálgama entre gênero, sexualidade, regionalidade, classe social e um trabalho socialmente demeritado, independente da maioridade das envolvidas, o que precisa ser analisado de modo crítico (Piscitelli, 2010; Lowenkron, 2015).
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4
Nos unimos a diversas formulações que insistem, na antropologia, na necessidade de pensar os diversos modos como a violência é construída moralmente pelos sujeitos, de modo contingente e dependendo do momento em que pensam sobre dita experiência. María Elvira Díaz-Benítez (2019), por exemplo, discutiu os modos como algumas situações eram mais prontamente configuradas como “humilhação” e não como violência pelos agentes. Em uma situação específica, uma humilhação pode tornar-se violência e, para tal, explica Jack Katz (2013), é necessário passar por um processo emocional específico, é necessário que a humilhação se torne ira, ou é necessário, como argumentam Simião (2006) e Cardoso de Oliveira (2008), que uma agressão seja configurada moralmente como violência. Como eles, outras autoras (Gregori, 1993; Debert & Gregori, 2008) têm insistido na necessidade de desnaturalizar o que entendemos por violência, a qual somente existe quando há um trabalho subjetivo moral que torna um ato (ora um ataque físico, um insulto ou um xingamento) em violência. “Um ato de força, mesmo podendo ser sentido como agressão física por parte de quem o sofre, pode não ter maiores implicações no plano moral” (Simião, 2006: 135), ou seja, é necessário somar a dor física à dor moral (Simião, 2006: 139). Se for um insulto, é preciso que gere ressentimento em quem o recebe (Cardoso de Oliveira, 2008).
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5
Curiosamente, a noção de fissura que Díaz-Benítez (2015) usou para explicar situações em que as negociações perdem sua transparência inicial, foi inspirada por sua própria experiência de parto. Para ter seu filho em um parto alternativo, de cócoras e sem precisar de anestesia que adormecesse suas pernas e impedisse dita postura corporal, a autora se preparou emocional e fisicamente durante um tempo considerável. Ainda, assinou um termo em que solicitava formalmente ao hospital que não fosse injetado nela ocitocina ou nenhum outro tipo de hormônio que acelerasse as contrações para que o trabalho de parto respeitasse os tempos impostos pelo processo natural. Contudo, quando se enfrentou a horas de dor intensa, percebeu que estaria disposta a quebrar o contrato que tinha estabelecido consigo mesma, que tinha assinalado para o hospital e, inclusive, se submeter a uma cesárea que era o que menos desejava. Não fez. A criança nasceu com sua mãe de cócoras. Algum tempo depois quando enxergava fetiches extremos que se utilizavam de dor, nojo e medo, lembrou de sua própria dor e entendeu que mesmo com toda a preparação necessária e após a manifestação de um claro consentimento, a dor, o nojo ou o medo podem tomar seus próprios caminhos, transbordar, e obnubilar o consentimento.
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6
Pesquisa realizada no Rio de Janeiro e defendida em 2017 no PPGAS/MN sob o título “Amores subterrâneos: família e conjugalidade em trajetórias de prostitutas trans-travestis”.
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7
Nome dado em comparação a expressão “solidão da mulher negra”. Há outros paralelos entre o feminismo trans com o feminismo negro, como o processo de valorização do espaço doméstico como lugar de resistência. Ver Davis 2016; Hooks 1990.
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8
Sobre o papel de esposa ver Zampiroli 2018a; sobre expectativas e futuro ver Zampiroli 2018b.
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9
A ideia de “ceder” como “pequenas tolerâncias” em busca de inclusão é o tema do artigo de Daniel Medeiros que pensa a partir da trajetória de um homem trans. Ver Medeiros 2020.
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10
Para mais informações sobre transexualidade e/ou prostituição em relação à conjugalidade ver Pelúcio 2011; Kulick 2008; Silva 2007; Olivar 2013; Piscitelli 2013.
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Para mais informações sobre dinâmicas conjugais e familiares ver Velho 1998 e 2009; Fonseca 1995; Heilborn 1995; Duarte 2009; Salém 1989.
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É importante pensar o “nojo” aqui em dois sentidos: como estratégia de gestão de informação para manutenção da relação e como produtor de hierarquia (Ver Díaz-Benítez, 2019). Ademais, isso não era uma verdade completa, afinal era possível “fazer um vício”, isto é, ter prazer na relação sexual advinda da prostituição (ver Olivar, 2013).
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Discussões sobre “passabilidade”, cirurgia de redesignação sexual, etc. poderiam deslocar o rumo da argumentação, mas infelizmente não poderemos nos aprofundar nesse tópico nesta oportunidade.
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A tese de doutorado foi realizada no Morro da Mineira e do São Carlos, Zona Norte da cidade do Rio de Janeiro. A etnografia analisa as formas de acusação da sexualidade e da reprodução feminina presentes na sociabilidade local e nas administrações estatais. A partir de enquadramentos sobre uma “sexualidade errada”, a pesquisa analisa narrativas de mulheres apontadas como desviantes, a saber, as “novinhas”, as “mães nervosas” e as” mães que “abandonam os filhos” (Fernandes, 2017).
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Para maiores desenvolvimentos sobre a relação entre militarização dos territórios de favela, racismos de Estado e cuidado com as crianças ver Fernandes 2020.
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No contexto das relações de cuidados analisados, vale ressaltar que a possibilidade de consentir está associada as condições de produção de autonomia dos sujeitos. Uma vez que as crianças e mães estão atravessados por relações de poder e desigualdade as condições para evitar abusos e maus tratos se complexifica. Aqui, não é possível falar em consentimento (no sentido liberal do termo) em relação aos castigos corporais entre mães e crianças uma vez que esses gestos são acionados diante das duras condições de manutenção do cuidado das crianças. Nesse sentido, discursos normativos que tratam os castigos físicos a partir de uma noção de escolha individual são limitados para pensar as dinâmicas de violências no plano familiar de intimidade, uma vez que, em determinados contextos os sujeitos criam e elaboram limites de ação de acordo com suas condições concretas de vida. Ainda assim, cabe reforçar que as crianças se situam como sujeitos vulneráveis e as relações com os castigos físicos mostram a condição de vulnerabilidade que os marcos normativos sobre violência constroem, ao mesmo tempo que na prática, as instituições locais possuem condições precárias de amparar casos de violência intrafamiliar. Um exemplo desses limites se fez muito evidente quando em uma etapa da pesquisa sobre o “nervoso” das mulheres mães no ambiente escolar, algumas crianças falaram sobre relações de abuso vivenciadas no espaço doméstico. As questões foram recebidas pela direção da escola que sugeriu que a pesquisa não adentrasse na temática dos castigos uma vez que as condições reais de acolhimento dos casos de violência intrafamiliar envolvem complexas e precárias redes de atendimento institucional da violência, a exemplo do encaminhamento de denúncias ao Conselho tutelar local, e no limite, em casos de destituição da guarda das crianças.
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Pesquisa realizada através do Núcleo do sistema Penitenciário da Defensoria Pública do Rio de Janeiro (NUSPEN-DP-RJ), a tese intitulada “Depois do estupro: homens condenados e seus tecidos relacionais”, defendida em 2020, procurou analisar de que maneira a condenação de pais, filhos, maridos, irmãos ou tios por crimes sexuais impacta as dinâmicas familiares.
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Embora seja possível argumentar que a presença do etnógrafo nessa situação de comensalidade incide sobre a regulação do dito e do não dito, ressaltamos que a própria Alice reconhecia e repetia em outras situações os esforços de sua mãe, seja para silenciar as acusações de estupro voltadas a Ivan, seja para construí-lo como injustiçado. Para mais detalhes, ver Rangel, 2020.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
05 Out 2020 -
Data do Fascículo
May-Aug 2020
Histórico
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Recebido
18 Jul 2020 -
Aceito
19 Ago 2020