Open-access Os Professores e a sua Formação num Tempo de Metamorfose da Escola

RESUMO:

O primeiro andamento do texto é dedicado a uma análise centrada nas políticas educativas e na organização da escola, procurando identificar o processo de metamorfose da escola que está a ocorrer nos dias de hoje. Em seguida, depois de uma ponte, o segundo andamento é dedicado à formação de professores, insistindo-se na necessidade de uma nova institucionalidade, juntando em triângulo as universidades, a profissão docente e as escolas da rede. O texto fecha com um breve epílogo sobre uma iniciativa excecional que acontece na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a criação de um Complexo de Formação de Professores.

Palavras-chave: Complexo de Formação de Professores; Formação de Professores; Metamorfose da Escola; Modelo Escolar; Profissão Docente

ABSTRACT:

The First Tempo of the text is dedicated to an analysis centred on the educational policies and the organization of school, attempting to identify the process of metamorphosis of school that is currently underway. Then, after a Bridge, the Second Tempo is dedicated to teacher education, insisting on the need for a new type of institutionality, triangulating universities, the teaching profession, and schools. The text closes with a brief Epilogue about an exceptional initiative hosted by the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), the creation of a Teacher Education Complex.

Keywords: School Metamorphosis; School Model; Teacher Education; Teacher Education Complex; Teaching Profession

Abertura

Escrevo este texto num tempo de profundas transições na área da Educação. Em meados do século XIX, há cerca de 150 anos, consolidou-se e difundiu-se em todo o mundo um modelo de escola que, apesar de muitas críticas, resistiu bem até aos nossos dias.

Todos conhecem as características deste modelo escolar. A sua força é tal que já nem sequer conseguimos imaginar outras formas de educar. A escola substituiu o trabalho, a rua e mesmo o lar como lugar de socialização e de formação. O triunfo da escola é total, pelo menos face ao seu principal inimigo, o trabalho infantil, dentro e fora das famílias (Viñao Frago, 2004).

Mas, no preciso momento em que celebra a sua vitória, a escola revela-se incapaz de responder aos desafios da contemporaneidade. O modelo escolar está em desagregação. Não se trata de uma crise, como muitas que se verificaram nas últimas décadas. Trata-se do fim da escola, tal como a conhecemos, e do princípio de uma nova instituição, que certamente terá o mesmo nome, mas que será muito diferente.

No tempo de uma geração, nos próximos 20 ou 30 anos, assistiremos a uma complexa metamorfose da escola, isto é, a uma alteração da sua forma. É uma mudança de via, uma nova origem (Morin, 2011).

Este texto não pretende analisar este processo, mas apenas anotar as suas consequências para os professores e para a sua formação. Depois desta abertura, o primeiro andamento é dedicado a uma análise centrada nas políticas educativas e na organização da escola, procurando identificar o processo de metamorfose da escola que está a ocorrer nos dias de hoje. Em seguida, depois de uma ponte, o segundo andamento é dedicado à formação de professores, insistindo-se na necessidade de uma nova institucionalidade, juntando em triângulo as universidades, a profissão docente e as escolas da rede. O texto fecha com um breve epílogo sobre uma iniciativa excecional que se desenvolve na Universidade Federal do Rio de Janeiro, a criação de um Complexo de Formação de Professores.

1º Andamento

Políticas Educativas e Organização da Escola

O modelo escolar consolida-se, em todo o mundo, em meados do século XIX, há cerca de 150 anos. Para compreender a sua formação histórica é necessário recorrer a uma dupla análise, política e organizacional.

Politicamente, os Estados assumem a responsabilidade pela educação e impõem uma escolaridade obrigatória, com o objetivo de fabricarem uma identidade cívica e nacional. A escola pública, laica, gratuita, obrigatória e única é um elemento central no processo de construção dos Estados-nação (Bourdieu, 1993; Hutmacher, 1981).

Nada teria sido feito sem os professores. Para cumprir a sua missão, os Estados constituem um corpo profissional docente que é recrutado, formado, remunerado e controlado pelos poderes públicos. A profissionalização dos professores é um fator decisivo da produção do modelo escolar.

Organizacionalmente, a escola adquire a configuração que, no essencial, se mantém até aos dias de hoje: i) um edifício próprio, que tem como núcleo estruturante a sala de aula; ii) uma arrumação orgânica do espaço, com os alunos sentados em fileiras, virados para um ponto central, simbolicamente ocupado pelo quadro negro; iii) uma turma de alunos relativamente homogénea, por idades e nível estabelecido através de uma avaliação feita regularmente pelos professores; iv) uma organização dos estudos com base num currículo e em programas de ensino que são lecionados, regularmente, em lições de uma hora.

No centro da cena estão os professores. São eles os responsáveis pela disciplina escolar, no duplo sentido do termo: ensinam as disciplinas, as matérias do programa, em aulas dadas simultaneamente a todos os alunos; e asseguram a disciplina, as regras de comportamento e de conduta dos alunos.

A criação das escolas normais, em meados do século XIX, revela bem o papel que os professores desempenham na produção do modelo escolar. É nestas instituições especializadas de formação de professores que nasce e se reforça o corpo profissional que, ao serviço do Estado, promove a educação popular (em língua inglesa, o conceito é mais preciso, mass schooling, escola de massas). Mas é também nestas instituições que se normaliza o modelo escolar, conseguindo que, num tempo histórico curto, se passe de uma certa desordem nos espaços e nos processos educativos para uma forma escolar estruturada e padronizada.

A escola assenta num contrato social e político que lhe atribui a responsabilidade pela formação integral das crianças e num modelo organizacional bem estabelecido. No início do século XXI começou a tornar-se claro que este contrato e este modelo precisam de ser profundamente repensados. Já não se trata de melhorias ou de aperfeiçoamentos ou mesmo de inovações, mas de uma verdadeira metamorfose da escola. Fazer esta afirmação é, também, reconhecer as mudanças que, inevitavelmente, atingem os professores e a sua formação.

E agora?

A escola parece perdida, inadaptada às circunstâncias do tempo presente, como se ainda não tivesse conseguido entrar no século XXI. É certo que há muitas promessas do passado ainda por cumprir, a começar pelo compromisso de uma escola pública de qualidade para todos. Mas a escola revela, sobretudo, uma grande incapacidade para pensar o futuro, um futuro que já faz parte da vida das nossas crianças. Sem cedermos a uma simplificação excessiva, queremos apresentar duas tendências, muito distintas, de pensar a crise atual da escola e o seu futuro presente.

A primeira tendência põe em causa o contrato social em torno da educação com base em lógicas de privatização e procura ultrapassar as dificuldades do modelo escolar através de processos de individualização.

A privatização tem um duplo sentido, social e económico. Do ponto de vista social, traduz um maior recolhimento das crianças no interior das suas comunidades de origem, dos seus espaços culturais ou familiares (a expansão de práticas de educação domiciliar, uma espécie de regresso a um tempo anterior ao modelo escolar, é um bom exemplo destas tendências). Do ponto de vista económico, denunciam-se as incapacidades do Estado para, assim, abrir o campo educativo à operação de grupos económicos, diretamente ou através de organizações da sociedade civil (as políticas ditas de liberdade de escolha, nomeadamente os famosos cheques ou vouchers escolares, ilustram bem a ideologia que procura redefinir, e diminuir, o papel do Estado na educação).

A individualização manifesta-se em discursos que valorizam a educação mais como bem privado do que como bem público, assim como em críticas à escola única com a consequente expansão de vias distintas de ensino (profissionais e académicas). As referências à aprendizagem estão omnipresentes, uma espécie de aprendixorbitância, um discurso excessivo, exagerado, sobre a aprendizagem, que relega para segundo plano as outras dimensões da educação. Verifica-se a desvalorização do sentido coletivo da escola, ao mesmo tempo que se sublinha a importância de pôr as novas tecnologias ao serviço da individualização das aprendizagens.

A segunda tendência refere a necessidade de repensar o contrato social e o modelo escolar, mas sem pôr em causa a dimensão pública da educação e a importância da escola na construção de uma vida em comum.

Uma das melhores notícias dos nossos dias é a emergência, em todo o mundo, de movimentos que procuram refundar a escola, mas sem pôr em causa um compromisso público com a educação. A mudança faz-se a partir de uma matriz cultural e científica, afirmando a importância do conhecimento, sem ceder nem à ideologia do back to basics (a escola mínima de antigamente, do ler, escrever e contar), nem a uma escola folclórica afogada numa infinidade de projetos que, tantas vezes, apenas revelam a dificuldade para renovar as práticas pedagógicas. Não vale a pena alimentarmos ilusões, trazendo tudo para dentro da escola, uma escola transbordante, sem rumo e sem sentido. Mas vale a pena trabalhar para a construção de um espaço público de educação, a cidade educadora, no qual a escola se articula com outras instituições, grupos e associações.

No plano organizacional, é interessante acompanhar dinâmicas de inovação que estão a acontecer em muitos lugares, abrindo o modelo escolar a novas formas de trabalho e de pedagogia. É impossível ignorar o impacto da revolução digital, bem como a necessidade de diferenciar os percursos dos alunos, mas isso não implica que a escola abdique de ser um lugar de construção do comum. Hoje em dia, a fragmentação a que estamos a assistir no cibermundo, coloca a escola perante a urgência de valorizar a nossa pertença a uma mesma humanidade e a um mesmo planeta. Este comum não vem de comunidade de identidade, mas sim de comunidade de trabalho, isto é, o que fazemos em comum uns com os outros independentemente das nossas origens, crenças ou ideias.

E agora? As opções apresentadas são claras. Pessoalmente, enquadro o meu pensamento e a minha ação nesta segunda tendência: a renovação da escola no contexto de um espaço público da educação; e o esforço para reconstruir o comum, nunca deixando de valorizar a diversidade. É neste sentido que me interessa refletir sobre a metamorfose da escola, um processo histórico que, obviamente, provoca mudanças profundas na profissão docente e na formação de professores.

Ponte entre Andamentos

As transformações enunciadas no primeiro andamento têm consequências profundas no modo de pensar a profissão docente, a sua função, o seu estatuto e o seu trabalho.

Os movimentos que se inserem na primeira tendência acima descrita (privatização e individualização), apesar de reconhecerem a importância dos professores, tendem a esbater as dimensões profissionais e, mesmo, os referenciais coletivos. Frequentemente, recorrem ao conceito vago de educadores, juntando na mesma análise docentes, gestores, tutores, por vezes psicólogos, e mesmo pais e outras pessoas que exercem uma função educativa. Deste modo, diluem o princípio do professorado como uma profissão, conduzindo a políticas que desvalorizam a formação dos professores e que se legitimam através de um discurso pragmático: se escolhermos pessoas com bom conhecimento de uma dada matéria, facilmente conseguimos prepará-las para serem professores; se dermos uma remuneração suplementar aos professores cujos alunos têm bons resultados, o ensino melhorará; se tivermos bons materiais (livros, programas, etc.) e boas tecnologias, seremos capazes de suprir as deficiências dos professores e da sua formação; e por aí adiante.

Simbolicamente, uma das iniciativas mais marcantes é o Teach for America, que começou a ganhar grande relevância no início do século XXI. Através de uma mistura subtil de valores conservadores e de referências ao talento e ao empreendedorismo, essa iniciativa pretende chamar, e treinar, novas pessoas para ensinarem. Apesar de assumirem funções docentes, em todos documentos se evita a palavra professores, carregado de um claro sentido profissional, preferindo-se expressões como membros do grupo, líderes ou educadores. Depois de recrutadas, essas pessoas seguem um breve período de formação (cerca de 3 a 5 semanas) e são colocadas como docentes nas escolas.

Os movimentos deste tipo têm como ponto de partida um diagnóstico muito crítico sobre as dificuldades das escolas e as fragilidades das instituições de formação de professores. Muito populares no mundo, estão hoje num processo de expansão internacional, conduzindo a políticas de desprofissionalização e de degradação da profissão docente. Obviamente, manifestam sempre uma grande desconfiança em relação à escola pública e o desejo de instaurar novas formas de regulação privada da educação.

Pelo contrário, aqueles que, como eu, acreditam no compromisso público com a educação e na metamorfose da escola, partem também de um diagnóstico crítico, mas para reforçar e valorizar as dimensões profissionais, seja na formação inicial e continuada, seja num exercício da docência que só se completa através de um trabalho coletivo com os outros professores. É nestas bases que assenta a minha proposta de renovação do campo da formação de professores.

2º andamento

Os Professores e a sua Formação

Vários pensadores do século XX defenderam que as universidades deviam ser divididas em dois grandes tipos. Por um lado, as universidades da liberal education, conceito intraduzível para a língua portuguesa, que significa uma educação de base generalista, humanista e científica, de cultivo do otium (ócio no seu sentido filosófico). Por outro lado, as universidades das profissões, certamente tão importantes como as primeiras, mas vocacionadas para a formação de profissionais (medicina, engenharia, advocacia, ensino, etc.), destinadas a preparar para o negotium (o não ócio).

Esta divisão é totalmente inadequada, na medida em que as profissões têm um forte componente de conhecimento, também académico, e, nos dias de hoje, todas as invenções e tecnologias têm uma base científica. Mas ajuda a declarar o carácter profissional da formação de professores.

A afirmação parece simples. E, no entanto, é esta a novidade que queremos trazer neste texto, pois dela decorre uma nova matriz para pensar a formação de professores. Em vez de listas intermináveis de conhecimentos ou de competências a adquirir pelos professores, a atenção se concentra no modo como construímos uma identidade profissional, no modo como cada pessoa constrói o seu percurso no interior da profissão docente.

Tornar-se professor - para nos servirmos do célebre título de Carl Rogers, Tornar-se pessoa - obriga a refletir sobre as dimensões pessoais, mas também sobre as dimensões coletivas do professorado. Não é possível aprender a profissão docente sem a presença, o apoio e a colaboração dos outros professores.

Não se trata de convocar apenas as questões práticas ou a preparação profissional, no sentido técnico ou aplicado, mas de compreender a complexidade da profissão em todas as suas dimensões (teóricas, experienciais, culturais, políticas, ideológicas, simbólicas, etc.). Nesse sentido, a comparação mais adequada para a formação de professores é com a formação dos médicos ou dos engenheiros. Mas dizer isto, que parece simples, é pôr em causa muito do que se faz nas licenciaturas.

Do mesmo modo que a metamorfose da escola implica a criação de um novo ambiente educativo (uma diversidade de espaços, práticas de cooperação e de trabalho em comum, relações próximas entre o estudo, a pesquisa e o conhecimento), também a mudança na formação de professores implica a criação de um novo ambiente para a formação profissional docente.

Fazer essa afirmação é reconhecer, de imediato, que os ambientes que existem nas universidades (no caso das licenciaturas) ou nas escolas (no caso da formação continuada) não são propícios à formação dos professores no século XXI. Precisamos reconstruir esses ambientes, tendo sempre como orientação que o lugar da formação é o lugar da profissão.

É evidente que todas as profissões têm um lado conservador e rotineiro, o que as impede de construírem políticas de formação que conduzam à renovação das práticas e dos processos de trabalho. Impõe-se, por isso, compreender a importância de uma interação entre estes três espaços - profissionais, universitários e escolares - pois é na interação entre três vértices, neste triângulo, que se encontram as potencialidades transformadoras da formação docente (Figura 1).

Figura 1
Triângulo da Formação

Em muitos discursos sobre a formação de professores há uma oposição entre as universidades e as escolas. Às universidades atribui-se uma capacidade de conhecimento cultural e científico, intelectual, de proximidade com a pesquisa e com o pensamento crítico. Mas esquecemo-nos de que, por vezes, é apenas um conhecimento vazio, sem capacidade de interrogação e de criação. Às escolas atribui-se uma ligação à prática, às coisas concretas da profissão, a tudo aquilo que, verdadeiramente, nos faria professores. Mas esquecemo-nos de que esta prática é frequentemente rotineira, medíocre, sem capacidade de inovação e, muito menos, de formação dos novos profissionais.

Para escapar a essa oposição inútil e improdutiva, precisamos encontrar um terceiro termo, a profissão, e perceber que é nele que está o potencial formador, desde que haja uma relação fecunda entre os três vértices do triângulo. É neste entrelaçamento que ganha força uma formação profissional, no sentido mais amplo do termo, a formação para uma profissão.

A ligação entre a formação e a profissão é central para construir programas coerentes de formação, mas é também central para o prestígio e para a renovação da profissão docente. Historicamente, essa ligação foi decisiva para profissões como a medicina ou a engenharia. Infelizmente, com exceção das escolas normais, que tiveram o seu tempo, mas que já não nos servem, no caso dos professores, as instituições de formação não têm sabido comprometer-se com a profissão, e vice-versa.

Tendo esta ideia como argumento central, desdobrarei a análise nos três momentos em que se organiza o desenvolvimento profissional dos professores: a formação inicial, a indução profissional e a formação continuada. Em cada um deles, procurarei explicar a ligação formação-profissão, tendo sempre como pano de fundo a necessidade de repensar a profissão de professor à luz dos desafios atuais, face ao fim do modelo escolar e ao princípio de um novo tempo para o ensino e a educação.

Formação Inicial

No decurso da história, as universidades revelaram uma grande indiferença em relação à formação de professores. Contrariamente a outras profissões (teologia, direito, medicina) que estão na origem das universidades, a formação de professores foi sempre uma preocupação ausente ou secundária.

No que diz respeito à formação de educadores de infância e de professores do ensino fundamental, a indiferença foi quase total, até há pouco tempo, ficando essa tarefa nas mãos de escolas normais, de nível médio e não superior. No que diz respeito à formação de professores do ensino médio, o interesse dos universitários de Letras e de Ciências foi, muitas vezes, por mero oportunismo, a fim de assegurarem os seus postos e financiamentos, podendo, assim, dedicar-se ao que verdadeiramente lhes interessava, as suas áreas disciplinares. Também muitos universitários do campo da Educação relegaram para segundo plano a formação de professores, mobilizados pelos seus interesses científicos, legítimos, mas aproveitando-se dos professores, paternalisticamente, para justificarem o seu poder nas pós-graduações e na pesquisa.

O diagnóstico é excessivamente duro, e até injusto, mas não podemos poupar palavras num tempo em que se define grande parte do futuro dos professores e das escolas. É preciso reconhecer a inteligência e o compromisso de muitos universitários, de distintas áreas do saber, que se têm dedicado à formação de professores. É neles, nos seus trabalhos, nas suas iniciativas, nas redes que foram construindo, que está a resposta para os nossos problemas. Precisamos juntá-los num mesmo espaço institucional, uma casa comum da formação de professores dentro das universidades, mas sempre com uma ligação orgânica aos professores e às escolas da rede.

É nesta casa comum que se pode definir um campo estimulante, que escape à fragmentação atual das licenciaturas e que mobilize o conhecimento pertinente para formar os professores do futuro. Precisamos, nessa casa comum, do conhecimento dos conteúdos científicos das disciplinas (Matemática, Biologia, História...), pois quem os desvaloriza comete um erro fatal. Se não dominarmos estes conteúdos, as mais sofisticadas técnicas de ensino de pouco nos servirão. Precisamos, também, do conhecimento científico em Educação, dos fundamentos às didáticas, à psicologia e ao currículo, e a tantos outros assuntos. Mas esses dois tipos de conhecimento são insuficientes para formar um professor se não construírem uma relação com o conhecimento profissional docente, com o conhecimento e a cultura profissional dos professores.

Por isso, é tão importante a existência, nas universidades, de uma casa comum da formação e da profissão, isto é, de um lugar de encontro entre os professores universitários que se dedicam à formação docente e os professores da rede. Essa casa comum é um lugar universitário, mas tem uma ligação à profissão, o que lhe dá características peculiares, assumindo-se como um terceiro lugar, um lugar de articulação entre a universidade e a sociedade, neste caso, entre a universidade, as escolas e os professores. Nesta casa comum faz-se a formação de professores ao mesmo tempo que se produz e se valoriza a profissão docente.

Indução Profissional

A relação que se estabelece, na formação inicial, entre os estudantes das licenciaturas e os professores da educação básica é muito importante para conceber políticas de indução profissional, isto é, de inserção dos jovens professores na profissão e nas escolas. A formação nunca está pronta e acabada, é um processo que continua ao longo da vida.

Permitam-me que deixe um testemunho de homenagem a um dos mais notáveis pedagogos do século XX, Michael Huberman. Sabemos, pelo menos desde a publicação da sua obra de 1989, A vida dos professores (Huberman, 1989), que os anos iniciais são decisivos para moldar e definir a nossa relação com a profissão. É na passagem da universidade para as escolas, e na forma como os professores mais experientes acolhem os mais jovens, que se joga grande parte do futuro profissional de cada um.

O que temos feito com o conhecimento produzido por Michael Huberman e tantos outros autores? Nada, ou quase nada. Contrariamente aos médicos, e a outros profissionais, os jovens professores são deixados à sua sorte nas escolas, com pouco ou nenhum apoio, lutando sozinhos pela sua sobrevivência. É preciso alterar este estado de coisas e construir políticas públicas de indução profissional.

Os programas de residência docente, baseados numa analogia com a residência médica, são da maior importância, desde que concebidos como um espaço de transição entre a formação e a profissão. Eles não devem servir para diminuir a formação inicial e, muito menos, para políticas racionalizadoras de gestão que podem acentuar a precariedade e relações de trabalho mais frágeis. Uma vez que se trata de cuidar da entrada na profissão, estes programas devem sublinhar a profissionalidade docente, na pluralidade das suas dimensões, e não apenas o referencial pedagógico.

O fundamental está na possibilidade de definir, nas escolas, regras de corresponsabilização pela integração dos novos professores. Esta missão é considerada a mais nobre pela maioria das profissões, pois dela depende o futuro dos jovens profissionais, mas também o futuro da própria profissão e da sua capacidade de renovação. E, no entanto, pouco temos feito, tanto nas universidades como nas políticas públicas e nas escolas.

Este acolhimento e acompanhamento implica mudanças mais profundas do que parecem à primeira vista na organização das escolas e da profissão docente. Implica que sejamos capazes de valorizar os melhores professores e de lhes dar esta missão, que é a mais prestigiante que podem desempenhar. Implica que abandonemos uma visão individualista da profissão e que sejamos capazes de instaurar processos coletivos de trabalho.

Esta possibilidade é ainda mais urgente hoje do que no passado. Ninguém se integra numa profissão sozinho, isoladamente. Ninguém constrói novas práticas pedagógicas sem se apoiar numa reflexão com os colegas. Ninguém, sozinho, domina completamente a profissão, como tantas vezes nos tem alertado Sérgio Niza (2012). Precisamos dos outros para nos tornarmos professores.

Formação Continuada

O ciclo do desenvolvimento profissional completa-se com a formação continuada. Face à dimensão dos problemas e aos desafios atuais da educação precisamos, mais do que nunca, reforçar as dimensões coletivas do professorado. A imagem de um professor de pé junto ao quadro negro, dando a sua aula para uma turma de alunos sentados, talvez a imagem mais marcante do modelo escolar, está a ser substituída pela imagem de vários professores trabalhando em espaços abertos com alunos e grupos de alunos.

Esta nova construção pedagógica precisa de professores empenhados num trabalho em equipa e numa reflexão conjunta. É aqui que entra a formação continuada, um dos espaços mais importantes para promover esta realidade partilhada.

Há muitos discursos que referem a impossibilidade de haver práticas consistentes e inovadoras de formação continuada nas escolas: os professores têm muitas dificuldades; as escolas não têm condições; é preciso trazer novas teorias e novos modelos que não existem nas escolas; etc. Compreendem-se estes discursos, sobretudo por parte daqueles que não se conformam com a situação atual das escolas e pretendem abrir novos caminhos. Existe o receio de que enraizar a formação continuada nas escolas contribua para fechar os professores em práticas rotineiras e medíocres, não lhes permitindo o acesso a novas ideias, métodos e culturas.

Mas estes discursos prestam um péssimo serviço à profissão, pois conduzem, inevitavelmente, a uma menorização ou desqualificação dos professores. De um ou de outro modo, abrem caminho a um mercado de cursos, eventos, seminários e encontros nos quais especialistas diversos montam o seu espetáculo pessoal para venderem aos professores novidades inúteis sobre o cérebro e a aprendizagem, as novas tecnologias ou qualquer outra moda de momento.

É evidente que, em certos países, muitos professores em funções necessitam de uma formação complementar, seja nas áreas disciplinares em que lecionam, seja em domínios pedagógicos. Mas esta formação não deve ser confundida com a formação continuada que deve ter lugar na escola com a participação das comunidades profissionais docentes.

Avançar esta proposta não representa nenhuma desvalorização dos saberes teóricos ou científicos, mas antes a vontade de os ressignificar no espaço da profissão. É na complexidade de uma formação que se alarga a partir das experiências e das culturas profissionais que poderemos encontrar uma saída para os dilemas dos professores.

No meio de muitas dúvidas e hesitações, há uma certeza que nos orienta: a metamorfose da escola acontece sempre que os professores se juntam em coletivo para pensarem o trabalho, para construírem práticas pedagógicas diferentes, para responderem aos desafios colocados pelo fim do modelo escolar. A formação continuada não deve dispensar nenhum contributo que venha de fora, sobretudo o apoio dos universitários e dos grupos de pesquisa, mas é no lugar da escola que ela se define, enriquece-se e, assim, pode cumprir o seu papel no desenvolvimento profissional dos professores.

Epílogo

Este número da revista Educação & Realidade tem como tema Resistência, Criação e (Re)Existência na Educação Brasileira: táticas, linhas de fuga e iniciativas emancipatórias em pauta. Escrevo este texto no mês de junho de 2018, um tempo particularmente duro para o Brasil. Do ponto de vista da educação, levantam-se as mesmas questões que em muitos outros países, mas os problemas são maiores, mais nítidos, sobretudo no que diz respeito à situação da escola pública e às condições de trabalho e de carreira dos professores. É preciso encontrar uma saída, urgente, que passa pelas políticas, mas passa também pela mobilização da sociedade e de todos aqueles que acreditam na força da escola pública e da sua importância para a revitalização da democracia.

O campo da formação de professores tem um conjunto de autores, de pesquisadores e de experiências institucionais de grande relevância. Numa comparação internacional, facilmente se confirma a qualidade académica e científica do trabalho realizado no Brasil, bem como a existência de iniciativas, em universidades e escolas, que mereciam ter uma maior divulgação e visibilidade. Esta solidez revela-se igualmente em muitos normativos legais, nomeadamente em diretrizes sobre formação de professores.

Mas, para além dos discursos, parece faltar um compromisso diário, também nas universidades, de valorização dos professores e da sua profissão. Os inúmeros diagnósticos feitos no Brasil parecem não terem dado ainda origem a um movimento geracional de transformação profunda da situação da escola pública e das condições de trabalho e de formação dos professores.

Interessa-nos assinalar, porque é da nossa responsabilidade direta, a situação nas universidades, com uma fragmentação das licenciaturas e uma desvalorização do campo da formação de professores. A opção pelos cursos de ensino raramente surge como prioridade das políticas universitárias ou como primeira escolha dos estudantes. Não é possível nenhuma mudança de fundo se os dirigentes universitários, da Reitoria às Faculdades e Institutos, não derem um papel de relevo às licenciaturas.

A transformação pode começar de muitas maneiras, mas talvez as universidades sejam um bom lugar para manifestarmos a coragem dos começos (Jankélévitch, 1960). Assumir riscos? Claro, mas de que valeria um pensamento inofensivo, vazio, sem os riscos da ação, sem a virtude do compromisso. A coragem é o contrário do medo, é mesmo o seu antídoto. Em vez de dedicarmos o nosso tempo a elaborar justificações para a inércia, concentremo-nos na injustificabilidade de certas situações. Não há coragem sem ação.

O começo já começou, nunca surge do nada. Quando olhamos para programas como o PIBID, e a forma como foi concretizado em muitas instituições de todo o Brasil, facilmente identificamos proximidades com a proposta apresentada neste texto. São ideias diferentes, mas que se baseiam num mesmo movimento de transformação da formação de professores. Na verdade, é excecional a decisão tomada em 2007 de atribuir à CAPES a missão de induzir e fomentar a formação inicial e continuada de profissionais da educação básica. A atribuição de tarefas na área da formação de professores a uma entidade da pós-graduação e pesquisa é um caso único no mundo, pois assenta na compreensão lúcida de que sem um investimento na qualidade da educação básica é impossível um país desenvolver-se do ponto de vista científico e tecnológico.

Sei bem que, atualmente, houve um grande recuo nesta ação da CAPES, mas não quero deixar de assinalar o gesto inicial e o caráter inédito deste programa. Uma das suas qualidades foi ter conseguido ligar o debate sobre a formação de professores com a melhoria da profissão docente, como se escreve na Carta de Uberaba, aprovada em 2013, com um título bem revelador: Em Defesa da Identidade e Profissionalização Docente: por um projeto de Estado, articulado e sistêmico que pense a formação inicial e continuada, as condições de trabalho, plano de carreira e salário do professor.

Não podemos permitir a corrosão da profissão docente que está a ser provocada pelas políticas de ataque às instituições universitárias de formação de professores, procurando substituir os cursos de licenciatura por seminários práticos de formação, de 4 ou 5 semanas, como no caso do Teach for America.

Não podemos permitir que a formação de professores seja redefinida por modelos praticistas que defendem o regresso a uma mera formação prática, no terreno, no chão da escola, junto de um professor mais experiente, corroendo assim as bases intelectuais, críticas, da profissão docente.

Não podemos permitir a inércia das universidades, a sua indiferença em relação às licenciaturas, como se fosse possível formar um professor sem investirmos seriamente neste processo, sem estudarmos a área da educação, sem construirmos um conhecimento pedagógico, sem nos relacionarmos seriamente com os professores que já exercem a profissão.

Não podemos permitir que a formação de professores seja tomada por interesses de muitos universitários que ocupam este campo, mas não se envolvem nele, levando a intermináveis e inúteis disputas entre Faculdades e Departamentos, das diferentes disciplinas e da educação, para saber quem fica com uma fatia maior do currículo (porque isso significa mais professores, mais verbas, mais poder).

Não podemos permitir que, por ausência das universidades e fragilidade das políticas públicas, a formação de professores seja transformada num verdadeiro mercado por grupos, empresas e fundações.

Poderia continuar esta espécie de Manifesto do que não podemos permitir. Mas é mais útil referir, brevemente, uma iniciativa de grande significado que vem sendo desenvolvida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, na qual tive a oportunidade de participar durante o ano de 2017: a construção do Complexo de Formação de Professores.

Trata-se de criar um novo lugar institucional, interno e externo, que promova uma política integrada de formação de professores, ligando a Universidade e a cidade. A intenção é instituir, não apenas um espaço de diálogo, mas principalmente um espaço de decisão institucional, o que implica mudanças profundas na organização das licenciaturas.

Nas últimas décadas, as universidades têm desenvolvido um movimento de criação de terceiros lugares, ligando as universidades à sociedade e às cidades, seja na saúde, na tecnologia, no direito ou na educação. À imagem dos parques tecnológicos, o Complexo pode afirmar-se como uma espécie de Parque Educacional, juntando a UFRJ a uma rede de escolas municipais, estaduais e federais, desde que estas se assumam como escolas formadoras.

A missão do Complexo é ligar em rede a universidade e as escolas, permitindo que os estudantes das licenciaturas tenham uma relação com a profissão desde o primeiro dia. Mas uma nova conceção da formação inicial deve dar origem a novas políticas de inserção na vida profissional (residência docente) e a um novo desenho da formação continuada dos professores, fortemente assente nas escolas e numa reflexão coletiva sobre o trabalho pedagógico.

O elemento decisivo para o sucesso deste projeto da UFRJ é a construção de uma nova institucionalidade, no interior da qual se venha a criar um ambiente educacional, fértil e fecundo para a formação dos professores.

A configuração deste novo ambiente formativo implica o reconhecimento da importância dos papéis singulares desempenhados pelos diferentes atores internos e externos à comunidade acadêmica. A ideia de terceiro lugar implica operar com a ideia de diferenciação e convergência de papéis, combatendo a crença, bastante difundida na cultura acadêmica, da existência de uma hierarquização do sistema de saberes que legitima uns em detrimento de outros, reforçando as relações assimétricas de poder.

Trata-se de constituir uma comunidade de formação, na qual, coletivamente, se definam espaços de experimentação pedagógica e de novas práticas, criando assim as condições para uma verdadeira formação profissional docente. Do lado da Universidade, é importante que haja uma grande abertura, no diálogo com as escolas e os professores, induzindo oportunidades de formação e de desenvolvimento profissional. Do lado das escolas, é importante que haja um compromisso de acolhimento e de trabalho com os licenciandos e os professores iniciantes.

O mais importante é a constituição de uma casa comum, na qual a formação esteja ligada com o trabalho pedagógico, a reflexão, a pesquisa, a escrita e a ação pública. Para que o Complexo tenha viabilidade é necessário celebrar um verdadeiro contrato de formação, desde logo, no interior da Universidade e, depois, com a cidade, com uma rede de escolas parceiras.

Se tal vier a concretizar-se, a UFRJ dará um sinal forte de compromisso com a escola pública e com a renovação da formação de professores. Precisamos desses sinais, no Brasil e no resto do mundo. É preciso ligar a formação e a profissão. Ao fazê-lo, estamos a criar as condições para que os professores estejam à altura dos novos tempos, sejam capazes de participar ativamente na metamorfose da escola. Ninguém se torna professor sem a colaboração dos colegas mais experientes. Começa nas universidades, continua nas escolas. Ninguém pode ser professor, hoje, sem o reforço das dimensões coletivas da profissão. O futuro escreve-se na coragem da ação. Pensar a coisa certa é agir1.

Nota

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    Este artigo integra a Seção Temática, Resistências e (Re)Existências em Espaços Sociais de Formação em Tempos de Neo-Conservadorismo, organizada por Inês Barbosa de Oliveira (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e Rafael Marques Gonçalves (Universidade Federal do Acre).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Set 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2018
  • Aceito
    08 Abr 2019
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