Resumo:
Trata-se de uma pesquisa-ação colaborativo-crítica desenvolvida em uma escola municipal de ensino fundamental de Vitória (Espírito Santo). A investigação é um desdobramento do projeto “Observatório Nacional de Educação Especial: estudo em rede nacional sobre as salas de recursos multifuncionais nas escolas comuns”, cujo objetivo foi promover formações continuadas com professores com ênfase na inclusão de estudantes público-alvo da educação especial nas escolas por meio de práticas pedagógicas inclusivas. Fundamenta-se nas concepções de Meirieu (2002, 2005), que defende a educação para todos e os investimentos na formação docente. Aplica, como procedimentos teórico-metodológicos, a observação do trabalho pedagógico no cotidiano escolar, os momentos de formação, a colaboração nas atividades de classe e as entrevistas semiestruturadas. Os dados, produzidos entre março e outubro de 2015, conduzem ao entendimento de que os momentos de formação continuada são espaços-tempos propícios para problematizar as práticas pedagógicas e o uso de laudos médicos como elementos que podem induzir à rotulação dos discentes como sujeitos não propensos à aprendizagem, culminando na negação do direito à educação. As formações desafiaram os professores à pesquisa, ao estudo, à desconstrução de verdades cristalizadas sobre os alunos e à busca por novas alternativas de ensinar a todos.
Palavras-chave: ambiente educativo; educação inclusiva; formação continuada do professor.
Abstract:
This article presents a critical-collaborative action research, developed in a Brazilian municipal school of basic education at Vitória, Espírito Santo. The investigation derives from a project named “National Observatory of Special Education: a national network study of the performance of multifunctional resources rooms”, aiming to promote the continuing education of teachers with emphasis on the inclusion of those students target-audience of special education in schools through inclusive pedagogical practices. It is based on Meirieu’s conceptions (2002, 2005), which advocates for an education for all and the investment in teacher formation. Theorical-methodological procedures adopted where the observation of the pedagogical work in the daily school life, training situations, collaboration in classroom activities, and semi-structured interviews. Data raised between March and October of 2015 led to the conclusion that moments of continuing education are temporal-spaces suitable to problematize pedagogical-practices and the use of medical reports as stigmatizers of learners as unfit for learning, ultimately leading to the withholding of their rights to education. The formation challenged teachers to research, study, and de-construct ingrained beliefs about the students and to search for new ways to teach all.
Keywords: continuing teacher formation; educational environment; special education
Resumen:
Es una investigación-acción de colaboración crítica desarrollada en una escuela primaria municipal en Vitória-ES. La investigación es una ramificación del proyecto “Observatorio Nacional de Educación Especial: un estudio sobre una red nacional sobre el funcionamiento de las salas de recursos multifuncionales”, cuyo objetivo era promover la formación continua con los docentes con énfasis en la inclusión de los estudiantes destinados a la educación especial en las escuelas por medio de prácticas pedagógicas inclusivas. Se basa en los conceptos de Meirieu (2002, 2005), que defiende la educación para todos y las inversiones en la formación del profesorado. Aplica, como procedimientos teórico-metodológicos, la observación del trabajo pedagógico en la rutina escolar, los momentos de formación, la colaboración en las actividades de clase y las entrevistas semiestructuradas. Los datos, producidos entre marzo y octubre de 2015, permiten comprender que los momentos de educación continua son espacios propicios para problematizar las prácticas pedagógicas y el uso de informes médicos como elementos que pueden inducir el etiquetado de los estudiantes como sujetos no propensos al aprendizaje, que culmina en la negación del derecho a la educación. La capacitación desafió a los maestros a investigar, estudiar, deconstruir verdades cristalizadas sobre los estudiantes y a buscar nuevas alternativas para enseñar a todos.
Palabras clave: ambiente educativo; educación inclusiva; formación continua del profesorado
Introdução
Nas últimas três décadas, tem sido notória a dedicação de pesquisadores e profissionais da educação básica em relação aos encaminhamentos das políticas educacionais voltadas à escolarização de alunos da educação especial. É de conhecimento público que a Constituição Federal do Brasil de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) promulgaram a necessária matrícula desses estudantes em escolas comuns, com a prerrogativa da garantia ao atendimento educacional especializado (AEE), à permanência nos espaços-tempos escolares e ao direito de aprender por meio de currículos mais abertos e acessíveis.
Essa inclusão não é uma tarefa fácil para os cotidianos escolares, pois, muitas vezes, os pressupostos dela se conflitam com currículos pensados sob a lógica do controle social, por exemplo, quanto a conhecimentos atrelados a avaliações de larga escala; práticas de ensino (sumariamente) desenvolvidas para padrões de aprendizagem; hierarquizações entre professores e alunos; ações pedagógicas solitárias; concepções positivistas de avaliação; e pouca familiaridade com a diversidade de alunos em sala de aula.
Os conflitos entre os pressupostos da inclusão de estudantes público-alvo da educação especial e as práticas organizativas das escolas têm demandado o fomento de políticas públicas que, entre as várias ações necessárias, prevejam os investimentos na formação de professores. Como afirma Nóvoa (1999), as circunstâncias vivenciadas pelos professores em sala de aula são reais e os convidam a buscar outras/novas lógicas de ensino; por isso, demandam perspectivas de formação que articulem a análise crítica do vivido em sala de aula com as teorizações que defendem o direito à aprendizagem.
O anseio por produzir conhecimentos sobre a formação de professores em diálogo com os desafios de se pensar uma escola para todos está presente nas obras de Philippe Meirieu (2002, 2005). Nesse viés, o presente artigo articula os seguintes arcabouços: i) as contribuições teóricas de Meirieu para a formação de professores; ii) os pressupostos da inclusão de alunos público-alvo da educação especial; e iii) o estudo desenvolvido em uma escola de ensino fundamental da rede municipal de Vitória (Espírito Santo), que integra um conjunto de ações do “Observatório Nacional de Educação Especial: estudo em rede nacional sobre as salas de recursos multifuncionais nas escolas comuns1”, visando à constituição de práticas pedagógicas inclusivas.
Nos últimos anos, o Ministério da Educação implementou políticas públicas educacionais com o objetivo de fortalecer o direito à educação para os estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Entre elas, o Programa Sala de Recursos Multifuncionais para a oferta do atendimento educacional especializado. Entre 2005 e 2009, foram criadas 15.551 salas de recursos multifuncionais, em 4.564 municípios brasileiros, para a complementação/suplementação dos processos de ensino-aprendizagem desses alunos.
Foi nesse contexto que surgiu o Observatório Nacional de Educação Especial (Oneesp), com o propósito de avaliar as ações desse programa. Para isso, o Observatório envolveu na pesquisa 66 municípios em 17 estados brasileiros, além de 23 pesquisadores docentes de instituições de ensino superior, de natureza pública.
O termo ‘Observatório’ tem sido usado para denominar uma rede formada por parceiros colaborativos que se unem com a perspectiva de produzir evidências científicas que embasem a definição de prioridades e estratégias de pesquisa e formação, que permitam fazer o acompanhamento de progressos, identificam as barreiras e promovem os avanços, além de ser potencialmente um veículo poderoso de intercâmbio e formação para todos os envolvidos (Mendes, 2010, p. 27).
No decorrer do estudo, o Oneesp reuniu, em grupos focais, professores atuantes em salas de recursos multifuncionais para discutir: i) os processos de identificação dos alunos para encaminhamento ao atendimento educacional especializado; ii) o trabalho pedagógico realizado nas salas de recursos multifuncionais; e iii) a formação dos professores para atuar nesses espaços-tempos e atender às especificidades de aprendizagem dos discentes.
Entre os desdobramentos da pesquisa em rede, destacam-se outros estudos, como as publicações de Anache e Escobar (2012) e Anjos et al. (2014), que tratam da importância de espaços-tempos para atendimento às especificidades de aprendizagem dos alunos em articulação com a classe comum. Discutem também sobre a necessidade de processos de identificação que não rotulem os estudantes e, ainda, sobre investimentos na formação dos educadores para que o atendimento educacional especializado não substitua o trabalho pedagógico da classe comum, e sim atue de modo complementar/suplementar ao currículo escolar.
No estado do Espírito Santo, além dos tópicos discutidos pelos grupos focais, houve momentos de formação na universidade e nas escolas em que os professores atuavam, resultando em outras publicações, como os estudos de Nascimento (2013), Borges (2014) e Vieira (2015a). No fluxo dessa produção, realizamos a pesquisa que origina os dados deste artigo e que, em diálogo com as teorizações de Meirieu (2002, 2005), aponta contribuições para pensarmos a formação de professores na composição de práticas pedagógicas inclusivas.
Este texto apresenta primeiramente a trajetória acadêmico-profissional de Meirieu; em seguida, discorre sobre as contribuições teóricas do autor para a formação continuada de professores a partir das obras A Pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de recomeçar (2002) e O cotidiano da escola e da sala de aula (2005). Prossegue com as ações metodológicas para a constituição dos dados, a realização da pesquisa na escola e, por último, com os resultados alcançados.
Trajetória acadêmico-profissional de Philippe Meirieu e os pressupostos da educação inclusiva
Philippe Meirieu formou-se em Filosofia, Letras e Ciências da Educação e fez doutorado em Letras e Ciências Humanas. Exerceu a docência em todos os níveis de ensino, ocupou a função de diretor do Instituto das Ciências e Práticas de Educação e de Formação da Universidade Lumière-Lyon 2 e participou da criação dos institutos universitários de formação de professores e do conselho nacional dos programas.
Presidiu o Comitê da Organização da Consulta e do colóquio “Que saberes ensinar nos liceus”, na sequência dos quais ocorreu a reforma dos Liceus, hoje, desmantelada. Também dirigiu o Instituto Nacional de Investigação Pedagógica, concluindo, em 2006, seu mandato de diretor do Instituto Universitário de Formação de Professores da Academia de Lyon, retornando à atividade docente na universidade. É ainda responsável pedagógico pela cadeia de televisão para a educação Cap Canal e dirige a coleção “Pedagogias”, produzida por uma renomada editora francesa.
Trata-se de um pesquisador interessado pela Ciência da Educação e pela Pedagogia, que considera os processos de ensino e de aprendizagem elementos intrinsecamente relacionados com a criação de vínculos entre as pessoas e o contexto social, defendendo investimentos na formação dos profissionais da educação. Depois de anos lecionando na formação de professores e produzindo conhecimentos sobre a escola, assumiu a docência novamente na educação básica francesa, por acreditar que:
[...] uma coisa é poder, de tempos em tempos, ‘mergulhar’ nas realidades cotidianas do ensino primário e secundário, ouvir os professores falarem de seu trabalho e estar atento às suas preocupações, ler os levantamentos e os testemunhos que são publicados; outra coisa é ver-se confrontado dia após dia com os alunos de uma sala de aula, manter-se durante um ano escolar fiel às suas convicções, enfrentar no dia-a-dia as restrições inerentes à vida de um estabelecimento escolar... Por isso, creio ser necessário reassumir um compromisso no ensino secundário, e escolher, para isso, um estabelecimento considerado ‘difícil’, na aglomeração suburbana [...], onde resido (Meirieu, 2002, p. 9-10).
Ao retomar a docência em uma escola profissionalizante no ensino da língua francesa, enfrentou vários obstáculos e preconceitos para a concretização desse desejo. Essa experiência adensou as reflexões que produzia sobre o trabalho educacional, situando a educação como uma ação ética que ajuda a forjar nos alunos pensamentos sobre como o conhecimento os inclui e os exclui da vida em sociedade. Por isso, argumenta que o professor precisa assumir o conhecimento como instrumento de trabalho, isto é, dominar os conteúdos e as ações metodológicas para torná-los acessíveis aos estudantes. Nesse sentido, ele:
[...] não pode ser nem um prático puro, nem um teórico puro. Ele está entre os dois, ele é esse entremeio. O vínculo dever ser, ao mesmo tempo, permanente e irredutível, pois o fosso entre a teoria e a prática não pode subsistir. É esse corte que permite a produção pedagógica (Meirieu, 2002, p. 30).
As experiências profissionais e acadêmicas de Meirieu colaboraram com a produção de várias obras, destacando-se: Frankenstein Educador (1996); Aprender sim, mas como (1998); A Pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de recomeçar (2002); O cotidiano da escola e da sala de aula (2005); e Cartas a um jovem professor (2006). Com isso, é reconhecido como defensor de escolas mais inclusivas, por acreditar que as instituições escolares devem ser entendidas como espaços-tempos capazes de colaborar com a ascensão pessoal e profissional dos estudantes, independentemente das trajetórias e das condições de vida desses sujeitos.
Nessa perspectiva, as obras de Meirieu (1996, 1998, 2002, 2005, 2006) vão ao encontro dos pressupostos dos movimentos sociais que defendem, entre outras pautas: a escola como espaço-tempo de todos; o reconhecimento da diversidade e da diferença como condição intrínseca ao desenvolvimento humano; e o Estado como entidade responsável por reorganizar os espaços sociais e escolares para que todos os estudantes tenham garantido o direito à educação, e os professores, às oportunidades de formação inicial e continuada. Para o autor, defender uma escola inclusiva significa assumi-la como uma instituição aberta a todos (Meirieu, 2002).
Contribuições de Meirieu para a formação de professores
Mediante o desafio da constituição de escolas mais inclusivas, muitos professores se ressentem da falta de escopo teórico-prático para mediar percursos de aprendizagens de sujeitos que apresentam especificidades nos cotidianos escolares. Por isso, os processos de formação de professores têm a tarefa de forjar profissionais capazes de compreender a importância do conhecimento na composição de novos/outros modos de existência e de criar alternativas para se pensar em sociedades mais democráticas e abertas a acolher a diversidade como potência humana (Meirieu, 2002, 2005).
Para Meirieu (2002, 2005), investir na formação do professor, assumindo-o como intelectual crítico e reflexivo, é investir na aprendizagem discente. Sua abordagem teórica se apresenta como possibilidade de se analisar a educação como importante atividade humana atrelada a teorias socioculturais de desenvolvimento psicológico. Para tanto, a formação de professores precisa caminhar no sentido de proporcionar aos docentes contínuas possibilidades de inter-relações entre o que vivenciam em sala de aula e a construção histórica do conhecimento humano (com destaque para o que foi produzido na área educacional).
Estudos como o de Jesus, Barreto e Gonçalves (2011) e de Gatti (2013) também problematizam como a formação que desobriga o direito de o professor aprender e estudar leva esse profissional a conviver com relações de dependências com os outros, a executar atividades didáticas desconectadas de currículos que precisam ser vividos e praticados com estudantes concretos, e a se desempoderar, tendo em vista não poder exercitar a inventividade, o exercício crítico, a criatividade e a curiosidade epistemológica.
Diante disso, Meirieu (2002, 2005) defende que os momentos de formação continuada precisam ser configurados como experiências de estudo e de crescimento profissional. Neles, os docentes devem ter o direito de aprofundar seus saberes teóricos e suas práticas, de maneira dialógica com cada cenário de aprendizagem que os espera na escola. Por isso, a relação entre teoria e prática prima por melhores condições para que os docentes enfrentem os desafios existentes nas salas de aula heterogêneas; esse é um caminho possível para se criar vínculos com abordagens teóricas que apontam as intrínsecas relações entre os conhecimentos, as pessoas, a sociedade e o desenvolvimento humano.
Em A Pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de recomeçar (Meirieu, 2002), o autor cita Albert Thierry, um jovem professor francês libertário que, em 1905, aos 24 anos de idade, formado pela Escola Normal de Saint-Cloud, se preparava para ensinar em escolas primárias superiores francesas. Ao ser nomeado, assumiu a responsabilidade de uma “classe difícil”, como se diria hoje, repleta de estudantes sem muito interesse pela cultura com que o apaixonado professor procurava brindá-los. Eram sujeitos cujas trajetórias escolares desafiavam os saberes, as ações e as certezas pedagógicas do docente.
Entre os alunos, conheceu Marcel Moreno, que o desafiava a lidar com alguém que não via sentido no que era ensinado na escola, mas que tinha o direito de aprender.
É desse modo que Thierry, ideólogo idealista por excelência, descobre de súbito ‘o Marcel moreno’, que não é qualquer aluno; não é o outro Marcel, ‘o loiro’, mas é aquele que não sabe concordar os particípios passados, que tem um irmão com o qual mantém relações estranhas; o ‘Marcel moreno’ é um ser determinado, materializado, que Thierry conhece bem, cujo rosto não se confunde em uma massa anônima, mas invoca uma pessoa às voltas com uma situação particular, uma pessoa que o interrompe, não porque sua atitude invalida o discurso do professor, mas porque seu sofrimento não pode permitir-lhe continuar a fazer prevalecer indefinidamente sua própria satisfação magistral (Meirieu, 2002, p. 58).
Essa assertiva evidencia que muitos professores lidam com estudantes com trajetórias escolares próximas à de Marcel Moreno, que desestabilizam os educadores e os colocam diante do dilema: como atrair esse sujeito para os círculos das aprendizagens? Meirieu (2002) chama atenção para aqueles estudantes que recusam, ignoram, contestam, rejeitam o que lhes é proposto. Sobre isso, problematiza: será que podemos dizer que nunca experimentaremos essa resistência? Para esses questionamentos, responde que:
[...] seria imaginar que nunca haverá um acontecimento que venha a perturbar o percurso escolar do aluno, seria reduzir o aluno a um ‘segmento escolar’ que, mediante condições bem pensadas, milagrosamente se tornaria disponível às propostas imaginadas para ele por um professor generoso... seria, de fato, criar o impasse do contato educativo que, no entanto, pretende-se promover (Meirieu, 2002, p. 59).
Fundamentados em Meirieu (2002, 2005), os estudos de Nascimento (2013) e Borges (2014) referendam que muitos alunos - como Marcel Moreno - fazem parte da escola e que essa realidade suscita a importância de se instaurar espaços-tempos de formação contínua dedicados a: investigar a história de vida e de escolarização dos estudantes; promover a análise crítica das especificidades dos discentes na vida estudantil; compor estudos de caso e ações solidárias entre docentes comuns e equipes de apoio, reconhecendo que esses movimentos são fluxos de processos de formação continuada, alimentados pela inseparável relação entre teoria e prática.
O encontro entre professores e estudantes diversos que não se ajustam a certas ações didático-pedagógicas adverte sobre o quanto as políticas de formação docente precisam ajudar os profissionais da educação a compreenderem os fundamentos teóricos da pedagogia diferenciada. Para Meirieu (2002), a pedagogia diferenciada reconhece que o acesso aos princípios fundamentais da cidadania por todos os alunos demanda a composição de itinerários didáticos mais específicos e comprometidos em tornar os conhecimentos acessíveis aos estudantes, sem, com isso, diferenciar para excluir ou “guetizar” e/ou adaptar atividades/estratégias de ensino para tornar o currículo mínimo aos alunos considerados também mínimos para muitas escolas.
De acordo com Meirieu (2002, 2005), a adoção da pedagogia diferenciada se desvela no momento em que o professor desenvolve certa solicitude para com os alunos que o desafiam; em outras palavras, quando reconhece a legitimidade desses sujeitos e o impacto do conhecimento em novos modos de existência e de significação de si e da sociedade da qual fazem parte. Em educação especial, isso implica abrir-se ao outro, colocar-se em estado de aprendizagem e acolher os desafios como motores de novas práticas e momentos formativos. Esses movimentos são vividos por aqueles que reconhecem o outro como alguém de direito, de conhecimentos e capaz de compor os próprios estilos de vida por meio das relações que estabelece com o conhecimento.
As teorizações de Meirieu (2002) acenam para a inseparável relação entre a solicitude e a obstinação didática, pois o professor, ao conviver com trajetórias diferenciadas de aprendizagens, se mostra aberto para reconhecer os estudantes como legítimos e a aprendizagem como constitutiva do ser humano. Encontra pistas para desenvolver ações didáticas que apontem recursos, estratégias, agrupamentos discentes, redes de apoio, ações colaborativas e atendimentos mais individualizados para atender às diferentes trajetórias de aprendizagem.
Assim, entende-se por obstinação didática os movimentos produzidos pelos professores para (re)planejar e (re)articular as condições mais favoráveis para motivar os processos de ensino-aprendizagem, respeitando as áreas de interesse dos alunos, despertando, simultaneamente, vontades e desejos por outros ensinamentos (Meirieu, 2002). Por isso, a correlação entre ensino e pesquisa são eixos importantes da formação docente, pois promovem a interligação entre teoria e prática e contribuem para os professores vivenciarem na escola momentos pedagógicos, definidos por Meirieu (2002) como o instante em que o professor se depara com o aluno concreto, que lhe exige um novo olhar sobre a prática pedagógica. É o momento em que o docente é levado, pela exigência daquilo que ensina e pelo rigor de seu pensamento e dos conhecimentos que medeia, a perceber um aluno que lhe impõe um recuo que nada tem de renúncia, não abrindo mão de ensiná-lo (Meirieu, 2002).
As políticas de formação de professores precisam subsidiar os docentes a criarem possibilidades de vivenciar esses momentos pedagógicos em salas de aula heterogêneas, fazendo dos desafios educacionais oportunidades de estudo e de aperfeiçoamento da prática pedagógica. Cabe ressaltar que esta não se constitui por meio de receitas ou de prontuários, mas por incansáveis imersões na trajetória dos alunos existentes em sala de aula, na ação responsável pelo que é selecionado para ensinar e na busca por estratégias didático-pedagógicas que façam o conhecimento se tornar cognoscível a outro diferente de nós.
Ações metodológicas para a constituição dos dados da pesquisa
A fim de articular as contribuições de Meirieu (2002, 2005) com propostas de formação continuada, visando à inclusão de alunos público-alvo da educação especial, realizamos uma pesquisa-formação em uma unidade de ensino fundamental da rede municipal de Vitória como desdobramento do Oneesp.
No Espírito Santo, o Oneesp envolveu dez redes de ensino e foi organizado em duas fases: a primeira, por meio de 11 grupos focais, com a participação de 139 professores de educação especial; a segunda, por meio de 15 encontros de formação na universidade, envolvendo 52 professores interessados, a partir de uma proposta curricular pensada com eles, com base nas experiências vividas nas escolas e em diálogo com diferentes aportes teóricos.
Entre as atividades previstas para a segunda fase, os participantes precisavam fomentar momentos de formação continuada com a unidade de ensino em que atuavam e realizar ações pedagógicas com os docentes da classe comum. Diante disso, acompanhamos e colaboramos com uma professora de educação especial da rede municipal de Vitória no cumprimento dessas atividades.
O estudo realizado na escola e que deu origem a este texto compreendeu o período de março a outubro de 2015, sendo os dados coletados nas segundas, quartas e sextas-feiras, no turno matutino. Teve como eixo central a promoção de encontros de formação continuada e a articulação de intervenções pedagógicas colaborativas com os professores de classes comuns que contavam com a matrícula de estudantes público-alvo da educação especial, precisamente, aqueles que atuavam em uma turma do 1º ano e outra do 4º ano do ensino fundamental, além da equipe do atendimento educacional especializado.
Foram sujeitos do estudo: i) uma professora do atendimento educacional especializado da área de deficiência intelectual; ii) duas estagiárias de Pedagogia; iii) a coordenadora pedagógica; iv) a docente da turma de 1º ano; e v) três professores que atuavam no 4º ano do ensino fundamental. A turma do 1º ano contava com 23 alunos. Nela estudava Lucas, uma criança com 7 anos, com diagnóstico de autismo e em processo inicial de alfabetização. Na turma do 4º ano, havia 25 alunos e nela estudava Tatiana, que, com 11 anos, ainda não era alfabetizada e tinha diagnóstico de Síndrome de Down.
O processo de pesquisa compreendeu observação do cotidiano escolar, reflexão crítica dos momentos vividos (atividades colaborativas e formação em contexto em diálogo com as teorizações de Meirieu) e entrevistas. Ancorou-se na pesquisa-ação colaborativo-crítica, pois, de maneira articulada, valorizou as interações entre a compreensão da realidade social e a composição de alternativas e os momentos formativos diante dos desafios existentes no campo pesquisado (Pimenta, 2005).
Como instrumento de registro, utilizamos o diário de campo, bem como a gravação dos momentos de reflexão crítica (formação e trabalho colaborativo) e das entrevistas. A secretaria municipal de educação, a gestão da escola e os professores autorizaram o estudo, cujos participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
A pesquisa-formação na escola: a formação continuada e a articulação de ações pedagógicas
Começamos o processo de pesquisa observando as duas turmas das quais os alunos faziam parte. Em ambas, identificamos, na atuação dos professores, concepções de aprendizagem baseadas em perspectivas biologizantes.
O aluno Lucas chegara da educação infantil. Já no 1º ano do ensino fundamental, era comum aos docentes sinalizarem que ele passaria de ano em virtude do laudo médico. Tatiana estava prestes a concluir a primeira fase do ensino fundamental sem ser alfabetizada; ambas as situações pareciam não produzir estranhamento nos professores.
Ele tem laudo. É da Educação Especial. Não acompanha a turma. Não consegue ler e escrever. Já estamos no segundo semestre e ele só dá conta de atividades mais simples. Ele pinta, desenha e reconhece algumas letras (Professora do 1º ano).
A Tatiana é uma criança muito esperta. Tem síndrome de Down e está no 4º ano do Ensino Fundamental. Passou por muitos descuidos. Foi criada, por certo tempo, pela mãe, que tem problemas com alcoolismo. Chegava contando várias coisas que a mãe fazia. Agora está sobre [sic] a guarda do tio, que tem muito cuidado com ela. É uma gracinha. O tio tem a maior coisa com ela. Ela ainda não foi alfabetizada, mesmo sendo nossa aluna desde o 1º ano. Sempre passa de ano em função do laudo (Professora de Educação Especial). (Vieira, 2015a, p. 256)
Para o desenvolvimento de ações pedagógicas, era preciso analisar os modos como esses alunos tinham seus processos de escolarização interpretados pela escola. Em um dos momentos de formação continuada, já previsto em calendário escolar, fomos convidados a problematizar os princípios da educação especial em uma perspectiva inclusiva na interface com pressupostos teóricos das concepções curriculares. Para isso, sob as concepções de Meirieu (2002, 2005), discutimos a importância de se elaborar currículos mais abertos e com uma abordagem crítica e comprometida com a aprendizagem de todos.
Refletimos com os professores sobre o quanto, costumeiramente, adotamos os diagnósticos clínicos para o encaminhamento dos alunos ao atendimento educacional especializado e explicitamos como os laudos médicos vinham sendo utilizados para rotular os discentes como não propensos à aprendizagem. Tivemos, com isso, a oportunidade de apresentar dados do Oneesp sobre a composição de laudos subjetivos, que significavam “laudos do olhar”, ou seja, diagnósticos que recaíam sobre os alunos mediante como os seus modos de ser/estar no mundo eram interpretados pela sociedade, inclusive, a escola.
Nesse contexto, questionamos: como a escola interpreta o processo de escolarização de Lucas e Tatiana? Como uma criança que acabara de chegar à escola (Lucas) já carregava a certeza da não aprendizagem? Incluímos Tatiana no debate, pois ela cursava quase a segunda fase do ensino fundamental e ainda não aprendera a ler e a escrever: os modos como “lemos” as trajetórias de escolarização desses alunos causam implicações ao direito deles de aprender? Esforçamo-nos para fazer os currículos terem sentido para eles? Pensamos em estratégias diferenciadas de ensino-aprendizagem? Como nossos olhares compõem “laudos” que projetam a crença de que eles são ineducáveis?
As discussões sobre os laudos subjetivos, no transcorrer da formação, ganhavam tom de estranhamentos ante as teorizações de Meirieu (2002, 2005), quando o autor chama a atenção dos professores para o fato de que toda ação pedagógica em interface com a diferença/diversidade humana perde seu sentido quando não apostamos na educabilidade dos alunos e na concepção da escola como espaço de todos. O contato com as teorizações do autor subsidiava os docentes a refletir que uma escola que exclui não é uma escola, pois o ambiente escolar só se torna demasiadamente educativo quando se compromete com a aprendizagem de todos (Meirieu, 2002).
É lógico que esses debates não eram desprovidos de problematizações pelos professores, pois muitos ainda resistiam e defendiam as impossibilidades de a escola se constituir inclusiva. No entanto, muitos ficaram incomodados e propensos a analisar os modos como interpretavam a escolarização dos alunos, refletindo acerca do fato de que precisavam mediar os processos de apropriação do conhecimento pelos estudantes, e não das deficiências ou limitações que carregavam. Saíram pensativos sobre como romper com os processos de exclusão que se desenhavam na escola e nas salas de aula. Assim, percebiam a importante preocupação de Meirieu (2002, 2005) em defender que os caminhos de formação precisam ser irrigados pela relação entre teoria e prática, pois a teoria pode arguir a prática e esta interpelar a teoria.
Além dos momentos formativos, prestamos atenção ao trabalho pedagógico da sala de aula comum, começando pela turma de Lucas. Entre as intervenções pedagógicas realizadas e discutidas, uma propiciou momentos de reflexão, tendo como fundamento as teorizações de Meirieu (2002, 2005). Já no início do ano letivo, a professora explicou às crianças os modos de utilizar os cadernos: as linhas tinham o objetivo de receber o que seria escrito (chamava a atenção para o tamanho das letras em detrimento do tamanho das linhas); a margem esquerda como limite para o início dos textos e das lições (sinalizava que escrevemos e lemos da esquerda para a direita); a margem direita como limite para a escrita (quando o aluno atingia a margem direita, deveria usar a próxima linha); e a necessidade de usar o verso da página.
Passadas algumas aulas, apresentou uma atividade assim organizada: folha de papel ofício dividida em duas partes. Na primeira, um retângulo, com as seguintes imagens: boca - pera - sapo - baú - dado - lata; em seguida, a enunciação “pinte os desenhos do quadrado abaixo com cores diferenciadas” (Vieira, 2015a , p. 167). Na segunda, havia outro grande retângulo com pequenos quadrados e cada um deles continha uma sílaba; o enunciado era “utilizando as mesmas cores eleitas para colorir os desenhos, pinte da mesma cor os quadrados que contêm as sílabas que formam os nomes dos desenhos” (Vieira, 2015a, p. 256). Concluída a atividade, os alunos leriam, em voz alta, os nomes formados.
Os estudantes executaram a atividade apoiados pela docente de classe e pela professora de educação especial. Lucas encontrou mais dificuldades, porque conhecia poucas letras do alfabeto. No momento de leitura, os alunos a fizeram com o apoio da regente de classe; no entanto, ao se depararem com as sílabas que formavam a palavra “baú”, leram “ubá”, tendo em vista o primeiro quadrado conter a vogal “u” e depois a sílaba “ba”. A professora prontamente buscou corrigir o “erro” e sinalizou que o correto seria “baú”. Interpelou-nos e perguntou o porquê do erro. Rememoramos as aulas anteriores, quando ela ensinara à classe que “lemos da esquerda para a direita” (Vieira, 2015a , p. 167).
Terminada a aula, refletimos sobre a experiência de aprendizagem com a turma e sobre as contribuições de Meirieu (2002) para o processo. Na sala de recursos multifuncionais, discutimos sobre o quanto o autor defende que classes heterogêneas convidam o professor a se apoiar nos pressupostos da pedagogia diferenciada, pois atividades mais criativas tendem a despertar o interesse dos alunos pelo que lhes é ensinado. Refletimos que a tarefa dificultou que os alunos relacionassem conhecimentos anteriormente mediados com aqueles levados para a classe naquele momento.
Diante do exposto, analisamos coletivamente: por que não começar a trabalhar com o texto propriamente dito? Por que simplificamos o trabalho com a alfabetização no reconhecimento de vogais, sílabas, formação de palavras, para somente depois trabalharmos com a elaboração de textos? Por que não levamos atividades diferenciadas para a classe, já que reconhecemos que os alunos apresentam trajetórias diferenciadas de aprendizagens? Por que Lucas não teve suas especificidades reconhecidas, já que tinha o direito de aprender como todos?
Trabalhamos o conceito de solicitude de Meirieu (2002) para refletir sobre a aposta nas aprendizagens dos alunos e nos pautarmos nos pressupostos da pedagogia diferenciada. Buscando entender a origem da atividade levada para a classe, descobrimos que ela fora reproduzida de uma coletânea de atividades prontas. Recorremos mais uma vez a Meirieu (2002, 2005) para analisar a importância de mediar conhecimentos, visando ao exercício da cidadania, que se efetiva quando a pessoa se vê vinculada aos contextos sociais por meio de conhecimentos emancipatórios, situação que levou os envolvidos na pesquisa a constituírem reflexões sobre a prática docente, como a narrativa da professora de Lucas:
Tem horas que ele fica desligado olhando para um vazio, mas isso não quer dizer que ele não esteja atento. Tem criança que está com o olho vidrado em você e, quando você pergunta o que você falou, ele não sabe dizer. Parece que está todo mundo virando autista! (Professora do 1º ano). (Vieira, 2015a , p. 227)
Essa rede dialógica compôs ricas oportunidades de formação em contexto e permitiu que os profissionais promovessem diálogos entre o vivido e as bases teóricas que defendem o direito à educação, como referendado por Meirieu (2002, 2005) na primeira parte do texto. Indagamos quais correlações havia entre a atividade levada para a classe e o currículo proposto, pois precisávamos ter o cuidado de não simplificar as questões curriculares a atividades desconexas e distantes dos objetivos traçados para a turma.
Exemplificamos o processo de ensino-aprendizagem de Lucas e indagamos: o que ele sabe? Quais as áreas de interesse? Quais os pontos fortes do estudante? O que desperta o interesse dele por aprender? Pouco sabíamos do aluno, ou melhor, sabíamos muito mais sobre ele ante a existência de um laudo que paralisara as práticas pedagógicas. Tratava-se de um conhecimento sobre o outro permeado de impossibilidades. Ponderamos sobre o quanto precisávamos ser mais solícitos em relação à criança para conhecê-la com mais profundidade. Quanto a isso, Meirieu (2002) nos auxilia a pensar sobre profissionais que pesquisam porque querem ensinar, e a entender como essa relação dialética possibilita a formação em contexto.
Essas redes de debates despertaram nos docentes uma sensibilização quanto ao envolvimento dos alunos nas aulas. No transcorrer do estudo, observamos a professora de Lucas adentrar a sala de recursos multifuncionais com vários materiais selecionados e se reportar à professora de educação especial:
Selecionei algumas atividades para as crianças. Fiz conforme você me ensinou. Vi o que iria trabalhar com a turma e busquei por atividades que traziam os conteúdos, mas dentro de um nível de complexidade que as crianças consigam resolver. Quero que você avalie e veja se estou no caminho certo (Professora). (Vieira, 2015a , p. 252)
As atividades exploravam o currículo comum como base para pensar em estratégias para subsidiar a escolarização dos alunos. As docentes buscavam sistematizar para Lucas as atividades de acordo com as possibilidades dele, com foco na alfabetização. Percebíamos que o grupo, tendo conhecimento do que Meirieu (2002) tratava sobre o momento pedagógico, buscava vivenciar essa experiência com a classe heterogênea com a qual trabalhava. Em várias oportunidades, rememoramos o quanto a heterogeneidade da sala de aula precisa ser assumida como parte da vida cotidiana e como esse processo faz o professor compor diferentes arranjos para escolarizar os alunos.
Nem de longe o trabalho pedagógico era fácil para os professores, mas percebíamos o quanto eles faziam tentativas. Em várias situações, havia a sinalização: “[...] não sei o que fazer com ele. Será que ele consegue fazer a atividade? Será que entende?” (Professora) (Vieira, 2015a, p. 239). Aproveitávamos o ensejo para falar de Meirieu (2002), segundo o qual todo ser humano aprende; portanto, deveríamos pensar em condições sempre favoráveis para Lucas aprender e, somente trabalhando com ele, é que descobriríamos o que ele poderia ou não fazer.
Certa vez, assim que os alunos concluíram uma atividade, dedicaram-se a pintar os desenhos. Lucas também assim procedeu. Ao final, as crianças buscaram livros de literatura para ler. Ficamos a observar o aluno e percebemos que ele escolhera a História dos Três Porquinhos. Dele nos aproximamos e pedimos que “lesse” a narrativa, mas fechou os ombros meio que sinalizando: “como?”. Dissemos que, por meio das gravuras, poderíamos contar a história, e assim o fez, mostrando o conhecimento de que a narrativa tinha começo, meio e fim. Apontava os desenhos com os dedinhos e produzia sua narrativa. Percebemos o quanto aquela criança tinha potencial e conhecimentos.
Dialogamos sobre essa passagem com a professora regente e sobre o que Meirieu (2002) chama de obstinação didática. Ela se mostrou curiosa e explicamos que se tratava de uma busca incansável por estratégias de ensino para tornar o conhecimento cognoscível aos alunos. Era perceptível que Lucas tinha interesses e gostava de literatura. Rompia com os prognósticos fechados sobre as pessoas com autismo no sentido de que todas encontram dificuldades na comunicação. Essas reflexões compunham momentos de formação em contexto, aguçando a curiosidade dos professores e pondo em xeque muitas certezas pedagógicas originadas dos laudos clínicos e subjetivos.
Com o desenvolvimento da pesquisa, também demos atenção à classe de Tatiana. Passamos a questionar o pouco estranhamento quanto ao fato de a aluna ainda não estar alfabetizada. A partir de então, realizamos um momento de formação continuada com foco nos processos de alfabetização dos alunos. Estudamos teorias sobre os processos da alfabetização e problematizamos a trajetória de escolarização da estudante, conforme este diálogo realizado com os professores: Nesses poucos meses que temos acompanhado a escola, pudemos conhecer alguns alunos. Ouvimos relatos que narram as dificuldades em trabalhar com as crianças. Mas, para esse momento, quero perguntar a vocês sobre aquela garotinha que tem síndrome de Down. Ela tem uma expertise invejável. Tem excelente discurso verbal, está sempre atenta a tudo que acontece na escola e tem nos mostrado quanto pode aprender. Dia desses, entrou no refeitório e olhou para um professor e disse: ‘-Você não deveria lanchar de boné. É falta de educação’. Essa mesma garotinha ainda não tem noção de leitura e de escrita. Ela está no 4º ano do ensino fundamental e em breve estará indo para a segunda etapa. E aí? Por que não nos preocupamos com ela? Será que ela é incapaz de aprender? Será porque não vemos quanto temos criado uma bola de neve, pois ela não vem acumulando conhecimentos para avançar e vai chegar a um contexto complexo que é o fundamental II? Será que a complexidade da alfabetização está nela ou na falta de um projeto de ensino que dê conta de atender ao seu direito de aprender? (Vieira, 2015b)
Essas provocações foram acolhidas de maneira bem diferenciada entre os professores: uns mais propensos ao diálogo, outros não. Mesmo assim, recorremos a Meirieu (2002) para a reflexão sobre o momento pedagógico. Perguntamos ao grupo se estaríamos abertos a viver esse momento com a aluna, ou seja, a buscar experiências de sucesso. Com o passar dos dias, novas provocações foram realizadas e os profissionais que com ela atuavam começaram a produzir movimentos em favor da alfabetização dela. Passaram a buscar atividades, intervenções e correlações entre os conteúdos levados para a classe com possibilidade de a estudante dialogar com o processo de alfabetização.
De modo nenhum, conciliar o currículo da classe com o processo de alfabetização da aluna era algo tranquilo. Ela estava em processo inicial de apropriação da leitura e da escrita, e os professores relatavam as dificuldades em organizar atividades diferenciadas, além de citar as cobranças para dar conta dos conteúdos da turma e de outros alunos que também demandavam atenções diferenciadas. No entanto, estavam incomodados com o fato de Tatiana não ser alfabetizada. Entendiam que seu processo de escolarização perpassava a crença em sua educabilidade, a adoção da pedagogia diferenciada, o sentimento de solicitude, a obstinação didática e o desafio de viver momentos pedagógicos, como vinha ensinando Meirieu (2002, 2005), no transcorrer da pesquisa na escola.
Essas reflexões eram, de certa forma, percebidas por Tatiana. Certa vez, a própria estudante afirmou à estagiária que queria mostrar aos pesquisadores o que aprendia. Ambas foram à sala de recursos e disseram que desejavam nos mostrar algo, mas que tínhamos que esperar um pouco. A estagiária, eufórica, perguntava à aluna: “Posso chamá-los?”. Ela respondia: “Ainda não. Temos que treinar. Não posso errar. Eu tenho que mostrar que eu aprendi” (Vieira, 2015a, p. 250). Quando autorizados pela aluna, nos dirigimos até as duas, que nos esperavam no pátio da escola.
Nesse ambiente, havia mesas fixas. Em uma delas, encontramos a estagiária, Tatiana e Isabela (outra aluna que estudava na escola). Elas puseram várias fichas sobre a mesa, tendo algumas um desenho e outras as letras do alfabeto. Todas ficavam visíveis. Tratava-se de um jogo cujo comando era: “Pegue uma ficha correspondente a um desenho e, em seguida, selecione a ficha que tem a letra inicial do desenho escolhido”. As alunas jogaram e sinalizaram os nomes dos desenhos e das letras. Em determinada fase do jogo, Tatiana selecionou uma ficha que continha o desenho de um rato. Prontamente pegou a ficha com a letra “R”, sendo indagada pela estagiária: “Que letra é essa?”. Ela respondeu: “O ‘R’”. A estagiária replicou: “O ‘R’ é a letra de quem?”. Sorrindo, a aluna respondeu: “Do rato, mas também da Rosana” (nome da estagiária) (Vieira, 2015a, p. 250).
Em seguida, sobre o “T”, a estagiária fez o mesmo procedimento, e a aluna disse: “Essa é fácil, é do meu nome: Tatiana” (Vieira, 2015a, p. 250). Assim, perpassaram todo o alfabeto. Era interessante observar a atividade, pois, em questão de meses, ela já dominara todo aquele conteúdo que, até então, era desconhecido. Certa hora, tentamos desafiá-la, retomando a letra “R”: “Hoje estou meio esquecido. Qual é o nome dessa letra mesmo?”. Sem rodopios, ela respondeu: “[...] que cabecinha fraca você tem, heim! Não te ensinei que é o ‘R’ do rato e da Rosana?” (Vieira, 2015a, p. 250).
Essa passagem repercutiu na escola. A cada conversa, o episódio surgia para que evidenciássemos as potencialidades da aluna. Relembrávamos as contribuições de Meirieu (2002) sobre a função social da escola e da educabilidade humana. Em uma oportunidade, a docente de educação especial também problematizou o fato com os demais regentes e disse: “[...] desde que Tatiana percebeu que na escola tem alguém falando de aprendizagem e buscando evidenciar que ela aprende, ela não tem perdido tempo; tem mostrado o quanto aprende e o quanto precisa ser ensinada” (Vieira, 2015a, p. 251). Assim, as teorizações de Meirieu (2002, 2005), em diálogo com as questões que atravessavam o processo de escolarização dos alunos, iam compondo momentos de formação continuada e, de certa forma, contagiando também os estudantes que precisavam afirmar o quanto sabiam e podiam aprender.
Considerações finais
Os diálogos entre as teorizações de Meirieu (2002, 2005) e a pesquisa realizada na escola, desdobramento do Oneesp, nos permitiram refletir sobre a formação dos docentes para desenvolver práticas pedagógicas inclusivas. A formação continuada de professores, na relação entre teoria e prática, se mostra como uma ação potente para a constituição de práticas pedagógicas comprometidas com o direito à educação, bem como para o adensamento dos saberes-fazeres docentes.
Por meio dos processos formativos, os docentes da escola pesquisada depreenderam que atividades mais criativas despertam o interesse dos alunos pelo ensino, sendo necessário analisar os modos como os alunos têm seus processos de escolarização interpretados. Para tanto, se perguntam sobre os porquês da não aprendizagem de Lucas e de Tatiana, buscando novos sentidos para os currículos escolares e as estratégias diferenciadas de ensino-aprendizagem.
A pesquisa aponta o quanto nossos olhares compõem “laudos” que projetam a crença de que os alunos são ineducáveis, pois se trata de conhecer um outro permeado de impossibilidades. Diante disso, compreendemos que é importante apostar na educabilidade e na concepção da escola como espaço de todos, contexto que nos leva a pensar que mediamos a aprendizagem de pessoas, e não de deficiências - um movimento fundamental para rompermos com processos de exclusão nas escolas e nas salas de aula.
Desse modo, este estudo apresenta reflexões importantes aos processos de formação de professores na interface com a escolarização de estudantes público-alvo da educação especial, destacando: a pesquisa de novos modos de ensinar e aprender na diversidade/diferença; a constituição de práticas de ensino pautadas nos pressupostos da pedagogia diferenciada; a mediação de conhecimentos comprometidos com a produção de vínculos entre os alunos e a sociedade; a vivência de momentos pedagógicos com todos os alunos, inclusive com aqueles que desafiam os saberes-fazeres docentes; e os processos de interação entre alunos e professores no trabalho pedagógico da escola.
Além disso, a pesquisa reforça que os alunos aprendem quando dispõem de condições pedagógicas e quando deles são afastados prognósticos de impossibilidades. Lucas e Tatiana, os dois estudantes envolvidos na investigação, tinham seus processos de aprendizagem atravessados por barreiras, mas que, quando tensionadas, abriram espaços para possibilidades de acesso ao currículo escolar.
Esses destaques, simultaneamente, são possibilidades de inclusão escolar, bem como desafios à escolarização de alunos público-alvo da educação especial, por isso são necessários outros estudos sobre a formação de professores na relação entre teoria e prática para pensarmos: como articular reflexões sobre a apropriação do conhecimento por alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação? Como conjugar o currículo comum às especificidades de aprendizagem? Como relacionar os processos de alfabetização à formação docente e ao trabalho pedagógico? Quais possibilidades/desafios da avaliação de identificação sem rotulações? Questões como essas, entre outras, podem ser levantadas, evidenciando o quanto podemos avançar na formação de professores sem desvincular a interação entre teoria e prática. Diante disso, assim como o Oneesp se desdobrou em outras pesquisas, entendemos que as perguntas explicitadas podem fundamentar investigações apoiadas em teóricos que pensam a escola como espaço plural e para todos, buscando elementos para a formação de professores críticos e comprometidos com a mediação de conhecimentos na igualdade e na diferença.
Meirieu (2002, 2005) nos instigou a pensar que educar não é uma tarefa fácil, no entanto um compromisso ético com a formação humana. Por isso, a escola inclusiva é aquela que reconhece que os estudantes percorrem itinerários diferenciados de aprendizagem, mas todos têm o direito de aprender. Cabe às redes de ensino, aos gestores e aos profissionais da educação compreenderem o quanto a formação docente deve ser incluída como política pública e um investimento do educador para a constituição de práticas pedagógicas inclusivas.
Diante disso, os momentos de formação precisam estar atrelados a melhores condições de trabalho para que os profissionais da educação possam problematizar os conhecimentos mediados e as práticas pedagógicas, desafiando-se à pesquisa, ao estudo, à desconstrução de verdades cristalizadas sobre os alunos e à busca por novas alternativas de ensinar a todos.
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Para mais aprofundamentos, indicamos os livros: Inclusão Escolar em Foco: Organização e Funcionamento do Atendimento Educacional Especializado (2014); Inclusão Escolar e o Atendimento Educacional - Série: Observatório Nacional de Educação Especial (2014) e Formação, práticas pedagógicas e inclusão escolar no Observatório Estadual de Educação Especial (2015), publicados pela Editora Marquezine & Manzini, organizados pela coordenadora do Oneesp, Profa. Dra. Enicéia Gonçalves Mendes, docente da Universidade Federal de São Carlos/São Paulo.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Out 2020 -
Data do Fascículo
May-Aug 2020
Histórico
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Recebido
10 Out 2018 -
Aceito
16 Jun 2020