Resumo:
Este artigo analisa a produção social das escolhas realizadas pelas famílias dos estudantes do ensino médio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) em relação ao ensino superior. O campo de possíveis em relação às universidades foi delimitado socialmente pelas experiências da história familiar dos estudantes. Ao almejar ultrapassar os pais, os estudantes cultivam um estilo de vida distinto da geração anterior, postergando a aquisição de bens econômicos e investindo seu tempo e dinheiro na aquisição do capital cultural em sua forma mais escolar. A pesquisa possui como metodologia a realização de entrevistas semiestruturadas com 21 jovens, selecionados a partir de um questionário aplicado a todos os estudantes do terceiro ano do ensino médio (total de 257 questionários respondidos).
Palavras-chave: Família; Escola; Classes Sociais; IFSP; Escolha
Abstract:
This paper analyses the social production of choices of universities made by the family of high school students of Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). The field of possibilities in relation to the universities has been socially defined by the history of the students' families. Aiming to overcome their parents, the students develop a different lifestyle from the previous generation, postponing the acquisition of economic assets and investing their time and money in the acquisition of cultural capital in its academic form. The research methodology consists of 21 semi-structured interviews with students, who were chosen from the results of a survey applied with all the 257 students of 12th grade.
Keywords: Family; School; Social Classes; IFSP; Choice
Fazem-se sacrifícios pelo que se ama, mas, inversamente, também se ama aquilo por que se fazem sacrifícios (Simmel, 2006, p. 39).
Introdução
A sociologia da educação que se volta para o estudo do sucesso escolar no Brasil produziu recentemente vários estudos sobre fatores na socialização dos jovens, tais como a posição de classe das famílias e o gênero, que tendem a influenciar a trajetória dos estudantes nas instituições de excelência no país (ver Nogueira, 1991; Almeida, 2006; Almeida, 2009; Perosa, 2009; Carvalho, 2008). O estudo de Nogueira (2004) sobre as escolhas dos cursos e das universidades realizadas pelas famílias de empresários em Belo Horizonte indica que não necessariamente os membros das classes dominantes optam pelas instituições de maior prestígio acadêmico no país. Este artigo pretende oferecer uma contribuição para essa literatura específica, investigando em particular as escolhas realizadas pelas famílias dos estudantes do ensino médio da Escola Técnica Federal de São Paulo (IFSP)1, pertencentes a certas frações das classes médias que, diferentemente dos filhos de empresários em Belo Horizonte, sonham com o ingresso nas universidades consideradas como de excelência acadêmica como via de manutenção ou ascensão social. Veremos nesse artigo que as escolhas do curso superior e das instituições de ensino, ou ainda de como deveria ser feito o investimento escolar (por exemplo, decisões sobre quais livros ler, quais cursos frequentar, qual língua estrangeira aprender), são realizadas pelas famílias e pelos estudantes em um campo de possíveis delimitado socialmente. Não se trata aqui de uma escolha racional, como certas interpretações do mercado escolar tendem a sugerir. As escolhas são realizadas dentro daquilo que se oferece como possível e são permeadas de elementos emocionais ligados às disposições inculcadas pelas experiências passadas dos familiares e amigos.
O ensino médio é um momento da trajetória educacional privilegiado para a análise sociológica da produção social das escolhas escolares, uma vez que é nesse nível de ensino que os jovens se encaminham (ou não) para cursos e instituições de ensino superior a partir de seus recursos sociais, principalmente o capital escolar, e representações socialmente produzidas sobre si mesmos, o mundo e o futuro (sou inteligente? Sou capaz? Posso entrar na Universidade de São Paulo?), em que tentam, com seus familiares, justificar e atribuir sentidos sociais a essas trajetórias (Bourdieu; Passeron, 2010, p. 25-54; Almeida, 2009). O ensino médio é, portanto, um momento mais ou menos arriscado para os jovens de acordo com o cacife de recursos desigualmente distribuídos entre as classes sociais no jogo escolar e o nível de dependência das famílias em relação à escola para obtenção da ascensão social. É um momento decisivo no jogo social e escolar, onde apostas socialmente determinadas ocorrem e têm consequências determinantes que delimitam o horizonte de futuros possíveis.
Na primeira parte do artigo, apresento a posição social das famílias dos jovens da Federal e como a trajetória de seus pais e avós foi por eles interpretada, pois, como veremos, tal apreensão subjetiva influenciará certas decisões tomadas posteriormente em relação ao ensino superior. Na segunda parte, apresento a relação que os jovens possuem com a cultura escolar por meio da análise de suas práticas de leitura, com o intuito de destacar como o vestibular para as universidades públicas será o foco principal da atenção desses jovens ao final do ensino médio e como eles apresentam certa insegurança ao lidar com a cultura vista como mais legítima pela escola. Por fim, descrevo e interpreto a predominância dos chamados cursos bacharelescos nas escolhas realizadas pelas famílias e pelos jovens estudantes da Federal.
A pesquisa possui como metodologia a realização de entrevistas semiestruturadas com 21 jovens entre outubro de 2009 e setembro de 2010, selecionados a partir da análise do questionário aplicado a todos os estudantes do terceiro ano do ensino médio do colégio em agosto de 2009, totalizando 257 questionários respondidos2. O critério de seleção dos entrevistados foi basicamente o de respeitar a heterogeneidade social e cultural interna das turmas de ensino médio. As entrevistas aconteceram em dois momentos da trajetória desses estudantes: o primeiro, no final do terceiro ano do ensino médio (17 entrevistas), e o segundo quando eles já estavam na universidade (4 entrevistas). O roteiro das entrevistas com os estudantes e as questões do questionário versaram sobre a história familiar, a trajetória escolar dos estudantes, as práticas culturais (leitura de livros, revistas, frequência em museus), a posição social das famílias (ocupação e escolaridade dos pais e dos avós, local de moradia), as representações dos estudantes sobre a escola e sobre o próprio futuro (escolha das carreiras de ensino superior e planos profissionais e educacionais). Além das entrevistas com os estudantes, realizei entrevistas com três mães com o intuito de observar como elas interpretam as escolhas realizadas pelos filhos e/ou pela própria família.
Ultrapassar os Pais
A Federal foi escolhida para a realização dessa pesquisa por ser reconhecida como uma das escolas públicas de excelência no nível médio. Dentre as características que a diferenciam das demais escolas públicas em São Paulo, podemos destacar: um corpo docente altamente qualificado, um corpo discente selecionado por exames extremamente competitivos3, e um projeto pedagógico que não se volta exclusivamente para o ensino propedêutico4. Embora o discurso institucional da escola reforce o objetivo de oferecer uma formação para a vida e a cidadania, os estudantes da Federal são reconhecidos por serem bem preparados para enfrentar os vestibulares mais concorridos para o ingresso às universidades mais prestigiadas do país.
De acordo com as respostas ao questionário, é possível afirmar que os estudantes de ensino médio da Federal em 2009 eram provenientes, em sua maioria (84%), de famílias de imigrantes, sobretudo italianos ou japoneses, que chegaram ao Brasil na geração dos bisavôs e avôs. Na geração dos avôs dos estudantes, apenas 8,4% obtiveram um diploma superior, enquanto a maioria (76,8%) não chegou a concluir o ensino médio. Na geração seguinte, dos pais dos estudantes, houve, em geral, oportunidade de concluir os estudos superiores (caso de 49%). Dentre aqueles que concluíram o ensino superior, a maioria (82%) frequentou as universidades particulares sem prestígio acadêmico.
Pode-se dizer que tais famílias pertencem a certas frações das classes médias, ocupando principalmente os empregos de colarinho branco descritos por Wright Mills em meados do século XX: 15,2% funcionários em posições intermediárias no serviço público; 11% profissionais liberais; 9,2% administradores de pequenas e médias empresas; 6,4% funcionários de escritório; 6% professores do ensino médio; 7,3% quadros técnicos. Pertencentes às frações da classe média tradicional, formada por proprietários, segundo Wright Mills (1979), e que era predominante na geração dos avós, estão: 7,8% de pequenos comerciantes e 7,3% de pequenos empresários. Alguns pais pertencem às classes trabalhadoras, em ocupações nos serviços urbanos desqualificados (8,3%) e industriais (5%). Somente uma pequena minoria pertence a famílias de frações das classes dominantes, em que os pais são: 1,2% (3 casos) militares de alta patente, 0,8% (2 casos) rentistas, 0,8% (2 casos) professores universitários, 0,4% (1 caso) político regional e 0,4% (1 caso) artista.
As famílias enfrentaram um período de profundas transformações na estratificação das ocupações em São Paulo nos anos 1980 e 1990, quando se elevaram nitidamente as exigências escolares para acessar as carreiras profissionais, tanto no setor privado quanto no público (Singer, 1988; Comin, 2002). Os pais, que vivenciaram essas transformações muitas vezes por meio da experiência do desemprego, são, portanto, os primeiros a perceber a necessidade de acumular capital cultural e simbólico, convertendo parte do capital econômico dos avós e se aproximando, assim, das posições de maior prestígio na sociedade brasileira, tais como as profissões liberais.
Ao visualizar as dificuldades enfrentadas pelos pais e antever seus próprios dilemas profissionais no futuro, ou, nos termos de Bourdieu (1992, p. 310), ao produzir uma estatística intuitiva, alicerçada nas experiências de seus familiares e daqueles próximos a eles, os jovens estudantes da Federal percebem que, caso se mantenham com as mesmas qualificações que os pais, isso significaria, objetivamente, um declínio na hierarquia das posições sociais, já que a própria estrutura das ocupações se moveu nos últimos 30 anos (Comin, 2002). Assim, surge a necessidade percebida praticamente por eles de converter as estratégias de reprodução de seus pais, incluindo o componente escolar de forma mais sistemática e, como veremos à frente, investindo mais nas instituições com maior prestígio acadêmico que a geração anterior.
No próximo item deste artigo, apresento a relação que os estudantes possuem com a cultura legítima reconhecida pela escola5. Diferentemente de certas frações das classes dominantes em São Paulo que possuem uma relação distanciada com a escola e os vestibulares (Almeida, 2009), esses estudantes dependem da escola para seus sonhos de ingresso no ensino superior, dispendendo boa parte de seu tempo e energia no final do ensino médio na aquisição de conhecimentos que serão cobrados nos principais vestibulares do país. Dessa forma, a aquisição da cultura não transparece como algo natural, muito pelo contrário, ela é marcada por um esforço constante. Para analisar essa relação com a cultura, interpreto as práticas de leitura e o que podemos chamar de o estilo de vida dos jovens da Federal.
Um Amor sem Jeito pela Cultura: estilo de vida e práticas de leitura dos estudantes
Pelo fato de sofrerem a pressão tanto de cima como de baixo na luta entre as classes pela classificação social, e sem a herança - em especial o capital cultural adquirido na tenra idade - que garanta a segurança e a naturalidade das frações intelectuais da classe dominante em relação à cultura (ver Almeida, 2009), os jovens da fração de classe média ascendente presentes na Federal não conseguem converter o esforço e o trabalho escolar em uma vocação. O esforço transparece, dessa forma, como sacrifício, pressa e cansaço. Eles não conseguem apagar os vestígios da gênese de sua cultura, até mesmo na relação deles com a cultura mais escolar e técnica transmitida pela escola; ela ainda se manifesta como aprendida e conquistada a duras penas.
Nas entrevistas realizadas, os jovens relataram sua rotina de estudos. Os estudantes representam-se como carregados de virtudes, ascéticos, esforçados no dia a dia escolar. Porém, não se trata mais de um ascetismo voltado para o trabalho manual, tal como duas gerações anteriores, mas sim de um trabalho intelectual sobre si mesmos.
Rosa: Acho que está corrido desde o momento que a gente decidiu fazer técnico. Roberto: Foi muito duro. Uma situação deprimente; você passava no corredor da ETESP (Escola Técnica do Estado de São Paulo) e via eu e ela dormindo. Rosa: Foi cansativo. Roberto: Eu lembro do TCC do técnico nesse ano. Rosa: Eu estava me sentindo sufocada. Roberto: Foi incrível. A gente ficava 48h sem dormir. Rosa: A gente fez o melhor TCC da ETESP, de informática, os professores falavam. Rosa: A gente simulou a criação de uma empresa imaginária, a gente tinha que criar softwares... A gente fez um projeto enorme. Pelo projeto, a gente foi para a feira dos projetos do Centro Paula Souza, que mandam os melhores projetos, e o nosso ganhou o segundo lugar de todos, 175 projetos de todo o estado de São Paulo. Rosa: Então a gente se dedicou muito, por isso que a gente também morreu. Entrevistador: Por isso que a gente? Rosa: Acabou morrendo, porque a gente chegou muito cansado, não estava aguentando o ritmo... Mas aí começou o cursinho. Você ia ao cursinho segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado e domingo... porque tinha ainda simulado. Roberto: Mas o técnico foi muito importante porque a gente criou uma responsabilidade enorme com isso. Disciplina... (Entrevista com Roberto e Rosa6 que fizeram, simultaneamente, o ensino médio na Federal e o curso técnico de informática na Escola Técnica Estadual de São Paulo).Por vezes, nas entrevistas, a relação desses jovens com a cultura, tanto técnica quanto erudita, é também apresentada como instrumental. Trata-se de adquirir uma língua, ou um conhecimento de literatura, porque "é importante para o vestibular"7, ou realizar um intercâmbio - única oportunidade para muitos deles de sair do país - porque "é um destaque no currículo". Os jovens não conseguem vestir seu discurso com uma roupagem simbólica que converte o trabalho em uma entrega desinteressada à realização pessoal de uma vocação. Por isso, alguns deles demonstram claramente certo cálculo na relação com a cultura. Ela não é uma herança que se dissimula na familiaridade; pelo contrário, esses jovens levam a cultura de forma demasiadamente séria, é uma questão de vida ou morte para eles, não conseguindo se distanciar e agir de forma desenvolta em relação a ela.
À maneira de seus avós que entesouraram e pouparam o máximo de recursos econômicos possíveis, pensando nos lucros futuros e no futuro de sua família, esses jovens são entesouradores de cultura, lutam para adquirir o máximo de conhecimento no menor tempo possível, sendo, por exemplo, consumidores dos materiais de divulgação científica, literária e artística, como é possível observar nas respostas ao questionário sobre as revistas que eles leem: as revistas Superinteressante, Galileu, Bravo, Cult, Le Monde Diplomatique, Scientific American foram mais mencionadas que as revistas semanais Veja, Época, Carta Capital.
Ao comentar a formação de seu pai, um dos entrevistados traduz esse caráter de entesourador cultural: "meu pai tem inglês". O domínio de uma língua estrangeira aparece como se fosse uma propriedade, um capital - que não deixa de ser - adquirido, aprendido, em suma, conquistado, e não algo natural, familiar, herdado, cuja origem e a forma de aquisição são dissimuladas, disposições estas monopolizadas pelas frações intelectuais da classe dominante com ascendência retratadas por Bourdieu em A distinção (2007).
Vejamos a descrição da primeira visita ao museu de uma das entrevistadas que também permite problematizar a relação desse grupo de jovens com a cultura:
Sempre gostei de arte. Quando bem pequenininha, tinha na escola uma atividade sobre o Miró. E na época teve uma exposição. Aí eu fiquei enchendo o saco dos meus pais: 'Me leva! Me leva! Me leva!' Aí você imagina uma criancinha de uns cinco anos no Miró, maravilhada com os quadros. Meus pais sempre gostaram de arte, mas é aquela coisa limitada, porque eles nunca tiveram acesso. Mas lá em casa, se você for ver é cheia de quadros impressionistas, que minha mãe gosta. Eu também adoro arte impressionista por causa deles (Gisele cursa atualmente Direito na Universidade de São Paulo, entrevista em 20/10/2009).
Há, nesse trecho, em primeiro lugar, a tentativa de afirmar o dom, e de se autoafirmar, pela contraposição aos pais, como alguém com qualidades carismáticas superiores: "sempre gostei de arte", "imagina uma criancinha". Porém, no decorrer da conversa, a jovem traz à tona a verdade sociológica da relação dos pais com a arte, quebrando o encanto carismático - "eles nunca tiveram acesso" -, para, em seguida, reencantar, retornando ao mito familiar - "eu também adoro arte impressionista por causa deles".
Os pais, como vimos no item anterior, são fundamentais para a conquista do capital cultural, pois já deixam aos filhos um pequeno pecúlio cultural - "lá em casa, se você for ver é cheia de quadros impressionistas, que minha mãe gosta" - e são, em seguida, ultrapassados pelos jovens que, por intermédio da escola - "tinha na escola uma atividade sobre o Miró" -, passam a sonhar com um universo cultural mais amplo. Há, portanto, uma hesitação no momento em que os estudantes falam sobre seus pais, pois ao mesmo tempo em que eles continuam a trajetória de ascensão familiar e se beneficiam daquilo que os pais já conquistaram, eles necessitam modificar as estratégias de reprodução e, em alguma medida, se distanciar das origens.
A ruptura relativa com o universo cultural dos pais é ainda mais evidenciada em um trecho da entrevista com a mãe de outro estudante quando ela discute o lazer em família:
Eu gosto de fazer viagem... Eu nunca tinha ido para o exterior; aí a gente resolveu ir para a Argentina, ver a cultura, o ambiente diferente. E eles [os filhos] gostam de ir para museus, esses lugares que para mim são um saco. Entrevistador: Eles gostam muito de ler? Muito. O Leandro lê um livro de filosofia como se ele estivesse lendo um gibi. A gente tem uma biblioteca lá em casa. Ele compra um livro por semana. Ele fala: "Mãe, lê esse livro aí". Eu digo: "ah tá" [risos]. Ele quis que eu lesse um livro de mil oitocentos e pouco, de leitura muito difícil. Eu comecei, mas não gostei não. Ele gosta... Ele me liga e diz: "Mãe, eu estou na Livraria Cultura, posso comprar um livro?". Eu digo: "Pode, Leandro". Você acha que eu posso falar não? [...] Eu o fiz tirar carta [de habilitação], eu o obriguei. Entrevistador: Ele não queria? Não. Ele não queria. Aí ele tirou. Eu falei para ele: "Leandro, a gente vai vender a casa e eu vou te comprar um carrinho". "Mãe, eu preferia que você comprasse um notebook para mim". Eu dizia: "Eu não estou entendendo. Um homem de 19 anos não quer um carro?" Entrevistador: É outra geração... Pois é... Aí ele diz: "mãe, vai ter a expansão do metrô do lado da USP. Para quê um carro?". A gente mora perto do metrô, mas tem que pegar um ônibus. Ele dizia: "mãe, para quê um carro?" Mesmo assim, esse ano, no final, eu vou dar um carrinho para ele, porque ele namora também, sai tarde, não tem como voltar e a gente fica preocupado (Sônia, mãe de Leandro, 25/03/2010).A mãe de Leandro possui um estilo de vida próximo dos armênios descritos por Roberto Grün (2002), onde a aquisição de um capital cultural está submetida ao projeto familiar de dar continuidade aos negócios da família e às particularidades do grupo étnico e da situação de imigrantes que buscam se estabelecer na cidade por meio do acúmulo econômico e de um consumo de ostentação. A aquisição do carro aos 19 anos é algo lógico para os pais, expressão da conquista individual e do relativo estabelecimento na cidade; já os filhos preferem apostar suas fichas no campo da cultura, cultivando um estilo de vida relativamente diferente dos pais.
Após a terceira e a quarta geração de imigrantes, as conquistas econômicas não são vistas pelos jovens como suficientes para a formação de um grupo estabelecido na cidade; é necessário, inclusive em função da transformação da estrutura das ocupações na cidade, um investimento maior e mais sistemático em termos de cultura por intermédio da escola. No caso desses jovens, grandes acumuladores de capital escolar, é necessária certa recusa dos investimentos ligados ao acúmulo de capital econômico, pelo menos nesse período de sua juventude, para abrir espaço para o ethos exigido pelo investimento cultural. Eles podem, portanto, postergar sua entrada no mercado de trabalho, adiar a compra de um carro, graças à condição econômica dos pais capaz de proporcionar a condição de jovens e estudantes a seus filhos, que provavelmente se estenderá até o término da graduação, durante um tempo mais amplo do que aquele que os próprios pais tiveram.
A mãe de Leandro, socializada em outra geração8, quando para ser reconhecido como adulto em seu grupo social era necessária a posse de um carro, se espanta com a atitude do filho: "um homem de 19 anos não quer um carro?". A visita aos museus e a leitura de livros de filosofia do século XIX são atividades estranhas aos pais, mas essenciais para a conformação de um novo estilo de vida na geração dos filhos. A mãe não fica desapontada com essa atitude do filho - não se trata aqui, portanto, como por vezes se descreve nas análises sociológicas sobre a ascensão social, da produção de um distanciamento que é marcado pela culpa daquele que ascende, e pela atribuição de ingratidão àquele que se distancia da família. A mãe é extremamente orgulhosa das realizações acadêmicas do filho e sente certa inveja da determinação dele nessa luta constante pela conquista da cultura.
Em entrevista com Mauro, ex-estudante da Federal e atualmente estudante de Direito na Universidade de São Paulo (USP), podemos também constatar o distanciamento cultural do filho em relação aos pais graças à escola. Interessante que ele também traz à baila a compra do carro como negação da aquisição, pelo menos durante a juventude, da cultura, comparação similar àquela realizada pelos jovens pesquisados por Grün (2002) - ou o carro ou a cultura - que portam, justamente, um estilo de vida criticado pela maioria dos jovens da Federal entrevistados: ser jovem, dono de um carro e portar camisas de grife.
Minha prima tem um menino de quatro anos. Ele queria um carrinho, um carro de verdade. Ela falou: "quando você tiver 18 anos você trabalha e compra". Aí eu fiquei revoltado. Em vez de falar que quando ele tivesse 18 anos, ele estaria estudando, só para depois no futuro poder comprar quantos carros quiser, você já impõe que ele vai ter que trabalhar. Nossa, isso acaba matando gerações que não evoluem porque acham que... Tem gente que precisa trabalhar, mas quem não precisa já se perde. Em vez de valorizar o estudo, tem muita gente que não valoriza mesmo. Tem gente que não gosta nem de ler. Isso é um absurdo. Isso acaba matando, quando em vez de falar que o cara vai estudar, se formar, e depois ganhar dinheiro. Você trabalha um ano e ganha tanto. Agora se você estuda cinco anos e trabalha depois um ano, você ganha mil vezes mais (Mauro, entrevista em 01/03/2010).
O carro não é totalmente negado pelo jovem; ele posterga a aquisição desse bem, dimensionando a rentabilidade dos anos de estudo a mais propiciados pelo distanciamento do reino da necessidade, do trabalho e do consumo ostentatório. Sua relação com os estudos transparece aqui instrumentalidade - trata-se de estudar para no futuro poder ter quantos carros quiser -, ainda que em outros trechos da entrevista suas declarações se aproximem mais da realização do ethos de certas frações intelectuais das classes dominantes em São Paulo (ver Almeida, 2009), no qual o esforço e o investimento escolar se convertem em uma entrega apaixonada a uma vocação desinteressada.
Mauro declara que nem todos os jovens possuem condições objetivas para escolher entre trabalhar e estudar, porém se revolta quando seus familiares, que possuem esse privilégio, abrem mão dele nas projeções que fazem para seu pequeno primo. Ora, a crítica que ele faz à família é uma forma de autodefesa, uma vez que a declaração de que com 18 anos a criança terá que trabalhar para conquistar seu próprio carro afronta seu próprio estilo de vida, estudante de Direito na Universidade de São Paulo que não pretende trabalhar enquanto cursa a graduação, postergando, assim, a aquisição econômica para conseguir obter uma formação acadêmica sólida.
Muitos estudantes da Federal são apaixonados por literatura (apenas 8 estudantes não responderam à pergunta do questionário: qual foi o último livro que você leu?). Alguns - seis entrevistados - disseram que passaram a gostar de ler os clássicos da literatura mundial em função do projeto oferecido pela escola, pelos "melhores professores do colégio", segundo os estudantes. Eles leram nesse projeto: Voltaire, Flaubert, Goethe, Dostoievski, Tolstoi, Camus, Kafka, dentre outros. A Federal possui projetos obrigatórios de educação interdisciplinar oferecidos em todos os anos do ensino médio aos estudantes, dentre eles: o projeto de literatura mundial, de artes plásticas (com visitas monitoradas a museus), de música, de cinema, sobre a história da cidade de São Paulo. Esses projetos possuem um sucesso relativo, já que a maioria dos estudantes, principalmente a partir do terceiro ano do ensino médio, concentra todas suas energias e tempo na dedicação ao vestibular. Alguns, contudo, tentam conciliar uma formação mais geral - lendo os livros de literatura estrangeira do projeto interdisciplinar - com a formação centrada no vestibular.
No quadro I, podemos constatar o gosto dos estudantes em matéria de literatura ao responder à pergunta: qual foi o último livro que você leu? Uma pergunta desse tipo pode não somente avaliar qual livro de fato os estudantes leram, como também as disposições cultas de reconhecimento da cultura legítima escolar. Há uma minoria de estudantes que lê livros extraescolares, como no caso daqueles que estão à frente da escola, lendo livros de literatura de vanguarda que não é reconhecida ainda pelos próprios professores do colégio. Contudo, a maioria dos estudantes concentra seu tempo e energia na leitura de livros ligados ao vestibular ou à escola.
Como podemos observar, os livros mais lidos são aqueles presentes na lista da Fuvest em 20099, compreensivelmente, já que o questionário foi aplicado em agosto daquele ano, alguns meses antes da prova desse vestibular. Capitães de Areia lidera a lista, pois os estudantes que frequentavam o cursinho Etapa na época de aplicação do questionário na escola estavam estudando justamente esse livro, se preparando para o exame vestibular. Em seguida, Vidas Secas, outro livro obrigatório exigido pela Fuvest. Em terceiro lugar, encontramos a primeira surpresa: A peste, de Albert Camus. Uma surpresa relativa, pois os 16 estudantes que mencionaram esse como o último livro que leram são integrantes do projeto de literatura estrangeira da escola, assim como os estudantes que citam outros livros de literatura estrangeira consagrada: Memórias do subsolo, Eugénie Grandet, A metamorfose, dentre outros.
A prática de leitura dos estudantes não está nem aquém, como costuma acontecer na maioria das escolas públicas que atendem as classes trabalhadoras, nem além do cânone escolar, como ocorre no colégio São Tomás, pesquisado por Almeida (1999), cujo público pertence às frações intelectuais da classe dominante. Os estudantes da Federal citam autores que são representativos de escolas literárias, classificados e codificados pelos professores e livros didáticos, e consagrados pela cultura escolar ao serem relacionados na lista obrigatória do vestibular. Não há, com raras exceções, um contato dos jovens com as produções de vanguarda ou as obras que estão em vias de se consagrar. Há um intervalo de tempo entre a produção da obra e a apropriação dela por esses jovens, que correm atrás do tempo perdido em relação àqueles que possuem uma socialização precoce no mundo das belas artes. A arte de vanguarda, nesse sentido, está completamente distante do universo cultural dos jovens da Federal, com raras exceções.
Almeida (1999, p. 140) argumenta que a distância dos jovens em relação à cultura escolar pode ser visualizada por meio de um índice simples: a citação de obras de países estrangeiros, à exceção de Portugal, já que o currículo nacional de ensino médio canoniza nossas raízes literárias portuguesas10. Ora, na Federal, os estudantes que citam autores estrangeiros, o fazem graças à própria escola que, por possuir como característica institucional a recusa da urgência do vestibular11, oferece a eles o acesso a uma cultura não herdada e pode parecer e se autorrepresentar, paradoxalmente, como uma escola não escolar ao oferecer aquilo que a maioria das outras escolas não oferece: o acesso às literaturas estrangeiras, por exemplo.
Esse ano, eu fiz o projeto de literatura, que eu acho que foi o melhor de todos. A gente leu Dostoievsky, literatura contemporânea, Camus, Victor Hugo, Eliot, James Joyce, só os mestres. Nós começamos lendo Fausto...
Entrevistador: Uma literatura que foge do vestibular.
Totalmente. Mas eu acho legal essa escola porque ensina coisas que não estão nem aí com o vestibular. Foge do conhecimento chato. Você aprende coisas muito legais que você sabe que não aprenderia se o professor só ficasse preocupado com o vestibular. Se fosse assim, você ia chegar na aula de sociologia: Weber, Durkheim, Marx, o que o Marx disse. Ia ficar nisso e seria um saco. Biologia: o cara põe as coisas na lousa, você decora e já era. Não era isso que eu queria. E aqui isso vai além. Quem gosta consegue se dar super bem. Tem aula de projeto que ficam dez pessoas na sala, conversando; às vezes trinta, e dez saem da sala, só pegam presença. É uma das vantagens, inclusive, da Federal, que quem está interessado acaba ficando mais centrado ali. E tem mais atenção dos professores. Porque tem muita gente que estuda aqui e não está nem aí. Tem gente que faz cursinho e não está nem aí (Leandro, 13/11/2009).
Além da escola, as interações entre os próprios jovens, com alto sucesso escolar e com boa vontade cultural, incentivam e, por vezes, obrigam a descoberta de autores consagrados: "você ainda não leu?" "Você ainda não viu o filme de...?".
Pelo fato de ainda serem outsiders no campo da cultura e de tentarem transpor as barreiras que separam as frações da pequena-burguesia ascendente das frações da classe dominante, alguns desses jovens podem ter uma visão mais profunda e materialista das regras dos jogos sociais desinteressados, ainda que não dominem totalmente o outro aspecto importante de tais jogos: a relação apaixonada com a cultura, parecendo, portanto, vorazes na sua prática de consumo cultural. Dessa forma, a verdade sociológica objetiva da cultura como um capital cultural, um investimento específico, transparece nas entrevistas.
Eles amam, na expressão de Simmel (2006) que serve de epígrafe a este artigo, aquilo por que se sacrificaram e continuam se sacrificando - por isso também as conquistas e os sofrimentos de seus pais e avós se tornam um espelho, uma referência (ver Bandera, 2014). Na geração dos estudantes da Federal, o principal objeto de sacrifício é a cultura. Eles cultivam, portanto, um amor um pouco interesseiro por ela; contudo, ele não deixa de ser uma forma de amor, um pouco sem jeito, mas que justifica antigos sacrifícios e alimenta a gana por novas conquistas no jogo escolar e social, como, por exemplo, passar no vestibular e ingressar em uma universidade com prestígio acadêmico.
A Escolha da Tradição: o campo de possíveis em relação ao futuro universitário
Nas décadas de 2000 e 2010 no Brasil, a possibilidade de escolher um curso de ensino superior continua sendo um privilégio para jovens de determinadas classes sociais, um privilégio ainda maior quando se tem como opção preferencial no campo de possíveis as instituições públicas paulistas de ensino superior, ou ainda as instituições particulares reconhecidas no país por seu prestígio social e acadêmico.
A grande maioria dos estudantes da Federal não tem dúvida sobre qual instituição de ensino superior irá cursar: a Universidade de São Paulo aparece como primeira opção nas respostas ao questionário para a maioria dos estudantes (75%) - as exceções ficam por conta de alguns cursos específicos, como, por exemplo, em relação à Medicina, onde a Unifesp surge como primeira opção para muitos jovens (15%), e em relação à Administração, campo no qual se destaca a Fundação Getúlio Vargas (6%), ainda que muitos jovens da Federal não possam optar por essa instituição em função das altas mensalidades e da ausência de bolsa de estudo -; como segunda opção, surge no campo de possíveis as instituições públicas do interior (Unesp, Unicamp, UFSCar), ou ainda de outros estados (UFRGS, UnB, UFRJ, UFMG), e as faculdades particulares com prestígio acadêmico (PUC, FAAP, Mackenzie, Mauá, FEI), e, como terceira opção, as universidades particulares sem reconhecimento acadêmico (Anhembi Morumbi, UNIP, Uninove). Essa terceira opção, a faculdade particular sem prestígio acadêmico nem social, é mencionada por menos de 4% dos estudantes do ensino médio da Federal, já que a maioria argumentou que preferiria cursar mais um ou dois anos de cursinho, após o término do ensino médio, caso não passem direto nos vestibulares para as universidades públicas e particulares mais concorridas. Em função da renda familiar e também do capital cultural acumulado, a maioria desses jovens e suas famílias dispensa o Prouni (Programa Universidade para Todos) do Governo Federal. Essa ausência no horizonte de possíveis das faculdades particulares sem prestígio é compreensível por algumas razões ligadas à trajetória da família dos jovens: os pais, ao obterem nos anos 1970 e 1980 um diploma superior, como vimos na análise das respostas ao questionário no primeiro item desse artigo, almejam ser ultrapassados por seus filhos, e como o pendor da trajetória familiar é ascendente, só resta a esses jovens uma alternativa: ultrapassar seus pais por meio do ingresso nas universidades de maior prestígio no país. Esse sonho só se torna realidade, assim como a ausência do sonho em cursar uma universidade particular, se as condições objetivas e subjetivas - alicerçadas em uma posição no espaço social - proporcionam a eles os recursos necessários para disputar as competições escolares mais acirradas.
Estamos, portanto, distante da geração enganada12, retratada por Bourdieu (2007) em A distinção, ainda que, possivelmente, os jovens da Federal possam vir a se deparar com uma desvalorização relativa de seus diplomas, conquistados nas universidades públicas, quando terminarem o ensino superior. Esses jovens possuem perspectivas bem pragmáticas e realistas em seus projetos de futuro, sabendo muito bem quais são as hierarquias de prestígios entre as instituições. Dessa forma, eles não se deixam enganar facilmente, tal como os estudantes desprovidos de informações sistemáticas sobre o sistema de ensino, acompanhando de perto as modificações que têm ocorrido nessas hierarquias. Como se diz no senso comum, eles sabem o que querem, possuem uma determinação social que não se encontra facilmente entre jovens com 17 anos pertencentes a outras classes sociais.
A descrição de Wilson Almeida (2006) da trajetória de estudantes oriundos das classes populares que conseguiram entrar na Universidade de São Paulo, depois de muito sacrifício e, em geral, com uma idade elevada, pode aqui nos servir de contraponto. Para explicar as razões desse considerado improvável sucesso acadêmico em meios populares, Almeida recorre à descrição do convívio familiar, onde é possível visualizar o culto a um ethos do esforço que esses jovens portam, adquirido principalmente no trabalho que muitos deles realizam já na adolescência. Esses jovens pertencem a famílias das classes populares que possuem uma diferença em relação a outras do mesmo meio: os pais dão muita atenção aos estudos, possuem algum parente (ou amigos) com trajetória na universidade pública, frequentaram colégios técnicos onde alguns professores são formados nessas universidades, servindo de testemunho vivo e cotidiano da possibilidade de passar nos vestibulares.
Diferentemente dos jovens da Federal que escolhem, como veremos, os cursos mais concorridos da Universidade de São Paulo e de outras universidades de prestígio acadêmico, possuindo informações completas e sistemáticas sobre as hierarquias entre as instituições de ensino superior, os jovens entrevistados por Almeida precisaram contar com o auxílio de algum professor ou colega que oferecesse uma informação, ainda que imprecisa, sobre o sistema de ensino, dizendo, por exemplo, que é possível ingressar na Universidade de São Paulo, que ela não é uma universidade paga etc.
Em relação aos jovens da Federal, portanto, podemos afirmar que as universidades públicas já fazem parte do horizonte de possíveis deles, não se trata de um improvável social. Aliás, muitos jovens disseram que sentiram um "peso nas costas" durante o terceiro ano, era uma responsabilidade e uma obrigação ser aprovado pela Fuvest que eles mesmos se atribuíam, independente da pressão dos pais:
Meu medo [em relação ao filho ficar depressivo] era se ele não passasse [no vestibular]. Então eu tentava prepará-lo, dizendo: "Leandro, faz uma PUC". Ele respondeu: "Eu não quero fazer PUC, eu não quero que você pague R$1.600 de mensalidade na Faculdade". Eu falei que não tinha problema, porque ele ficou três anos sem me dar gastos. Ele dizia: "Eu quero a USP, eu quero a USP". Foi uma determinação que eu invejo, de certa forma. Hoje ele está super bem (Sônia, mãe de Leandro, 25/03/2010).
O filho de Sônia, que em 2010 ingressou na carreira de Relações Internacionais, cobra-se demais, não aceita, nem mesmo enquanto hipótese ou um plano B, como se diz, não passar na Universidade de São Paulo e ter que se contentar com uma universidade que, ainda que seja de qualidade, é particular e não possui o mesmo reconhecimento acadêmico e social da universidade pública. Se no caso dos jovens pesquisados por Almeida (2006), os parentes e amigos, os colegas e professores de seus colégios que cursaram uma universidade pública são exceções, a regra na Federal é encontrar ex-estudantes do colégio matriculados nas universidades com prestígio acadêmico e social e professores também formados nessas universidades, reforçando, assim, a certeza de si necessária para almejar um futuro marcado pelo sucesso escolar, principalmente ao ser aprovado nesses vestibulares altamente concorridos.
Segundo Bourdieu (1992), os jovens oriundos das classes populares se autoeliminam do jogo escolar ao antecipar as chances objetivas de seu grupo social no sistema de ensino, observando o fracasso da maioria de seus parentes e amigos mais próximos. Ocorre, portanto, uma adequação entre as expectativas subjetivas e as possibilidades objetivas ao comparar suas perspectivas com a de pessoas que ocupam a mesma posição na estrutura de classes, ou ainda com alguém que serve como modelo de excelência (um professor, um amigo, um parente etc.). É sociologicamente difícil, afirma Bourdieu (1992), desejar o improvável - a não ser no caso daqueles que são totalmente destituídos de qualquer recurso. Segundo Bourdieu (1992, p. 310), os jovens realizam uma espécie de estatística intuitiva ao afirmarem: "isso não é para nós". No caso da Federal, temos justamente o contrário do que ocorre, em geral, nas classes populares: ao observar que a maioria de seus amigos foram aprovados nas universidades públicas, que quase todos seus professores estudaram nessas universidades, os jovens da Federal adquirem expectativas realistas de também se matricular nessas universidades.
Alguns poucos jovens da Federal podem se espelhar também em gerações longínquas de parentes formados na Universidade de São Paulo, retratando como esse universo é muito familiar. No trecho abaixo, temos a comparação que um casal de namorados no colégio faz de suas famílias, marcando as distâncias que os separam da Universidade de São Paulo:
Rosa: Meus pais, e muitos da minha família fizeram USP. É algo familiar. Tanto que outro dia eu fui prestar uma bolsa para estudar no Japão e eu fui na universidade. Eu estava dando uma olhada na Poli, porque eu estava com um amigo que vai prestar engenharia, e eu vi a turma de formandos de mil novecentos e não sei quantos, porque eu tinha um tio formado em engenharia metalúrgica dessa época... E eu achei a foto dele lá.
Roberto: Agora eu, serei o primeiro da família. Se eu passar, serei o primeiro; se ela não passar, será a única que não passou (Rosa e Roberto, entrevista em 30/11/2009).
Rosa e Roberto representam os polos minoritários e opostos na Federal, aqueles para os quais a Universidade de São Paulo já foi conquistada há mais de duas gerações e aqueles que se autorrepresentam como o primeiro da família a chegar ao ensino superior. Uma parcela significativa dos estudantes do colégio, como vimos na análise do questionário no primeiro item desse artigo, têm pais com ensino superior (49%), alguns deles formados pela Universidade de São Paulo (8%), ainda que tenham avós com baixa escolaridade. Apesar de nem todos os estudantes terem famílias que possuam esse grau de familiaridade com a universidade pública, apresentado por Rosa, o colégio proporciona a eles um horizonte mais amplo, no qual a entrada nessas instituições é algo naturalizado e, até certo ponto, normatizado.
Já a opção pelos cursos no interior das instituições segue um princípio específico: a tradição e a busca por estabilidade econômica e social - e aqui não é a cultura quem é a escolhida prioritariamente. Como podemos visualizar na oposição entre a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e a Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, os jovens acabam privilegiando a segunda em relação à primeira.
Não por acaso, os três cursos conhecidos no Brasil por remeterem à nossa tradição ibérica bacharelesca, nos termos consagrados por Sergio Buarque de Holanda (1995), Engenharia, Medicina e Direito, ocupam a preferência de 49,2% dos meninos, e de 40% das meninas do colégio. Por que esses jovens oriundos de frações das classes médias de São Paulo optam pelos cursos mais tradicionais? Uma das explicações encontra-se na própria história das famílias: a busca por se estabelecer na cidade de São Paulo não se refere apenas à manutenção do patrimônio econômico conquistado desde a geração dos avós, como também à conquista do reconhecimento simbólico e de status na sociedade.
Ora, a tríade das profissões tidas como seculares no país, que, segundo Florestan Fernandes (1975), representam as três escolas tradicionais das classes dominantes em São Paulo, oferece as melhores oportunidades de conciliação entre a aquisição, ao mesmo tempo, por um lado, de capital econômico, por meio de bons salários e, por outro, a aquisição de capital simbólico. No caso desses jovens, portanto, os cursos tradicionais são uma espécie de trampolim, sempre instável, para a ascensão social às posições intermediárias do que Bourdieu (2007) denominou do campo do poder, no interstício entre, de um lado, as frações dominantes das classes dominantes (posição dos grandes empresários), onde predomina a posse do capital econômico, e, de outro, as frações dominadas das classes dominantes, cuja predominância é do capital cultural (posição dos professores universitários).
Por ainda serem assombrados pelas experiências de ameaça de desemprego ou de declínio social na geração dos pais, caso não continuem o investimento na educação, esses jovens escolhem as carreiras tradicionais como uma garantia e também uma forma de abrir o horizonte de possíveis para empregos nas grandes burocracias públicas e privadas do país: a maioria dos jovens que optaram por engenharia (55% dentre os 76 que optaram por essa carreira), por exemplo, responderam à questão no questionário "Como você se imagina daqui a cinco anos?" afirmando que gostariam de estar trabalhando na Petrobrás ou em uma empresa similar quando estiverem formados.
Há uma desigualdade de gênero na escolha das carreiras entre esses jovens. Não aparece aqui fortemente a relegação das meninas aos cursos de licenciatura. A maioria dos jovens não pretende seguir a carreira do magistério, tal como alguns pais fizeram13. Na distribuição das opções das meninas entre as três carreiras tradicionais, não se encontra a predominância esmagadora, como no caso dos meninos, das Engenharias; há uma distribuição mais equitativa entre as três que lideram o ranking de opções: 18,6% Engenharias, 11,5% Medicina e 11,5% Direito (no caso dos meninos, 33,7% escolheram as Engenharias, 8,5% Direito e 7% Medicina). Abaixo da preferência pelas três carreiras bacharelescas, os meninos escolheram predominantemente profissões relacionadas com o trabalho da dominação, nos termos de Bourdieu (2007), ou com as tecnologias da informação, tais como: Administração (4,3%), Economia (4,3%), Sistema de Informação (3,7%), Relações Internacionais (3,2%), Publicidade (3,2%). Já as meninas, além do alto índice relativo de escolha pela carreira de Administração (7,2%), optam, depois das carreiras bacharelescas, por carreiras que, segundo Bourdieu (2007), são características da nova pequena burguesia, ou seja, profissões de apresentação e de representação, ou, nos termos da sociologia do trabalho, profissões do cuidado (care) e das relações: Farmácia (5,7%) e Psicologia (2,9%). As carreiras relacionadas à arte também são citadas com frequência pelas meninas: Arquitetura (5,7%), Design (5,7%), Audiovisual (2,9%).
A escolha pelas Relações Internacionais - realizada por 3,2% dos meninos e por apenas uma menina -, ainda que seja um curso relativamente recente, é um caso interessante por retratar a busca pela consagração social nessas frações das classes médias por meio do acesso à carreira diplomática14. Nesse sentido, esses jovens podem vivenciar um efeito de alodoxia, como Bourdieu (2007) denominou a situação em que os agentes portam uma visão de mundo e disposições engendradas em uma situação passada do campo social, não reconhecendo as transformações pelas quais ele passou. No caso da carreira de diplomata, essencialmente masculina, as mudanças pelas quais passou o exame de acesso ao Instituto Rio Branco afetaram a composição dos estudantes da escola, deixando de ser exclusiva dos membros das frações mais intelectuais das classes dominantes para se converter em uma profissão relativamente aberta às classes médias. A mudança mais importante foi a retirada da entrevista do processo de seleção, por ser considerada subjetiva e também o momento onde o preconceito de classe ou de cor, ao avaliar a hexis corporal dos pretendentes, se manifestava (Monteiro, 2007)15. O paradoxo das classes médias é o fato de ao alcançarem espaços antes reservados para as frações das classes dominantes, esses mesmos espaços se desvalorizam justamente em função da chegada dos novos pretendentes, ocorrendo aquilo que Bourdieu (2007, p. 151) denominou a translação da estrutura de desigualdades entre as classes sociais, ou seja, as frações da classe dominante que antes se identificavam com aquele espaço, no caso, a carreira diplomática, monopolizando o acesso a ela, se desinteressam e buscam novas searas para a capitalização simbólica da distinção e da distância que as separam dos novos ricos, dos pretendentes vorazes das classes médias.
A carreira de diplomata, apesar de ter perdido o glamour que cercava a vida dos intelectuais diplomatas (Monteiro, 2007), principalmente aos olhos das classes dominantes que sentem seu mundo, antes reservado, ser invadido pelas classes médias ávidas pelos símbolos antigos de distinção da carreira, ainda é visualizada, nas expectativas e sonhos desses jovens de 17 anos da Federal, a partir de seu antigo status. Em entrevista com Leandro, ao ser questionado sobre quem ele admira, logo vem à tona a imagem da realização intelectual do diplomata, descrita por Monteiro (2007):
Tem alguma pessoa que você admira?
[...] Eu admiro muito Vinicius de Moraes. Daqui alguns anos eu quero ser que nem um desses caras. Eu sempre gosto do Vinicius, diplomata, bem sucedido, escritor, músico... É meu exemplo de vida. É um deles.
(Leandro, entrevista em 13/11/2009, atualmente estudante de Relações Internacionais na Universidade de São Paulo)
Só o tempo dirá se essas trajetórias realizarão ideais do passado ou novas concepções de sucesso, ou ainda se elas gerarão uma frustração particular entre esses jovens, que esperam obter algo em troca de seus sacrifícios e esforços, de seu tempo investido na escola. As apostas já foram feitas e esses jovens possuem, ao menos, o cacife escolar necessário para jogar alto no jogo social, ainda que não possuam outras espécies de capital que assegurem uma posição social estável no caso de desvalorização do capital escolar, principalmente em função da inflação dos diplomas.
Conclusão
O futuro desses jovens, enquanto um campo de possíveis, é delimitado pelas experiências passadas e pelas condições do presente. A produção de uma estatística intuitiva é realizada pelos jovens por meio de um senso prático adquirido ao observar as experiências dos pais e de amigos no mercado de trabalho, que não encontraram mais espaço para ascensão social no pequeno negócio e que precisaram voltar aos bancos escolares para permanecer nas posições intermediárias conquistadas anteriormente, adequando expectativas subjetivas e possibilidades objetivas.
A percepção prática da necessidade do estudo por parte dos jovens está, portanto, assentada nas experiências negativas e positivas dos próprios pais que, no universo da cultura, foram os primeiros desbravadores, com raras exceções, como no caso de Roberto, oriundo das classes populares que será o primeiro da família, segundo suas próprias palavras, a entrar na Universidade de São Paulo.
O anseio de ultrapassar os pais no caminho de conquista da cultura pode ser visualizado na distinção dos estilos de vida entre as gerações. Se para os pais, a aquisição do carro e o acúmulo econômico por meio da entrada precoce no mercado de trabalho podem ser vistos como símbolos do sucesso pessoal, para seus filhos a aquisição de títulos universitários e a aquisição de um capital cultural e simbólico são postos como prioritários, postergando a aquisição de certos bens materiais.
A escolha dos jovens pela tradição, ou seja, as carreiras bacharelescas de ensino superior (Engenharia, Medicina e Direito), revela, como vimos neste artigo, a busca ansiosa por ocupações de status e de poder na sociedade brasileira, a tentativa de se tornar estabelecidos, nos termos de Elias e Scotson (2000), visando ultrapassar os pais que não conseguiram obter o rendimento máximo de seus diplomas superiores - a maioria deles conquistados, como vimos, em instituições de ensino superior sem prestígio acadêmico. Se esses anseios e projetos se realizarão, só o tempo dirá. De toda forma, as fichas foram lançadas.
Referências
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Irei utilizar doravante "Federal" para designar a escola, tal como os estudantes a denominam e reconhecem. Para uma discussão sobre as transformações institucionais pelas quais essa escola passou nas últimas décadas, ver Dissertação do autor.
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Foram aplicados 264 questionários entre os estudantes das sete turmas de ensino médio do colégio. Sete estudantes (5 meninos e 2 meninas) devolveram o questionário não respondido.
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Os estudantes que terminaram o ensino médio em 2009 enfrentaram uma concorrência de por volta de 30 candidatos por vaga (8000 candidatos para as 270 vagas) quando ingressaram na escola em 2007.
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Para mais informações sobre as características institucionais da Federal e sua posição no campo das escolas de ensino médio de São Paulo, consultar Bandera (2011). D'Angelo (2007) demonstra que a Escola Técnica Federal conseguiu manter um alto nível de qualidade durante as décadas de 1980 e 1990, apesar da crise econômica e do início do desmantelamento das escolas federais, graças a sua robustez institucional, principalmente no que se refere à contratação de excelentes professores, à manutenção de laboratórios e oficinas, à construção de uma cultura de autonomia docente e à aquisição de equipamentos modernos para o ensino e a prática técnica.
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Há várias críticas sociológicas à ideia de cultura legítima escolar, sobretudo às análises que se limitam a avaliar o que a escola entende por cultura, sem se atentar para outras práticas culturais desenvolvidas pelos jovens em outros espaços de sociabilidade (ver, por exemplo, Setton, 2012). No caso dos estudantes da Federal, centrar-se na análise da relação deles com a cultura oferecida e reconhecida pela escola é um recurso metodológico válido, uma vez que para esse setor das classes médias, a escola se apresenta como a principal instituição cultural que pode alicerçar suas aspirações.
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6
Os nomes dos estudantes mencionados ao longo do texto são fictícios.
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7
Quando não seguidas de referência bibliográfica, os trechos entre aspas no corpo do texto são provenientes das entrevistas com os estudantes.
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O recorte geracional, segundo Bourdieu (2002), não é assinalado pela idade, mas pelas mudanças na estrutura social que são incorporadas pelas pessoas.
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9
A Fuvest é o nome da fundação responsável pela aplicação do vestibular para ingresso na Universidade de São Paulo. A lista de livros obrigatórios para esse vestibular em 2009 era a seguinte: Auto da barca do inferno (Gil Vicente); Memórias de um sargento de Milícias (Manuel Antônio de Almeida); Iracema (José de Alencar); Dom Casmurro (Machado de Assis); O cortiço (Aluísio Azevedo); A cidade e as serras (Eça de Queiroz); Vidas secas (Graciliano Ramos); Capitães de areia (Jorge Amado); Antologia poética (Vinícius de Moraes).
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10
Segundo Almeida (1999, p. 140) "[...] o número de autores não brasileiros e não portugueses citados pode revelar também a proximidade ou distância das leituras ditadas pela escola, já que o currículo oficial não prevê, para o secundário, o estudo de outras literaturas nacionais além dessas. Isso não significa, é claro, que essas leituras não tenham sido adquiridas dentro da escola. O importante é que elas, por não se incluírem na categoria das leituras escolares, podem contribuir para a construção de uma representação não escolar do colégio que as adota".
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Muitos professores enfatizaram que os projetos da Escola Técnica Federal de São Paulo (IFSP) são orientados para a "formação cultural e científica do cidadão", e não para a preparação para o vestibular. No governo Fernando Henrique Cardoso, os colégios técnicos federais foram acusados de servirem justamente só para a formação propedêutica. Os professores e os próprios estudantes contrapõem-se a essa imagem da Federal como um colégio de excelência na preparação para o vestibular. O paradoxo é que por oferecer essa formação a estudantes que pertencem às classes médias que apostam na escola suas perspectivas de ascensão social (ver Bandera, 2014), a Federal acaba por se destacar entre as escolas que mais aprovam estudantes nos vestibulares mais concorridos do país.
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12
Bourdieu (2007, p. 136) descreve a geração enganada pelo sistema de ensino francês da seguinte maneira: "Tendo ingressado, recentemente, no ensino secundário, as classes são levadas a esperar, pelo simples fato desse acesso, o que este proporcionava no tempo em que, praticamente, estavam excluídas desse ensino. Tais aspirações - que, em outro tempo e para outro público, haviam sido perfeitamente realistas por corresponderem a oportunidades objetivas - são frequentemente desmentidas, de forma mais ou menos rápida, pelos veredictos do mercado escolar ou do mercado de trabalho".
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Em função das alterações na estrutura das ocupações na cidade de São Paulo, como vimos no primeiro item desse artigo, há uma taxa baixa do que Bourdieu (2007, p. 122) denominou de 'hereditariedade profissional' nessas famílias, o que não significa, necessariamente, que eles estejam em um movimento claro de ascensão social. Muitas vezes, muda-se de profissão, ou deixa-se de ser pequeno proprietário, para manter a posição intermediária na hierarquia social conquistada há duas gerações. Ser professor de nível médio numa escola pública na São Paulo dos anos 1980 (o caso de 22,7% das mães e 6% dos pais segundo as respostas ao questionário) era ocupar uma posição totalmente diferente e de maior status do que ser professor atualmente. É, portanto, revelador das transformações nas estratégias de reprodução desses jovens o fato de poucos estudantes, inclusive as meninas, escolherem cursos de licenciatura no vestibular (7,4% - 19 estudantes de 357).
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Para ingressar na carreira diplomática não é necessário ser formado em Relações Internacionais, podendo prestar o exame qualquer estudante que tenha concluído um curso de ensino superior. Até meados do século XX, a formação mais recorrente entre diplomatas era em Direito; alguns estudantes da Federal que optaram pelo curso de Direito do Largo São Francisco pretendem ainda traçar esse percurso. Contudo, como demonstrou Monteiro (2007), cada vez mais se encontram entre os diplomatas profissionais jovens com formação em Economia e, principalmente, Relações Internacionais, com mestrado fora do país. Só o futuro dirá se as apostas dos jovens da Federal, realizadas muito cedo, proporcionarão os resultados hoje esperados por eles.
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A turma formada no Instituto Rio Branco em 2010 ficou conhecida como "os panteras negras", justamente porque foi a primeira turma com número significativo de negros a conseguir se formar e ingressar na carreira diplomática.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
01 Dez 2015 -
Data do Fascículo
Jul-Sep 2016
Histórico
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Recebido
22 Out 2014 -
Aceito
04 Set 2015