Open-access Crise climática: caminhos para enfrentar seus efeitos nas habitações em Curitiba

Resumo

O objetivo deste artigo é apresentar possíveis caminhos que contribuam para mitigar os efeitos das mudanças climáticas em moradias construídas na metrópole de Curitiba. A análise sobre desastres naturais no Paraná demonstra a ocorrência de vendavais como o principal evento climático crítico, sendo a região de Curitiba a que mais apresentou tais episódios no período analisado. Apresentam-se leis federais e planos municipais existentes e elencam-se pontos que podem ser adotados como ferramentas mitigadoras dos impactos da crise climática. Por fim, conclui-se que, através do uso do conceito de políticas de inovação pelo lado da demanda, com a aplicação de softwares, os quais simulariam o cenário futuro das transformações climáticas, é possível contribuir para o desenvolvimento de habitações resilientes.

planejamento urbano; crise climática; moradias resilientes

Abstract

The objective of this article is to present paths that can contribute to mitigating the effects of climate change on houses built in the metropolis of Curitiba. The analysis of the occurrence of natural disasters in the state of Paraná demonstrates that the most frequent extreme climatic event is the windstorm, and the Curitiba region is the one that most presented occurrences of windstorms in the analyzed period. Federal laws and municipal plans related to the theme are presented, as well as points that can be adopted as tools to mitigate the impacts of the climate crisis on the city. Finally, it is concluded that, through the concept of demand--side innovation policies with the use of software programs, which simulate the future scenario of climate transformations, it is possible to contribute to the development of resilient housing.

urban planning; climate crisis; resilient housing

Introdução

O objetivo deste artigo é trazer luz a práticas que amenizem os impactos resultantes das mudanças climáticas em habitações, de modo a incorporá-las nos processos de aprovação de projetos arquitetônicos na prefeitura municipal de Curitiba.

Conforme o Plano de Adaptação e Mitigação de Curitiba (PlanClima), o município já apresenta uma temperatura média de 1,2°C mais alta do que nos anos 1960. Por isso, é observada a ocorrência de períodos de chuvas intensas e de estiagem prolongadas. “Em ambos os casos a população é impactada, ora por transtornos decorrentes de enchentes e alagamentos, ora por escassez de água ou desconforto térmico” ( PlanClima, 2020 , p. 16).

Em relação à abrangência desses impactos, a parte da população menos favorecida é a mais atingida quanto a questões ambientais e socioeconômicas, pois ela já apresenta condições de vulnerabilidade, principalmente por boa parte dessa população residir em assentamentos precários e em áreas de risco.

Soluções como o desenvolvimento de software, que auxiliem os projetistas na tomada de decisões, podem ser um caminho a ser adotado para mitigar os efeitos da crise climática nos espaços de moradia na cidade. Existem exemplos de programas computacionais desenvolvidos por universidades, como o Analysis Sol-Ar , da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), que auxiliam o projetista a analisar a incidência dos ventos predominates e as temperaturas anuais da cidade. Outro exemplo é o programa Fluxovento, desenvolvido pelos alunos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), que simula o fluxo de ar dentro da edificação e também resulta em informações que podem ser utilizadas para a tomada de decisões em relação ao projeto.

De modo a atender com qualidade arquitetônica as habitações de interesse social (HIS), desenvolvidas em Curitiba pela Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab-CT), e também à nova Lei de Licitações (lei n. 14.133/2021), outra possível solução seria a aplicação da modalidade concurso no desenvolvimento dos projetos. Ao utilizar conhecimentos técnicos especializados para esse fim, tal prática ajudaria na mitigação dos efeitos das mudanças climáticas em moradias construídas pela administração municipal.

Depois deste primeiro momento, o artigo traz, na segunda parte, a apresentação dos conceitos que identificam a crise climática, além de uma revisão de literatura sobre cidades e mudanças climáticas em um terceiro momento. As cidades analisadas são: Belo Horizonte, São Paulo, São Francisco (Estados Unidos) e Toronto (Canadá), além de Curitiba, cuja análise se faz de maneira mais aprofundada. Na quarta parte, discorre-se sobre os software existentes desenvolvidos por universidades, que garantem seu uso de maneira gratuita por qualquer profissional responsável pelo desenvolvimento de projetos das habitações, e como essa solução estaria ligada ao conceito de políticas de inovação pelo lado da demanda ( Demand-Side Innovation Policies – Dsips), as quais estimulam a inovação através de investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) por parte do Estado. Por fim, apresentam-se caminhos para possíveis práticas de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas em novas moradias, sejam elas desenvolvidas por políticas de habitação ou não, e que para elas sejam exigidas na aprovação de projetos arquitetônicos em Curitiba, resultando, assim, em um ambiente urbano construído resiliente para enfrentar a crise climática que está em curso.

Em relação à metodologia, conforme Gerhardt e Silveira (2009 , p. 32), a pesquisa é de abordagem qualitativa, pois procura compreender o porquê das situações analisadas e oferecer o que pode ser feito. Apresenta-se como de natureza aplicada, pois objetiva desenvolver diretrizes para a aplicação prática na aprovação de projetos de habitações.

Conceitos sobre a crise climática e seus efeitos no ambiente construído

São classificadas como eventos climáticos ou meteorológicos extremos, também conhecidos como desastres naturais, as ocorrências que impedem o funcionamento normal do cotidiano de uma sociedade ( Fiocruz, 2022 ). Além disso, tais ocorrências resultam em danos materiais ao ambiente urbano e no risco de vida aos moradores.

Conforme o Observatório de Clima e Saúde (ibid.), esses eventos são classificados de acordo com sua origem, que pode ser:

  1. Hidrológica , como inundações, alagamentos, enchentes e deslizamentos de terra;

  2. Geológica ou geofísica , como processos erosivos e deslizamentos oriundos de processos geológicos;

  3. Meteorológicos , como raios, ciclones tropicais e extratropicais, tornados e vendavais; e

  4. Climatológicos , como estiagem e seca, queimadas e incêndios florestais, chuva de granizo, geadas e ondas de frio e calor.

As cidades, mais do que nunca, estão sujeitas a sofrer com as consequências desses eventos ( Espínola e Ribeiro, 2020 ), assim como também estão sujeitas as edificações existentes no meio urbano. Conforme a Organização das Nações Unidas – ONU (2022) , na publicação do Relatório Mundial das Cidades 2022, 56% da população mundial reside nas cidades, e a tendência, para 2050, é de que esse índice suba para 68%.

Portanto, da mesma maneira que a crise climática não respeita os limites geográficos, ela também atinge todas as classes sociais, independentemente de seu endereço. Porém, atinge de maneira mais intensa as classes vulneráveis social e economicamente.

Conforme Silva (2012) , na metrópole de Curitiba, os assentamentos precários subiram de 571 assentamentos e 54.662 domicílios no final da década de 1990 para 984 assentamentos e 98.444 domicílios, no final da década de 2000. Moradias construídas em terrenos localizados em áreas de risco são as mais vulneráveis a todas as classificações de eventos climáticos. Já moradias construídas em terrenos localizados em áreas destinadas para esse propósito estão menos sujeitas a eventos hidrológicos (inundações, alagamentos, enchentes, deslizamentos de terra) e geológicos (processos erosivos e delizamentos oriundos de processos geológicos), pois geralmente estão em áreas centrais das cidades ou em áreas nas quais possivelmente já tenha havido estudos para a definição do zoneamento residencial.

Em relação aos danos causados pelos eventos climáticos nas construções, pode-se adotar, para análise, os eventos que atingem as coberturas das edificações, como chuvas fortes e granizo, geralmente acompanhados de vendavais.

Conforme o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais (Ceped-UFSC, 2013), os vendavais são a categoria de desastres naturais que mais atingem o estado do Paraná. O período analisado pelo Atlas foi de 1991 a 2012.

Os vendavais, diretamente relacionados com a intensificação do regime dos ventos ou com a forte redução da circulação atmosférica, são a tipologia de desastre mais recorrente no estado do Paraná. Esse fenômeno corresponde a 722 registros, equivalente a 29% dos desastres naturais do estado, [...]. Foram afetadas por esses eventos de vendavais 1.494.783 pessoas residentes em 259 municípios. Associados a eles estão os efeitos adversos como queda de árvores e danos às plantações; derrubada das fiações elétricas e telefônicas; causando danos estruturais em edificações, assim como destelhamento. (Ibid., p. 149)

Fonseca e Ferentz (2020) analisaram a ocorrência desses eventos, no período de 2013 a 2017, e constataram que ocorreram 802 episódios de vendavais em 240 dos 399 municípios do estado. Dentre esses anos, os dados apresentam uma tendência de aumento de frequência. Em 2017, foram registradas 234 ocorrências, ao passo que, em 2013, esse número era de 127. De acordo com o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais (Ceped-UFSC, 2013), de 1991 a 2012, apesar de variações negativas entre alguns anos, a ocorrência de vendavais no Paraná também apresentou tendência de aumento. Conforme observado na Figura 1 , o maior número de vendavais ocorreu no último ano analisado.

Figura 1
– Frequência anual de vendavais no estado do Paraná (1991 a 2012)

A Escala de Beaufort é uma medida empírica que classifica a intensidade dos ventos de acordo com sua velocidade e com os seus efeitos no ambiente natural e construído. Traz a velocidade em metro por segundo (m/s) e em quilômetros por hora (km/h). Conforme o Quadro 1 , ela classifica a intensidade dos ventos em uma escala de 1 a 12, cuja última classificação traz ventos de até 120km/h. Quando a velocidade ultrapassa esse limite, os ventos passam a ser classificados como furacões, e a metodologia adotada para a classificação passa a ser a Escala Saffir-Simpson ( Fonseca e Ferentz, 2020 ).

Quadro 1
– Escala Beaufort

Conforme Tominaga, Santoro e Amaral (2009), a partir de 75km/h, ou seja, ventos classificados a partir do grau 9 da Escala Beaufort, os danos materiais causados podem ser:

  1. destelhamento e/ou destruição de edificações;

  2. lançamento de projéteis que podem danificar janelas de edificações;

  3. tombamentos de árvores, postes e torres de alta tensão; e

  4. danos às plantações.

Através do software Analisys Sol-Ar, foi gerada a figura que traz as informações sobre os ventos predominantes para Curitiba, classificando sua intensidade de acordo com a estação do ano e com a direção dos ventos. Ao analisar a Figura 2 , constata-se que os ventos predominantes vêm da direção leste (L), principalmente por se tratar de um município próximo ao mar. A velocidade média do vento leste é de 6m/s em todas as estações do ano, exceto no outono, cuja velocidade média cai para 3m/s. Conforme a Escala de Beaufort, ventos de 6m/s são considerados moderados.

Figura 2
– Velocidades predominantes dos ventos em Curitiba por direção e estações do ano

Observa-se que ventos oriundos das direções noroeste (NO) também apresentam velocidade média de 6m/s no inverno, e ventos da direção sudeste (SE) apresentam a mesma velocidade média de 6m/s na primavera e no verão. Já, conforme o Atlas Brasileiro de Desastres Naturais (Ceped-UFSC, 2013), o mês de outubro, cuja estação é a primavera, é o que mais apresentou ocorrências de vendavais no Paraná no período de 1991 a 2012. Ao cruzar esses dados com os dados da Figura 2 , constata-se que os ventos mais intensos ocorrem na primavera. Conforme Fonseca e Ferentz (2020) , a Mesorregião Metropolitana de Curitiba apresentou o maior número de ocorrência de vendavais no Paraná entre 2013 e 2017, num total de 154. Na sequência, vêm as regiões Norte Central, com 143 ocorrências, Oeste com 132 e região Sudoeste com 109 episódios nesse período.

Crise climática e seus efeitos nas cidades

As mudanças climáticas ocorrem sem considerar os limites geográficos de países ou municípios ( Espínola e Ribeiro, 2020 ). Na esfera global, os países vêm promovendo eventos, como as Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COPs), nos quais são discutidas ações a serem adotadas por todos para mitigar os efeitos da crise climática. Durante a edição da COP 21, 195 países assinaram um compromisso internacional de, até 2030, manter o aumento da temperatura global abaixo dos 2°C, quando comparada com medições pré-Revolução Industrial.

O futuro ainda é incerto quanto aos efeitos das mudanças climáticas no planeta, porém o envolvimento de diferentes áreas e dimensões é o melhor caminho para chegar a uma perspectiva desse cenário. Por isso, para obter resultados práticos no esforço de mitigar e adaptar as moradias, espera-se que sejam aplicadas ações do poder público na esfera federal, estadual e municipal (ibid.).

Conforme Espínola e Ribeiro (ibid.), alguns dos impactos das mudanças climáticas nas cidades envolvem:

  1. uso crescente de energia elétrica para o funcionamento de aquecedores e condicionadores de ar;

  2. falta de água potável;

  3. sistemas de drenagem e de transportes afetados pelo aumento da frequência de tempestades;

  4. rápido aumento de temperaturas médias; e

  5. aumento de doenças causadas por vetores.

Bai et al. (2018) afirmam que 75% dos gases do efeito estufa (GEE) são gerados por atividades desenvolvidas nos centros urbanos, e dentre elas está a construção civil.

As cidades apresentam um papel importante no processo de governança global das mudanças climáticas, pois a atuação local é o ponto inicial para possíveis soluções. Espínola e Ribeiro (2020) defendem que os planos diretores municipais são instrumentos que podem levar a um caminho de sucesso nas adaptações necessárias devido às mudanças climáticas.

Ainda conforme esses autores:

Uma possível solução para essas lacunas seria uma adequação da legislação dos planos diretores municipais. Apesar de não abordar especificamente as mudanças climáticas em suas diretrizes e instrumentos de gestão urbano-territorial, espera-se que o plano diretor incorpore estratégias que visem a adaptação urbana e redução das vulnerabilidades existentes e futuras da população e do território. (Ibid., p. 374)

De modo a inserir estratégias de planejamento urbano que auxiliem no processo de mitigação da crise climática no ambiente construído e para embasar o uso de planos diretores como aparelhos de normatização, podem ser citadas as seguintes leis federais relacionadas às mudanças climáticas e ao planejamento urbano:

  1. Lei federal n. 12.187/2009, que institui a Política Nacional de Mudanças Climáticas; e

  2. Lei federal n. 12.608/2012, que institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC).

O Quadro 2 trata dessas duas leis e dos itens relacionados às ações de planejamento urbano, os quais podem auxiliar na mitigação e adaptação das cidades diante das mudanças climáticas.

Quadro 2
– Leis relacionadas a mudanças climáticas e planejamento urbano

Em relação à parcela da população menos favorecida socioeconomicamente, a localização das moradias em regiões de risco é um item bastante citado na Política Nacional de Proteção e Defesa Civil. Conforme o Quadro 2 , para amenizar a situação e de maneira a estimular o uso de terras urbanizadas, a União pode inclusive transferir recursos a municípios que adquirirem terrenos em áreas dotadas de infraestrutura, com a finalidade de uso habitacional para moradias sociais.

Exemplos de municípios que apresentam leis para combater os efeitos das mudanças climáticas

Esta etapa do artigo cita algumas cidades que apresentam um tipo de planejamento voltado para mitigar os efeitos das mudanças climáticas.

Belo Horizonte instituiu, em 2006, o Comitê Municipal sobre Mudanças Climáticas e Ecoeficiência (CMMCE), cujo objetivo é:

[...] apoiar a implementação da política municipal da Cidade de Belo Horizonte para as mudanças climáticas, atuando na articulação das políticas públicas e da iniciativa privada que visem à redução das emissões de gases de efeito estufa e de poluentes atmosféricos, à redução na produção de resíduos sólidos e maior eficiência nos processos de reutilização e reciclagem de resíduos; ao incentivo a utilização de fontes de energia renováveis, melhoria da eficiência energética e uso racional de energia e ao aumento da consciência ambiental dos cidadãos. ( Prefeitura de Belo Horizonte, 2022 , n/p)

O órgão é composto por representantes do poder público municipal e estadual, além de membros da sociedade civil, de modo a garantir tomadas de decisões de maneira democrática. Além disso, o Comitê tem parcerias com entidades nacionais e internacionais que objetivam o enfrentamento das mudanças climáticas. Dentre essas parcerias, pode ser citados o órgão da ONU Habitat e a organização não governamental (ONG) WWF-Brasil.

Em 2020, o Plano de Ação Climática do Município de São Paulo (PlanClima SP) foi instituído no município. Conforme Marimon (2018) , em 2009, a cidade foi pioneira no quesito, quando lançou a Política de Mudança do Clima no Município de São Paulo (lei n. 14.933), a qual visava à elaboração de inventários com medições de Gases do Efeito Estufa (GEEs) lançados por atividades ocorridas na cidade a cada 5 anos ( PlanClima SP, 2020 ).

O PlanClima SP apresenta como objetivo incluir as mudanças climáticas na tomada de decisões pelo poder público municipal, além de conscientizar a população sobre os impactos das transformações que estarão por vir. É um extenso documento que abrange as ações municipais existentes anteriormente ao Plano e que trata de todos os temas que acontecem no cotidiano de um centro urbano. Em relação à moradia, o foco principal é aumentar a oferta de habitações de interesse social, de modo a realocar populações localizadas em áreas de risco de deslizamentos e alagamentos.

Embora diversos temas de suma importância sejam abrangidos, em ambos os planos analisados, não foram encontradas discussões acerca da qualidade das moradias – ou mesmo das edificações no geral –, em relação a características de resiliência quanto aos efeitos das mudanças climáticas. Porém, entende-se que o Brasil apresenta um déficit habitacional de 5,876 milhões de domicílios ( Fundação João Pinheiro, 2021 ), sendo dados estimados para 2019, e que se faz necessário dar atenção primeiramente a essa realidade.

No cenário internacional, um exemplo é a cidade de São Francisco, nos Estados Unidos , que lançou, em 2020, o Plano de Riscos e Resiliência Climática ( Hazards and Climate Resilience Plan – HCR). O município é o quarto mais populoso do estado da Califórnia e localiza-se no litoral oeste do país. Dentre o risco de ocorrência de terremotos, o calor extremo e a seca, resultantes das mudanças climáticas, são os pontos mais discutidos no plano. São apresentados comentários de moradores, que se mostram preocupados com a qualidade de suas moradias, pois têm dúvida se elas seriam um refúgio para dias de extremo calor ou para a baixa qualidade do ar.

O plano não apresenta medidas de adaptação das moradias para suportar tais problemas, porém dá o primeiro passo em direção à busca por soluções, que é o de identificar as fragilidades e dar voz aos moradores ( Cidade e Condado de São Francisco, 2020 ).

A cidade de Toronto, no Canadá , lançou, em 2019, o Código de Resiliência Climática ( The Climate Resilience Framework ). Mesmo se tratando de um município cuja temperatura média dificilmente ultrapassa os 30°C, a preocupação presente no documento também é em relação ao aquecimento da cidade.

Um estudo estimou que temperaturas mais altas e a baixa qualidade do ar atribuídas às mudanças climáticas resultariam em um adicional de cinco a dez mortes a cada 100.000 pessoas em 2050 e de sete a dezessete em 2080 em Toronto. Nos próximos 20-30 anos, é esperado em Toronto uma triplicação de dias com altas temperaturas, de uma média de 12 dias nos anos 1976-2005 para uma média de 55 em 2050. ( Cidade de Toronto, 2019 , p. 13; tradução nossa)

Em relação aos impactos das ondas de calor nas moradias, apresenta-se maior preocupação com a população idosa e com os moradores cujas residências não apresentem características físicas suficientes para suportar o calor extremo.

Ações para mitigação e adaptação em Curitiba

Em 2015, o Plano Diretor de Curitiba passou por processo de revisão, o qual deve ocorrer a cada 10 anos, conforme a lei n. 10.257 do Estatuto da Cidade. Nessa revisão, um dos conceitos adicionados foi o da Preparação da Cidade para as Mudanças Climáticas, que envolve questões como a melhoria da drenagem do solo urbano e a atenuação dos problemas ocasionados por chuvas intensas ( PlanClima, 2020 ).

Em 2009, o decreto n. 1.186 instituiu o Fórum Curitiba de Mudanças Climáticas, e o decreto n. 572 atualizou a composição do Fórum. Em 2020, foi lançado pela Prefeitura Municipal de Curitiba – em parceria com universidades, com a Companhia de Saneamento do Paraná (Sanepar) e a Companhia Paranaense de Energia (Copel), além de outros membros da sociedade civil – o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas (PlanClima). Conforme sua apresentação, PlanClima tem como objetivo:

[...] orientar a ação municipal, os setores produtivos e a sociedade para o enfrentamento dos efeitos que poderão advir da alteração climática. O PlanClima alinha-se à Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS); ao Quadro de Planejamento da Ação Climática da Rede C40 de Cidades; e à meta estabelecida no Acordo de Paris de conter o aumento da temperatura média global no limite dos 2°C, em comparação aos níveis pré-industriais, mas envidando esforços para que o aquecimento estabilize-se em torno de 1,5°C. Para isso, será necessário alcançar a neutralidade das emissões de gases de efeito estufa (GEE) até 2050 e tornar a cidade mais resiliente. ( PlanClima, 2020 , p. 9)

O PlanClima objetiva orientar ações do setor público e privado para que o município de Curitiba esteja alinhado aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançados pela Organização das Nações Unidas (ONU) ( Figura 3 ).

Figura 3
– 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)

O objetivo a ser atingido é o de zerar as emissões de GEEs até 2050. Porém, conforme demonstrado na conclusão do documento, mesmo considerando cenários otimistas, a previsão é que essa meta não seja alcançada em sua totalidade, o que demonstra a dimensão do desafio e a necessidade de ações multidisciplinares urgentes.

Conforme o PlanClima (2020 , p. 45), quanto aos geradores de GEEs no município de Curitiba, as edificações residenciais aparecem em 2° lugar, e as edificações comerciais em 4° lugar na lista. Além disso, a indústria da construção civil aparece em 5° lugar nas atividades que mais geram GEEs, juntamente com a indústria de manufaturados ( Figura 4 ).

Figura 4
– Distribuição das emissões de GEEs em Curitiba (em tonelada de CO2 emitido)

De modo a organizar as áreas de atuação do PlanClima, nele foram estabelecidos cinco Setores Estratégicos, que classificam a atuação dos atores públicos e privados:

  1. Qualidade Ambiental e Urbana;

  2. Eficiência Energética;

  3. Resíduos Sólidos e Efluentes;

  4. Mobilidade Urbana e Sustentável; e

  5. Hipervisor Urbano e Inovação.

O setor ligado ao planejamento urbano e habitação é o setor de Eficiência Energética, no qual é citado o objetivo de incentivar o uso de energias renováveis e a eficientização das edificações.

O PlanClima também traz como possível solução a parceria do governo municipal com entidades educacionais, o que fortaleceria a relação com o setor de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento):

Outra forma de fomento é o incentivo às universidades e aos cursos de formação técnica, bem como ao setor construção civil, para que se tornem parceiros no desenvolvimento de empreendimentos sustentáveis que contribuam para a redução de emissões de GEE na cidade. (Ibid., pp. 79-80)

Para tentar chegar próximo da emissão zero de GEE, o PlanClima elencou ações de mitigação e adaptação em diversas áreas. No Quadro 3 , são descritas as ações ligadas direta ou indiretamente às áreas de planejamento urbano e habitação.

Quadro 3
– Ações priorizadas no Planclima ligadas ao planejamento urbano

Desse modo, são necessárias atuações práticas para que os objetivos das ações elencadas pelo PlanClima se tornem aplicáveis no ambiente urbano. Assim, a inovação tecnológica associada a ações do poder público municipal podem representar essa concretização.

Software e o conceito de políticas de inovação pelo lado da demanda (Dsip) como possíveis soluções

O objetivo desta etapa é apresentar o marco analítico de políticas de inovação pelo lado da demanda, além de demonstrar quais instrumentos podem auxiliar na mitigação dos impactos da crise climática em habitações de Curitiba, sejam elas desenvolvidas ou não pelo poder público.

Conforme Macedo (2017 , p. 2), as políticas de inovação pelo lado da demanda (em inglês, demand-side innovation policies – Dsip) se referem:

[...] a um conjunto de instrumentos voltados para induzir, articular ou aumentar a demanda e/ou melhorar as condições para a difusão de inovações no mercado, a exemplo de compras governamentais associadas a requisitos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I); encomendas tecnológicas; definição de novas especificações para produtos, serviços e processos por meio de normalização e regulações ; e promoção da interação usuário-produtor de inovações, dentre outros. (Grifo nosso)

Conforme Edler et al. (2012 , p. 3):

A justificativa básica para políticas baseadas na demanda repousa nos seguintes pilares:

  • Criar incentivos para inovadores superando falhas de sistema;

  • Direcionar inovações para objetivos sociais e necessidades políticas (por exemplo, os Grandes Desafios); e

  • Promover o desenvolvimento de negócios em uma determinada região/ nação, explorando o mercado líder potencial. (Tradução nossa)

De maneira a fomentar o processo de desenvolvimento socioeconômico, as Dsips auxiliam como instrumentos que buscam oferecer melhorias através de demandas criadas pelo Estado, sejam elas através de políticas públicas ou de compras governamentais. Conforme Rauen (2017 , p. 9), “ao vasto conjunto de valores já considerado nas ações estatais mais rotineiras (sustentabilidade ambiental, responsabilidade social, etc.), é preciso inserir a inovação”.

Ainda segundo Rauen, em países desenvolvidos, as Dsips encontram-se em territórios repletos de oportunidades em relação a inovações tecnológicas, pois as tecnologias existentes passaram por um processo de amadurecimento ao longo de sua história. Em países periféricos, como o Brasil, o “terreno” pode não apresentar tecnologias tão presentes, principalmente ligadas à P&D, porém essa realidade pode mudar “com o uso de técnicas de gestão da qualidade, modificações em layouts e introdução de novo maquinário” (ibid., p. 25).

Macedo (2017) observa que a maioria das políticas de inovação se origina pelo lado da oferta ( supply-side innovation policies – SSIP). No Brasil, as SSIPs, ligadas não somente a melhorias da infraestrutura de ciência e tecnologia, como também a incentivos fiscais para essa área, linhas de financiamento e subvenção econômica, não estão sendo suficientes para “promover o processo de inovação” de maneira intensa. Além disso, as políticas de inovação pelo lado da demanda seriam complementares às políticas de inovação pelo lado da oferta, conforme demonstra a Figura 5 .

Figura 5
– Políticas de inovação pelo lado da oferta e da demanda

Desse modo, a possibilidade do uso de software pode auxiliar em escolhas projetuais para qualquer tipo de moradia. O Quadro 4 traz como exemplo quatro programas computacionais desenvolvidos por instituições de ensino, os quais são de uso gratuito e que podem ser adotados como parte de políticas de inovação pelo lado da demanda.

Quadro 4
Software desenvolvidos por instituições de ensino

As informações geradas pelos programas permitem, aos projetistas, prever ações de mitigação, como proteções à edificação, ou mesmo estratégias de projeto que evitem a intensificação dos efeitos dos ventos nessas fachadas da edificação. Outros software, como o Sketchup® e Revit® , possibilitam o estudo do projeto quanto à incidência solar nas fachadas, o que auxilia os projetistas a decidirem a localização ideal de janelas, de modo a aquecer ou não determinado ambiente. Tais ações poderiam ser aplicadas nos planos diretores e em políticas habitacionais municipais.

Em relação às habitações de interesse social (HIS), a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab-CT) é o órgão responsável pelo desenvolvimento de projetos e execução de obras. De modo a fomentar projetos de HIS que apresentem características de mitigação dos efeitos da crise climática, um caminho já adotado por diversas cidades do Brasil e também por outros países é a modalidade de licitação por concurso de projeto.

Em 2018, o CAU-PR e alguns escritórios de arquitetura de Curitiba realizaram o 1º Seminário Arquitetura em Debate, tendo como atividade de abertura a audiência pública "Realização de Concursos de Arquitetura e Urbanismo para contratação de Projetos de Obras Públicas". No evento, diversas entidades e profissionais da área levantaram a importância para a sociedade do desenvolvimento desse tipo de licitação para obras públicas em Curitiba e Região Metropolitana, em especial para habitações de interesse social. Foi colocada em pauta a necessidade de ser inserida, em políticas públicas, essa modalidade de licitação, o que iria permitir que profissionais especializados atuantes na região pudessem contribuir com a parcela da população que mais necessita.

No Brasil, a lei de licitações n. 8.666/1993 colocava como principal forma de contratação de serviços ligados a projetos técnicos especializados a ocorrência de concursos, embora normalmente essa diretriz não tenha sido seguida, principalmente devido ao temor de gestores públicos de que o seu papel decisivo na escolha dos projetos pudesse ser prejudicado.

Em 2021, foi aprovada a nova Lei de Licitações n. 14.133/2021, que substitui a lei anterior e cujo conteúdo foi simplificado para facilitar os processos de licitação. Porém, nessa alteração, a maioria das referências sobre a modalidade de concurso foi excluída. No Quadro 5 , é realizada uma comparação entre os conteúdos referentes aos concursos de projetos entre as duas versões da lei.

Quadro 5
– Comparação entre a Lei n. 8.666/1993 e a Lei n. 14.133/2021

Sobreira, Ganem e Araújo (2014), após estudar as políticas de concursos de projeto pelo mundo, como as diretrizes da UIA – União Internacional de Arquitetos, da União Europeia e dos Países Escandinavos, apresentam uma Proposta de Regulamentação de Concursos de Projeto no Brasil, que engloba itens tais como:

  1. utilização do que era previsto na Lei de Licitações n. 8.666/1993 para concursos de projeto;

  2. obrigatoriedade para casos especificados, mas flexível ao ponto de adaptações locais por parte de gestores públicos e devido às diferenças culturais, políticas e econômicas;

  3. realização de debates públicos sobre os pontos positivos e negativos dessa modalidade, com base em exemplos nacionais e experiências internacionais; e

  4. uso de diretrizes das normativas internacionais para o desenvolvimento da base dessa proposta.

Conforme citado anteriormente, o desafio do município de Curitiba é o de atender aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, inclusive o de zerar as emissões de GEEs até o ano de 2050. Porém, constatou-se, no PlanClima (2020) , que esse objetivo não será atingido, o que demonstra os desafios a serem enfrentados pelo poder público e pela sociedade civil. Ainda conforme o PlanClima (ibid.), serão necessárias ações multidisciplinares para se chegar o mais próximo possível dos objetivos citados no documento.

Possíveis caminhos para habitações resilientes em Curitiba

Com o intuito de adaptar as edificações habitacionais a serem desenvolvidas em Curitiba, para o enfrentamento dos efeitos da crise climática, é proposto aqui o uso de pelo menos três estratégias que permitam um futuro resiliente ao ambiente urbano construído.

Apesar de Curitiba ter apresentado, em 2020, o Plano de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas, percebe-se que o destaque dado por ele à área de planejamento urbano é em relação ao uso de energias renováveis; e se observam poucas preocupações quanto às características físicas que a moradia deve apresentar para o enfrentamento dos efeitos das mudanças climáticas.

A exigência da apresentação de estudos que garantam resistência da edificação diante dos efeitos das mudanças climáticas poderia ser adicionada na aprovação de projetos de novas moradias e de reformas. Conforme é citado no plano: “[...] a busca pela eficiência energética de edificações, tanto nas novas construções como nas existentes, por meio de readequação ( retrofit ) de instalações, equipamentos e padrões construtivos é uma das ênfases do PlanClima” (PlanClima, 2020, p. 79).

Essa primeira estratégia estaria alinhada com a Ação 5 elencada no PlanClima (estabelecer e regulamentar requisitos para edificações adaptadas às ameaças climáticas), citada no Quadro 3 . Desse modo, haveria uma comprovação da preocupação do projetista em mitigar os efeitos das mudanças climáticas em relação a:

  1. preservação material;

  2. segurança; e

  3. conforto ambiental das moradias.

Uma segunda estratégia poderia envolver o uso de software desenvolvidos por instituições de ensino, conforme exemplos citados no Quadro 5 , em parceria com a Prefeitura Municipal de Curitiba. Tais programas computacionais poderiam simular possíveis cenários futuros, influenciados pelos efeitos das mudanças climáticas, tais como:

  1. ondas de calor extremo;

  2. vendavais;

  3. chuvas intensas; e

  4. alagamentos.

Nesses cenários, os efeitos desses eventos aplicados nas moradias poderiam auxiliar na tomada de decisões projetuais, desde a escolha de materiais até o formato das edificações.

De modo a não onerar o processo de aprovação de projetos, os software poderiam ser adquiridos pela prefeitura de Curitiba e disponibilizados para download de forma gratuita aos profissionais da área da construção civil (arquitetos, engenheiros e técnicos em edificações). Assim como o processo de aprovação de projetos em Curitiba se faz de maneira on-line pelo site da prefeitura, através do decreto municipal n. 799/2020 – Projeto Simplificado, o acesso aos software também poderia estar disponível nessa plataforma, que apresenta de maneira simplificada e completa as informações que descrevem o processo de aprovação.

Dessa maneira, esses produtos, que seriam os software , estariam classificados no conceito de políticas de inovação pelo lado da demanda, conforme nos traz Macedo (2017 , p. 2).: “[...] compras governamentais associadas a requisitos de Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação (PD&I); encomendas tecnológicas”.

Em relação às habitações de interesse social, uma terceira estratégia , específica para o campo de políticas públicas, seria a adoção da modalidade de licitações através de concursos de projetos. Desse modo, haveria a certeza da aplicação de conceitos de mitigação e adaptação das moradias em relação às mudanças climáticas, através do conhecimento técnico especializado de profissionais da área.

Assim, mediante a exigência de estudos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas nas moradias, o papel das políticas de inovação pelo lado da demanda seria realizado pelo poder público municipal, e o setor de PD&I estaria agindo em parceria, na tentativa de construir um futuro resiliente para a cidade e seus moradores.

Considerações finais

Este artigo demonstra que, mesmo existindo a preocupação em mitigar e adaptar o ambiente urbano construído para o enfrentamento da crise climática, o caminho para se chegar ao destino ainda está sendo traçado. A junção de forças multidisciplinares, que devem iniciar na esfera federal, passar pela esfera estadual, até atingir o campo municipal, é um desafio urgente para todos os países. Ao constatar que os principais desastres climáticos que ocorrem na metrópole de Curitiba são os vendavais, percebe-se a importância de que edificações, principalmente habitações, sejam projetadas para resistir aos efeitos desses episódios.

O futuro ainda é incerto em relação aos reais efeitos da crise climática, porém já se apresentam sinais de cenários críticos. O uso de múltiplos recursos, como inovações tecnológicas através de P&D, alilado a leis e decretos federais, estaduais e municipais, bem como ao conhecimento especializado de profissionais, como arquitetos, engenheiros e técnicos, pode resultar em um ambiente urbano cujas moradias servirão como abrigos resilientes aos efeitos das mudanças climáticas.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    16 Dez 2022
  • Aceito
    30 Abr 2023
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