Resumo:
O artigo analisa a trajetória acadêmica de engenheiros que se tornaram professores em uma instituição de educação profissional e tecnológica (EPT). Considerando que o curso de licenciatura é elemento essencial, mas não único, no desenvolvimento profissional do professor, a pesquisa visa conhecer as trajetórias de formação e as práticas desses engenheiros professores. A investigação é qualitativa e se baseia nos relatos autobiográficos coletados por meio de entrevistas abertas. As narrativas dos engenheiros professores indicam que a opção pela Engenharia ocorreu em virtude de condicionantes pessoais, mas também sociais, e que a entrada na docência se deu de forma não planejada. Evidenciam, também, uma autoavaliação quanto às suas práticas e o esforço em superar as dificuldades enfrentadas cotidianamente.
Palavras-chave: formação de professores; saberes docentes; engenharia; educação tecnológica.
Abstract:
This study analyzes the academic trajectories of engineers who have become teachers in vocational and technological institutions. Considering that the undergraduate course is an essential element for the professional development of teachers, but not the only one, this research aims to analyze the training trajectories and the practices of these engineers as teachers. This is a qualitative research based on the teachers’ autobiographical accounts, collected by means of open interviews. The narratives of the teachers engineers indicate that the option for engineering occurred due to personal and social factors, and the entrance into the teaching career was an unplanned event. It is also evident the existence of a continuous self-assessment of their practice and the effort to overcome difficulties in their daily activities.
Keywords: teacher training; teaching knowledge; engineering; technological education.
Introdução
A expansão da educação profissional e tecnológica (EPT), nas primeiras décadas do século 21, tem suscitado debates entre pesquisadores da área de educação. No que diz respeito à formação de professores para atuar nessa modalidade, alguns estudos ressaltam a ampliação do número de docentes bacharéis, mesmo que a licenciatura seja um requisito essencial para exercer a docência na educação básica, segundo a atual Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Esses bacharéis, sobretudo os engenheiros, tornaram-se professores e, muitas vezes, dividem seu tempo entre o exercício desta profissão e o daquela para a qual se formaram nas universidades (Souza; Nascimento, 2013).
Na verdade, a entrada de engenheiros na docência não é uma novidade nem algo ilegal, visto que a Resolução nº 218, de 1973, do Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (Confea) lhes reserva esse direito (Brasil. Confea, 1973). Novo é o crescente número desses profissionais na EPT em função dos frequentes concursos públicos para o provimento de vagas nos campi já existentes e nos que são criados.
Diante desse cenário, realizamos uma investigação sobre a trajetória de formação percorrida por engenheiros que atuam na docência no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (IFRN), Campus Mossoró.1 Considerando que o diploma adquirido na formação inicial não oferece “produtos prontos” (Marcelo García, 1997), a pesquisa assumiu o compromisso de compreender o desenvolvimento profissional desses professores, entendido aqui como “processo que se vai construindo à medida que os docentes ganham experiência, sabedoria e consciência profissional” (Marcelo García, 2009a, p. 11). Importa esclarecer que o estudo não partiu de juízo de valor sobre a competência desses engenheiros para o exercício da docência e, também, não objetivou fazer comparações entre as práticas de professores licenciados e bacharéis.
Nossa intenção de compreender o significado que os engenheiros professores atribuem às suas experiências nos levou a realizar entrevistas abertas com cinco deles. Esse quantitativo, considerado pequeno por alguns, deve-se ao tipo de pesquisa desenvolvida, a qualitativa, cuja finalidade “não é contar opiniões ou pessoas, mas, ao contrário, explorar o espectro de opiniões, as diferentes representações sobre o assunto em questão” (Gaskell, 2008, p. 68). O mínimo de três anos na docência foi o principal critério de seleção. As entrevistas foram gravadas e, depois, transcritas e submetidas à análise de conteúdo com base nas orientações dadas por Bardin (2011).
O objetivo era o de, por meio de diálogos, analisar como e por que eles se encontravam, naquele momento das suas trajetórias de vida, exercendo o ofício da docência. Também nos interessou debater as maneiras pelas quais esses profissionais, sem uma formação em licenciatura, desenvolvem as suas práticas pedagógicas.
Mesmo que as entrevistas tenham sido abertas, algumas questões deram a tônica: os motivos que conduziram os entrevistados à Engenharia e, depois, à docência, e os desafios que possivelmente eles enfrentaram, ou ainda enfrentam, no exercício da docência. Em razão desse direcionamento, este artigo se divide em três partes relacionadas a esses questionamentos.
Do bacharelado em Engenharia à docência na EPT
Por que alguém escolhe uma profissão e, depois de uma formação para exercê-la, assume outra? Por que essa pessoa não optou, logo de início, pela profissão para a qual migraria mais tarde? Estando nessa nova profissão, sem ter passado por uma formação voltada para o seu exercício, como esse sujeito se adapta a esse novo contexto? Que dificuldades enfrenta e que estratégias utiliza para executar com êxito suas tarefas?
Tendo em conta que as narrativas são manifestações de uma memória individual e social, ressaltamos que o ato de rememorar não é visto aqui como um resgate puro do passado, pois não se separa a história narrada da vida do contexto social do narrador (Benjamin, 1994; Halbwachs, 2006; Pollak, 1992). Por isso, os sujeitos que contatamos enaltecem alguns fatos, esquecem ou omitem outros. O importante era averiguar o que, naquele momento das suas vidas, merecia ser destacado nos seus discursos. Há, assim,
a adoção de um tipo de enfoque que (…) direciona o olhar para a importância de se compreenderem as representações e valores construídos pelo professor acerca da profissão docente, na interface entre as dimensões pessoal e profissional. (Burnier et al., 2007, p. 344).
As recordações-referências (Josso, 2010) expressas nas narrativas implicam reflexões, recomposições e (re)construções identitárias. Significa dizer que a identidade não é algo fixo e inerente ao sujeito, mas fruto de “um processo evolutivo, um processo de interpretação de si mesmo como pessoa dentro de um determinado contexto. (...) pode ser entendida como uma resposta à pergunta ‘quem sou eu neste momento?’” (Marcelo García, 2009b, p. 112).
Durante muito tempo, as pesquisas na área da educação tiveram como objetivo maior realçar a dimensão técnica da ação pedagógica, reduzindo a docência a um conjunto de competências e capacidades. Todavia, a partir da década de 1980, observou-se um crescimento de estudos que enfocavam as vidas, os percursos, as biografias e as autobiografias de professores.2 Para Nóvoa (2007, p. 16), as questões evidenciadas nesses estudos são: “Como é que cada um se tornou o professor que é hoje? E por quê? De que forma a ação pedagógica é influenciada pelas características pessoais e pelo percurso de vida profissional de cada professor?”. Esse autor considera que “a maneira como cada um de nós ensina está directamente dependente daquilo que somos como pessoa quando exercemos o ensino”, pois, “(...) é impossível separar o eu profissional do eu pessoal” (p. 17, grifos do autor).
O vínculo entre a prática docente e os elementos constitutivos da formação individual e social desses profissionais no decorrer de suas vidas também é ressaltado por Tardif (2002). Para ele, o saber dos professores “está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com a sua experiência de vida e com a sua história profissional, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores escolares na escola, etc.” (p. 11).
Feitos esses esclarecimentos, apresentamos as narrativas dos entrevistados e a análise que nos foi possível depreender com base nos seus conteúdos. Os professores interrogados são egressos dos cursos de Engenharia Civil (três), Engenharia de Materiais (um) e Engenharia da Computação (um). Quanto à titulação, um é doutor, dois são mestres e dois são especialistas. Apenas um tem pós-graduação na área de educação (especialização). Destacamos que optamos por não identificar os entrevistados, substituindo seus nomes.
Tornando-se engenheiro(a)
Antecedida de uma conversa informal, com a finalidade de deixar o participante mais à vontade diante do gravador, começamos a entrevista perguntando aos professores sobre suas opções pela formação acadêmica inicial na Engenharia: Como se deu essa escolha? Que razões a explicam?
As respostas apresentaram, com maior ou menor ênfase, a identificação com a área de ciências exatas e de tecnologia como um ponto relevante para o ingresso no curso. Essa associação entre o gosto pelo cálculo e a procura pela Engenharia se relaciona não só às representações que a sociedade tem das Engenharias, mas também à história de seu ensino no Brasil, visto como uma reprodução do modelo das escolas europeias que, fortemente influenciadas pelo pensamento positivista, desenvolviam um ensino teórico, genérico e com valorização das ciências exatas (Kawamura, 1979; Laudares, 2010; Bazzo, 2011).
Além de manifestar a vocação com a área tecnológica, dois entrevistados realçaram as influências da família. A engenheira professora Eneida destaca que gostava muito de desenhar e lembra a importância que teve o curso Técnico em Edificações para sua formação, mas apresenta os conselhos do pai como essenciais para sua opção pela Engenharia Civil:
Quando fui fazer a inscrição para o vestibular, a influência do meu pai foi muito decisiva, porque (...) ele fez uma reflexão comigo. Ele me dizia assim: “como engenheira você pode trabalhar em obras, pode desenhar, trabalhar com projeto...”. E ele começou a me mostrar as potencialidades: “Tinha professor de Física que era engenheiro, tinha professor de Matemática que era engenheiro... (...) Você vê engenheiro administrando, engenheiro político...”.
Satisfazer à família também foi um elemento forte na escolha feita pelo engenheiro professor Marcondes ao optar pela Engenharia de Materiais:
Esse interesse pela engenharia foi mais pela questão de uma alimentação de um sonho que meu pai tinha. Meu pai é professor de Educação Física, mas ele achava bonita a profissão de engenheiro. Então, desde pequeno, ele foi me alimentando desse sonho, que achava muito bonito e que se orgulharia muito em ter um filho engenheiro.
Os relatos de Eneida e Marcondes vão ao encontro dos estudos que tratam das escolhas profissionais feitas por jovens. Nessas pesquisas, a articulação entre os projetos pessoais e o da família poucas vezes deixa de se manifestar. Mesmo que, na contemporaneidade, haja a possibilidade de o sujeito desenvolver um projeto de futuro profissional, “essa escolha ou essa elaboração de projetos não serão realizadas no vazio, mas sim em meio a uma situação social, econômica, política; sofrendo influências dessas diversas dimensões, inclusive da família” (Almeida; Magalhães, 2011, p. 206).
As orientações do pai de Eneida e a recepção por Marcondes do discurso do seu genitor, cujo sonho era ter um filho engenheiro (um detalhe importante: seu pai era professor), deixam patente uma realidade firmada ao longo do século 20, na qual a Engenharia passou, juntamente com o Direito e a Medicina, a ser uma das profissões mais requisitadas pelos filhos das elites que controlavam o poder político e o econômico. O engenheiro foi visto (e, de certa forma, ainda é) como o profissional que tiraria o País do atraso tecnológico e científico (Kawamura, 1979). Diante de um conjunto de transformações socioeconômicas e políticas por que passava o Brasil na primeira metade do século 20, os bacharéis (engenheiros, médicos e advogados) passaram a se destacar como empresários, professores e políticos, funções, aliás, que muitos vêm cumprindo até hoje, como podemos perceber no conselho dado pelo pai da professora Eneida.
Assim, diferentemente do que se pensa, as trajetórias de vida de um sujeito não se prendem apenas às características próprias de sua personalidade (disposição, inteligência, caráter, vocação, aptidão, méritos pessoais, dentre outras), mas dependem principalmente do fato de ele ter nascido em um determinado contexto histórico e em um ambiente sociocultural definido por elementos estruturais bem precisos, de ordem econômica, política, educacional. Esses elementos pesam sobre as opções de cada um e acabam por prescrever o futuro no mais longo termo, orientando a escolha pessoal e exercendo forte influência sobre o itinerário profissional (Valle, 2006).
A engenheira professora Estela, nossa quinta entrevistada, destaca que, ao contrário dos demais, tinha a pretensão inicial de ser médica, em função da influência que recebia de alguns parentes que são profissionais da saúde. A decisão pela Engenharia Civil surgiu quando realizou o estágio supervisionado do curso técnico de nível médio em estradas.
Eu não tinha ainda me tocado da postura do engenheiro: de vez em quando, chegava aquela pessoa que falava com todo mundo, orientava, sabia de tudo e antecipava os nossos erros. (...) Eu pensei: eu quero ser assim, eu quero ser desse jeito. (...) A experiência que passei com os engenheiros da obra, a postura de líderes que resolviam os problemas, que antecipavam os erros das obras, esse espírito de liderança me levou a tomar a decisão de fazer o curso de Engenharia Civil.
Portanto, as atividades práticas de um engenheiro e a liderança que exerce frente à sua equipe foram fatores decisivos para as escolhas de Estela. Podemos inferir que o seu estágio em uma obra de construção de estradas, por mais pesada que esta possa parecer (daí ser vista como uma atividade masculina), foi, para ela, um acontecimento-charneira (Josso, 2010), um fato que representou um “divisor de águas” na trajetória de sua vida.
Temos de considerar que as justificativas dadas para a opção pela Engenharia ocorrem em um momento em que esses sujeitos assumem novas identidades. São, a um só tempo, engenheiros e professores. Dividem, mas também imbricam, essas duas profissões no seu fazer cotidiano. Suas recordações-referências revelam a relação de interdependência entre o individual e o social no percurso de uma vida, fazendo-nos perceber, como expressa Dubar (1997), que a identidade humana é uma construção individual e coletiva e se associa ao processo de intervenção dos indivíduos sobre si mesmos e a diferentes fatores externos, entre eles as visões de mundo construídas socialmente.
Para Ferrarotti (2010, p. 44), “o nosso sistema social encontra-se integralmente em cada um dos nossos atos, em cada um dos nossos sonhos, delírios, obras, comportamentos. E a história desse sistema está contida por inteiro na história de nossa vida individual”. O reconhecimento do nexo entre o individual e o contextual, ou seja, entre os nossos interesses pessoais e as influências do meio social em que vivemos, tem provocado a emergência de muitas pesquisas no campo da educação, grande parte delas com base no referencial das histórias de vida. O “tornar-se docente” é um dos temas comuns.
Tornando-se docente
Considerando que houve um conjunto de fatores que determinou a opção desses engenheiros pela área tecnológica (orientação da família, empregabilidade, aptidão para as ciências exatas, etc.), que razões os levaram a se aventurar em outra profissão para a qual não tiveram uma formação acadêmica?
Não nos surpreendeu o fato de alguns destacarem o “dom” que sempre tiveram para o exercício da docência. Os engenheiros Lucas e Eneida relatam as suas experiências com o ensino ainda quando crianças e jovens, o que, segundo eles, foi decisivo para assumirem essa profissão.
Isso é um dom que eu tenho. Sempre gostei de ensinar. E, no transcorrer do meu curso de Engenharia, decidi: quero atuar na área, como engenheiro, e ensinar também (...). Eu passava meu conhecimento para os alunos e, ao mesmo tempo, estava sempre me atualizando. Então, foi isso que me fez ser professor, o que tenho muito orgulho e sou muito satisfeito. (...) Apareceram outros concursos para Engenharia, mas, como eu sempre quis ser professor, eu abdiquei para estar aqui [nome da instituição]. Até questão salarial eu abdiquei! Queria ser professor. Agora, vale salientar que eu não quero ser só professor. Eu quero também atuar na área da engenharia. Eu também gosto muito de ser engenheiro. (...) Eu sempre quis ter as duas profissões. (Lucas).
Sempre tive afinidade com o ensino. Eu ensinava para minha irmã, que, na época, fazia a pré-escola (...). Também comecei cedo a participar do grupo de estudos de jovens espíritas e, num determinado momento, eu estava ensinando crianças, evangelizando. Eu dizia: se um dia eu tiver que ensinar, eu me imaginava professora do ensino técnico. (Eneida).
Os discursos dos professores reproduzem a ideia de que, para exercitar a docência, basta ter um dom (do latim donu, dádiva, presente). Dessa forma, algumas pessoas têm a capacidade especial inata de lecionar, de doar ou passar conhecimentos. Essa ideia suprime da docência o caráter de profissão que, semelhantemente às demais, decorre de esforços pessoais e da formação teórica e prática. Ministrar aulas exige um conjunto de atividades (planejamento, capacitação, formação, dentre outras) que estão muito além de uma vocação inata. Considerando-se que estamos falando de docentes de uma modalidade particular de ensino, a EPT, esse profissional deve assumir, além das atividades comuns a qualquer professor, aquelas relativas ao processo de ensino-aprendizagem nesse campo.
Entretanto, o caráter conservador do termo “dom” está tão bem dissimulado pela cultura que, ao lado dele, em um mesmo discurso, encontramos posturas mais abertas e reflexivas com relação ao processo de ensino-aprendizagem. O professor Lucas, por exemplo, pondera que, ao dar aula, não apenas “passa” seus conhecimentos para os alunos, mas também aprende, completa-se. No seu entender, há uma relação de reciprocidade em sala de aula.
Ao relatarem e refletirem sobre aspectos de sua vida profissional (e pessoal), os entrevistados se apresentaram como sujeitos que foram transformados pela profissão docente, apesar de esta, às vezes, surgir de forma inesperada, como foi o caso da engenheira professora Estela.
Eu sempre fui uma pessoa muito dinâmica. Sempre fiz muitas coisas ao mesmo tempo. Quando eu fazia o curso técnico de estradas, eu já dava aulas de reforço na minha casa. Quando eu entrei no curso de Engenharia, eu trabalhava como digitadora numa escola do município. Era serviço prestado. (...) Um dia, escutei o diretor comentando com a vice-diretora que o professor de Matemática iria se afastar para fazer uma especialização. Daí, eu decidi ser a professora de Matemática. O diretor perguntou: você pode ser? Eu posso, eu estou fazendo o curso de Engenharia Civil na UFRN. O diretor disse: ok, vamos organizar. E foi a primeira vez que entrei em sala de aula. (...).
O relato de Estela evidencia que a docência, para ela, foi obra do acaso, embora, para ser mais plausível, saliente as aulas particulares que ministrava quando adolescente. O curso de Engenharia, mesmo ainda estando em andamento, abriu-lhe as portas para lecionar em uma instituição pública. Esse detalhe de seu percurso formativo possibilita estabelecer dois debates:
A experiência da entrevistada revela a tradicional restrição do ensino da Matemática às aulas expositivas de cálculo, ficando os conhecimentos metodológicos em segundo plano. Dessa maneira, um engenheiro ou um estudante de Engenharia estaria apto a lecioná-la, fato que ocorre também com outras áreas do conhecimento.
A narrativa torna patente um problema ainda atual: a carência de professores nas áreas de ciências exatas e da natureza. Em função dessa demanda, muitos bacharéis e licenciados em outras áreas terminam por lecionar os componentes curriculares de Matemática, Química, Física e Biologia nas redes públicas e privadas de ensino.
Em sua explanação, Estela também procura justificar a sua faceta como professora. Embora o termo “dom” não tenha aparecido no seu discurso, ela propõe uma relação de semelhança entre o trabalho do engenheiro com sua equipe e aquele desenvolvido por um professor:
Na Engenharia, quando você vai para a realidade da obra, que foi sempre a minha aptidão maior, está sempre ensinando, porque você está orientando a equipe, treinando o pessoal. Eu gerenciei, eu queria equipes. Não equipes que trabalhavam para mim, mas que trabalhassem comigo. Então, eu não tive problemas em dividir conhecimento com eles. Eu chegava explicando, mostrando o que era melhor e é melhor por causa disso, e não aquela coisa mecânica: faça assim e pronto! (Estela).
Ao aproximar as práticas de gestão e de liderança de equipes realizadas por um engenheiro às práticas na docência, a entrevistada deixa implícito que a docência é algo que se conquista com a experiência. Ao que parece, qualquer pessoa, por ensinar algo a alguém, é um professor em potencial.
As atividades acadêmicas na graduação e na pós-graduação (participação em grupos de pesquisa, projetos de iniciação científica, estudos em grupo) também foram lembradas como justificativas para se tornarem docentes. O engenheiro professor Marcondes relata que seu interesse pela docência despertou quando, no mestrado, cursou a disciplina Metodologia do Ensino Superior: “foi a partir dessa disciplina que eu comecei a ter uma visão de sala de aula, (...) e aí comecei progressivamente a me interessar pela carreira docente”.
Em resumo, para os entrevistados, a docência surge sem um planejamento definido, o que é compreensível, haja vista o processo de desencorajamento e mal-estar pelo qual passa essa profissão na atualidade. Em muitos momentos das entrevistas, ficou claro que a possibilidade de se tornar docente só passa a ser considerada porque o trabalho (na instituição de EPT) representava uma oportunidade de ter um emprego estável, federal e relativamente bem remunerado, fato que evidencia a observação de Valle (2006, p. 179): “o sistema educacional apresenta-se estratificado em redes e níveis de ensino, fazendo com que o magistério acumule desigualdades profundas em termos de status, salário, contrato e condições de trabalho”. Por fim, a docência na EPT significa, para os professores interrogados, uma “volta para casa”, visto que quatro deles foram alunos dessa instituição e fizeram questão de destacar o respeito e a gratidão que têm por ela.
A docência em construção
Conforme Imbernón (2011), a formação é um elemento essencial, mas não único, para o desenvolvimento profissional de um professor. Para esse autor, dentre os diversos fatores que colaboram para esse processo, pode-se destacar a formação permanente que os docentes realizam ao longo de sua vida profissional. Com base nisso, questionamos os engenheiros professores sobre as formas pelas quais eles têm se adaptado a uma profissão para a qual não foram preparados academicamente.
Conforme vimos, para alguns participantes, a prática docente não é algo novo, visto que já “lecionavam” na adolescência e juventude, quando davam aula de reforço ou cumpriam tarefas semelhantes. Isso explica a vocação ou o dom que dizem ter para o desempenho dessa atividade. Apesar disso, todos comentaram limitações que tiveram (ou têm) com relação ao trabalho pedagógico, como dúvidas quanto a planejamento, seleção dos conteúdos, elaboração do material didático e das avaliações, dificuldades de relacionamento com alunos, controle da sala de aula, dentre outras.
Entretanto, o que chamou a atenção nos relatos foi a disposição dos entrevistados para refletirem sobre as suas práticas com o objetivo de melhorá-las. Nesse quesito, selecionamos as narrativas de Lucas, Estela e Marcondes como exemplos.
Inicialmente, o desafio de me apresentar para uma turma me deixava nervoso. Contei com uma ajuda [de colegas] logo quando assumi. (...) Quando eu assumi diretamente a sala de aula, então... observando a didática dos demais professores, a gente vai aprendendo um pouco. Eu fui aluno. Eu tive 20 anos estudando em sala de aula. A gente observa os professores dando aula e a gente se espelha nos nossos mestres. Eu sempre gostei de dar aulas e eu ia aprendendo a didática dos professores. Daí, a gente vê o que é certo. Foi nisso que eu me espelhei para compor minha personalidade como professor. Dificuldades eu encontro, às vezes, mas a gente sempre está aprendendo. Eu cheguei até a comprar DVDs sobre como dar palestras, para poder dar aula. (Lucas).
Quando eu vim aqui para [instituição], eu achava que eu iria ter uma formação, porque era diferente da escola do estado [onde deu aulas de Matemática]. Aqui é outro nível. (...) Eu nunca tinha ensinado numa turma de Construção Civil. Sempre tive dificuldade para planejar aulas. (...) Aqui tem prazo para dar aula, corrigir provas, devolver aos alunos... eu sinto muita dificuldade nesta parte de planejar, de preparar a aula, de relacionar... Mas, eu fui sempre de procurar melhoras. Então, eu comecei a procurar ajuda. (...) Recentemente, fiz vários cursos numa oficina que teve na [nome de outra instituição], no programa de aperfeiçoamento do professor. (...) Agora, o que estou percebendo é que esses conhecimentos da docência fazem muita falta. Eu descobri, nessas oficinas, que eu estava exigindo muito dos meus alunos. (...) Antes eu fazia avaliações com todas as questões dissertativas e queria que o aluno descrevesse tudo! Às vezes, ele escrevia quase tudo e eu já tirava nota dele... (Estela).
Ensinar não é só passar informações. De início, eu só passava informações. A gente vê que isso é um reflexo dos nossos professores universitários, porque, na Engenharia, a maioria dos professores também são engenheiros (...) e isso acaba refletindo também no ensino. Então, quando a gente vai para a sala de aula, a gente é a réplica desse pessoal. (Marcondes).
As narrativas dos entrevistados demonstram a preocupação deles em aprender a ensinar. Para isso, avaliam-se, analisam criticamente suas práticas, refletem sobre suas limitações e erros, trocam experiências com colegas com mais tempo de trabalho, realizam cursos de capacitação, adquirem materiais didáticos, pesquisam, recorrem às lembranças das aulas dos seus antigos professores. Na falta de uma preparação pedagógica, aprendem com erros, acertos, testagens, cópias, seleções de procedimentos em que obtiveram êxito.
De todas essas estratégias, uma merece uma discussão em particular: a reprodução de modelos dos seus antigos professores. Quanto a isso, observa Marcelo García (2009b, p. 116): “a docência é a única das profissões em que os futuros profissionais se veem expostos a um maior período de observação não dirigida em relação às funções e tarefas que desempenharão no futuro”. Essa aprendizagem por observação “vai penetrando, de forma inconsciente, nas estruturas cognitivas - e emocionais - dos futuros professores, chegando a criar expectativas e crenças difíceis de eliminar” (Marcelo García, 2009a, p. 15). Portanto, não é de se estranhar que, para um dos entrevistados, é comum se tornarem “réplicas” dos docentes pelos quais passaram na sua formação universitária.
O ensino apenas como transmissão de conhecimentos de que fala Marcondes revela a influência da filosofia positivista nas escolas de Engenharia. Para Bazzo (2011, p. 87), “neste modelo, o professor, detentor do conhecimento, é o centro de onde se irradiam todas as ações em sala de aula. (...) Dele também se espera uma reprodução limpa e precisa das formulações canônicas”. O repasse de conteúdos
adquire para o aluno um caráter hermético, quase dogmático, não possibilitando sequer uma abertura para discussões estruturantes, tão fecundas para o desenvolvimento da criatividade. Assim, conceitos transformam-se em leis, e ensino, em regras de procedimentos” (Bazzo, 2011, p. 88).
Logo, malgrado o fato de os entrevistados procurarem se atualizar e aperfeiçoar suas práticas, há sempre o risco de reproduzirem um tipo de ensino apático, frio, com formulações prontas e impeditivas de trocas de conhecimentos entre docentes e discentes, o que vai de encontro às práticas que devem ter na EPT:
(...) o professor da educação profissional deve ser capaz de permitir que seus alunos compreendam, de forma reflexiva e crítica, os mundos do trabalho, dos objetos e dos sistemas tecnológicos dentro dos quais estes evoluem; as motivações e interferências das organizações sociais pelas quais e para as quais estes objetos e sistemas foram criados e existem; a evolução do mundo natural e social do ponto de vista das relações humanas com o progresso tecnológico; como os produtos e processos tecnológicos são concebidos, fabricados e como podem ser utilizados; métodos de trabalho dos ambientes tecnológicos e das organizações de trabalho. Precisa saber desenvolver comportamentos proativos e socialmente responsáveis com relação à produção, distribuição e consumo da tecnologia. (Machado, 2008, p. 18).
Mesmo havendo uma probabilidade da reprodução de modelos pedagógicos conservadores, os relatos denotam o caráter de reflexividade que esses engenheiros docentes têm sobre suas práticas. Podemos percebê-lo mediante a noção de professor reflexivo, a qual considera que os profissionais professores aprendem com a análise e a interpretação da sua própria atividade (Schön, 2000). Por isso, arriscamo-nos em afirmar, com base em Ramalho, Beltrán Nuñes e Gauthier (2003), que esses professores, aos poucos, afastam-se de um modelo formativo hegemônico, pautado no racionalismo técnico e na formação academicista e tradicional, para outro modelo formativo emergente alicerçado na reflexão, na pesquisa e na crítica.
O cotidiano escolar oportuniza experiências, nem sempre positivas, mas propulsoras de reflexões e crescimento pessoal. Um dos engenheiros lamenta uma situação que viveu no seu primeiro dia de aula: teve de expulsar um aluno “problemático” da sala. Contudo, fica clara a autoavaliação que emerge no seu discurso ao tratar desse fato:
Foi uma decisão que fiquei pensando: no primeiro dia de aula, vou ter que colocar um aluno para fora? Mas, pensei: se eu não fizer isso agora, como será que esses outros alunos vão me ver nos próximos dias? Foi uma situação em que eu tive que impor a minha autoridade. (Rodolfo).
A preocupação de Rodolfo em impor sua autoridade tem relação com o poder que sua nova profissão adquiriu no decorrer da história. Tradicionalmente, o professor determina as ações dos alunos e estes legitimam esse poder passado de geração a geração. Ao docente, “(...) autorizado a impor a recepção e a controlar a inculcação através das sanções socialmente garantidas, a instituição confere (...) uma autoridade estatutária” (Bourdieu; Passeron, 1992, p. 122, grifo dos autores).
Entretanto, esse poder não é apenas reproduzido, mas também questionado pelos alunos e pelos próprios professores. A reflexão de Rodolfo sobre a sua ação de expulsar o aluno indica, além da justificativa de manter um poder que foi outorgado à sua profissão, um arrependimento, uma avaliação negativa do fato, um momento de autoformação.
Por fim, os relatos dos engenheiros professores, sobretudo o de Estela, deixam revelar a pouca (ou nenhuma) formação acadêmica para lecionar na EPT, o que não nos surpreende, uma vez que, historicamente, as iniciativas do governo brasileiro na formação de docentes para atuar na EPT foram parcas e descontínuas. Não raro, essas ações aconteceram por meio de cursos de curta duração, alguns classificados como “especiais” (Machado, 2008; Moura, 2008; Oliveira, 2010). Atualmente, mesmo com a forte expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, as iniciativas ainda são tímidas e poucos são os cursos superiores de licenciatura que possuem, nas suas matrizes curriculares, disciplinas voltadas para a formação de professores para atuar nessa modalidade de ensino.
Considerações finais
A pesquisa teve como objetivo precípuo conhecer as trajetórias de formação e as práticas de engenheiros que se tornaram professores e que lecionam em cursos técnicos do IFRN, campus Mossoró.
Embora cada um tenha percorrido um caminho próprio, as razões que levaram os entrevistados à Engenharia são parecidas: a preferência pelas ciências exatas, as experiências anteriores em cursos técnicos, a crença na inserção fácil no mercado de trabalho, as influências familiares, dentre outras. Já a entrada na carreira docente se deu fortuitamente, sem um planejamento, apesar de alguns ressaltarem o “dom” que sempre tiveram para lecionar.
No que diz respeito às práticas que desenvolvem em sala de aula, os relatos dos engenheiros professores denotam que estes aprendem a ensinar por meio de um processo que não é de curta ou de média duração, mas um continuum (Marcelo García, 1997), o que, aliás, também ocorre com professores egressos de cursos de licenciatura. O que distingue os engenheiros dos licenciados é o fato de estes últimos terem passado por um processo de formação para a docência, embora esta não lhes dê todos os subsídios para enfrentar as dificuldades próprias do cotidiano escolar.
Portanto, como quaisquer outros docentes, os engenheiros entrevistados são professores que possuem uma pluralidade de saberes adquiridos ao longo de um processo de formação pessoal e acadêmica, capazes de promover seu crescimento e desenvolvimento profissional, visto que refletem continuamente sobre a prática, fato essencial para a construção da identidade docente. No entanto, malgrado consideremos a importância desse fato, não defendemos que a aprendizagem dessa profissão se dê apenas por meio das experiências cotidianas, dos interesses individuais, dos erros e dos acertos. O professor é um profissional e, como os demais, deve passar por um processo de formação específico, mesmo que o conhecimento ali obtido não seja absoluto, acabado, mas um entre tantos outros que ocorrerão no decorrer da vida desse profissional, seja ele licenciado ou bacharel.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2017
Histórico
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Recebido
07 Ago 2016 -
Aceito
29 Nov 2016