Open-access As vivências como metodologia de ensino da extensão rural: a aproximação entre estudantes e agricultores para a compreensão da realidade social

Experiences as a methodology for teaching rural extension: the approach of students and farmers to understand social reality

Las vivencias como metodología para la enseñanza de la extensión rural: una aproximación de estudiantes y agricultores para entender la realidad social

Resumo:

A qualificação dos espaços de ensino por meio de metodologias que coloquem os estudantes em interação com a realidade é vista como uma forma de promover a formação dos profissionais das Ciências Agrárias com uma visão mais holística. Nesse sentido, o presente relato de experiência tem como objetivo contextualizar e problematizar uma experiência metodológica a partir da mediação e condução do elemento curricular de Extensão Rural no curso Técnico em Agropecuária, por meio de vivências de práticas sociais como forma de reflexão sobre a complexidade dos sistemas agrícolas. Deve-se considerar que o elemento curricular de Extensão Rural é tido como o espaço adequado para tratar dos processos de intervenção e mediação dos futuros profissionais. A atividade que será descrita foi desenvolvida no curso Técnico em Agropecuária, modalidade subsequente, do Colégio Politécnico da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), ao longo do segundo semestre de 2019. O conteúdo foi desenvolvido com alternância de aulas teóricas e vivências em propriedades da agricultura familiar do município de Agudo, Rio Grande do Sul, e organizado em conjunto com a prefeitura e a Emater-RS/Ascar. Como resultado, podem ser destacados o maior comprometimento dos estudantes, o diálogo com a sociedade e um processo mais crítico e reflexivo de ensino. A construção dessa proposta foi inspirada na vivência profissional da extensão rural e baseada nas perspectivas em diálogo com contribuições das correntes pedagógicas, como a histórico-crítica e a construtivista.

Palavras-chave: ensino técnico; extensão rural; prática social; vivências

Abstract:

The qualification of teaching spaces through methodologies that put students in interaction with reality is seen as a way to promote the training of agricultural science professionals with a more holistic view. The present experience report aims to contextualize and problematize a methodological experience based on mediation, and to conduct the curricular element of Rural Extension in the Technical course in Agriculture, through experiences of social practices as a way of reflecting on the complexity agricultural systems. The curricular element of rural extension is seen as the appropriate space to deal with the intervention and mediation processes of future professionals. The activity was developed together with the technical course in agriculture, a subsequent modality of the Polytechnic College of UFSM, during the second semester of 2019. The content was developed with alternation of theoretical classes with experiences in family farming properties in the county of Agudo - RS, organized jointly with the City Hall and Emater-RS / ASCAR. As a result, the students' greater commitment, dialogue with society and a more critical and reflective teaching process can be highlighted. The construction of this teaching proposal was inspired by the professional experience in rural extension, and based on perspectives in dialogue with contributions from pedagogical currents such as the critical and constructivist background.

Keywords: experiences; rural extension; social practice; technical education

Resumen:

La calificación de los espacios de enseñanza por medio de metodologías que pongan a los estudiantes en interacción con la realidad se ve como una forma de promover la formación de profesionales de las Ciencias Agrarias con una visión más holística. El propósito de este informe de experiencia es contextualizar y problematizar una experiencia metodológica basada en la mediación del elemento curricular de Extensión Rural en el curso Técnico en Agropecuaria, mediante las experiencias de prácticas sociales como una forma de reflexionar sobre la complejidad de los sistemas agrícolas. El elemento curricular de la Extensión Rural es visto como el espacio apropiado para abordar los procesos de intervención y mediación de futuros profesionales. La actividad que se describirá se desarrolló en el curso Técnico en Agropecuaria, modalidad subsecuente, del Colegio Politécnico de la Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), a lo largo del segundo semestre de 2019. El contenido fue desarrollado con la alternancia de clases teóricas y experiencias en propiedades agrícolas familiares en el municipio de Agudo, Rio Grande do Sul, y organizado conjuntamente con el ayuntamiento y la Emater-RS/Ascar. Como resultado, se puede destacar el mayor compromiso de los estudiantes, el diálogo con la sociedad y un proceso de enseñanza más crítico y reflexivo. La construcción de esta propuesta docente se inspiró en la vivencia profesional en extensión rural y en las aportaciones de las corrientes pedagógicas, como la histórico-crítica y la constructivista.

Palabras clave: educación técnica; extensión rural; práctica social; vivencias

Introdução

Na medida em que se entende a necessidade de mudanças na produção agrícola, alterando-se de uma agricultura convencional para formas mais sustentáveis de produção de alimentos, evidencia-se a necessidade de repensar o sistema como um todo. No ápice da crise, emerge o papel das organizações de ensino, dos professores e dos estudantes dentro do ato de ensinar, discutir, aprender e transformar. Esse debate não é recente, como pode ser observado na edição de 1996 da Revista Extensão Rural, na qual, por meio de uma série de artigos, buscava-se refletir sobre as demandas de formação das Ciências Agrárias para promover o desenvolvimento rural sustentável (Revista Extensão Rural, 1996). Por mais que essa discussão tenha evoluído, ainda há embates com os velhos paradigmas.

Para Paulo Freire (2011), a educação é uma forma de intervenção no mundo e, como tal, não é neutra; pelo contrário, pois além do conhecimento dos conteúdos bem ou mal ensinados e/ou aprendidos, a educação também implica tanto o esforço de reprodução de uma ideologia dominante quanto o seu desmascaramento. Boa parte dos professores é formada em ambientes puramente acadêmicos, que os tornam incapazes de olhar para além de seus temas de pesquisa. O foco passa a ser o domínio de determinado assunto, o que é pouco permeável para a complexidade do mundo do trabalho. Do mesmo modo, a organização curricular na forma de elementos disciplinares não possibilita a integração de conhecimentos, tampouco considera a realidade e as expectativas dos estudantes (Silva; Martins Pinto; Balem, 2015). Entende-se que a matriz curricular dificulta a percepção dos discentes acerca da realidade em sua totalidade, reduzindo a possibilidade da compreensão das mazelas e das distintas significações cognitivas entre diferentes grupos e classes sociais, bem como do contato íntimo e proveitoso entre os sujeitos envolvidos.

A tendência dos futuros profissionais é a de reproduzir o que vivenciam no decorrer da sua formação e desconsiderar os aspectos sociais. Casalinho e Cunha (2016), quando se referem a engenheiros agrônomos, salientam que esses profissionais acabam desenvolvendo ações quase exclusivamente tecnicistas, valorizando pacotes tecnológicos, o que leva os agricultores, indiscriminadamente, a receitas previamente estabelecidas. Paulo Freire, em sua obra clássica Extensão ou Comunicação (1983), já alertava sobre a necessidade de reconhecer que, quando detêm os conhecimentos, e não apenas as técnicas por si só, os humanos são transformadores do mundo. Portanto, ao reconhecer que os sistemas de produção são resultados da interação entre componentes do ambiente natural e esquemas sociais e culturais, a intervenção dos técnicos não pode se realizar sobrepondo ou ignorando esse fato (Silva; Martins Pinto; Balem, 2015). Ao contrário, os processos de desenvolvimento rural requerem reflexão, crítica e participação dos agricultores, para que não se tornem uma prática invasiva, mas uma intervenção na própria concepção da prática.

Para Silva, Martins Pinto e Balem (2015, p. 4), a respeito da atuação com estudantes do curso Técnico em Agropecuária:

[...] o profissional de Ciências Agrárias precisa ter visão holística, um enfoque multidisciplinar, interdisciplinar e intercultural, capaz de entender as condições específicas e totalizadoras inerentes aos ecossistemas e agroecossistemas.

Entre os desafios, encontra-se o de qualificar os espaços de ensino e aprendizagem1, repensar currículos e, especialmente, buscar uma maior interação com a realidade, a fim de instigar os estudantes ante os desafios que a complexidade do mundo do trabalho lhes apresenta, para romper com a barreira limitadora dos conteúdos transmitidos em sala de aula.

Colocar os estudantes diante do inusitado tem potencial para mobilizar conhecimentos diversos e fortalecer a reflexividade, a criatividade e a autonomia dos futuros profissionais, que podem compreender e se adaptar melhor à realidade. Enquanto mudanças curriculares não acontecem dentro de uma perspectiva que permita emancipação, criticidade2 e condições para prosseguir nos estudos (Andrioni; Silva; Peripolli, 2016), ou mesmo sob a liderança do Estado enquanto política de formação, a atitude individual do professor continua sendo fundamental. Desse modo, neste trabalho pretende-se contribuir com o debate, valorizando o papel do docente na construção de práticas pedagógicas que oportunizem uma formação diferenciada, mais ampla e de caráter holístico3. O docente, ao se tornar ativo na elaboração de novos modelos de formação, seja na proposição de conteúdos ou na construção de uma forma diferenciada de ensinar e aprender, traz novas concepções de análise, tanto no que tange à educação quanto na aplicação de conhecimentos práticos na grande área das Ciências Agrárias (Casalinho; Cunha, 2016).

Dentro do escopo de conhecimentos relacionados ao exercício profissional nas Ciências Agrárias, de ensino superior ou técnico profissionalizante, existe a área de conhecimentos da Extensão Rural. Com essa ou outra denominação, o elemento curricular se distingue dos demais na medida em que o objeto de estudo é a análise dos processos de intervenção e mediação, que são colocados em prática pelas organizações e por seus técnicos (Da Ros, 2012). Freire (1983) elaborou diversas considerações referentes ao trabalho dos técnicos de extensão, problematizando o processo de extensão e/ou comunicação. Para o autor, o embasamento em processos de comunicação é muito mais assertivo para a mediação de conhecimentos técnicos nas comunidades rurais.

Assim, entende-se que a extensão rural está vinculada diretamente aos processos de desenvolvimento rural sustentável, sendo um espaço apropriado para a reflexão sobre os aspectos relacionados aos sistemas agrários, à formação dos estudantes e aos desafios de atuação profissional. Por meio dessa inter-relação, os futuros profissionais se apropriam não só das bases para pensar e preconizar intervenções e interações que podem resultar em mudanças na qualidade de vida das populações rurais, mas também das concepções relacionadas ao estilo de desenvolver agricultura. Por essas e outras razões, o ato de pensar e construir os conteúdos programáticos da extensão rural deve envolver os estudantes no conhecimento da realidade social, já que permite construir reflexões para a mediação de conteúdos pertinentes.

O objetivo deste relato de experiência, então, é contextualizar e problematizar uma experiência metodológica a partir da mediação e condução do elemento curricular de Extensão Rural e Cooperativismo, no curso Técnico em Agropecuária. A base deste estudo foram as vivências de práticas sociais como forma de reflexão sobre a complexidade dos sistemas agrícolas, que se constituíram pelas experiências dos estudantes em propriedades rurais. A partir disso, foi desenvolvido todo o conteúdo programático do elemento curricular de Extensão Rural e Cooperativismo do curso Técnico em Agropecuária, do Colégio Politécnico da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

A atividade foi desenvolvida no segundo semestre de 2019, devido à necessidade de os dois primeiros autores deste estudo cumprirem o elemento curricular de Estágio Supervisionado III, do Programa Especial de Graduação de Formação de Professores para Educação Profissional e Tecnológica (PEG-UFSM), sob supervisão do terceiro autor. O estágio curricular consiste na realização de atividades no espaço de exercício docente da educação profissional e tecnológica e tem como função colocar os futuros professores ante o cotidiano de um professor que já vem atuando na área.

Pimenta e Lima (2019), ao trabalhar os estágios supervisionados e o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), mostram que os estágios cumprem um papel ligado à identidade dos futuros professores. Além de proporcionar o contato com a atuação docente, a prática permite que os estagiários busquem conhecimentos pedagógicos mais aprofundados. Ainda sobre o estágio na formação de professores, as autoras destacam não só a importância da reflexão sobre as atividades realizadas na prática docente (práxis), como também estudos e análises. Assim, o presente trabalho está ligado diretamente a exercício de reflexão, análise e prática docente.

Além desta introdução, o trabalho está estruturado em outras quatro seções. A segunda seção busca refletir sobre o processo de ensino da extensão rural, trazendo as vertentes teóricas que inspiram e sustentam a discussão. A terceira seção explora os caminhos metodológicos que foram tomados, dando ênfase em situar o leitor sobre as condições em que ocorreu a experiência relatada. A quarta seção apresenta os resultados com base no entendimento de como deveria ser construída a proposta metodológica, seguida de um momento de reflexão movido a partir dos resultados de campo. Por último, a seção de considerações finais reúne breves apontamentos, uma vez que se trata de um tema em construção.

Reflexões sobre o processo de ensino da extensão rural

A experiência de ensino do elemento curricular de Extensão Rural, para o curso Técnico em Agropecuária, parte da articulação de vivências de campo com o exercício prático de análise, reflexão e proposição de estratégias de mediação técnica e social para realidades rurais. Tal construção é inspirada em duas reflexões principais: a primeira está relacionada à pedagogia histórico-crítica, aliada ao ato pedagógico por meio da atenção às práticas sociais (Saviani, 2005); já a segunda é a perspectiva construtivista, constituída principalmente por leituras sobre o trabalho de Piaget, em que se parte da geração de estímulos para produção de desconfortos cognitivos e, em seguida, para produção de novas sínteses (Borges; Fagundes, 2016).

Da Ros (2012), ao trabalhar a disciplina de Extensão Rural na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) a partir de visitas técnicas de campo, busca a perspectiva da pedagogia histórico-crítica, que assume o pressuposto de que não é possível compreender o processo pedagógico separado dos processos sociais. Da Ros se embasa em Saviani (2005) e expõe que muitos autores alinhados com essa perspectiva consideram a educação como uma atividade de mediação ante as práticas sociais e que essas são a essência do processo de construção do conhecimento.

Considerando a prática social como substrato para o ensino e para a aprendizagem, entende-se que ela deve ser não só o pilar fundamental do elemento curricular de Extensão Rural, mas a essência de toda a educação profissional. Pereira (2004), quando se refere aos institutos federais de educação, salienta que essas organizações precisam encontrar formas de abandonar a modalidade instrumentalizadora do ser humano, assumindo assim a geração de conhecimentos por meio de práticas interativas com a realidade.

A partir da mudança nas relações e vínculos entre professores, alunos, escola e comunidade, pode-se perceber uma melhoria na autonomia dos envolvidos. Para tanto, deve haver mudanças de mentalidade e cultura escolar, as quais passam pelo conhecimento e diálogo com os projetos de vida e de sociedade, tanto dos sujeitos do cotidiano escolar como daqueles que podem se beneficiar ou sofrer seus impactos, mesmo sem participar desse contexto (Pacheco, 2010). Nesse sentido, as atividades de formação, sejam de ensino, pesquisa e/ou extensão, constituem esse paradigma necessário para a transformação e devem estar incorporadas aos ambientes formativos (Rezende Silva et al., 2009). Tais alinhamentos são fortalecidos pela capacidade de ouvir e dialogar e, quando há distanciamento dessas proposições relativas ao compartilhamento, entende-se que as organizações estão desprendidas do entorno. Dessa forma, os conteúdos precisam ser mediados considerando as situações que emergem da prática social.

Com base nos autores que desenvolvem a pedagogia histórico-crítica, Da Ros (2012) distingue momentos de processo metodológico do aprendizado na construção da metodologia de ensino a partir da ênfase nas práticas sociais que consistem em: 1) conhecer a prática social em que ocorrem o contato e a descoberta da realidade social; 2) identificar as problemáticas presentes nessa realidade, culminando com a criticidade e a descoberta de conteúdos que possibilitem interpretação; 3) definir um embasamento teórico, decorrente da apropriação dos instrumentos para a compreensão da realidade, associando os aspectos necessários para o equacionamento dos problemas da realidade social nos territórios e tendo o professor como mediador para a análise; 4) reelaborar conhecimentos a partir da reorganização das análises e das problematizações feitas, ou seja, produzir uma síntese; 5) contribuir para a realidade social, desenvolvendo melhorias de forma qualitativa.

Desenvolver o conteúdo programático de extensão rural, por meio dessa proposta metodológica, permite que sejam produzidos avanços na formação acadêmica (ensino), no diálogo da organização com o território (extensão) e na reflexão referente ao mundo do trabalho (pesquisa). Ao fim e ao cabo, a extensão rural torna-se uma ciência aplicada que permite a leitura, a compreensão e a mediação na realidade. A partir dela podem ser elaboradas linhas de raciocínio sobre: a) a construção de um momento de contato entre os estudantes e a realidade social, que rompe com um dos principais desafios do modelo de formação tradicional; b) a construção de uma metodologia de ensino de extensão rural mais próxima à realidade de atuação profissional, relacionando de maneira crítica ensino, pesquisa e extensão; c) o desenvolvimento do senso crítico coletivo entre estudantes, professores e técnicos, por meio da discussão, análise e compreensão das problemáticas da realidade social; d) o fortalecimento, nos processos de aprendizagem, de espaços de ensino mais atrativos para os estudantes, a fim de possibilitar a leitura das múltiplas dimensões da realidade dos agricultores, de uma maneira dinâmica, saindo do ambiente da sala de aula.

À mediação dos conteúdos da disciplina soma-se a contribuição da perspectiva construtivista, em especial quando se trata da construção de saberes, o que ocorre no sentido de pensar os processos de mediação respeitando aquilo que os outros já conhecem, visto que uma ação dessa magnitude envolve distintos conhecimentos de profissionais provenientes de diferentes espaços sociais. Assim como um extensionista busca a construção do conhecimento com os agricultores, o docente também realiza essa busca com os estudantes. Nesse campo, acredita-se que é pertinente criar desconfortos, ou seja, situações que gerem desafios para que, a partir das práticas sociais e das diferentes percepções da realidade, levem a processos de reorganização e criação de novos conhecimentos.

Borges e Fagundes (2016) comentam que a perspectiva de Piaget parte de um desequilíbrio, um desconforto, como uma perturbação na estrutura cognitiva do sujeito, que, por sua vez, realizará uma série de processos mentais que o levarão a um novo estado de equilíbrio. São processos, na maioria das vezes, inconscientes e que envolvem assimilações e acomodações não associadas apenas à mudança de faixa etária, mas também à função das construções cognitivas que se sucedem no educando.

Entre os desdobramentos da perspectiva construtivista de Piaget, destaca-se a importância da promoção de estímulo à reflexão crítica nos estudantes a partir de suas próprias ideias. A questão central é propiciar “situações-problema” que sejam capazes de desorganizar cognitivamente os sujeitos; afinal, será por meio dos conflitos cognitivos que as ideias serão reestruturadas como uma forma de promover processos de conhecimentos ativos.

Para Ruas (2006), a prática extensionista fundamentada no construtivismo parte de uma ação dos profissionais que se orienta pelos conhecimentos prévios já construídos no processo histórico-social dos agricultores (o seu mundo de conhecimentos). Nessa linha de raciocínio, o ponto de chegada são os conhecimentos ressignificados pelos atores do processo de aprendizagem, emergido a partir da interação entre agricultores e mediado pelos extensionistas. Em suma, a autora ressalta a importância de se compreender que existe sempre um saber prévio para auxiliar no próximo desafio. A tarefa do extensionista, seguindo o que propõe Freire (1983), é problematizar com os educandos (os agricultores) o conteúdo que os mediatiza, e não apenas dissertar sobre ele, com uma atitude de entregá-lo como se se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado. Na medida em que existe problematização, abrem-se novos caminhos para a compreensão e firma-se um comprometimento com a aprendizagem dos demais.

Já a respeito do ensino formal, na perspectiva construtivista, Jófili (2002) se embasa em Vygotsky e salienta que o conhecimento deve ser construído ativamente pelos sujeitos em relação com os objetos, por meio da interação social. Ao discutir situações de ensino, o professor deve assegurar um ambiente no qual os estudantes reconheçam e reflitam sobre suas ideias, além de aceitar que outras pessoas expressem pontos de vista diferentes, considerados igualmente válidos, a fim de avaliar tais ideias em comparação com as teorias apresentadas pelo professor (ibidem). Diante disso, entende-se que os aspectos do construtivismo para o ensino são significativos porque têm como preceito uma diferenciação em relação à construção unilateral de uma educação mais tradicional. O processo de ensino e aprendizagem, nessa perspectiva, requer maior envolvimento e interação dos professores com os estudantes na forma de mediação e entendimento de situações, conteúdos e práticas sociais.

Nesse sentido, ao conduzir o elemento curricular de Extensão Rural, foi inserida a opção de “vivências” com as famílias de agricultores, considerando essas vivências como substrato para a geração de “conhecimentos ativos”; mesmo que as condições institucionais sejam operadas em curtos períodos, se comparadas às experiências retratadas no trabalho de Gondim (1996), sobre os “estágios de vivências” como elemento curricular nos cursos do Centro de Ciências Agrárias da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Por outro lado, as vivências possuem o mesmo objetivo: a interação com as famílias agricultoras para vivenciar as suas realidades em todos os aspectos. O conceito dessa experiência se diferencia do caráter de “visita” estabelecido por Da Ros (2012), a qual se embasa na metodologia de diagnóstico de sistemas agrários. Em síntese, a visita busca conhecer e planejar ações hipotéticas no trabalho da extensão rural, enquanto a vivência compreende passar um período com as famílias, em meio a todos os seus problemas e aspirações, com total integração à realidade e sem mediação de terceiros, tampouco guiados por questionários fechados (Gondim, 1996). Desse modo, à medida que os sujeitos vivenciam, também problematizam e percebem relações entre conhecimentos, causando uma organização do pensamento e até mesmo encontrando aquilo que não buscavam. Assim, desenvolve-se uma postura crítica que resulta na percepção de que esse conjunto de saberes é encontrado em momentos de interação e de que não existe um conhecimento superior (Freire, 1983).

Portanto, para a realização deste trabalho buscou-se o contato com a realidade dos agricultores e a mediação de conteúdos com os estudantes, considerando aspectos da pedagogia histórico-crítica em diálogo com a proposta construtivista. Para amparar os caminhos metodológicos e as reflexões, este estudo se embasou em Gondim (1996), Da Ros (2012) e Silva, Martins Pinto e Balem (2015). Os dois primeiros autores já desenvolveram trabalhos com estudantes de graduação, enquanto os últimos pesquisaram estudantes do ensino técnico integrado.

Caminhos metodológicos

A atividade pedagógica foi desenvolvida no Colégio Politécnico da UFSM, uma instituição de Educação Básica, Técnica e Tecnológica (EBTT) vinculada à Universidade Federal de Santa Maria. O curso Técnico em Agropecuária Subsequente é oferecido na modalidade presencial, com duas turmas concomitantes (manhã e tarde). Entre os elementos curriculares, encontra-se Extensão Rural e Cooperativismo, ofertado no quarto e último semestre do curso. A carga horária é de 45 horas-aula, divididas em encontros semanais de três horas. Outra disciplina dentro da matriz curricular é a de Mercados e Consumo, o que permite unir as disciplinas para saídas de campo.

Por mais que a proposta metodológica de vivências de extensão rural seja aplicada desde 2015, essa experiência se diferencia pela realização em outro contexto, no segundo semestre de 2019. As turmas foram organizadas de modo espelhado4 e conduzidas de maneira semelhante, em relação a métodos e conteúdos. No primeiro semestre de 2019, ocorreram as primeiras conversas entre o docente responsável pelo elemento curricular e os estagiários do PEG-UFSM, equipe que atuou na mediação da experiência e na prospecção das propriedades rurais onde as vivências pudessem ser realizadas. Para essa proposta metodológica, foi escolhido o município de Agudo, Rio Grande do Sul (RS), por ser considerado fértil e pelos seus sistemas de produção serem fortemente ligados à agricultura familiar.

Além disso, existe um histórico de atividades desenvolvidas na forma de extensão pelo Colégio Politécnico da UFSM com o Escritório Municipal da Emater/RS-Ascar5 e com a prefeitura municipal. As famílias envolvidas no projeto eram assistidas pela Emater/RS-Ascar e foram visitadas e sensibilizadas previamente sobre a proposta. Nesse momento, os agricultores eram informados de que seriam participantes de uma atividade educacional, cujos resultados também iriam compor subsídios para as atividades de assistência técnica e extensão rural realizadas pelo Escritório Municipal da Emater-RS/Ascar de Agudo, em ações de desenvolvimento rural. Para tanto, os estudantes seriam questionados sobre formas possíveis para contribuir em suas realidades. Assim, essa primeira fase contemplou a prospecção de 25 famílias/estabelecimentos rurais, além de logística de deslocamento, construção de rotas, seleção de conteúdos e cronograma.

Em suma, os estudantes vivenciaram a realidade de agricultores familiares do município de Agudo, envolvidos em quatro atividades agrícolas predominantes: fumo, arroz, morango e bovinocultura de leite. Trata-se de propriedades rurais que nutrem características de mão de obra composta majoritariamente pelos membros da própria família, com áreas de terra menores que quatro módulos fiscais6, bem como uma produção comercial e de autoconsumo diversificada, para além dessas principais citadas anteriormente.

Durante o período de vivência, cada uma das 25 duplas vivenciou a rotina de apenas um estabelecimento rural. Considerando que a proposta da disciplina é preparar os estudantes para o inusitado e criar meios para a autonomia, não foi fornecido um conhecimento prévio sobre o estabelecimento rural que vivenciariam. Desde a primeira aproximação, caberia aos estudantes dialogar, discutir e interpretar a realidade da família, de modo a criar e fazer parte de mediações, mesmo que fossem pequenas.

As vivências foram organizadas em quatro encontros de cinco horas, com cada encontro constituindo o que foi denominado de momentos de ensino-reflexão-ação. Também foi definido um escopo prático para cada vivência que, em acordo com a família, deveria auxiliar na compreensão do sistema e colaborar para o aperfeiçoamento. Conforme pode ser visualizado no Quadro 1, antes da vivência está incluído o estudo de um conteúdo teórico. Posteriormente a ela, foi pensado um momento de compartilhamento com o intuito de refletir, problematizar e/ou ajustar o que vinha sendo feito, com a retomada do conteúdo teórico. Todos tinham que ser informados de tudo (como os aspectos das atividades produtivas e a realidade das configurações familiares, por exemplo), a fim de produzir uma perspectiva mais ampla da realidade. Nesse momento, eram desenvolvidos aprendizados sobre a utilização de metodologias participativas de extensão rural e mediação.

Na busca pela construção de um ambiente de ensino diferenciado, articulando propostas de elaboração de conhecimentos ativos vinculados às práticas sociais, o elemento curricular de Extensão Rural foi trabalhado em quatro momentos, expostos no Quadro 1.

Quadro 1
Cronograma de atividades de desenvolvimento de aulas e conteúdo programático da metodologia de vivências em Extensão Rural no curso Técnico em Agropecuária do Colégio Politécnico da UFSM

O primeiro momento teve o objetivo de sensibilizar e qualificar os estudantes para a interação inicial com as famílias. Foi proposto um roteiro prévio de temas e questões, sem a intenção de constituir um diagnóstico, mas que permitissem, em uma caminhada transversal, a compreensão dos principais processos e interações do sistema de produção. Da Ros (2012) considera que a coleta de informações e a posterior caracterização podem ser feitas mediante a análise da paisagem e do diálogo informal com os agricultores, metodologias que constituem o Diagnóstico Rural Participativo (DRP).

O segundo momento foi baseado na apresentação, por parte dos estudantes, de suas percepções em relação às propriedades e famílias, desenvolvidas a partir da primeira vivência, sendo esta considerada uma espécie de síntese e primeiras reflexões. Nesse momento, os estudantes deveriam raciocinar sobre os temas a serem trabalhados na sequência, elaborando um “plano de ação”. Em acordo com as famílias, os estudantes poderiam desenvolver atividades simples, sem grande necessidade de desembolsos. Eles foram, então, intencionalmente desafiados a pensar e a propor contribuições dentro dos estabelecimentos rurais, tendo por finalidade produzir estímulos e maximizar o processo de reflexão e sínteses com base na realidade social.

No terceiro momento, buscou-se trabalhar, a partir de uma ação extensionista não invasiva, a construção do conhecimento dos agricultores, os métodos de extensão rural e a relevância das tipologias desses sujeitos. Esses conteúdos garantiam uma maior importância na medida em que já se tinha uma caracterização (primeira vivência) e uma intervenção, mesmo que pontual, planejada e realizada (segunda vivência). Nesse sentido, para entender os resultados de campo foi necessário realizar reflexões mais profundas para compreender os distintos ritmos das famílias dos agricultores em relação àquilo que tratavam, de modo a auxiliar as vivências da sequência (terceira e quarta). A tipologia teve como propósito comparar sistemas de produção diferentes e, assim, entender que as pessoas expressam consequências de suas trajetórias de vida.

O quarto momento consistiu em orientar as sistematizações finais dos trabalhos, apresentando reflexões sobre as ações realizadas, os resultados obtidos e o planejamento de ações extensionistas para o curto, médio e longo prazo. Trata-se da etapa de encerramento das atividades, primeiro com uma visita de despedida das famílias, seguida de um evento final, que contou com a participação, além das duas turmas, do grupo de extensionistas de Agudo e da Direção de Ensino do Colégio Politécnico. Foi um momento em que se dialogou sobre a experiência, com relatos das impressões da proposta metodológica. Entre os temas, foram abordados a totalidade do curso técnico, a realidade rural no centro do estado, a educação profissional, o retorno para a sociedade e os próprios profissionais que estão sendo formados pelo Colégio Politécnico.

Todas as etapas da atividade foram registradas em cadernos de anotações, permitindo a adaptação da proposta metodológica e o entendimento das percepções, apreensões e aprendizagens desenvolvidas pelos estudantes. Por meio desses registros, foi possível realizar a análise que será apresentada na sequência.

Por fim, de acordo com a proposta, a avaliação dos estudantes ocorreu ao longo de todo o processo, considerando seu envolvimento com as atividades, a participação nas vivências, suas sistematizações e um relatório final sobre cada uma das famílias e propriedades rurais vivenciadas.

Reflexões sobre a experiência

O objetivo principal do trabalho foi levar os estudantes à realidade dos agricultores familiares da região central do Rio Grande do Sul, de modo que, a partir das vivências, pudessem problematizar realidades concretas, transcender os aspectos disciplinares e desenvolver senso crítico. Nesse sentido, a noção de “vivência” busca dar conta da percepção dos estudantes em relação à realidade imediata das famílias, ou seja, com enfoque nas atividades cotidianas da família, sem adicionar retoques ou organização sistemática dos afazeres diários.

Dessa forma, o aprendizado que os estudantes tiveram culmina com a necessidade da busca por respostas para perguntas que, até então, eles não tinham problematizado, refletido ou vivenciado. A equipe mediadora dessa experiência, em parceria com os extensionistas da Emater/RS-Ascar, motivou previamente as famílias para questionar os estudantes sobre temas nos quais tivessem maior interesse. O que diferencia a vivência em relação às visitas do trabalho de Da Ros (2012) é a questão de como se conduz a leitura da realidade, já que não havia a preparação prévia e esse caminho deveria ser construído pelos próprios estudantes, a partir do conteúdo teórico e das conversas com os docentes (membros da equipe de condução do elemento curricular). Ao mesmo tempo, a vivência nessa proposta, diferentemente de uma visita, tem um componente de mudança: em uma perspectiva de diálogo e respeito mútuo, os estudantes precisavam motivar os agricultores para qualificar os sistemas de produção.

Essa foi a principal diferenciação em relação a outras metodologias, pois além de vivenciar e construir “mediações”, houve, na prática, a concretização de sugestões para o avanço das produções agrícolas familiares. Foram realizadas instruções a processos produtivos, como melhorias no processo de ordenha no caso da produção de leite, recomendações de adubação e calagem, de podas, de elaboração de caldas ecológicas, de espécies forrageiras, entre outras; houve melhoria no ambiente de trabalho em relação à limpeza, organização e controle; realizaram-se ações de mercado, como desenvolvimento de marcas e embalagens para posicionar produtos, vídeos, páginas em redes sociais, dentre outras contribuições.

Muitas das sugestões propostas pelos estudantes se desenvolveram dentro das atividades secundárias dos estabelecimentos rurais, mas contribuíram para a visão total dos agricultores a respeito de suas próprias vivências e organização territorial. Por exemplo: a principal atividade de um dos agricultores era o cultivo de arroz, mas as intervenções dos estudantes foram dedicadas também aos pomares (adubação, controle de pragas e doenças, podas etc). Por consequência, houve uma melhora na possibilidade do uso das frutas para o consumo da família, ou mesmo para venda, mostrando a capacidade e complexidade do uso da terra para benefício econômico.

No processo de identificação de problemáticas e elaboração das sugestões para as famílias, os estudantes foram orientados a partir dos momentos trazidos por Da Ros (2012) em seu trabalho, ante a perspectiva da pedagogia histórico-crítica. Nesse sentido, é necessário conhecer a realidade das famílias (momento 1), identificar as problemáticas (momento 2), para analisar e buscar um aprofundamento teórico e técnico que vise à produção de sugestões (momentos 3 e 4) e, por fim, retornar a essas elaborações com as famílias (momento 5). Tudo isso pensado dentro de um processo em que os estudantes passaram a compreender e visualizar cada momento, culminando com a noção da construção dos conhecimentos distintos aos quais foram expostos.

Os estudantes trouxeram muitos relatos sobre suas frustrações quando as famílias não aderiram às sugestões, como no caso da utilização de caldas orgânicas. Isso foi importante para o desenvolvimento de uma percepção mais aguçada da realidade, aumentando o espectro de entendimento sobre os múltiplos fatores que influenciam as decisões das famílias. Foram levantadas possibilidades sobre a falta de interesse das pessoas por essas práticas, mas também uma autocrítica sobre o tipo de abordagem realizada com as famílias.

O aspecto mais importante dentro de todo o processo é que as situações problemáticas enfrentadas pelos estudantes durante as atividades permitiram a construção de um profissional com atuação mais engajada socialmente, contribuindo para entender a situação do agricultor e as limitações da técnica. Casos assim permitiram trabalhar com os estudantes em momentos de reflexão e análise em sala de aula, explorando diferentes temáticas, como os “distintos saberes” e as perspectivas dos sujeitos perante a ação extensionista. Tal perspectiva se alinha ao que Silva, Martins Pinto e Balem (2015) discutem sobre as características necessárias para um profissional que vai trabalhar com extensão rural, como visão holística, perspectiva multidisciplinar, interdisciplinar e intercultural, além de uma compreensão sobre situações específicas e gerais da realidade.

Com o advento das vivências, uma aproximação entre as realidades dos estudantes e agricultores fomentou uma percepção diferenciada da conjuntura social. A empatia, a análise dos sistemas agrários e a assimilação das diferentes experiências de vida geraram inúmeros pontos que antes não eram cogitados, mas foram fundamentais para a formação individual de cada um dos sujeitos envolvidos.

Dentre esses pontos, outras temáticas importantes para a formação dos extensionistas acabaram emergindo da realidade, muitas das quais não haveria como discutir em uma carga horária de aula tão reduzida. Podem ser citadas, como exemplo: o trabalho, muitas vezes não percebido, das mulheres na produção; o empoderamento das mulheres na tomada de decisão; o envelhecimento das pessoas do campo e a falta de sucessão na agricultura familiar; a importância e a dificuldade da diversificação agrícola; o despreparo dos técnicos para trabalhar com os problemas dos agricultores; a falta de conhecimento e formação para a produção orgânica; e os problemas de mercados, escoamento e comercialização.

A identificação dessas questões e sua análise crítica não aconteceriam pela via de uma disciplina tradicional desenvolvida em ambiente de sala de aula. Os estudantes se tornaram mais conscientes da importância do mundo rural, viveram problemas que não eram deles, angustiaram-se, mas também se alegraram com as situações das famílias. Perceberam dificuldades de comercialização de produtos por questões logísticas e presenciaram a realidade da sucessão nas propriedades rurais.

Essas percepções distintas culminaram no fortalecimento do elemento curricular de Extensão Rural, pois anteriormente não se entendia a importância de realizar essas atividades mais íntimas. Tais relatos e demandas, apresentados à coordenação do curso, ao Colégio Politécnico e aos técnicos da Emater e da prefeitura, podem ser considerados resultados da vivência, mas também uma contribuição para a sociedade. Toda a leitura da realidade das famílias rurais, com informações coletadas e analisadas, foi apresentada aos técnicos da Emater e da Prefeitura Municipal de Agudo, de modo a municiá-los para o trabalho do dia a dia, já que muitas dessas leituras tinham sido oportunidades de ouvir as famílias com muito mais profundidade.

Para Gondim (1996), não existe força mais motivadora para um estudante do que o encontro com a realidade, a possibilidade de trabalhá-la à luz da ciência da sala de aula e a volta àquela mesma realidade com contribuições significativas para os problemas que são vivenciados. Assim, o técnico deixa de considerar apenas um aspecto e passa a compreender toda a sua complexidade, como apontam Silva, Martins Pinto e Balem (2015).

Por fim, diante do processo de desenvolvimento da presente experiência, foi possível constatar que as vivências serviram como estímulos - situações-problema - para o rompimento da “zona de conforto” da sala de aula. O mérito dessa metodologia está na interação com as práticas sociais, produzindo ressignificações nos processos de construção de conhecimentos, sejam estes da extensão rural ou, ainda, conhecimentos técnicos de outros elementos curriculares que podiam não ter recebido a devida importância. Essa integração de conhecimentos é constatada também no trabalho de Silva, Martins Pinto e Balem (2015), em que os autores apresentam o reconhecimento dos estudantes do curso Técnico em Agropecuária no seu trabalho de condução de dois elementos curriculares em feiras de agricultores.

Pela interação com agricultores, docentes e extensionistas, os processos cognitivos já construídos são questionados, o que proporciona diversas reflexões e trocas para a elaboração de outros sistemas cognitivos ou novos conhecimentos. Os momentos em sala de aula foram importantes, já que permitiram as bases teóricas para reflexão e análise e posterior produção de novas sínteses. Todos esses aspectos são importantes na construção de conhecimento e, assim, dialogam com as perspectivas teóricas que orientam a experiência.

Dessa forma, é notório o avanço dessa experiência metodológica na perspectiva de mobilização de conhecimentos e contribuição para a sociedade, em que pese se tratar de um percurso de ensino mais aberto, se comparado a uma metodologia como a de visita técnica ou quando se segue um roteiro rígido.

Considerações finais

As vivências no elemento curricular de Extensão Rural e Cooperativismo não são algo exclusivamente inovador, mas recuperam experiências e reflexões aplicadas para retomar a discussão e propor processos de mediação de conteúdos e conhecimentos amparados em práticas sociais. Importa destacar que a prática não se distancia das concepções teóricas de ensino. Esse avanço na formação dos professores participantes inclui uma nova abordagem de estágio: não aquela típica do domínio de classe, com estudantes em sala de aula, mas pela incorporação na atuação cotidiana dos agricultores, vivenciando com os discentes as práticas sociais que acontecem na realidade.

Pode-se dizer que, além da melhoria do ambiente de ensino e do despertar do interesse dos estudantes quanto ao elemento curricular e seus conteúdos, as vivências podem ser distinguidas de outras metodologias por três características principais. A primeira delas é o caráter inusitado da situação de vivência. Por mais que houvesse preparo dos estudantes para as saídas de campo, foram sempre situações com pouca previsibilidade: Como seriam recebidos? Como seria o ritmo das atividades? Qual o desejo das famílias de pôr os planos de ação em prática? Estariam preparados para as questões postas pelas famílias? Dessa forma, os estudantes saíram da comodidade da sala de aula e se aproximaram da atuação profissional, cientes das expectativas que os agricultores têm em relação a eles, mas também estimulados a desenvolver novas reflexões e, por consequência, novas habilidades. Desse modo, tiveram que investigar, procurar auxílio de profissionais e resgatar questões às quais até então não davam importância, a exemplo da produção orgânica e da venda direta aos consumidores. Diante da necessidade da evidência da construção de novos conhecimentos, pode-se perceber o alinhamento da proposta com a perspectiva construtivista.

A segunda característica foram os resultados coletivos. Nos caminhos da experiência, houve a necessidade de os estudantes se apoiarem nas experiências uns dos outros, o que contribuiu para dialogarem mais, aumentando inclusive o leque de formas de perceber o exercício da extensão rural. Propriedades familiares com sistemas de produção aparentemente iguais por diversos motivos exigiam ações diferentes, fazendo com que os estudantes se debruçassem para além da compreensão ingênua do mundo, de acordo com Freire (1983). Isso melhorou a relação entre os futuros profissionais, já que a problematização acabava surgindo naturalmente. Outro aspecto importante de destacar foi o desenvolvimento de uma rede de contatos dos estudantes com a comunidade de Agudo, abrindo a possibilidade de estágios curriculares, assim como a continuidade do desenvolvimento de ações para além dos momentos de aula.

A terceira característica diferencial são os resultados práticos e transformadores da comunidade, respondendo à crítica de distanciamento que as universidades têm em relação à realidade social. Na medida em que os estudantes passaram a desenvolver ações com as famílias, também debateram e escreveram sobre o desenvolvimento rural com a Emater/RS-Ascar e a Prefeitura Municipal de Agudo, demonstrando que uma atividade de ensino também pode ser de extensão. Atividades como essas reforçam a responsabilidade social da universidade para com a sociedade e cumprem com o objetivo de formar pessoas mais sensíveis quando, diante da realidade dos desafios para uma agricultura sustentável, percebem se tratar de algo muito maior do que um pacote tecnológico.

Por fim, tais atividades têm o propósito de avançar para além do caráter pontual, desenvolvido por um só docente. Assim, espera-se que, por meio de mudanças sistemáticas e incrementais, pela própria apropriação dos estudantes na metodologia, seja possível incorporar outros elementos curriculares, minimizando as distâncias entre os ambientes formativos e a realidade social.

Referências

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    » https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/caduc/article/view/6240/4335
  • 1
    Para Raúl Iturra (2009, p. 2), ensino é a "prática de transferir conhecimentos provados ou acreditados pela população que educa à população que se estima desconhecer as formas, estruturas e processos que ligam as relações sociais com as coisas [...]" e aprendizagem é "a prática de colocar questões por parte da população que ensina, que envolvem alternativas de respostas, à população que começa a entender o funcionamento do mundo". Nesse intento, é utilizada como escopo de análise a ideia de que o ensino se alia ao que fundamenta, alia-se ao conhecimento já existente, a “bagagem” trazida socialmente. Dentro da nossa sociedade ocidental, existe a noção de que o conhecimento é repassado por signos (basicamente a escrita) e que pode ser transmitido sem necessariamente instigar a vontade e curiosidade do indivíduo em formação. Quando, então, reflete-se sobre a aprendizagem, deve ser considerada uma concepção que envolve a experimentação do sujeito, em que, dependendo de seu contexto, as necessidades de conhecer aparecem de forma mais espontânea. Logo, conforme Iturra (2009,), o processo do conhecimento perpassa os pilares do ensino e da aprendizagem, principalmente no que se refere à sociedade ocidental, o que explicita a ligação do autor com o conceito de aprendizagem trazido por Freire.
  • 2
    Com base em Andrioni, Silva e Peripolli (2016) e na elaboração da pedagogia histórico-crítica, a abordagem da criticidade refere-se a uma contraposição ao modelo tecnicista, que busca construir uma visão mais ampla e problematizadora da realidade social.
  • 3
    Caráter holístico é entendido como uma inter-relação entre as partes, que só podem ser entendidas quando referenciadas ao todo, ou seja, as partes só existem a partir do todo, e o todo é maior do que a simples soma das partes (Silva; Martins Pinto; Balem, 2015).
  • 4
    O elemento curricular de Extensão Rural e Cooperativismo foi conduzido de modo espelhado, pois trata-se de duas turmas (manhã e tarde), nas quais os conteúdos e as atividades desenvolvidas na turma da manhã eram replicados no turno da tarde, com a segunda turma.
  • 5
    Associação Riograndense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural - Associação Sulina de Crédito e Assistência Rural.
  • 6
    Módulo fiscal, segundo a Embrapa (2021), "é uma unidade de medida, em hectares, cujo valor é fixado pelo Incra para cada município, levando-se em conta: (a) o tipo de exploração predominante no município (hortifrutigranjeira, cultura permanente, cultura temporária, pecuária ou florestal); (b) a renda obtida no tipo de exploração predominante; (c) outras explorações existentes no município que, embora não predominantes, sejam expressivas em função da renda ou da área utilizada; (d) o conceito de ‘propriedade familiar’". No município de Agudo (RS), cada módulo fiscal é formado por 20 hectares.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2020
  • Aceito
    20 Maio 2021
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