Resumo
A uberização do trabalho é mais uma etapa no processo de desconfiguração dos pactos sociais conformados no período fordista. A estratégia de construção de “parceiros” possibilita a externalização de custos de capital fixo para uma multidão de trabalhadores precários, como também uma fuga, por parte das empresas, da responsabilidade de garantir os direitos trabalhistas e as seguridades ocupacionais. Diante desse novo terreno de exploração do trabalho, impulsionado por grandes empresas transnacionais que operam para além das limitações nacionais e acumulam em escala global, aqui são apresentadas iniciativas de organização dos uberizados a partir de experiências internacionais e nacionais à luz do conceito de sindicalismo de movimento social.
uberização; globalização; sindicalismo; trabalho; plataformas
Abstract
Uberization of work is one more step in the process of unconfiguring the social pacts formed in the Fordist period. The strategy of building “partners” makes it possible to externalize fixed capital costs to a multitude of precarious workers and exempt companies from responsibility for guaranteeing labor rights and occupational safety. This process is driven by large transnational companies that operate beyond national limitations and accumulate on a global scale, in this new territory of labor exploitation. In this article, we present initiatives for the organization of uberized workers based on international and national experiences, in light of the concept of social movement unionism.
uberization; globalization; unionism; work; platforms
Introdução
A uberização do trabalho é um fenômeno com manifestações em diferentes negócios do setor de serviços, como transporte de passageiros (Uber, 99Taxi), entregas de alimentos ou objetos (iFood, Rappi, Loggi, Uber Eats), serviços domésticos (TaskRabbit e Parafuzo), manicures (Singu) e pequenas tarefas digitais (Amazon Mechanical Turk). O que unifica esses negócios, apesar de suas especificidades, é a caracterização das empresas como meras intermediadoras de encontros entre um cliente que demanda um serviço e um parceiro que o oferta em sua plataforma digital. Nesse sentido, elas se reivindicam não como empresas do ramo em que de fato atuam, mas como empresas de tecnologia ( Abílio, 2017ABÍLIO, L. C. (2017) “Uberização traz ao debate a relação entre precarização do trabalho e tecnologia”. In: MACHADO, R. Revista do Instituto Humanitas Unisinos, n. 503, ano XVII, pp. 20-27. ; Antunes, 2018ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo Editorial. ).
Dessa maneira, há uma evidente estratégia que possibilita a extração/externalização de custos de produção que, no caso da Uber, são custos de compra de uma frota de veículos, contratação de seguros, gastos com combustível, treinamento de mão de obra e garantia dos direitos fixados nas leis trabalhistas, como férias, licenças remuneradas, 13º salário, jornada de trabalho regular, salário-mínimo e até mesmo a própria condição de assalariamento ( Pochmann, 2017POCHMANN, M. (2017). A nova classe do setor de serviços e a uberização da força de trabalho . Disponível em: < https://jornalggn.com.br/artigos/a-nova-classedo-setor-de-servicos-e-a-uberizacao-da-forca-de-trabalho-por-marcio-pochmann/ >. Acesso em: 18 ago 2019.
https://jornalggn.com.br/artigos/a-nova-...
). Essa condição de desassalariamento e de total desvinculação com a categoria do empregado – inclusive, sem treinamentos prévios para a função – faz com que orbite, ao redor dessas empresas, o que Abílio (2019)ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3. denomina uma multidão de trabalhadores amadores.
Alguns dados destacam a crescente expressividade desse mercado no Brasil. A Uber já está em mais de 100 cidades brasileiras e conta com 600 mil “motoristas parceiros” (Uber, 2019). Já o iFood, até o fim de 2019, possuía cerca de 340 mil entregadores cadastrados no aplicativo e, na esteira da pandemia do novo coronavírus, só até março de 2020, a empresa recebeu 175 mil inscrições para novos entregadores.1
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Os dados foram divulgados em matéria da revista Exame em 1º de abril de 2020. Disponível em: https://exame.com/negocios/candidatos-a-entregador-do-ifood-mais-que-dobram-com-coronavirus/ . Acesso em: 29 mar 2021.
Os dados divulgados pela Análise Econômica Consultoria apontam que, em maio de 2020, os trabalhadores de aplicativos somavam em torno de 4,7 milhões, ou seja, 15% de todo o mercado informal, um aumento significativo ante os 3,8 milhões de brasileiros nessa condição, conforme número divulgado pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2019 ( Brasil, 2020BRASIL (2020). Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – Características adicionais do mercado de trabalho-2019. Rio de Janeiro, IBGE. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101743_informativo.pdf. Acesso em: 19 jan 2021.
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).
Mas quem é essa multidão de uberizados? A resposta para essa pergunta não é única, haja vista as diferenças entre os níveis de precarização dos motoristas de aplicativo e dos entregadores. No primeiro grupo, trata-se predominantemente de trabalhadores que ingressaram no ensino superior, possuem entre 26 e 35 anos e ganham em média menos de 2 mil reais por semana (excetuando-se os custos com gasolina, alimentação, etc.) ao dirigirem, em sua maioria, acima de 8 horas por dia e por mais de 5 dias por semana (Moraes, Oliveira e Accorsi, 2019). Já o grupo dos entregadores de bicicleta é formado majoritariamente por trabalhadores jovens com até 22 anos e que, em sua quase totalidade, possuem somente o ensino médio completo. Em relação às jornadas de trabalho, 75% pedalam mais que 8 horas diárias e 92% trabalham mais de 5 dias por semana (sendo 57% trabalhando todos os dias), recebendo rendimentos médios que variam entre R$466 reais e R$1.105,8 por mês ( Aliança Bike, 2019ALIANÇA BIKE (2019). Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo . Disponível em: http://aliancabike.org.br/pesquisa-de-perfil-dos-entregadores-ciclistas-de-aplicativo/. Acesso em: 18 jun 2020.
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). Já no caso dos motociclistas – que, segundo a pesquisa da Universidade Federal da Bahia, são a maioria da categoria –, a jornada de trabalho é em média de 9 horas e 3 minutos, com 5,8 dias de trabalho por semana, totalizando 53,8 horas semanais médias de trabalho, ou seja, tempo menor que o trabalhado pelos bikers. Com essa jornada, os motociclistas recebiam em média um pouco mais (1,78) que o salário-mínimo por hora trabalhada, e, com a chegada da pandemia, seus rendimentos ficaram mais próximos (1,35) do valor do salário-hora mínimo ( Filgueiras et al., 2020FILGUEIRAS, V. A. et al. (2020). Levantamento sobre o trabalho dos entregadores por aplicativos no Brasil. Salvador, Núcleo de Estudos Conjunturais. ).
Do ponto de vista histórico e dos processos sociais que impulsionam a uberização do trabalho, ela vem na esteira de um conjunto de medidas que a literatura denomina reestruturação produtiva ( Alves, 2007ALVES, G. (2007). Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho . Londrina, Praxis; Bauru, Canal 6. ; Antunes, 2018ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo Editorial. ), isto é, de um conjunto de alterações no regime de acumulação fordista ( Braga, 2017BRAGA, R. (2017). A rebeldia do precariado . São Paulo, Boitempo. ) que, a partir de um pacto de classe, consistiu no aumento da produtividade do trabalho e, como contrapartida, garantiu o aumento do poder sindical, dos partidos sociais-democratas e medidas de proteção ao trabalho (salário-mínimo, crescimento dos salários reais e dos direitos sociais) ( Bihr, 1998BIHR, A. (1998). “O compromisso fordista”. In: BIHR, A. Da grande noite à alternativa – O movimento operário europeu em crise . Coleção Mundo do Trabalho. São Paulo, Boitempo Editorial. ).2 2 Vale notar que as transformações que engendraram o modelo fordista tiveram especificidades na realidade brasileira, porque uma classe operária detentora de direitos trabalhistas e sociais sempre foi uma franja minoritária no mercado de trabalho nacional, com o trabalho informal subsistindo perenemente e havendo uma desigualdade nos direitos trabalhistas e sociais, privilegiando categorias mais organizadas e com maior peso relativo de barganha ante o Estado ( Abílio, 2011 ; Oliveira, 2003 ).
Todavia, o modelo fordista, que se assentou com peso na Europa, entrou em decadência no final da década de 1970, materializada nas crises fiscais dos Estados nacionais, que foram respondidas pelas classes empresariais com um conjunto de políticas econômicas neoliberais que tiveram como objetivo retomar a taxa de lucro das empresas por meio da retenção nos gastos com o Estado de Bem-Estar Social, do aumento do desemprego como forma de erosão do poder de barganha dos empregados e dos momentos de estagflação ( Anderson, 1995ANDERSON, P. (1995). “Balanço do neoliberalismo”. In: SADER, E; GENTILI, P. (orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático . Rio de Janeiro, Paz e Terra. ). Paralelamente, houve uma reorganização do poder de classes em escala global, uma vez que a concentração de renda e poder se deslocou da indústria para o setor financeiro e para os CEOs das grandes empresas transnacionais ( Harvey, 2008HARVEY, D. (2008). O neoliberalismo – história e implicações . São Paulo, Loyola. ).
Essas mudanças tiveram grande impacto no mundo do trabalho e nos arranjos produtivos, que se tornaram mais flexíveis, adquirindo traços de reificação ainda mais interiorizados a partir de composições que preconizam palavras como: envolvimento, parcerias, colaborações, individualizações de metas e competências. Nesse sentido, ao trabalhador recai uma necessidade de polivalência segundo a qual, além de fazer o seu trabalho, também deve fiscalizar a si mesmo e aos seus colegas para garantir as metas da empresa, dependendo diretamente disso a sua remuneração ( Alves, 2007ALVES, G. (2007). Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho . Londrina, Praxis; Bauru, Canal 6. ; Antunes, 2018ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo Editorial. ). Pari passu a esse processo, um conjunto de novos modelos de contratação da força de trabalho, mais flexíveis e desprovidos de direitos, foi criado, como o trabalho intermitente, a terceirização, a pejotização e a uberização ( Antunes, 2018ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo Editorial. ).
Além disso, houve um deslocamento do centro dinâmico de absorção da mão de obra do setor industrial para o setor de serviços: no caso brasileiro, entre 1994 e 2008, 70% das vagas de emprego geradas foram nesse setor ( Dedecca e Rosandiskim, 2006DEDECCA, C. S.; ROSANDISKI, E. N. (2006). Recuperação econômica e a geração de empregos formais. Parcerias Estratégicas , v. 11, n. 22. ). O deslocamento de centro dinâmico também é sintoma de um fenômeno mais amplo – em que a uberização é parte e sintoma – de enfraquecimento da economia nacional, de fortes processos de desindustrialização, em especial após a década de 1980, e de subordinação na divisão internacional do trabalho ( Braga, 2017BRAGA, R. (2017). A rebeldia do precariado . São Paulo, Boitempo. ; Pochmann, 2001POCHMANN, M. (2001). As possibilidades da “nova economia” e seus efeitos no trabalho no Brasil. In: POCHMANN, M. A década dos mitos . São Paulo, Contexto. ).
Os movimentos até aqui apresentados são estruturantes da uberização do trabalho no Brasil e no mundo, isto é, foram a antessala desse processo. Outra importante transformação da uberização se dá no controle das diversas etapas do processo do trabalho, o que se contradiz defronte a retórica de autonomia defendida pelas empresas ( Slee, 2017SLEE, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precário. São Paulo, Elefante. ). O controle opera em diversas camadas: controle da gestão do trabalho, controle da multidão e controle de si. Esses três instrumentos operam em conjunto no dia a dia do trabalhador uberizado, mas, apenas para efeitos de clareza na apresentação, optamos por separá-los.
O controle da gestão do trabalho opera desde o primeiro momento nos aplicativos, pois é a empresa que determina quem pode ou não trabalhar nas plataformas (discute-se quão eficazes são os critérios de aceitação em cada uma delas, todavia, o centro de decisão é exclusivo das empresas) ( Antunes e Filgueiras, 2020ANTUNES, R.; FILGUEIRAS, V. (2020). Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo. Niterói, v. 39, n. 1, pp. 27-43. ). Além disso, são as empresas que determinam unilateralmente o preço dos serviços, por exemplo, de uma entrega e, com isso, conseguem direcioná-lo em dois sentidos: o da monopolização do mercado, com a derrota da concorrência com preços artificialmente baixos ( Srnicek, 2017SRNICEK, N. (2017). Platform capitalism . Cambridge, Polity Press. ); e o do controle do tempo de trabalho, pois, quanto menores as remunerações, maior é a necessidade do tempo à disposição das plataformas, bem como a necessidade de ser elegível às promoções, aos prêmios e às tarifas dinâmicas3 3 As tarifas dinâmicas funcionam como multiplicadores nos valores dos serviços em determinadas regiões e horários em que naturalmente haveria baixa oferta de motoristas/entregadores em relação à demanda. Com isso, “em momentos em que normalmente os trabalhadores iriam preferir ficar em casa, como dias festivos, a empresa concede incentivos financeiros” ( Oitaven, 2018 , p. 37) e garante a oferta da força de trabalho. ( Oitaven, 2018OITAVEN, J. C. C. (2018). Empresas de transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um estudo do trabalho subordinado sob aplicativos. Brasília, Ministério Público do Trabalho, 248 p. ). Nesse modelo de remuneração, ocorre uma espécie de leilão invertido, em que os trabalhadores estão em concorrência permanente por uma tarefa a ser executada, o que possibilita que a empresa baixe o valor das tarifas e, ainda assim, tenha mão de obra disponível ( Antunes e Filgueiras, 2020ANTUNES, R.; FILGUEIRAS, V. (2020). Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo. Niterói, v. 39, n. 1, pp. 27-43. ).
Esses mecanismos de controle do trabalho se completam com a avaliação permanente dos trabalhadores, o que aqui denominamos controle da multidão. A cada tarefa, os trabalhadores são avaliados com notas, e estar abaixo de um determinado limite mínimo (que varia em cada plataforma e local) pode acarretar punições e até mesmo desligamento da plataforma ( Slee, 2017SLEE, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precário. São Paulo, Elefante. ). Com isso, para além dos possíveis impactos psicossociais nos trabalhadores ao serem constantemente avaliados, as empresas/plataformas reduzem dos seus custos de produção a necessidade de um superior hierárquico típico weberiano, que controla e avalia seus subordinados, e, dessa maneira, externaliza parcialmente o controle para as mãos de uma multidão de consumidores, um gerente coletivo que vigia permanentemente, a fim de manter a produtividade do trabalho ( Abílio, 2019ABÍLIO, L. C. (2019). Uberização: do empreendedorismo para o autogerenciamento subordinado. Psicoperspectivas, v. 18, n. 3. ).
Por fim, os mecanismos de controle dos aplicativos são preenchidos subjetivamente pelo controle do próprio trabalhador sobre si mesmo, o que entendemos como a estratégia simbólica do período neoliberal que reorganiza o mundo do trabalho e espraia o modelo de autocontrole, por meio do que Zarafian (2002)ZARAFIAN, P. (2002). Engajamento subjetivo, disciplina e controle. Novos Estudos Cebrap, v. 64. São Paulo. denomina engajamento subjetivo ou que Dardot e Laval (2016)DARDOT, P.; LAVAL, C. (2016). “A fábrica do sujeito neoliberal”. In: DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão de mundo . São Paulo, Boitempo. conceituam como nova razão de mundo do sujeito neoliberal. Ou seja, o próprio sujeito obriga-se a fazer o trabalho com a maior eficácia e aumentar sua produtividade. No caso das plataformas de viagem e entregas, por exemplo, essa lógica é assentada na própria forma de remuneração que é diretamente proporcional à produtividade (o motorista ou entregador recebe pela quantidade que efetivamente dirige e não pelo tempo que fica disponível na plataforma)4 4 Essa forma de remuneração retoma uma modalidade de assalariamento que já era apontada por Marx (2013) como uma forma de vincular os interesses do trabalhador individual com os interesses do capital: o salário por peça. e também nas relações de trabalho camufladas como relações entre duas empresas, logo, relações de parceria em que o sujeito como “empresa de si” entra no mercado para vender um serviço (ibid.).
Em síntese, a uberização é uma etapa de um processo de precarização dentro do modo histórico e político da precariedade capitalista, isto é, o avanço na diluição dos entraves colocados à exploração da mão de obra conquistados no decorrer do século XX e que se mantêm dentro dos marcos de uma socioestrutura que é abarcada pela forma mercadoria do trabalho vivo ( Alves, 2007ALVES, G. (2007). Dimensões da reestruturação produtiva: ensaios de sociologia do trabalho . Londrina, Praxis; Bauru, Canal 6. ). Também é importante destacar que se trata de um movimento dinâmico, ou seja, não é resultado de uma inevitabilidade do desenvolvimento tecnológico e que, nesse sentido, pode avançar ou retroceder a depender das relações de força na sociedade ( Antunes e Filgueiras, 2020ANTUNES, R.; FILGUEIRAS, V. (2020). Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo. Niterói, v. 39, n. 1, pp. 27-43. ). Os possíveis contornos dessas relações de força, bem como o terreno global do capitalismo e seus impactos nas organizações do mundo do trabalho, são os temas em que nos debruçaremos nas próximas seções.
Além dessa breve Introdução, o artigo está dividido em três seções que têm como objetivo apresentar as formas e o conteúdo das iniciativas de contraofensiva dos trabalhadores uberizados às plataformas. Na primeira seção, apresentamos a teoria da globalização como nova etapa histórica e suas relações com a uberização. Na segunda seção, tratamos das relações de proximidade entre a globalização e a uberização e um possível caminho de investigação das iniciativas dos uberizados a partir do conceito de sindicalismo de movimento social. Na terceira seção, discutimos um conjunto de estratégias do trabalho diante da uberização e suas potencialidades à luz do conceito de sindicalismo de movimento social e de uma vocação internacionalista. Por fim, nas Considerações finais deste artigo, apresentamos uma síntese dos principais argumentos que o fundamentam.
As estratégias de contraofensiva do trabalho na uberização
Como apresentamos até aqui, a uberização do trabalho é um elemento do macroprocesso de mudança no padrão do capitalismo a partir do final da década de 1970 e, em especial, após a crise de 2008 e 2009. Nesse sentido, queremos brevemente apresentar o pano de fundo do trabalho uberizado que é a sua relação com a globalização do capital.
Por globalização entendemos uma mudança qualitativa no sistema capitalista, isto é, quando a produção passa a ocorrer em escala global e rompe as barreiras dos Estados nacionais. Com isso, as corporações transnacionais (CTNs)5 5 Por corporações transnacionais entendemos empresas que possuem filiais dispersas ao redor do mundo, com aumento de fusões e aquisições transfronteiriças, com interligação transnacional de conselhos administrativos, investimentos cruzados mútuos entre companhias de dois ou mais países, propriedade transnacional de participação de capital, difusão de alianças estratégicas transfronteiriças de todo tipo, vastas redes de terceirização e subcontratação e a crescente importância de altas associações transnacionais de negócios ( Robinson, 2013 ). passam a coordenar suas ações em todo o planeta ( Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ). Ou seja, a acumulação de valor expande-se em dois sentidos: o extensivo e o intensivo. No primeiro, ocorre a inclusão de novas regiões, países e sociedades na esfera da produção capitalista, fenômeno exemplificado tanto no fim do regime soviético, como na inclusão da China no mercado mundial, e também no avanço das fronteiras agrícolas no Brasil em direção às comunidades indígenas mais ou menos autônomas da lógica da mercadoria. Nesse caso, portanto, há uma forma de acumulação primitiva permanente ( Luxemburgo, 1989LUXEMBURGO, R. (1989). A acumulação de capital . São Paulo, Nova Cultural. ; Harvey, 2013HARVEY, D. (2013). Crise na economia espacial do capitalismo: a dialética do imperialismo. In: HARVEY, D. Os limites do capital . São Paulo, Boitempo. ). No segundo sentido, a ampliação intensiva do capital passa pela inclusão de esferas e atividades da vida humana que antes guardavam relativa autonomia da forma mercadoria e que são incorporadas a essa lógica. No fenômeno da uberização do trabalho, trata-se de parte dos serviços (viagens, entregas, etc.) que guardavam relativa autonomia com a forma de produção capitalista e passaram a ser controlados por grandes CTNs. Por exemplo, os serviços de táxi e entregas operavam antes em formas de propriedade individual, cooperativas, pequenos grupos de entregadores contratados diretamente por pequenos comércios.6 6 Com essas formas de gerenciamento de negócios, contratações e emprego não queremos dizer que se trata de modelos anticapitalistas, mas de modelos que guardam maior autonomia em relação à lógica direta da acumulação impressa pelas empresas transnacionais do trabalho uberizado, o que permite, por exemplo, acordos locais mais vantajosos para os trabalhadores.
Na economia global, inclusive, não só o comércio é global, mas a própria produção fragmentou-se e dispersou-se geograficamente em cadeias globais de produção e distribuição ( Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ; Gereffi, 2005GEREFFI, G. et al. (2005). The governance of global value chains. Review of International Political Economy, v. 12, n. 1. ). Essa mudança de padrão na produção foi possibilitada pelo desenvolvimento das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) e do mercado financeiro mundial e pela formação de empresas transnacionais que, em termos marxistas, fragmentaram geograficamente o circuito da produção de valor – isto é, partindo da fórmula de produção do valor (D-M-P-M´-D´), não apenas a circulação de mercadorias no comércio (M’-D’) está espraiada em terreno global, mas a própria produção (P) ( Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ). Fica evidente aqui a similitude desse processo com a atuação das empresas de trabalho uberizado, considerando que as grandes campeãs desse setor, como Uber, iFood, 99Taxi, Rappi e outras operam em mais de um país para produzir valor7 7 Os serviços de viagens e entregas são, como apontam Antunes (2018) e Franco e Ferraz (2019) , produção de valor pelo trabalho vivo, o que não resulta em uma mercadoria física, mas sim em uma mercadoria imaterial, isto é, um serviço. Nesse sentido, a fórmula clássica de produção marxista é reconfigurada nos seguintes termos: D – M (Mp T) ... P – D’, porque, no serviço, a sua produção é concomitante ao seu consumo. Assim, por exemplo, a produção de uma viagem na Uber e o seu consumo ocorrem simultaneamente no decorrer do trajeto. em torno dos seus serviços e, ao fazerem isso, necessitam de diversos instrumentos de trabalho que são produzidos de forma geograficamente dispersa, por exemplo, os celulares, os carros e as motos.
Além disso, nas cadeias de produção, a dispersão também passa pela externalização de atividades e responsabilidades para empresas terceirizadas, montadoras, fornecedores e trabalhadores autônomos, ao mesmo tempo que se centraliza o poder de comando e direção nas CTNs ( Gereffi, 2005GEREFFI, G. et al. (2005). The governance of global value chains. Review of International Political Economy, v. 12, n. 1. ; Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ). Nas plataformas, o processo de descentralização de tarefas e responsabilidades é, para uma multidão de trabalhadores, a possibilidade de as plataformas “reconfigurarem a geografia de suas redes de produção por um custo quase zero” ( Graham e Anwar, 2019GRAHAM, M.; ANWAR, M. (2019). The glogal gig economy: towards a planetary labour market? First Monday, v. 24, n. 4. ), isto é, operar em escala planetária, mas com o controle centralizado nas corporações.
Essa mudança não é resultado apenas de impulsos econômicos, mas é ativamente mobilizada por um novo setor dominante: a fração transnacional da classe capitalista. Ou seja, há um agente empenhado em produzir mudanças na esfera produtiva e social para uma acumulação global. Essa nova fração é orientada para seus negócios mundiais e disputa para se constituir enquanto fração hegemônica em nível global. Nesse sentido, os conselhos de administração transnacionais são os lócus de articulação e de conformação em que capitalistas de diferentes localidades se coordenam por interesses objetivos globais de acumulação e também conformam interesses subjetivos, culturais, estratégicos comuns, isto é, são espaços integradores dessa fração de classe transnacional. Além disso, vale destacar que há um processo que vai além da participação de membros não nacionais nesses conselhos e que avança para o entrelaçamento de membros que atuam em conselhos de diversas empresas, o que possibilita alianças entre as CTNs e negócios compartilhados entre atores em diversas partes do globo ( Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ).
No caso da Uber, seu Conselho de Administração é formado por representantes da TPG Capital, Saudi Arabia’s Public Investment Fund, Nestlé, Veon, CIT Group, Mattel, Northrop Grumman, Match Group e Flex.8 8 Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/lideranca/ . Acesso em: 29 mar 2021. Já o iFood conta com aporte de recursos do fundo de capital Warehouse Investimentos, da Movile (empresa de investimento em tecnologia com base brasileira, mas que desde 2011 possui escritório no Vale do Silício); fundiu-se com a Restaurante Web (braço da Just Eat, grupo de entrega de alimentos com base britânica), com a SpoonRocket (grupo de entrega de alimentos do Vale do Silício), com a Rapiddo (superaplicativo interligado com iFood, 99Táxi, serviços de streaming de música, recarga de celular) e comprou a Hekima (empresa brasileira de inteligência artificial, ciência de dados e big data ).9 9 Disponível em: https://institucional.ifood.com.br/ifood . Acesso em: 29 mar 2021. O caso do iFood é sintomático e evidencia o fenômeno apontado por Robinson (ibid.) em caráter global, isto é, o fato de que a conformação de setores capitalistas transnacionais também ocorre no Sul Global.
Em síntese, o que brevemente procurou-se constituir aqui foi um quadro de proximidades entre a uberização do trabalho e a globalização capitalista, pois ambas promoveram uma transformação regressiva para um novo regime de acumulação que, do ponto de vista do trabalho, inseriu novas tecnologias, novas modalidades de controle e novos tipos de contratos de trabalho ( Braga, 2017BRAGA, R. (2017). A rebeldia do precariado . São Paulo, Boitempo. ) que solaparam direitos sociais e trabalhistas típicos do modelo fordista. Um novo agente social impulsionou essas mudanças: a fração transnacional da classe capitalista que organiza seus negócios em CTNs, tem interesses objetivos em comum, iniciativas conjuntas e espaços de articulação ( Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ). Mas se isso acontece do ponto de vista das forças dominantes, qual é o papel das forças do trabalho nessa nova etapa histórica?
Robinson (2013)ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. aponta que, embora a classe trabalhadora transnacional seja uma objetividade em si, ainda não há, na perspectiva das forças do trabalho, uma formação de classe para si enquanto projeto global contra-hegemônico. Vale notar que esse não é um desafio pequeno ou apenas da nova etapa do capitalismo, pois, já no Manifesto comunista , Marx e Engels (2005MARX, K; ENGELS, F. (2005). Manifesto comunista . São Paulo, Boitempo. [1848]) conclamavam, em seu desfecho, para que “proletários do mundo todo uni-vos” (p. 37), ou seja, esse desafio político de unidade daqueles que vivem da sua força de trabalho segue aberto.
Todavia, o terreno objetivo do trabalho para a construção de laços de solidariedade e estratégias globais para contrabalancear o poder da classe capitalista transnacional acentuou-se na etapa da globalização, já que agora há uma massa crescente de trabalhadores sob o comando das mesmas empresas transnacionais em todo o globo ( Robinson, 2014ROBINSON, W. I. (2014). Global capitalism and the crisis of humanity. Nova York, Cambridge University Press. ). Contudo, é importante frisar que ainda há clivagens internas no seio da classe trabalhadora, como diferenças ocupacionais (empregos formais e empregos não convencionais fora do estofo protetivo de direitos), geográficas (Norte/Sul Global), comunicacionais, geracionais, de gênero e raça ( Antunes, 2018ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo Editorial. ), o que torna a tarefa de uma agência unitária global uma empreitada difícil. Soma-se a isso o decréscimo da densidade sindical – em especial pela crise do modelo fordista e do sindicalismo tradicional – nas principais economias do mundo ( Braga, 2017BRAGA, R. (2017). A rebeldia do precariado . São Paulo, Boitempo. ).
Em contrapartida, há um conjunto de novas iniciativas de organização do mundo do trabalho a partir de outras formas de organização e de orientação política sindical, em particular importantes para o tema deste artigo, dos trabalhadores uberizados. Por isso, trataremos aqui das iniciativas de organização dos uberizados ao redor do mundo à luz do sindicalismo de movimento social ( Waterman, 1993WATERMAN, P. (1993). Social-movement unionism: a new union model for a new world order? Journal Review (Fernand Braudel Center), v. 16, n. 3, pp. 245-278. ; Moody, 1997MOODY, K. (1997). Towards an international social-movement unionism. New Left Review . Londres, v. 0, ed. 225. ; Braga e Marques, 2017BRAGA, R.; MARQUES, J. (2017). Trabalho, globalização e contramovimentos: dinâmicas da ação coletiva do precariado artístico no Brasil e em Portugal. Sociologias. Porto Alegre, ano 19, n. 45, pp. 52-80. ), um conceito da sociologia do sindicalismo que, a nosso ver, coloca diretrizes para uma renovação das forças do trabalho diante dos desafios da economia globalizada.
Por sindicalismo de movimento social entendemos uma forma de organização que é crítica às limitações do sindicalismo em pautas estritamente econômicas e também às estruturas hierárquicas/burocráticas de organização interna. Nesse sentido, a luta dos trabalhadores não deveria limitar-se ao ambiente de trabalho, mas incorporar diversas pautas da sociedade, em especial, a luta pela ampliação da democracia ( Costa, 2011COSTA, H. A. (2011). “Do enquadramento teórico do sindicalismo às respostas pragmáticas”. In: COSTA, H. A.; ESTANQUE, E. O sindicalismo português e a nova questão social. Coimbra, Edições Almedina. ). Dessa maneira, a centralidade da democracia coloca essas experiências em contraposição ao sindicalismo hierárquico ao valorizar formas de organização mais horizontais e com maior grau de participação e deliberação da base ( Braga e Marques, 2017BRAGA, R.; MARQUES, J. (2017). Trabalho, globalização e contramovimentos: dinâmicas da ação coletiva do precariado artístico no Brasil e em Portugal. Sociologias. Porto Alegre, ano 19, n. 45, pp. 52-80. ), pois a participação é vista como elemento central para que as decisões sejam tomadas por quem efetivamente participa ( Moody, 1997MOODY, K. (1997). Towards an international social-movement unionism. New Left Review . Londres, v. 0, ed. 225. ).
Ao se articular por pautas mais gerais e para além das econômicas de cada local de trabalho, o sindicalismo de movimento social propõe tecer relações orgânicas de parceria e compartilhamento de estratégias com outros movimentos, por exemplo, com comunidades afetadas por atividades empresariais, com o ecologismo e com movimentos feministas ( Waterman, 1993WATERMAN, P. (1993). Social-movement unionism: a new union model for a new world order? Journal Review (Fernand Braudel Center), v. 16, n. 3, pp. 245-278. ; Recoaro, 2020RECOARO, D. A. (2020). Sindicalismo de movimento social e a organização das mulheres. BIB – Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais, 93, pp. 1-24. ). Essa relação com outros agentes sociais populares é fundamental para pensar uma orientação estratégica que lide com as fragmentações internas da nova morfologia da classe trabalhadora. Por esse ângulo, vale destacar a orientação para organizar os desorganizados, os setores dos trabalhadores mais empobrecidos, desempregados e com trabalhos informais ( Moody, 1997MOODY, K. (1997). Towards an international social-movement unionism. New Left Review . Londres, v. 0, ed. 225. ), o que é particularmente importante, no sentido em que Braga e Marques (2017)BRAGA, R.; MARQUES, J. (2017). Trabalho, globalização e contramovimentos: dinâmicas da ação coletiva do precariado artístico no Brasil e em Portugal. Sociologias. Porto Alegre, ano 19, n. 45, pp. 52-80. apontam, para a necessidade de o sindicalismo incorporar e se reorganizar a partir das demandas dos jovens trabalhadores precários – base de trabalhadores que, inclusive, sustenta o trabalho dos motoristas e entregadores de aplicativo, como já apontamos, neste artigo, com base nos dados sobre remuneração e jornada de trabalho.
Soma-se a isso a vocação para o internacionalismo apontada pelos autores no sindicalismo de movimento social. Com o peso das CTNs na atual etapa do capitalismo, é necessário que haja, pelo lado do trabalho, uma organização em nível internacional que, inclusive, supere apenas as ligações de topo entre lideranças de sindicatos nacionais e que coloque em contato trabalhadores da base para articulação de estratégias, troca de informações e recursos ( Moody, 1997MOODY, K. (1997). Towards an international social-movement unionism. New Left Review . Londres, v. 0, ed. 225. ; Waterman, 1993WATERMAN, P. (1993). Social-movement unionism: a new union model for a new world order? Journal Review (Fernand Braudel Center), v. 16, n. 3, pp. 245-278. ). Estratégias internacionais são, ademais, um meio para encontrar os pontos de debilidade da cadeia global de produção de empresas e também têm um papel educativo para os trabalhadores apreenderem as diferentes situações produtivas de cada país ( Moody, 1997MOODY, K. (1997). Towards an international social-movement unionism. New Left Review . Londres, v. 0, ed. 225. ).
Nesse sentido, as experiências das redes sindicais internacionais e dos acordos-marco internacionais (AMIs) são elucidativas das potencialidades e limitações do internacionalismo advogado pelo sindicalismo de movimento social e, como apresentaremos, têm relações de proximidade com a estratégia dos uberizados. Por nível de conceituação, entendemos uma rede sindical como “uma organização horizontal que visa a articular em um mesmo espaço de troca de informações e de ação os representantes dos trabalhadores que atuam em relação a uma mesma empresa transnacional em diversos locais” (Mello, Framil, Freston, 2015, p. 3) e que combina diferentes estratégias e campanhas públicas dentro dessas empresas ( Evans, 2014EVANS, P. (2014). National Labor movements and transnational connections: global labor’s evolving architecture under neoliberalism. IRLE Working Paper, n. 116. ). Ou seja, aqui tratamos mais de uma orientação do que propriamente de um modelo rígido e predeterminado de organização, e o que está posto é um desafio e uma potencialidade do trabalho de construir a sua governança global (ibid.).
Em síntese, estamos apresentando uma estratégia do trabalho para compartilhar informações, estratégias de ações conjuntas, campanhas globais para pressionar as CTNs e, principalmente, para atingir os pontos fracos das cadeias globais de produção. Para isso, um dos repertórios utilizados pelas redes transnacionais e pelas federações de sindicatos internacionais são os AMIs. Esses acordos são pactos firmados entre a direção da empresa e, no mínimo, uma federação sindical internacional – mas que podem também envolver outros agentes sindicais e comitês de empresas – que visam a padronizar um piso mínimo nos direitos dos trabalhadores em toda a cadeia de produção, “instaurando mecanismos permanentes de troca de informações e de controle, que apregoam a implantação de práticas sadias de trabalho em todas as operações de uma empresa internacional” ( Hennebert, 2017HENNEBERT, M. (2017). Os acordos-marco internacionais e as alianças sindicais internacionais: instrumentos de uma necessária transnacionalização da militância sindical. Sociologias, v. 19, n. 45, pp. 116-143. , p. 3). Em relação ao conteúdo, os acordos são diversos, mas, no geral, possuem como denominador comum as convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (ibid.).
A assinatura dos AMIs, que teve início no final da década de 1990, é um movimento de apropriação/ressignificação pelos sindicatos dos compromissos de responsabilização social construídos pelas próprias empresas, por exemplo, a ISO 26.000 e a AS 8000.10 10 A ISO 26000 é uma norma que preconiza a responsabilidade social e a incorporação de considerações socioambientais em processos decisórios através de comportamentos éticos e transparentes e que contribuam para o desenvolvimento sustentável ( Inmetro, 2020 ). Isto é, em vez de os compromissos de responsabilidade social serem definidos pelas próprias empresas ou por outras entidades patronais como estratégia de accountability , as organizações sindicais tornam-se parte da definição desses padrões de produção e de gestão da força de trabalho em algumas transnacionais (ibid.). Nesse sentido, os AMIs têm uma potência de forjar um espaço de reconhecimento dos agentes sindicais internacionais e de construção de uma governança global – nos termos de Evans (2014)EVANS, P. (2014). National Labor movements and transnational connections: global labor’s evolving architecture under neoliberalism. IRLE Working Paper, n. 116. – para o mundo do trabalho. Além disso, pode-se conformar, a partir deles, uma agenda comum entre diferentes atores sindicais que passem a compartilhar práticas globais e redes de solidariedade entre diferentes plantas produtivas que podem, inclusive, ser meios de apoio para os trabalhadores de países com menor estofo protetivo e poder de organização. Mais ainda, os acordos podem ser mecanismos de melhora no contexto organizativo dos trabalhadores e, nesse caso, os exemplos da Chiquita e da Quebecor World11 11 A Chiquita Brands International é uma empresa agrícola e um dos líderes mundiais no cultivo e distribuição de banana em todo o mundo. Já a Quebecor World é uma corporação de produção de roupas, em especial, de materiais esportivos. são interessantes, porque as campanhas globais para que fossem firmados AMIs nessas empresas foram acompanhadas de alta nas taxas de sindicalização nessas transnacionais ( Hennebert, 2017HENNEBERT, M. (2017). Os acordos-marco internacionais e as alianças sindicais internacionais: instrumentos de uma necessária transnacionalização da militância sindical. Sociologias, v. 19, n. 45, pp. 116-143. ).
Todavia, se se trata de um caminho promissor para as forças do trabalho diante da globalização da produção, nem as redes sindicais, nem os AMIs são panaceias que dão respostas para todos os dilemas sindicais. Sendo assim, os autores aqui abordados apontam para as principais dificuldades dessas iniciativas: a real apreensão desses acordos pela base das categorias (não somente pelos trabalhadores dos países centrais ou pelos dirigentes sindicais internacionais) e pelos setores da cadeia produtiva fora da matriz (fornecedores e terceirizados) ( Hennebert, 2017HENNEBERT, M. (2017). Os acordos-marco internacionais e as alianças sindicais internacionais: instrumentos de uma necessária transnacionalização da militância sindical. Sociologias, v. 19, n. 45, pp. 116-143. ; Evans, 2014EVANS, P. (2014). National Labor movements and transnational connections: global labor’s evolving architecture under neoliberalism. IRLE Working Paper, n. 116. ). Isso ocorre porque como são acordos entre redes internacionais e direções de empresas, não há um elemento vinculante do ponto de vista jurídico em nível global, o que faz com que, no limite, seja a própria capacidade de mobilização de força dos trabalhadores que torne esses acordos práticas reais.
Até aqui, apresentamos uma abordagem que busca caminhos para enfrentar a globalização da produção a partir das forças do trabalho, ou o que Burawoy (2000)BURAWOY, M. (2000) “Conclusion – grounding globalization”. In: BURAWOY, M.; BLUM, J. A.; GEORGE, S.; GILLE, Z.; GOWAN, T.; HANEY, L.; KLAWITER, M.; LOPEZ, S. H.; Ó RIAIN, S.; THAYER, M. Global ethnography . Berkeley, University of California Press, pp. 335-350. denomina globalização desde baixo, isto é, que procura entender os impactos das mudanças globais no nível local, com base nas experiências reais dos trabalhadores. É com essa orientação e com os quadros teóricos do sindicalismo de movimento social e das redes sindicais internacionais que analisaremos a organização, as estratégias, os repertórios e as pautas dos trabalhadores uberizados.
Precários, mas organizados
A organização coletiva dos uberizados é limitada por barreiras, sejam as do Estado ou as das próprias empresas transnacionais. A principal delas está na subjetividade estimulada pelas empresas através da ideia de que esses trabalhadores são apenas parceiros individuais e, com isso, o sucesso ou o fracasso de cada um dependem apenas de si. Decorrência disso é a negação da ação e da representação coletiva como um mecanismo legítimo dos trabalhadores. O relato de Cant (2020)CANT, C. (2020). Riding for deliveroo . Medford, Polity Press. sobre a paralisação dos entregadores em Brighton, na Inglaterra, é um exemplo da prática das plataformas em todo o globo. O autor aponta que a Deliveroo, mesmo com uma paralisação nos serviços, negou-se a discutir qualquer demanda de maneira coletiva ou com qualquer entidade sindical da categoria, defendendo que a negociação deveria ser feita apenas individualmente com seus “contratados independentes” (ibid.).
Vale destacar que, além de não reconhecerem as demandas coletivas, as plataformas também utilizam da “força” para frear as mobilizações. Os desligamentos da plataforma são práticas recorrentes como instrumento de controle da organização independente dos trabalhadores12 12 No documentário Gig – A uberização do trabalho, há um conjunto de relato de trabalhadores que foram desligados das plataformas após participarem de mobilizações. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/gig/ . Acesso em: 25 ago 2023. e, inclusive, há determinação de como os uberizados devem endereçar suas reclamações para a gerência, sendo vedado acessar sites como o Reclame Aqui ( Antunes e Filgueiras, 2020ANTUNES, R.; FILGUEIRAS, V. (2020). Plataformas digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. Contracampo. Niterói, v. 39, n. 1, pp. 27-43. ). Outro sintoma das práticas antissindicais das plataformas foi a reportagem, produzida pela Agência Pública, que apontou que o iFood contratou uma agência de publicidade e infiltrou pessoas nas mobilizações da categoria para limitar práticas grevistas.13 13 Disponível em: https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/ . Acesso em: 5 abr 2022.
Todavia, apesar do cenário de controle e deslegitimação da ação coletiva, esses trabalhadores se organizam de diversas maneiras. Grohmann (2020)GROHMANN, R. (2020). “Plataformização do trabalho: características e alternativas”. In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo, Boitempo. apresenta uma proposta de divisão da organização desses trabalhadores, sendo ela: “a) regulação do trabalho nas plataformas digitais; b) organização coletiva dos trabalhadores; e c) construção de outras lógicas de organização do trabalho, como o cooperativismo de plataforma” (p. 106). Essa não é uma divisão esquemática, e, na prática diária dos trabalhadores, há a combinação em diferentes gradações dessas iniciativas/objetivos, porém ela nos serve, em alguma medida, de bússola orientadora.
Sobre a regulação do trabalho nas plataformas digitais, Grohmann (ibid.) aponta dois principais caminhos: a) o reconhecimento dos uberizados como empregados das corporações e b) o estabelecimento de diretrizes para que as plataformas sigam padrões mínimos que garantam o trabalho decente, segundo os parâmetros da Organização Internacional do Trabalho. Nesse terreno, estamos tratando de um cenário com idas e vindas e com ritmos bastante particulares em cada país. Por exemplo, são ilustrativos os casos do Reino Unido, onde a Suprema Corte Britânica reconheceu o vínculo empregatício a 20 motoristas da Uber e garantiu direitos como salário-mínimo e férias remuneradas; e da Espanha, onde o governo anunciou uma proposta de regulação dos trabalhadores após decisão no mesmo sentido da Suprema Corte da Espanha. No caso espanhol, Artur e Cardoso (2020)ARTUR, K.; CARDOSO, A. C. M. (2020). O controle das plataformas digitais: nomear a economia, gerenciar o trabalho e (des)regular os direitos. Tomo, n. 37. apontam que as decisões têm avançado em uma compreensão mais atualizada da ideia de subordinação, vista como existente em decorrência de a plataforma deter o principal meio de produção ( software ), a marca, o monopólio da informação e o controle da avaliação. Em contrapartida, no caso brasileiro, a compreensão da principal corte trabalhista é pela negação do vínculo empregatício e da subordinação, tendo em vista a decisão do Tribunal Superior do Trabalho, em março de 2021, pelo não reconhecimento do vínculo empregatício (Brasil, 2021).
Sobre a organização coletiva dos uberizados, a experiência inglesa é emblemática, mas há também experiências brasileiras, como a articulação de motoristas da Uber em maio de 2019, que paralisaram suas atividades em cidades brasileiras, como São Paulo, Recife, Acre, Brasília e Salvador, em conjunto com um chamado global de paralisação que ocorreu simultaneamente à abertura de ações da empresa na bolsa de valores. A pauta no Brasil girou em torno de melhores remunerações e informações para os motoristas sobre os clientes – medida que impacta diretamente na segurança do trabalho – e foi conformada por novas associações da categoria, como a Associação dos Motoristas de Aplicativo de São Paulo (Amasp) e a Associação de Motoristas Particulares Autônomos do Rio de Janeiro (Amapa-RJ).
Mais recentemente, os entregadores protagonizaram uma paralisação nacional em julho de 2020, com focos em grandes capitais do País (São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Fortaleza, Salvador e Recife), por melhores remunerações, seguro contra roubos e acidentes, seguro de vida, auxílio para enfrentar a pandemia – como equipamentos de proteção individual – e licença remunerada para entregadores adoecidos.14 14 O detalhamento da pauta reivindicativa pode ser acessado no Facebook da Treta. Disponível em: https://www.facebook.com/113571473622723/posts/154807339499136/?d=n . Acesso em: 15 mar 2021. Em São Paulo, o epicentro da mobilização, houve uma massiva marcha motorizada que saiu do Masp até a Ponte Estaiada. Para além das mobilizações que se materializam nas ruas, há, por trás disso, toda uma rede informal de contatos contínuos desses trabalhadores por meio de aplicativos de mensagens e grupos em redes sociais ( Cant, 2020CANT, C. (2020). Riding for deliveroo . Medford, Polity Press. ; Kalil, 2020KALIL, R. B. (2020). Organização coletiva dos trabalhadores no capitalismo de plataforma. Contracampo. Niterói, v. 39, n. 2. ; Englert, Woodcock e Cant, 2020CANT, C. (2020). Riding for deliveroo . Medford, Polity Press. ).
Nessas redes virtuais e informais, são compartilhadas informações, dicas sobre o trabalho, discussões sobre problemas das plataformas e até mesmo se formam embriões de organizações coletivas mais duradouras. Essa importância é verbalizada por Galo, liderança do coletivo Entregadores Antifascistas, em entrevista para o portal Ecoa do UOL: “ Entrei em grupos de WhatsApp de entregadores e comecei a dar o papo, falava que a gente tinha que ter condições melhores de trabalho, que tinham que nos garantir alimentação ” ( Rodrigues, 2020RODRIGUES, P. (2020). Galo de luta. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/lider-dos-entregadores-antifascistas-paulo-galo-lima-quer-comida-e-melhores-condicoes-de-trabalho-para-o-grupo/. Acesso em: 23 ago 2020.
https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-...
).
Dessa perspectiva, observa-se uma relação dialética entre o trabalho e a tecnologia da informação e comunicação (TICs), pois, se, por um lado, as TICs permitem que o controle na uberização seja elevado para a menor partícula da produção (o indivíduo); por outro, as próprias iniciativas de contraofensiva do trabalho também são forjadas nesses espaços. Exemplos claros dessa contradição são o Turkopticon e o Fair Crowd Work. O primeiro é uma plataforma que permite que os trabalhadores classifiquem as pessoas e empresas que solicitam tarefas no Amazon Mechanical Thurk;15 15 A Amazon Mechanical Turk é um serviço de plataforma digital criado pela Amazon em que seus usuários contratam trabalhadores remotos para realizarem pequenas tarefas que computadores ainda não são capazes de realizar, por exemplo, a correção de um texto. já o segundo é um site desenvolvido pelo Sindicato dos Metalúrgicos Alemães, que permite a classificação dos aplicativos pelos uberizados. Ou seja, trata-se de iniciativas dos uberizados que utilizam as TICs na busca por mudar o sentido dos mecanismos de avaliação, desta vez em sua defesa, pois reduzem “a assimetria de poder existente entre a plataforma e seus clientes e os trabalhadores, na medida em que abre espaço para a troca de informações sobre os tomadores de serviço” ( Kalil, 2020KALIL, R. B. (2020). Organização coletiva dos trabalhadores no capitalismo de plataforma. Contracampo. Niterói, v. 39, n. 2. , p. 90).16 16 No Brasil, mulheres motoristas da Uber, para enfrentar a insegurança e o risco de assédio, criaram um grupo no WhatsApp denominado “Damas ao Volante” em que postam periodicamente suas localizações para sinalizar que “está tudo bem” ( Dolce, 2019 ), mais um indício de que a organização dos uberizados passa por instrumentos de comunicação e articulação por aplicativos como Facebook, WhatsApp e Telegram.
Do ponto de vista de sua organização interna, há uma miríade de formas organizativas na categoria que vão desde iniciativas exclusivamente on-line até organizações de trabalhadores mais horizontais e sem uma estrutura claramente definida (a Treta e os Entregadores Antifascistas são os dois principais exemplos desse formato, inclusive, por terem sido os principais impulsionadores do #brequedosapps de julho de 2020), assim como associações e sindicatos de tipo mais tradicional.17 17 Entende-se aqui associação como um grupo de profissionais da mesma categoria que se organiza em torno de um conjunto de reivindicações e elege representantes para a direção dessa entidade, ou seja, trata-se de uma forma de organização coletiva dos trabalhadores. Já o sindicato é um tipo específico de associação, porque tem um reconhecimento do Estado brasileiro, a partir da estrutura do sindicalismo oficial, e é legalmente o representante de toda uma categoria de trabalhadores. Como exemplos deste último caso, destacam-se a Associação dos Motofretistas de Aplicativos e Autônomos do Brasil (AMABR) e o Sindicato dos Motoboys de São Paulo (SindimotoSP), duas organizações que, inclusive, participaram de audiências da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Aplicativos da Câmara Municipal de São Paulo. Outro elemento a ser destacado são as diferentes táticas desses movimentos, com a Treta e os Entregadores Antifascistas privilegiando iniciativas de paralisação e greve como forma de pautar suas demandas às plataformas, e a AMABR e o SindimotoSP priorizando relações de pressão por meio de parlamentares, prefeituras e órgãos estaduais como o Detran.
Nesse sentido, a experiência inglesa destacada por Cant (2020)CANT, C. (2020). Riding for deliveroo . Medford, Polity Press. aponta um possível caminho de relação entre entregadores e sindicalismo, pois, após um ciclo de mobilizações dos entregadores da Deliveroo18 18 Deliveroo é uma empresa uberizada de entrega de comida com sede em Londres e que opera em mais de 13 países. que se espalhou pelas principais cidades do país, ocorreu um movimento de dupla aproximação dos sindicatos com a pauta dos uberizados. Assim, houve, por um lado, a incorporação dessas pautas nas agendas sindicais, em especial pelo Independent Workers Union of Great Britain (IWGB), e, por outro, o ganho de confiança de parte da categoria nessa organização.
Acreditamos, então, que há uma proximidade desse processo com o sindicalismo de movimento social e sua orientação de se relacionar, como estratégia de mobilização, com um conjunto de atores sociais diversos ( Watermann, 1993WATERMAN, P. (1993). Social-movement unionism: a new union model for a new world order? Journal Review (Fernand Braudel Center), v. 16, n. 3, pp. 245-278. ). Tanto Treta como Entregadores Antifascistas possuem relações com mobilizações de outras categorias (metalúrgicos, químicos, etc.), com outros movimentos sociais (por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e com mobilizações de atos em defesa da democracia e contra privatizações de equipamentos públicos.19
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Todas essas ações podem ser encontradas nas páginas do Facebook e Instagram dos respectivos movimentos.
Além disso, na própria paralisação da categoria, houve um chamado de solidariedade aos consumidores das plataformas, para que boicotassem as entregas durante o #brequedosapps ( Braga, 2020BRAGA, R. (2020). #BrequeDosApps: enfrentando o uberismo. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/07/25/brequedosapps-enfrentando-o-uberismo/. Acesso em: 15 jan 2022.
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), ou seja, em uma orientação de mobilizar as comunidades de consumidores como ponto de apoio.
Em relação às pautas, o #brequedosapps tratou centralmente de questões ligadas à remuneração e ao trabalho da categoria. Como apontam Braga (ibid.) e Grohmann et al. (2022)GROHMANN, R. et al. (2022). Plataformas e trabalho (in)decente no Brasil. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2022/03/17/plataformas-e-trabalho-indecente-no-brasil/. Acesso em: 5 abr 2022.
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, as demandas públicas do movimento foram por aumento do valor da tarifa de entrega, pela criação de um seguro de vida e de vale-refeição, por equipamentos de proteção individual, como máscaras e álcool em gel (na esteira do auge da pandemia da covid-19), e pelo fim dos bloqueios indevidos – isto é, quando um entregador é bloqueado do aplicativo, seja por reclamação de cliente ou por perseguição política, sem possibilidade de contra-argumentação do trabalhador, que não mais poderia prestar o serviço. Nesse sentido, fica clara a existência de um conjunto de pautas focadas em direitos específicos dos próprios entregadores e vinculadas às demandas geradas pelo processo de trabalho.
Quanto à orientação internacional, há uma experiência de federação internacional de entregadores de aplicativo, a Transnational Courrier Federation, com base de uberizados em países europeus, como Áustria, Bélgica, Finlândia, França, Alemanha, Irlanda, Itália, Holanda, Noruega, Espanha, Suíça, Espanha, Suíça e Reino Unido ( Cant, 2020CANT, C. (2020). Riding for deliveroo . Medford, Polity Press. ). Todavia, apesar desse conjunto de iniciativas pelo campo do trabalho, a postura das plataformas segue, no geral, bastante refratária ao reconhecimento dos agentes dos trabalhadores e, mais ainda, isso se dá de forma desigual entre os países. Dessa maneira, ainda não se conformaram, no terreno global, negociações de AMIs entre as plataformas e os trabalhadores uberizados.
No caso brasileiro, não há, até então, uma formação tão evidente de articulação transnacional dos uberizados, mas, já houve tentativas de estabelecer relações internacionais, tanto na paralisação dos motoristas da Uber em 2019, como nas aproximações dos Entregadores Antifascistas, com a tática de construir cooperativas de entregadores por aplicativo bastante inspirada na experiência da Coopcycle.20 20 Em entrevista organizada pela BBC News e republicada pelo Blog Tilt da UOL, Galo ilumina essa aproximação: “é lógico que a gente sabe das limitações que a gente tem, talvez a gente comece num Estado (do país), mas a ideia é que seja uma cooperativa geral, e se puder internacional. A gente está em contato com a Argentina, com outros países aí, com Chile, com o México, com a Colômbia. É viver e deixar viver, sabe? Vamos vendo o que acontece". Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/bbc/2020/07/27/adeus-ifood-entregadores-tentam-criar-cooperativa-para-trabalhar-sem-patrao.htm?cmpid=copiaecola . Acesso em: 21 mar 2021. Aqui tratamos do terceiro eixo de organização proposto por Grohmann (2020)GROHMANN, R. (2020). “Plataformização do trabalho: características e alternativas”. In: ANTUNES, R. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo, Boitempo.: a Coopcycle é uma cooperativa de entregadores que se reivindica como governada democraticamente pelos cooperados, o que permite a redução dos custos dos entregadores pela combinação de recursos e o aumento da capacidade de barganha por seus direitos. Além disso, eles contam com um grupo de voluntários que auxiliam na organização de um modelo de negócios anticapitalista, a partir do desenvolvimento de softwares , coordenação global, lobbying e apoio jurídico.21 21 Cf. o site da Coopcycle: https://coopcycle.org/en/ .
Essa estratégia é inspirada e inspira a contribuição teórica de Scholz (2017)SCHOLZ, T. (2017). Cooperativismo de plataforma . São Paulo, Fundação Rosa Luxemburgo. sobre o que o autor denomina cooperativismo de plataforma. Para ele, a forma de contrapor a uberização é ressignificar o uso da tecnologia a partir de 10 princípios: propriedade compartilhada da plataforma; remuneração decente; transparência nos dados e informações para trabalhadores e consumidores; canal direto de comunicação entre consumidores e trabalhadores; envolvimento dos trabalhadores em todo o processo produtivo; estrutura legal que ampare a existência de cooperativas; portabilidade de benefícios trabalhistas – isto é, que se mantenham caso ocorra mudança de atividade; proteção contra comportamentos abusivos; proibição da vigilância excessiva como mecanismo de controle; direito à desconexão, garantindo tempo de descanso aos trabalhadores. Ou seja, aposta-se em uma possibilidade de reversão do sentido da tecnologia, que, no trabalho uberizado, é mobilizada para explorar e controlar e, no cooperativismo de plataforma, seria utilizada para proporcionar arranjos mais solidários e equitativos.
Em síntese, o que pretendemos mostrar nesta seção são as proximidades entre algumas experiências organizativas dos uberizados, o sindicalismo de movimento social e a potencialidade da noção de redes sindicais internacionais para essa categoria. Evidentemente, esses três conceitos não são idênticos, mas de alguma maneira se relacionam ao darem respostas à precarização do trabalho sob plataforma em escala global à luz da democracia, de arranjos mais participativos, de articulações globais e com perfil mais explosivo. As Considerações finais sintetizam essas experiências segundo o que defendemos neste artigo: uma necessidade de uma contraofensiva global dos trabalhadores uberizados.
Considerações finais
Neste artigo apontamos uma relação de proximidade entre a uberização do trabalho e o processo de globalização capitalista e, principalmente, debatemos as estratégias de organização, formas e repertórios dos uberizados nas experiências internacionais e no Brasil (especialmente a Treta e os Entregadores Antifascistas), a partir de suas proximidades com o conceito de sindicalismo de movimento social e com uma orientação internacional de organização do trabalho.
A primeira aproximação ficou delineada a partir da apresentação, em escala global, de diversas empresas/aplicativos, seus processos de fusões e compras de outras empresas em nível internacional, bem como pelo perfil transnacional dos agentes em seus conselhos administrativos, o que salienta, na composição das empresas uberizadas, sua participação na classe capitalista transnacional ( Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ). Nesse cenário de operação dos aplicativos no terreno global para a acumulação, há um novo terreno que exige do sindicalismo novas estratégias e, fundamentalmente, uma nova governança em nível global para se contrapor ao poder do capital ( Evans, 2014EVANS, P. (2014). National Labor movements and transnational connections: global labor’s evolving architecture under neoliberalism. IRLE Working Paper, n. 116. ).
Como discutimos ao longo do artigo, a tarefa de uma governança global do trabalho não é completamente nova nem simples, por isso, as experiências estudadas e aqui apresentadas não são panaceias para o futuro do sindicalismo. Ainda há um conjunto de dificuldades com o próprio não reconhecimento das empresas/aplicativos da agência coletiva desses trabalhadores, ou seja, de sua atuação como agentes legítimos de negociação. Apesar disso, é evidente que surge um conjunto de experiências de trabalhadores que, nos seus diferentes métodos, formas de organização e repertórios, no Brasil e no mundo, têm tendências para uma orientação mais democrática, mobilizadora e internacionalista, o que traz uma potência para enfrentar, na arena global, a espoliação do trabalho que representa a uberização.
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Notas
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1
Os dados foram divulgados em matéria da revista Exame em 1º de abril de 2020. Disponível em: https://exame.com/negocios/candidatos-a-entregador-do-ifood-mais-que-dobram-com-coronavirus/ . Acesso em: 29 mar 2021.
-
2
Vale notar que as transformações que engendraram o modelo fordista tiveram especificidades na realidade brasileira, porque uma classe operária detentora de direitos trabalhistas e sociais sempre foi uma franja minoritária no mercado de trabalho nacional, com o trabalho informal subsistindo perenemente e havendo uma desigualdade nos direitos trabalhistas e sociais, privilegiando categorias mais organizadas e com maior peso relativo de barganha ante o Estado ( Abílio, 2011ABÍLIO, L. C. (2011). O make up do trabalho: uma empresa e um milhão de revendedoras de cosmésticos . Tese de doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas. ; Oliveira, 2003OLIVEIRA, F. (2003). Crítica à razão dualista/ O ornitorrinco . São Paulo, Boitempo. ).
-
3
As tarifas dinâmicas funcionam como multiplicadores nos valores dos serviços em determinadas regiões e horários em que naturalmente haveria baixa oferta de motoristas/entregadores em relação à demanda. Com isso, “em momentos em que normalmente os trabalhadores iriam preferir ficar em casa, como dias festivos, a empresa concede incentivos financeiros” ( Oitaven, 2018OITAVEN, J. C. C. (2018). Empresas de transporte, plataformas digitais e a relação de emprego: um estudo do trabalho subordinado sob aplicativos. Brasília, Ministério Público do Trabalho, 248 p. , p. 37) e garante a oferta da força de trabalho.
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4
Essa forma de remuneração retoma uma modalidade de assalariamento que já era apontada por Marx (2013)MARX, K. (2013). “O salário por peça”. In: MARX, K. O Capital, Livro 1 . São Paulo, Boitempo. como uma forma de vincular os interesses do trabalhador individual com os interesses do capital: o salário por peça.
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5
Por corporações transnacionais entendemos empresas que possuem filiais dispersas ao redor do mundo, com aumento de fusões e aquisições transfronteiriças, com interligação transnacional de conselhos administrativos, investimentos cruzados mútuos entre companhias de dois ou mais países, propriedade transnacional de participação de capital, difusão de alianças estratégicas transfronteiriças de todo tipo, vastas redes de terceirização e subcontratação e a crescente importância de altas associações transnacionais de negócios ( Robinson, 2013ROBINSON, W. I. (2013). Una teoría sobre el capitalismo global: producción, classe y Estado en un mundo transnacional . México, Siglo XXI Editores. ).
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6
Com essas formas de gerenciamento de negócios, contratações e emprego não queremos dizer que se trata de modelos anticapitalistas, mas de modelos que guardam maior autonomia em relação à lógica direta da acumulação impressa pelas empresas transnacionais do trabalho uberizado, o que permite, por exemplo, acordos locais mais vantajosos para os trabalhadores.
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7
Os serviços de viagens e entregas são, como apontam Antunes (2018)ANTUNES, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, Boitempo Editorial. e Franco e Ferraz (2019)FRANCO, D. S.; FERRAZ, D. L. S. (2019). Uberização do trabalho e acumulação capitalista. Cadernos EBAPE.BR, v. 17, pp. 844-856. , produção de valor pelo trabalho vivo, o que não resulta em uma mercadoria física, mas sim em uma mercadoria imaterial, isto é, um serviço. Nesse sentido, a fórmula clássica de produção marxista é reconfigurada nos seguintes termos: D – M (Mp T) ... P – D’, porque, no serviço, a sua produção é concomitante ao seu consumo. Assim, por exemplo, a produção de uma viagem na Uber e o seu consumo ocorrem simultaneamente no decorrer do trajeto.
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8
Disponível em: https://www.uber.com/pt-BR/newsroom/lideranca/ . Acesso em: 29 mar 2021.
-
9
Disponível em: https://institucional.ifood.com.br/ifood . Acesso em: 29 mar 2021.
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10
A ISO 26000 é uma norma que preconiza a responsabilidade social e a incorporação de considerações socioambientais em processos decisórios através de comportamentos éticos e transparentes e que contribuam para o desenvolvimento sustentável ( Inmetro, 2020INMETRO (2020). ISO 26.000. Disponível em: http://www.inmetro.gov.br/qualidade/responsabilidade_social/iso26000.asp. Acesso em: 25 ago 2023.
http://www.inmetro.gov.br/qualidade/resp... ). -
11
A Chiquita Brands International é uma empresa agrícola e um dos líderes mundiais no cultivo e distribuição de banana em todo o mundo. Já a Quebecor World é uma corporação de produção de roupas, em especial, de materiais esportivos.
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12
No documentário Gig – A uberização do trabalho, há um conjunto de relato de trabalhadores que foram desligados das plataformas após participarem de mobilizações. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/gig/ . Acesso em: 25 ago 2023.
-
13
Disponível em: https://apublica.org/2022/04/a-maquina-oculta-de-propaganda-do-ifood/ . Acesso em: 5 abr 2022.
-
14
O detalhamento da pauta reivindicativa pode ser acessado no Facebook da Treta. Disponível em: https://www.facebook.com/113571473622723/posts/154807339499136/?d=n . Acesso em: 15 mar 2021.
-
15
A Amazon Mechanical Turk é um serviço de plataforma digital criado pela Amazon em que seus usuários contratam trabalhadores remotos para realizarem pequenas tarefas que computadores ainda não são capazes de realizar, por exemplo, a correção de um texto.
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16
No Brasil, mulheres motoristas da Uber, para enfrentar a insegurança e o risco de assédio, criaram um grupo no WhatsApp denominado “Damas ao Volante” em que postam periodicamente suas localizações para sinalizar que “está tudo bem” ( Dolce, 2019DOLCE, J. (2019). A uberização do trabalho é pior para elas . Disponível em: https://apublica.org/2019/05/a-uberizacao-do-trabalho-e-pior-pra-elas/. Acesso em: 12 jul 2019.
https://apublica.org/2019/05/a-uberizaca... ), mais um indício de que a organização dos uberizados passa por instrumentos de comunicação e articulação por aplicativos como Facebook, WhatsApp e Telegram. -
17
Entende-se aqui associação como um grupo de profissionais da mesma categoria que se organiza em torno de um conjunto de reivindicações e elege representantes para a direção dessa entidade, ou seja, trata-se de uma forma de organização coletiva dos trabalhadores. Já o sindicato é um tipo específico de associação, porque tem um reconhecimento do Estado brasileiro, a partir da estrutura do sindicalismo oficial, e é legalmente o representante de toda uma categoria de trabalhadores.
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18
Deliveroo é uma empresa uberizada de entrega de comida com sede em Londres e que opera em mais de 13 países.
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19
Todas essas ações podem ser encontradas nas páginas do Facebook e Instagram dos respectivos movimentos.
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20
Em entrevista organizada pela BBC News e republicada pelo Blog Tilt da UOL, Galo ilumina essa aproximação: “é lógico que a gente sabe das limitações que a gente tem, talvez a gente comece num Estado (do país), mas a ideia é que seja uma cooperativa geral, e se puder internacional. A gente está em contato com a Argentina, com outros países aí, com Chile, com o México, com a Colômbia. É viver e deixar viver, sabe? Vamos vendo o que acontece". Disponível em: https://www.uol.com.br/tilt/noticias/bbc/2020/07/27/adeus-ifood-entregadores-tentam-criar-cooperativa-para-trabalhar-sem-patrao.htm?cmpid=copiaecola . Acesso em: 21 mar 2021.
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21
Cf. o site da Coopcycle: https://coopcycle.org/en/ .
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Dez 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2024
Histórico
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Recebido
14 Mar 2023 -
Aceito
2 Ago 2023