Apresentação
É comum termos aquele autor que nos arrebata. Aquele para quem corremos quando precisamos de referências, epígrafes, ou, simplesmente, de uma voz de autoridade em torno da qual nosso argumento possa se estruturar. Para Erich Auerbach (1892-1957), sem dúvida, esse autor foi Dante Alighieri (1265-1321). Desde seus primeiros escritos nos anos 1920 até a década de sua morte, Dante foi quem ditou o tom de sua reflexão e deu sentido ao seu projeto de crítica literária. E o texto que antecipa a questão sobre a qual ele se debruçaria em trabalhos futuros não poderia ter sido escrito em um momento mais oportuno: o emblemático ano de 1921.
“Para a celebração de Dante” saiu no número 32 da revista Die neue Rundschau, no lastro das comemorações pelos 600 anos da morte do poeta. No “ano do jubileu” [Jubiläumjahr], uma série de palestras e publicações comemorativas surgiu em veículos acadêmicos e não acadêmicos de crítica literária, formando, assim, um verdadeiro campo de batalhas em torno de sua posse intelectual: católicos e protestantes novamente disputavam a filiação religiosa de Dante1; a crítica diletante2 encaminhava as comemorações por meio de sociedades intelectuais, revistas e círculos literários independentes das universidades; e na romanística, as tensões provenientes das tentativas de reformulação do campo incidiram em tendências interpretativas diferentes, as quais foram identificadas por Mirjam Mansen como “ético-religiosas”, “místicas” e “essencialistas” (MANSEN, 2003, p. 37-42).
Chama a atenção um aspecto da recepção da Comédia nesse período. Após a Primeira Guerra Mundial tornou-se patente na crítica dantesca alemã a inquietação em torno da relevância de Dante para a sociedade atual, e esse fenômeno estimularia as mais distintas propostas de compreensão do presente a partir de seus escritos3. Esta é uma clara ruptura em relação aos grandes temas dos leitores críticos do século XIX, em cujos estudos predominou o interesse pela biografia de Dante, bem como a subordinação de sua poesia aos fenômenos históricos do medievo. Porém, no final desse século, e, sobretudo, nos primeiros anos do seguinte, uma investigação mais próxima ao texto começou a ganhar espaço na crítica especializada, influenciada pelos trabalhos de Francesco de Sanctis (1817-1883) e Benedetto Croce (1866-1952) na Itália.
Karl Vossler seria o principal representante da “Estética da expressão” crociana na Alemanha, mobilizando uma análise fundamentalmente estética dos escritos dantescos. Seu trabalho monográfico, o denso Die Göttliche Komödie (1907; 1910), desfrutou certo prestígio no meio universitário e levou a preocupação metodológica para o topo das discussões. Anos mais tarde, consolidando esse panorama, Croce (1971) publicaria La poesia di Dante (1921), livro que pretendia ser uma preceptística para a Comédia. A pergunta acerca da unidade ou da separabilidade do poema recebeu um tratamento específico nesses dois estudos, que, apesar de semelhantes, apresentaram diferenças consideráveis.
Veja-se que o cenário da recepção dantesca em 1921 era bastante complexo, pois colocava em disputa não apenas os programas estéticos da crítica e da ciência literária, mas as paixões políticas de uma nação derrotada na guerra, resultando, em alguns casos, na adesão a uma filologia atravessada por tendências racialistas (VIALON, 2003). De maneira que, contrastando com o clima de festividades do jubileu, Auerbach vivia um momento incerto em sua carreira: acabara de defender sua tese de doutorado em Greifswald, para onde teve de se transferir depois que sua participação nos seminários de Filologia Românica da Universidade de Berlim foi vetada por Eduard Wechssler. O conflito com o romanista veterano o impediu de pleitear um posto acadêmico naquele momento, e apesar da qualidade de sua tese4, em 1922 assumiu como bibliotecário na Biblioteca Estatal da Prússia. Este foi um período bastante produtivo em sua vida, todavia: traduziu a Ciência nova de Vico (1925), publicou um par de artigos importantes (AUERBACH, 1922; 1926; 1927; 1929), e entre 1926e 1928escreveu a sua tese de Habilitação, submetida em 1929 na Universidade de Marburg.
O artigo que o leitor tem em mãos, portanto, foi escrito por um recém-doutor em busca de um posto acadêmico, alguém que contava com a simpatia de professores renomados - como Croce e Vossler - mas que jamais se colocou na posição de mero discípulo. Sua abordagem histórica era independente da estilística de seus mestres e, sem dúvida, distinta do essencialismo de seus detratores. E como que respondendo à tendência geral, no artigo do Jubileu, Auerbach indagou a Comédia a partir das possibilidades de construção de um saber específico para a sociedade alemã no presente. Para ele, as potencialidades do poeta florentino ainda não haviam sido alcançadas em sua inteireza, pois o aspecto mais substancial de sua obra não residiria nas infindáveis e sempre presumíveis discussões sobre estilo e método que tanto animavam a crítica acadêmica. Antes, o conteúdo ainda inacessível de sua poesia remeteria à representação de um mundo orientado pelos princípios de ordem e “concordância”, um mundo com o qual os homens pudessem novamente formar uma unidade essencial, uma “forma fechada” de caráter e destino [Charakter und Schicksal].
E já aqui o impacto causado pela interpretação de Hegel se faz notar. Acerca das personagens dantescas, Auerbach assevera: “eles nada perderam do seu eu terreno; ao contrário, tudo o que lhes era particular foi intensificado no sobrenatural, e dessa particularidade se extrai ou a condenação, ou a expiação, ou a bem-aventurança”. Tal ideia extraída da Estética hegeliana, “uma das mais belas páginas jamais escritas sobre Dante” (AUERBACH, 1994, p. 183), foi ampliada na tese Dante como poeta do mundo terreno [Dante als Dichter der irdischen Welt] ([1929] 2001; 2022), depurada em estudos posteriores, como “Figura” ([1938/39] 2018), Sacrae scripturae sermo humilis e “Francisco de Assis na Comédia (reunidos em Neue Dantestudien [Novos estudos sobre Dante], 1944) e amplificada, para dar sentido ao seu ambicioso projeto literário em Mimesis. A realidade exposta na literatura ocidental [Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur] ([1946] 1994). Ademais, no último livro escrito por Auerbach e publicado um ano após a sua morte - Língua literária e público na Antiguidade tardia latina e na Idade Média [Literatursprache und Publikum in der lateinischen Spätantike und im Mittelalter] ([1958], 1965) - o realismo de Dante permanece como tema central.
E assim como o poeta florentino lhe parecia ainda vivo, podemos nos interrogar sobre a atualidade de um crítico como Auerbach, que divisava o mundo pelas lentes do século XIX na esteira das tradições idealista e historista. Para além da extensa plêiade de leitores ilustres acumulados no correr dos anos, a razão de sua obra ainda nos instigar o interesse hoje, talvez, resida no modo como, nela, o mundo da literatura encontra o homem e o envolve, em uma relação ao mesmo tempo singular e repleta de historicidade. Este foi o aprendizado obtido do realismo de Dante, cujas primeiras formulações na reflexão auerbachiana o leitor pode acompanhar neste breve artigo.
Para a celebração de Dante5
Erich Auerbach
O destino poético de Dante é tão surpreendente, que seria preciso perder as esperanças na força das leis da história do espírito, caso nelas acreditássemos. As fontes poéticas de um círculo cultural penetram na consciência dos povos em todas as épocas: Homero e os tragediógrafos gregos, a canção heroica [Heldenlied] e Shakespeare, todos foram absorvidos em sua total extensão. Aqui está um poeta que deve ser considerado como a raiz e o início da poesia moderna; seu nome e sua imagem estão vivos; mas sua obra tornou-se, em sua terra de origem, apenas parcialmente, e de modo algum no resto da Europa, parte integrante da consciência interior.
E esse destino começa imediatamente depois de sua morte. Seu efeito é imenso: ele estabeleceu sozinho, praticamente a partir do nada, sem qualquer tradição ou quem o acompanhasse, a expressão sentimental e a paisagem da poesia posterior. Mas esse imenso efeito não ocorreu diretamente. Seu intermediário, Petrarca, transmitiu-o aos países românicos e à Inglaterra, e somente através da forma frouxa e muitas vezes fraturada de Shakespeare, é que esse efeito chega até nós.
Acreditamos que Dante, até os dias de hoje, está longe de haver alcançado todo o seu potencial. Os povos não têm sido suficientemente fortes para ele; em uma barcaça minúscula seguiam-no pelo mar, mas perderam seu rastro. Nenhuma geração posterior mostrou-se à altura da imensa força de seu caráter, cuja forma brotou de si mesmo, e em razão disso, seu efeito peculiar permaneceu limitado a poucos. A poesia das épocas posteriores moveu-se entre uma força elementar errante e um vínculo racional; um poeta que lograsse dominar, a partir de uma forma adequada, a plenitude incandescente de Dante, jamais reapareceu.
Em Dante o ser humano singular voltou a nascer. Desde o declínio da Antiguidade, a vida própria da personalidade havia sido soterrada. Aqui essa corrente poderosa se liberta e surge no mais intenso temperamento de que o mundo já teve notícia. A isto acrescenta-se um destino que isolou o seu portador de um ambiente familiar e amado, e negou-lhe a mínima das satisfações terrenas. Dante foi tão infeliz quanto qualquer pessoa de capacidades medianas poderia ter se tornado. Foi-lhe permitido desfrutar muito pouco aquilo que um destino amistoso geralmente concede aos mortais: seu amor terreno foi trágico; sua bela cidade, à qual estava preso como um jovem cordeiro ao rebanho (Paraíso XXV) o baniu; suas esperanças políticas não se cumpriram; ele permaneceu solitário e pobre, e subiu por escadas alheias6. Em uma época posterior tal homem teria ficado dividido internamente, se teria convertido em acusador e revoltado, e da mesma maneira que se lançou contra seu ambiente terreno, teria se revoltado contra o destino. Todavia, tão rígida quanto os infortúnios de Dante foi a sua fé. Nenhum fracasso poderia abatê-lo; sua paixão orgulhosa era tão livre de dúvidas e tão incondicionalmente segura, que ele se sentia um com Deus; seu mundo e o de Deus eram um e o mesmo; no final dos tempos haveria o juízo, e ele, Dante, já sabia como Deus julgaria. E, tomado de impaciência para ouvir aquele último juízo, ele projetou seu ambiente terrestre para o domínio do infinito e criou o mundo dantesco sub specie aeternitatis; no sentimento seguro de ser unicamente um mandatário, um arauto, um receptáculo de Deus.
Porém, que forma assumiu esse mundo? É o mundo terreno, com toda a sua força sensível. Nele até mesmo a paisagem conservou-se terrena, apenas intensificada a um nível fantasticamente descomunal. Mas, sobretudo, os seres humanos: eles nada perderam do seu eu terreno; ao contrário, tudo o que lhes era particular foi intensificado no sobrenatural, e dessa particularidade se extrai ou a condenação, ou a expiação, ou a bem-aventurança. “Tal como era eu em vida, permaneço na morte”, diz Capaneo (Inferno XIV), e o mesmo vale para todos. Inclusive no Paradiso o afeto individual se expressa nos mais vivos gestos corporais, e a Dante nunca ocorreu, como aos místicos alemães, que para agradar a Deus fosse preciso sacrificar a sua própria individualidade. Porque é precisamente nela que reside o decisivo: caráter e destino são um só, e na livre escolha do eu autônomo está o seu destino. Em sua particularidade, ele foi criado por Deus, mas a liberdade da decisão lhe foi legada.
Eis o segredo do vínculo interior de Dante: em sua concepção da particularidade humana como algo atrelado ao destino. Os seres humanos sem uma existência pessoal eram-lhe os mais desprezíveis, viveram sem pejo e sem glória e sequer são tomados em consideração: uma humanidade peculiar e distintiva era a condição fundamental, sem a qual nem mesmo algo de mau poderia suceder. Entretanto, por tentador que seja, deve-se ter cuidado ao ver aqui um individualismo no sentido dos filósofos modernos. Somente a submissão à vontade divina conduz à redenção, e os orgulhosos revoltosos do Inferno não tinham qualquer outro apoio além de uma teimosia infundada. O destino é o único juiz, o destino é Deus, e não há valor algum na personalidade “em si”.
Sentimos muito claramente o quão pouco essa análise captura a plenitude sensível da essência de Dante. Basta reconhecer que este poeta, de quem os estudiosos se ocupam há séculos, é pouquíssimo problemático quando visto de um ponto de vista geral. O mundo, para ele, está fechado, e a ordem está completa. O caminho é íngreme, mas a direção está dada.
E agora a distância que separa Dante dos séculos posteriores torna-se clara para nós: não é a separação de alma e corpo, visto que Michelangelo e Shakespeare ainda lograram criar uma imagem sensível da alma; mas, decerto, a cisão de destino e caráter na consciência humana. Enquanto buscarmos a justificação de nossa existência e de nossa ação em outro lugar que não em nosso destino, (ou, ao menos, em nossa esperança metafísica; enquanto nossos próprios parâmetros - sejam eles racionais e terrenos, como a virtude e a justiça, sejam os não terrenos e místicos, como a alienação de si e a renúncia à vida) não poderemos encontrar, na Comédia, algo além de alguma beleza poética e um amplo material para a atividade erudita. Somente quando a comunidade cultural em que vivemos recuperar aquela forma fechada, da qual retire força e coragem suficientes para reconhecer o seu destino como juiz; somente então a comemoração de Dante será algo mais do que uma celebração de estudiosos e entusiastas.
Referências
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- AUERBACH, Erich [1938]. Figura. In: AUERBACH, Erich. Gesammelte Aufsätze zur romanischen Philologie hrsg von Matthias Bormuth und Martin Vialon. Tübingen: Francke, 2018.
- AUERBACH, Erich. Sobre el aniversario de Dante. Trad. Claudio Soltman. Cuadernos de Teoría y Crítica Mimesis y realism: Erich Auerbach, Viña del Mar, p. 39-42, sept. 2017.
- AUERBACH, Erich [1921]. On the Anniversary Celebration of Dante. Trad. Jane O. Newman. In: PORTER, James I. (ed.). Erich Auerbach, Time, History, and Literature Selected Essays of Erich Auerbach. Princeton: Princeton University Press, 2014.
- AUERBACH, Erich. Neue Dantestudien. Istanbuler Schriften, n. 5, Istanbul Yazilari, 1944.
- AUERBACH, Erich [1929]. Dante als Dichter der irdischen Welt Berlin: De Gruyter, 2001.
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- BARCK, Karlheinz; TREML, Martin(eds.). Erich Auerbach Geschichte und Aktualität eines europäischen Philologen. Berlín: Kadmos, 2007.
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- TROELTSCH, Ernst. Der Berg der Läuterung. Rede zur Erinnerung an den 600jährigen Todestag Dantes, gehalten im Auftrage des Ausschusses für eine Dantefeier am 3. Juli 1921 in der Staatsoper zu Berlin. Berlin: [s. n.], 1921.
- VIALON, Martin. The Scars of Exile: Paralipomena concerning the Relationship between History, Literature and Politics - Demonstrated in the Examples of Erich Auerbach, Traugott Fuchs and their Circle in Istanbul. Yeditepe’de Felsefe, n. 2, p. 191-246, 2003.
- VOSSLER, Karl. Die göttliche Komödie. Entwicklungsgeschichte und Erklärung 2 Bde. Heidelberg: Carl Winter’s Universitätsbuchhandlung, 1907; 1910.
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A história da recepção alemã de Dante remonta ao século XIV, quando sua obra tinha um alcance ainda muito modesto, limitado à apropriação política do tratado De Monarchia [A Monarquia] (1312-1313). Uma das poucas ocasiões em que o poeta fora mencionado publicamente ocorreu no âmbito das querelas político-religiosas entre o papa e os príncipes germânicos, embasando os argumentos destes últimos contra a interferência de Roma nos assuntos de governança local. Movidos pelo ambicioso projeto de eleger um soberano para o Sacro Império a despeito da vontade do líder da igreja, eles lembravam com entusiasmo do poeta que, em Florença, teria manifestado opiniões semelhantes às suas. Todavia, por essa mesma razão, Dante cairia em desgraça nos territórios germânicos. Aos olhos da maior parte dos intelectuais católicos, A Monarquia manejava um questionamento perigoso e inaceitável ao princípio da infalibilidade papal, uma afronta que justificaria sua inclusão no Índex prohibitorum e a condenação de seu autor pelo agravo de heresia. Com algumas exceções aqui e ali, os séculos seguintes seguiriam a tendência dogmática da recepção dantesca, reforçada, sobretudo, após as Reformas Religiosas, quando então, assente em um novo repertório religioso, Dante tornou-se o grande antecipador da vontade reformista no país. Absolvida de sua culpa, afinal, A Monarquia pôde circular em territórios de confissão protestante, enquanto aos católicos a leitura permaneceria vetada. Somente em 1921, na esteira do jubileu, o papa Bento XV assinou a retirada da Monarquia do index, e conclamou os intelectuais católicos a comprovar a relação de Dante com a sua fé, em detrimento da apropriação protestante. Cf. Encíclica In praeclara, datada de 30 de abril de 1921, motivada pelo 6º centenário da morte de Dante. Disponível em: http://www.vatican.va/content/benedict-xv/la/encyclicals/documents/hf_ben-xv_enc_30041921_in-praeclara-summorum.html. Acesso em 21 nov. 2022. A discussão sobre as apropriações católica e protestante de Dante pode ser aquilatada em Elsky (2017, p. 21-45).
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A palavra “diletante” precisa ser mais bem avaliada. Desde o início da fase crítica da recepção de Dante na Alemanha, que de acordo com Scartazzini se inicia na segunda década do século XIX com a vigorosa atuação de Karl Witte (1800-1883), a obra do poeta florentino é admirada por intelectuais extremamente eruditos dentro e fora dos círculos profissionais das universidades. Exemplo disso era o círculo de Dresden, coordenado pelo próprio Witte, um jurista, e o príncipe - e depois rei da Saxônia - Johann Nepomuk (1801-1873) sob o pseudônimo de “Philalethes” (Amigo da Verdade). Dessa colaboração surgiu a primeira sociedade de Dante fora da Itália, a Sociedade Alemã de Dante [Deutsche Dante Gesellschaft], atuante até os dias atuais. Desde 1867, a DDG produz um rico material de pesquisa, o “Anuário alemão de Dante” [“Deutschen Dante-Jahrbuchs”], com artigos, monografias, traduções, resenhas e listas de publicações sobre o poeta em língua alemã. O grande prestígio da instituição atraiu também romanistas profissionais, como Karl Vossler, e representantes de áreas diversas das humanidades [Geisteswissenschaften]. Cf. Scartazzini (1881; 1899).
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Nas comemorações organizadas pela Sociedade Alemã de Dante, Hugo Daffner (1882-1936), então presidente da instituição, perguntava: “Was kann uns Dante sein?” [“O que Dante pode ser para nós?”] (DAFFNER, [1921] 1923). A derrota no conflito demandava a busca por um modelo moral que reconstruísse o caráter alemão e, nesse sentido, Ernst Troeltsch (1865-1923), Max Koch (1855-1931) e Eduard Wechssler (1869-1949) apostaram, cada um a seu modo, na “metáfora da ascensão”, em cuja formulação a subida de Dante pelo purgatório sinalizava o caminho, a marcha ascendente do povo alemão após a derrota na guerra. Conferir meu artigo “Erich Auerbach e a apologia das ações modestas”, publicado neste número da revista Topoi.
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Zur Technik der Frührenaissancenovelle in Italien und Frankreich [A novela no início do Renascimento. Itália e França] (1921). Cf. versão em português: Auerbach (2013).
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Tradução de Patrícia da Silva Reis Marques. Revisão da tradução: Leopoldo Waizbort (Universidade de São Paulo / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Sociologia, São Paulo, SP). AUERBACH, Erich. Zur Dante-Feier. Die neue Rundschau 32.2, p. 1.005-1.006, 1921. Agradeço à revista Die neue Rundschau por autorizar a tradução deste artigo. O texto aqui apresentado foi traduzido diretamente do alemão, embora tenha sido considerada a versão em inglês. O leitor pode encontrá-lo em: Barck e Treml (2007, p. 407-409); Auerbach (2014, p. 121- 123); Auerbach (2017, p. 39-42).
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Paraíso XVII, 58-59. N.T.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
25 Ago 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
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Recebido
27 Fev 2023 -
Aceito
05 Mar 2023