Open-access Entre a crítica do iberismo e a adesão ao desenvolvimentismo: a interpretação da história pelos liberais da República de 1946

Between the Critique of Iberism and the Adherence to Developmentalism: The Interpretation of History by the Liberals of the Republic of 1946

Entre la crítica del iberismo y la adhesión al desarrollismo: la interpretación de la Historia por los liberales de la Republica de 1946

RESUMO

O presente artigo trata da interpretação dos liberais da República de 1946 sobre a História ocidental e, dentro dela, da História do Brasil, inserindo-se nos estudos da História do pensamento político. Tendo como principais aportes teóricos a interpretação de Reinhart Koselleck sobre o conceito de progresso na filosofia da história da modernidade e as considerações de John Pocock sobre a relação entre langue e parole no estudos das linguagens políticas, apontamos que o contexto de emergência de uma lógica de centralização administrativa e de planejamento econômico vivida naquele período deu ao liberalismo brasileiro conformação específica, que não pode ser sublimada pelo entendimento da ideologia em longa duração. Entendemos que tanto a crítica quanto o elogio das políticas adotadas entre 1946-1964 podem ser acessados através da interpretação da história produzida por agentes históricos filiados ao liberalismo, os quais compartilhavam o entendimento de que atingir o progresso seria superar os problemas de formação histórica legados ao Brasil. Consideramos que este estudo se faz relevante não só porque auxilia na compreensão dos dilemas do liberalismo brasileiro no decorrer do tempo, mas também porque busca evidenciar como contextos específicos podem alterar linguagens políticas que lhe são anteriores.

Palavras-chave liberalismo; pensamento político brasileiro; História Intelectual; História da Historiografia; República de 1946

ABSTRACT

This article discusses how the liberals of the Republic of 1946 interpreted Western History and, within it, the History of Brazil. It contributes to the literature on the history of political thought, having as its main theoretical influences Reinnhart Koselleck’s interpretation of the concept of progress in the philosophy of the history of modernity and John Pocock’s considerations on the relationship between langue and parole in the study of political languages. We argue that the context surrounding the logic of administrative centralization and economic planning that emerged during that context gave Brazilian liberalism a specific shape, which cannot be sublimated by looking at the ideology from a long-term perspective. Those affiliated with liberalism during this period shared the understanding that achieving progress would be to overcome the problems of historical formation bequeathed to Brazil, and their interpretation of history can be seen in both the criticism and praise of policies adopted between 1946-1964. This study is relevant not only because it helps to understand the long-standing dilemmas associated with Brazilian liberalism, but also because it seeks to show how specific contexts can change political language.

Keywords Liberalism; Brazilian Political Thought; Intellectual History; History of Historiography; Republic of 1946

RESUMEN

El presente artículo aborda la interpretación de los liberales de la República de 1946 sobre la Historia occidental, y dentro de ella, la Historia de Brasil, involucrando los estudios de la Historia del pensamiento político. Teniendo como principales aportes teóricos la interpretación de Reinhart Koselleck sobre el concepto de progreso en la filosofía de la historia de la modernidad y las consideraciones de John Pocock sobre la relación entre langue e parole en los estudios de los lenguajes políticos, apuntamos que el contexto de emergencia de una lógica de centralización administrativa y de planificación económica vivida en aquel periodo dio al liberalismo brasileño conformación específica, que no puede ser exaltada por el entendimiento de la ideología en larga duración. Entendemos que tanto la crítica como el elogio de las políticas adoptadas entre 1946-1964 pueden ser aclaradas a través de la interpretación de la historia producida por agentes históricos afiliados al liberalismo, los cuales compartían el entendimiento de que alcanzar el progreso sería superar los problemas de la formación histórica ligados a Brasil. Consideramos que este estudio se hace relevante no sólo porque ayuda en la comprensión de los dilemas del liberalismo brasileño a lo largo del tiempo, sino que también busca evidenciar cómo contextos específicos pueden alterar lenguajes políticos que le son anteriores.

Palabras Clave liberalismo; pensamiento político brasileño; Historia Intelectual; Historia de la Historiografía; República de 1946

Introdução

Para além de uma agenda consolidada internacionalmente nos estudos de História do pensamento político e de Teoria da História (POCOCK, 2003; KOSELLECK, 2006; KOSELLECK et al., 2013), a questão dos usos políticos da história ou da interpretação por ela feita por ideologias políticas tem chamado a atenção de cientistas sociais e historiadores brasileiros nos últimos anos (LYNCH, 2016; BAUER; NICOLAZZI, 2016; OLIVEIRA, 2021). Do ponto de vista da produção sobre ideologias políticas, a literatura se concentra em estabelecer as linhagens (BRANDÃO, 2010) ou o núcleo conceitual (FREEDEN, 2006) que permite compreender os supostos elementos perenes de uma vertente do pensamento político. Nessa empreitada, é comum o entendimento de que determinada visão de história tende a ser compartilhada por agentes filiados a determinada ideologia política.

No caso do liberalismo, o esforço de perceber uma interpretação da história - que por vezes soa ela mesma fora do tempo - crítica à presença forte do Estado ou que dá agência ao mercado como motor da mudança enubla outras percepções possíveis. Em um contexto histórico como a República de 1946 brasileira não é consenso entre os liberais do país que o mercado é um mecanismo que sempre operou positivamente na história. Também não aparece a ideia de que o Estado necessariamente produzia distorções. Sem querer descartar o esforço de entendimento do liberalismo por uma longa duração - que aqui também não excluímos- pretendemos demonstrar como contextos específicos podem modificar essa ideologia política, a fim de que os filiados a ela possam responder às questões que se apresentam em seu tempo.

Pretendemos neste artigo apontar que não há apenas uma interpretação da história do Ocidente e do Brasil entre os liberais entre 1946 e 1964. Embora existam semelhanças perceptíveis, há juízos com sentidos opostos e protagonistas distintos selecionados como importantes na história do país e do bloco do mundo a que ele supostamente pertenceria. O que une os liberais do período é seu compartilhamento de uma filosofia da história (KOSELLECK, 2006) que entendia o progresso em sentido linear cujo telos era o aumento contínuo do bem-estar e das liberdades individuais, no qual a Inglaterra e depois os EUA são apontados como indutores do processo que, em casos específicos - como Afonso Arinos -, dividem este papel com a França. O Brasil é geralmente tratado como desvio ou caso singular desta regra, um país atrasado e impedido por forças internas de se desenvolver. A crítica à colonização ibérica costuma ser o principal motivo apontado para o problema, com maior destaque para os defensores da via do desenvolvimento liberal neste ponto. Todavia, existem diferenças importante sobre o entendimento do processo histórico nacional e de quais os problemas nele presentes que precisariam de correção. Os remédios indicados igualmente variam. A partir da análise de texto publicados no período por Eodoro Berlinck, Raymundo Faoro, Afonso Arinos de Melo Franco e Roberto Campos, buscaremos sustentar nossa interpretação a partir da divisão do liberalismo do período em duas grandes correntes. A primeira é aquela crítica ao iberismo e entusiasta do conceito de sociedade civil. A outra reúne os que aderiram ao ideário desenvolvimentista do período e visaram conciliar sua filiação liberal a ideias circulantes, como as de nacionalismo e de planejamento.

A escolha dos autores teve como critério mobilizar atores que ao mesmo tempo fossem paradigmáticos do liberalismo da República de 19461, tal como apontado pela bibliografia especializada (CHALOUB, 2015; LATTMAN-WELTMAN, 2005; BIELSCHOWSKY, 2004; SILVA, 2006; PEREZ, 2021; LYNCH, 2021; VIANNA, 2009), mas que buscassem intervir no debate público a partir tanto desta filiação quanto como intelectuais. Os autores selecionados - Eodoro Berlinck, Raymundo Faoro, Afonso Arinos de Melo Franco e Roberto Campos - se autoidentificavam enquanto liberais e escreviam textos nos quais articulavam esta linguagem e advogavam qual era o sentido dela em seu tempo. Ao mesmo tempo, eles participaram das instituições políticas da República de 1946, como ministro de Estado (Campos), parlamentar (Arinos), membros do partido União Democrática Nacional (Arinos e Berlinck) ou procurador do Estado (Faoro). A seleção específica destes autores se deu por eles serem aqueles que uniam esse conjunto de critérios. Já seleção dos textos teve como fundamento destacar as análises mais próximas do objeto em questão, ou seja, a interpretação da história feita por estes autores. Portanto, mesmo nos casos em que os originais eram textos de intervenção conjuntural e não sistemática, adotamos as edições em livros das obras. Uma vez que alguns destes autores - como Afonso Arinos e Roberto Campos2 - decidiam publicar seus textos como parte de uma obra, eles se colocavam não só na função de atores políticos, mas de intelectuais que se julgavam capazes de entender os processos em curso de forma sistemática. Para tal, a visão deles sobre a história era fundamental, porque vista como o legado que definiu o modelo de intervenção no presente.

O aporte teórico que mobilizamos para compreender as publicações destes autores enquanto discursos de atores políticos é o de Quentin Skinner (1969) e John Pocock (1981; 2003). Do primeiro, recepcionamos a mobilização feita da teoria dos atos de fala de John Austin (1990) para pensar textos enquanto performance de linguagem, cujo efeito ilocucionário seria o de transmitir uma mensagem que ao mesmo tempo realiza uma ação, enquanto o perlocucionário se daria na intenção de gerar efeitos no leitor (FERES JR., 2005)3. Portanto, estes intelectuais eram atores políticos não só porque tiveram cargos dentro das instituições do regime, mas porque interviam no debate público a partir de seus textos e buscavam convencer seus leitores de quais deveriam ser os caminhos - liberais - do Brasil, a partir da interpretação da história do país.

Do diálogo construído por Joao Feres Jr. entre Skinner e Ricoeur, mas também de Pocock, nos apropriamos da percepção de que o analista do pensamento político lida com textos entendidos como discursos, ou seja, como sequência de atos de fala que funcionam como a linguagem performada por atores de uma estrutura social, linguagem política e contexto histórico (FERES JR., 2005; POCOCK, 1981). Para ele, entre as tarefas do historiador do pensamento político estariam as de descobrir a quais linguagens os textos-discursos pertencem e compreender de que modo eles são alterados pelo contexto. Trazendo para nosso objeto, em um período marcado pelo auge da ideia de planejamento estatal da economia (BIELSCHOWKY, 2004), como a República de 1946, identificamos uma alteração contextual que modificou a linguagem política liberal brasileira, que teve de responder a este desafio. Nos textos dos autores aqui analisados, identificamos duas formas discursivas de fazê-lo, uma pela rejeição à intervenção do Estado e outra que tenta conciliar liberalismo e desenvolvimentismo. Nas próximas seções, elas serão exploradas.

Crítica ao iberismo: em busca de uma sociedade civil brasileira

A crítica ao chamado “iberismo” (VIANNA, 1997, p. 151) é comum ao pensamento liberal brasileiro ao menos desde o século XIX. Personagens como Aureliano Tavares Bastos (1975) já apontavam em suas Cartas do solitário, de 1863, a colonização portuguesa como um mal do nosso atraso que precisava ser corrigido por descentralização administrativa e formação de uma sociedade liberal de mercado (FERREIRA, 1999; VIEIRA, 2021). Outras expressões do liberalismo crítico ao Estado e que mobilizavam a chave de crítica ao iberismo surgiram na República de 1946. Esses autores pensam tais questões em chave que aqui classificamos como via de desenvolvimento liberal, com preocupação mais diretamente atenta para o vocabulário jurídico e ao político-econômico que emergia naquele paradigma.

A República de 1946 é um momento da emergência do paradigma acima referido devido ao otimismo com as políticas macroeconômicas encabeçadas nos anos anteriores por Getúlio Vargas (BIELSCHOWISKY, 2004; LEOPOLDI, 2007). Naquela experiência do Estado Novo, houve uma aceleração da industrialização brasileira, com centralização administrativa no poder executivo e consequente aumento da participação do poder público na economia. Todavia, também no contexto internacional, os conceitos de desenvolvimento e de planejamento ganharam centralidade que não tinham antes da Segunda Guerra Mundial. Como aponta Tony Judt:

A noção de que era preferível deixar tais questões ao exercício do interesse próprio esclarecido e do funcionamento do livre mercado, para bens e ideias, era considerada nos círculos hegemônicos europeus (políticos e acadêmicos) uma exótica relíquia da era pré-keynesiana: na melhor das hipóteses, o conceito traduzia a incapacidade de aprender com a Depressão; na pior, tratava-se de um convite e um apelo aos instintos humanos mais primitivos (JUDT, 2007, p. 368).

Esta mudança contextual forçou atores políticos e intelectuais de distintas filiações a pensarem o problema da relação entre Estado e economia. Aqueles que já davam centralidade à questão, chegaram a referi-la como “problema do século” (FURTADO, 1962, p. 92). De fato, o tema mobilizou à época conservadores como Juarez Távora e Golbery do Couto e Silva (TÁVORA, 1962; SILVA, 1981) e socialistas de distintas matizes, como o trabalhista Alberto Guerreiro Ramos (1963) e o comunismo de corte pecebista de Nelson Werneck Sodré (1963). Dentro desse contexto linguístico desenvolvimentista que se formava, os liberais não estavam excluídos, havia aqueles como Afonso Arinos de Melo Franco e Roberto Campos, que almejavam conciliar essas mudanças no plano doméstico e no internacional com o seu ideário liberal e, outros, que viam a intervenção do Estado na economia como avesso a sua ideologia e visão de mundo, como o udenista Eodoro Berlinck, e o jurista Raymundo Faoro. Em todos estes casos, os liberais vinculavam a sua posição sobre o desenvolvimentismo e o planejamento a uma leitura da história ocidental, fosse para condenar ou elogiar estas medidas.

Dois anos após o fim do Estado Novo, o jurista paulista e ligado à UDN Eodoro Lincoln Berlinck (1948) publicou Fatores adversos na formação brasileira. O volume é dedicado à memória de Manuel Bonfim e Tavares Bastos, sem esconder as predileções ideológicas do autor. Chegando a se referir ao segundo como “verdadeiro sociólogo” e o mobilizando como fonte principal em suas leituras sobre o Império brasileiro:

Pode parecer que tudo isso seja queixume de bacharel em direito com fumaças de liberalismo, mas o grande espírito de Tavares Bastos mergulha no âmago da sociedade brasileira e nos traz de lá, não flores de retórica demagógica, mas fatos profundamente chocantes e contristadores. Ele fotografa o Império em todos os ângulos possíveis.

(…)

Esse foi um “sketch” do Império feito por um verdadeiro sociólogo. Como se vê o quadro não era risonho. Dentro do desenvolvimento histórico, depois de eliminados os legítimos revolucionários da independência e da democracia, pelos que desejavam a todo o custo conservar o passado, logicamente não poderíamos encontrar coisa melhor que Tavares Bastos escalpelou (BERLINCK, 1948, p. 208-209).

O conteúdo do livro é uma interpretação culturalista do Brasil, que parte de ponto de vista liberal e que apresenta feição weberiana. Ele atribui o atraso brasileiro à manutenção de uma mentalidade portuguesa, que impediu a formação de uma sociedade liberal de mercado e de sociedade civil. O nosso colonizador nos teria legado um tipo social que não valorizaria o trabalho e a cultura, seria reverente para com o Estado e que almejaria enriquecer se colando às autoridades ao invés de valorizar o próprio esforço. Para resolver o problema seria preciso uma ação do Estado, mas não de intervenção na atividade econômica - porque ela poderia se desenvolver naturalmente - mas na correção dos problemas que a colonização gerou. O autor defende investimento público em educação e em obras de infraestrutura como medidas corretivas dos males da formação nacional que poderiam fazer o Brasil se parecer mais com os EUA.

O livro é em sua maior parte uma longa digressão historiográfica com intenções sociológicas (BERLINCK, 1948, p. 85) de demonstrar os efeitos considerados nefastos do iberismo no Brasil. Assim, o texto vai desde a formação do Estado português no medievo, passando pela expansão marítima, a vinda da Corte e o Império, para diferenciar nossa colonização lusa daquela realizada pela Inglaterra. Como o próprio título anuncia, a intenção é a de demonstrar “os fatores adversos que entravam o livre desenvolvimento no nosso país” (BERLINCK, 1948, p. 86). O ovo da serpente estaria nas invasões bárbaras aos romanos, que teriam substituído uma civilização por uma cultura atrasada. Na península ibérica, o espírito guerreiro herdado teria sido mantido pelo conflito com os árabes, mantendo uma mentalidade entre o Estado e as classes sociais de subserviência, por medo e necessidade de proteção. Nesta concepção, “tudo pertencia ao Rei, chefe da reconquista”. Esse poder funcionaria como direito pessoal que era transmitido hereditariamente e que era compartilhado com os companheiros de guerra. A partir daí que teria se formado o “patrimônio real” (BERLINCK, 1948, p. 37). Com a revolução de Avis, esta concepção se petrificou, impedindo que se gerasse uma sociedade livre de mercadores, produtores e aberta ao comércio internacional - tal como se iria configurando na Inglaterra.

Com esse espírito que haveria se empreendido a expansão marítima, de modo que seu significado político teria sido a junção da cultura medieval de liderança em torno de um chefe com uma ambição ampliada a todos de enriquecimento fácil. Portugal cada vez mais se demonstraria atrasado na marcha do progresso, sedimentando-se em uma mentalidade atrasada para a Idade Moderna. Esses entraves foram transferidos para o Brasil, que haveria reproduzido o descaso pela educação, pela liberdade individual, pela relação com outros países e pela submissão para com o Estado como forma de obter privilégios. O lusitano e depois o colono brasileiro teriam se acostumado a confiar no Estado como provedor. O incentivo de procura para riquezas fáceis e a concepção de que o Brasil e a Índia eram propriedades do rei, que podia distribuir as partes, não estimularam na mentalidade portuguesa e depois brasileira o espírito de valorização do trabalho, fosse agrícola ou industrial. O autor chega a comparar o sentimento de lealdade e a relação de paternalismo para com a Coroa portuguesa à lealdade ao Fuher do nazismo. Tratar-se-ia da mesma “psicose” (BERLINCK, 1948, p. 57).

Entre os séculos XVI e XVIII, Portugal teria progressivamente ampliado seu descompasso na marcha da civilização e do desenvolvimento, movimento continuado pela vinda da Corte e o estabelecimento nestas terras da fonte de “opressão política” (BERLINCK, 1948, p. 86). Uso de escravos, exploração predatória das índias, cobrança tirânica de impostos e a ambição de obter riquezas a qualquer custo seriam expressões disso. Já os supostos efeitos positivos da presença da Corte no século XIX seriam insignificantes perto do mal que teriam feito pela repressão de qualquer esforço local de autonomia: “No campo político e no campo econômico, o brasileiro estava definitivamente amarrado à opressão colonial, apesar da vinda de missões artísticas, estabelecimento de museus, jardins botânicos, aulas de pintura e escultura etc.” (BERLINCK, 1948, p.107). Com medo de perder riquezas, a atividade mineradora e a agricultura não foram deixadas livres. Esses monopólios originados no século XVIII teriam permanecido no século XX, pelo controle do açúcar pelo Instituto do Açúcar e Álcool e do Sal pelo Instituto do Sal. O resultado diagnosticado é o mesmo, a produção sofreria entraves, o mercado negro cresceria e a demanda interna seria incapaz de ser suprida sem importações.

Já a independência teria sido a “ponte passagem” das tradições lusas e seus vícios para a nação brasileira, visto que o processo foi realizado pelo “alto funcionalismo português” (BERLINCK, 1948, p. 178), sem nenhuma mudança na ordem estabelecida. Ela seria mero conjunto de manobras políticas para manter uma forma de administração pública de tipo colonial, que teria perdurado no tempo até aqueles anos em que Berlinck escrevia. Dom Pedro I é representado como “elemento perturbador da independência brasileira” (BERLINCK, 1948, p. 196) que contribuiu para o continuísmo com Portugal e a manutenção do Brasil como uma sociedade escravocrata e sem capacidade de desenvolver uma classe média (análoga à ideia liberal de sociedade civil) que reivindicasse direitos e pressionasse o Estado para concedê-los.

Enquanto isso, os casos de resistência ao processo são classificados como nobres movimentos da sociedade civil em lugares em que teria havido condições econômicas e sociais para formá-la. Portanto, a Revolução de 1817 em Pernambuco, seus movimentos contra o processo de independência e a Confederação do Equador são para Berlinck (1948, p. 192) reações de uma “classe culta, educada no idealismo liberal” contra aquele estado de coisas. Já a revolta farroupilha, teria sido um movimento de uma província economicamente dinâmica, com relações horizontais entre senhores e empregados e com pouco uso de mão de obra escrava. A província teria aprendido a exercer sua liberdade e elevar seu tipo humano através dos conflitos pelos quais passou localmente. O Rio Grande do Sul haveria se levantado contra o “partido retrógrado” (BERLINCK, 1948, p. 201) em nome de sua autonomia para indicar o presidente da própria província. Todos estes levantes foram impedidos pela força opressora do Estado arcaico de origem portuguesa.

Para além de expor o sentido repressor e avesso ao desenvolvimento da formação de Portugal e do Brasil, Eodoro Berlinck ocupa-se de compará-lo ao maior caso exemplar de sucesso, que havia seguido uma via de desenvolvimento liberal. O modelo anglo-saxão teria sentido inverso ao nosso, tal como demonstrado no sumário do capítulo específico do tema:

SUMÁRIO

Diferenças de origem. Diferenças de povo. Diferenças de objetivos. Diferenças de regime político. Diferenças de regime fiscal Diferenças de cultura. Reflexos na mãe pátria. Reação final contra uma possível tirania econômica e política (BERLINCK, 1948, p. 122).

O “contraste máximo” entre a colonização brasileira e da América do Norte haveria se dado “no regime econômico e político” (BERLINCK, 1948, p. 134). A colonização feita pelos anglo-saxões não teria sido vontade política da Coroa e resultado de seu dirigismo, mas fruto da iniciativa privada. Enquanto a colonização brasileira teria seguido no influxo da mentalidade gerada no saque das índias, contrária ao andar da civilização, a mentalidade do colono norte-americano se orientaria no entendimento de que o enriquecimento precisava vir de seu trabalho e inteligência próprios. As companhias de comércio inglês teriam induzido o desenvolvimento dos EUA com uma forma de administração típica das empresas e não do Estado. Isso só poderia ter ocorrido porque a Coroa britânica não insistiu na “mania de pesquisar ouro” (BERLINCK, 1948, p. 123), portanto tanto as companhias quanto os colonos locais aprenderam a prosperar pelo seu próprio trabalho. Na organização política, os locais eram igualmente livres para seu autogoverno, em uma sociedade horizontal. A partir das constantes querelas com a Coroa, aquele povo havia se educado para a contestação e a participação política.

Como a América do Norte não teve política de fechamento dos portos para os estrangeiros, os colonos permaneceram em contato com o avanço da civilização europeia. Com o passar do tempo, aquelas terras teriam se convertido em uma vitrine da liberdade contra os conflitos europeus, resultando no aumento da imigração entre os séculos XVII e XVIII. Quando lá chegavam, os trabalhadores eram contratados em regime livre, sem escravidão4. Portanto, não se fez uma cultura de aversão ao trabalho manual, e tanto patrões quanto empregados empenhavam esforços. Ao mesmo tempo, a tolerância religiosa teria permitido a vinda de homens cultos, que eram inseridos na sociedade quando lá chegavam. Diferentes de nós, desde o século XVII os Estados Unidos contariam com universidades. A independência dos EUA é tida como consequência deste espírito educado, pois no momento em que a Coroa decidiu aumentar os impostos e o controle em um nível muito inferior ao que ocorria no Brasil, os colonos criados na cultura da liberdade teriam reagido de maneira incisiva com protestos. Infelizmente, nossa realidade era outra: não seguimos esta via de desenvolvimento liberal protagonizado pela sociedade civil livre, portanto precisávamos nos emancipar deste entulho cultural que nos foi transmitido pelo Estado português:

Na impossibilidade de juntar toda a população brasileira e colocá-la a bordo de um gigantesco ‘May Flower’, e recomeçar todo trabalho de colonização de 4 séculos, temos que aceitar o que está aqui e procurar corrigir todos os erros da colonização portuguesa, que não tinha a finalidade de construir uma nação livre e adiantada nestas plagas, mas apenas sugar recursos, para sustentar o velho Portugal (BERLINCK, 1948, p. 292).

O texto clássico que consolidou no imaginário social brasileiro a interpretação da política brasileira por chave crítica ao iberismo foi publicado por outro jurista, dez anos depois de Berlinck. Em Os donos do poder, Raymundo Faoro (1958) lança sua leitura dos erros da formação nacional em chave crítica ao protagonismo do Estado no processo. Pelo ano de sua divulgação ao público, a obra pode ser tida como uma crítica sociológica ao plano de Metas e a aos órgãos de administração paralela, como Sumoc, Sudene e o Conselho de Desenvolvimento, durante o governo Juscelino Kubitschek. Modelo este que pode ser considerado como cristalização do modelo desenvolvimentista de intervenção do Estado na economia (ARAÚJO; MATTOS, 2020, p. 183).

Segundo Carlos Pinkusfeld Bastos e Pedro Vasconcellos Costa5 (apud ARAÚJO; -MATTOS, 2020) no governo JK estava consolidada a ideia de que cabia ao Estado criar diagnósticos sobre os entraves para o desenvolvimento e prover a infraestrutura e os insumos necessários à industrialização, tida como crucial para o desenvolvimento econômico. Neste projeto, o principal ponto de partida foi a criação do Conselho do Desenvolvimento, em 1° de fevereiro de 1956, que deu origem ao Programa (ou Plano) de Metas. Dentro dele, havia cinco áreas prioritárias: energia, transportes, indústria de base, alimentação e educação. Isto teria sido implementado por meio de uma estrutura paralela da burocracia estatal, ligada diretamente ao Executivo Federal. Já o financiamento era prioritariamente público, com participação do setor privado nacional e estrangeiro.

Escrita nesta conjuntura, a análise de Raymundo Faoro não é tão distinta nos seus fins da feita por Eodoro Berlinck em 1948: ambas partem da leitura de que a estrutura do Estado português legou uma administração e uma relação opressora entre Estado e sociedade - e, por consequência, com a economia - que impediu o desenvolvimento do Brasil por uma via anglo-saxã. O livro parte de uma descrença do aparelho estatal como forma de produzir modernização e desenvolvimento e aposta na via que aqui chamamos de desenvolvimento liberal. Entretanto, seu viés é mais progressista que Berlinck. Diferente deste último, na obra de Faoro o motor da história não é o mercado desregulado, mas a sociedade civil autônoma, cujo ente econômico era sua consequência. Ela teria sido constantemente boicotada pela estrutura autoritária herdada da Península Ibérica e continuada até aqueles anos. Seu conteúdo parte de uma “viagem redonda”6 por retas paralelas em que a Inglaterra e os EUA têm sua história ocorrendo ao mesmo tempo da de Portugal e do Brasil, mas nunca se encontrando. Os donos do poder pode ser tido, então, como uma continuação da crítica liberal que existia no Brasil desde o século XIX e que passou por Tavares Bastos e Eodoro Berlinck.

Embora nos outros autores também se possa perceber uma leitura weberiana da modernidade, Raymundo Faoro inova ao basear todo o livro em conceitos explicitamente ligados ao autor alemão. Dentre eles, o mais célebre é o do tipo de dominação7 (WEBER, 1999) patrimonialista para se referir ao modelo do Estado brasileiro. O juízo se assemelha ao de Berlinck, que igualmente entende sua origem em um modelo feudal de administração no qual Rei toma as riquezas do reino como seu patrimônio e as distribui a partir de critérios personalistas em benefício de seus escolhidos. Todavia, é apenas em Raymundo Faoro que esta prática é classificada como patrimonialista e sua classe de apoio de estamento burocrático. Esta, por sua vez seria o “pecado original da formação portuguesa [que] ainda atua em suas influências, vivas e fortes, no Brasil do século XX” (FAORO, 1958, p. 12). Segundo análise de Pedro Marreca (2020), a teoria do patrimonialismo que vinha no influxo do pensamento político liberal do Brasil opunha um desenvolvimento orgânico do capitalismo, no qual “sem interferência política, os atores sociais tornavam-se capazes de organizar seus interesses segundo as regras impessoais de mercado” (MARRECA, 2020, p. 45) ao capitalismo politicamente orientado que teria nos marcado. Por consequência, nossa formação econômica e política seria um desvio na história da modernidade.

Diferentemente de Berlinck, ao tratar do medievo, Faoro não opõe a dominação romana à dos povos germânicos, pois as considera igualmente atrasadas. O amálgama de ambas é o que teria possibilitado, com a Revolução de Avis, a consolidação do estamento burocrático. Mobilizando mais uma vez a concepção weberiana, ele distingue classe (posição econômica, vinculada à economia de mercado) e estamento (diferenciação por critérios sociais de estima e não econômicos, vinculada à economia feudal ou patrimonial), para apontar que D. João teria engessado Portugal ao organizar de cima para baixo o Estado português e seu funcionalismo pelos critérios arcaicos herdados das sociedades atrasadas de tipo patrimonial. Deste modo, permitiu-se o enrijecimento da “regulação material da economia” (FAORO, 1958, p. 213) que se desenvolveu dentro do mesmo molde com o absolutismo e com a “aventura marítima” (FAORO, 1958, p. 13). A partir desta empreitada, Faoro aponta o mesmo que Berlinck: que a gana por riqueza fácil teria feito com que os ibéricos se desligassem do cultivo de seu mercado interno e de uma cultura racional de trabalho. Durante cinco séculos, o Estado teria permanecido barroco (FAORO, 1958, p. 45), centralizador e congelado por um estamento burocrático mantido por privilégios. Para agravar, o catolicismo dessa nação serviria como um incremento para a condenação da riqueza. Como espelho invertido, havia outra realidade, cujo processo seria impulsionado pela economia não regulada e pela autonomia da sociedade civil, governado de baixo para cima. Isso havia lhe permitido o desenvolvimento da agricultura e da indústria:

Na Inglaterra, as coisas se passaram de outra forma, prevalecendo uma transação, selada com a cabeça de um rei. Essa discrepância histórica seria particularmente favorável ao florescimento das liberdades políticas e foi responsável pelo estabelecimento do parlamentarismo. A classe média urbana, de industriais e comerciantes, aliada à aristocracia dos campos limitou, com o Parlamento, o poder real, freando seus excessos e impulsos centralizadores (FAORO, 1958, p. 40).

Nas respectivas colônias, as distintas práticas teriam sido igualmente perpassadas aos colonos e colonizadores. No caso português, o Brasil teria sido resultado de um transplante do estamento burocrático, no qual as capitanias hereditárias foram entregues ao estamento por critérios pessoais e a fim de enriquecer a Coroa, sem haver sequer autonomia no cultivo, visto que a economia era amparada e orientada pelo Estado (FAORO, 1958, p. 52). Já a divisão de terra, era feita por latifúndios igualmente ligados ao interesse do Estado. Enquanto isso, na colonização dos EUA “prevaleceu, efetivamente, a iniciativa particular, sem nenhuma sombra de agenciamento e regulamentação estatais” (FAORO, 1958, p. 53), em regime de pequena propriedade, com autonomia local. Desse modo, os Estados Unidos são mobilizados como exemplo bem-sucedido por ter seguido uma via de desenvolvimento liberal, no qual o Estado era protetor dos interesses individuais e expressão da sociedade civil. A economia seria desregulada e voltada para os interesses daqueles indivíduos que, por gozar desse alto grau de liberdade também nessa esfera, prosperaram e aumentaram a riqueza da nação como um todo.

No decorrer da história do Brasil, a mesma tônica ibérica teria permanecido, sem a consolidação de uma cultura política liberal. A vinda da Corte com o príncipe regente D. João teria coroado de vez o divórcio entre Estado e sociedade, quando este “ganhou o caráter definitivo de uma carapaça” (FAORO, 1958, p. 130). Qualquer possibilidade de formação de sociedade civil por aqui teria sido enterrada a partir daí. A sociedade permaneceu alheia aos negócios públicos, que eram resolvidos em gabinete e, por isso, não se politizou. Já o Estado não se oxigenou porque era incapaz de perceber as mudanças sociais. Não ocorriam eleições e cargos públicos não eram escolhidos por critério impessoal de mérito.

A independência feita pela casa de Bragança seria mais um continuísmo com a velha tradição lusa, e o Segundo Reinado seria o auge da centralização, com um monarca de alto poder pessoal que governava para os seus. De modo comum ao tipo de pensamento liberal a que aqui filiamos Faoro, ele também compartilha de uma visão dicotômica da história, reunida de um lado pelos próprios liberais e de outro por todas as formas de pensamento que não o eram. Em sua classificação, este outro construído tratava-se da ideologia cujo nome mais ocorrente é centralismo:

A história brasileira é atravessada, desde Tomé de Sousa até os dias atuais, pelo choque de duas ideologias opostas: liberalismo e centralismo, ou federalismo e unitarismo, ou democracia e monarquia, ou autonomismo e centralismo (FAORO, 1958, p. 177 e 178).

Os movimentos de resistência liberal eram em suma os mesmos apontados por Berlinck, como a revolta de Pernambuco e as da regência. Contudo, apesar de episódicas vitórias, o liberalismo jamais teria triunfado entre nós, sempre tendo seus representantes ou cooptados ou reprimidos pelo Estado. Em seus raros momentos de algum sucesso, teriam controlado as ambições absolutistas de D. Pedro I - tal com teria buscado agir Tavares Bastos - e conseguido depois com o Ato adicional de 1834 algum empoderamento provisório para os municípios até a reação centralizadora do regente Araújo Lima.

Na mesma linha, para Faoro, seria um equívoco considerar a Primeira República um regime de caráter liberal na política e na economia, tendo em vista que esta doutrina teria progressivamente sido enfraquecida pelo estamento burocrático em nossa história, até quase desaparecer. Em outros termos, a Primeira República não havia sido liberal de verdade. Isto seria muito diferente do que ocorreu na Europa, onde o liberalismo econômico teria surgido como ideia associada a outras liberdades, ao mesmo tempo que sua faceta política. Durante a revolução industrial, o empresário formado em um espírito capitalista e racional era um ator contra o intervencionismo estatal, porque queria garantir sua previsibilidade e seu investimento, sem a insegurança de sofrer intervenções que modificassem seu ritmo. Já nestas terras de colonização ibérica, o liberalismo econômico teria chegado como ideia estrangeira que encantava homens letrados, mas sem lastro na realidade. Na prática política ele seria de pura conveniência e associado ao capital comercial que historicamente foi favorecido pelo Estado e anexado ao estamento burocrático. Ele era, então, distinto do tipo industrialista anglo-saxão. Daí, que na Primeira República não teria havido laissez-faire, mas favorecimento dos produtores de café e outros mercados, além de políticas de interferência na emissão monetária e no câmbio, como o encilhamento.

Nesta chave de leitura da história nacional, a revolução de 1930 não representou ruptura, mas continuação da mesma tendência de intervenção. As autarquias econômicas criadas por Vargas teriam o mesmo intuito de regulação material da economia. O Código de Águas é citado como “eivado de xenofobismo” (FAORO, 1958, p. 252) que impediu o capital estrangeiro de empreender no setor de energias de modo mais racional e eficiente do que conseguiria o poder público. O ditador teria sido uma figura representante do Estado patrimonial, que distribuiria favores sem obedecer às normas ou direitos existentes. Ele seria herdeiro do modelo de gestão econômica materialmente regulada que só na aparência se assemelhava a um socialista moderno, porque sua ideologia verdadeira seria a do patrimonialismo e seu interesse não poderia se confundir com o do povo. A classe média urbana e a rural permaneceriam vítimas do Estado patrimonial e de sua condução irracional da economia. A mesma estrutura permanecia viva e “o liberalismo econômico e a liberdade de iniciativa têm, por consequência, no Brasil, uma curta história. A tutela do Estado, desde D. Fernando, com a participação do governo nas atividades econômicas, persistiu no Império e na República” (FAORO, 1958, p. 253).

Liberalismo e desenvolvimentismo: nacionalismo pragmático e o Estado como necessidade histórica

Na longa duração do pensamento político brasileiro, percebe-se que nacionalismo e liberalismo são ideias dificilmente associadas, visto o caráter cosmopolita da segunda (LYNCH, 2013). Todavia, em um período como a República de 1946 e no influxo da experiência desenvolvimentista dos anos 1930, a própria ideia de nacionalismo ganha entre os liberais certa tonalidade cosmopolita. Como aponta Andrew Vincent (2013), o nacionalismo é uma ideologia plástica, possível de ser preenchida de conteúdo diverso. Ao analisarmos o período aqui estudado, ela pode ter feição conservadora a partir de uma visão ontológica de nação (SILVA, 1981; TÁVORA, 1962) ou de esquerda, seja trabalhista (RAMOS, 1963) ou comunista (SODRÉ, 1963), associando-se a uma luta percebida como anticolonial e por um projeto de desenvolvimento ligado à ideia de revolução brasileira. Nos liberais o conceito é igualmente disputado, daí que podemos entender o envolvimento de Roberto Campos na fundação do ISEB, fato de que ele demonstra arrependimento em texto de 1960, quando afirma se tratar de “instituição que, num momento de loucura, ajudei a criar” (CAMPOS, 1964, p. 17)

O conceito de nacionalismo pragmático aparece nominalmente em Roberto Campos (1963a, p. 195, 201; 1963b, p. 121, 128), mas também na ideia que Afonso Arinos tem da ideologia como método mobilizador “de conseguir objetivos realmente nacionais” (-FRANCO, 2005, p. 50) dando sentido e propósito para os brasileiros. Esta percepção está em consonância com a de Vincent (2013) sobre o nacionalismo liberal, que seria vertente cuja afirmação da nação é tida forma de realizar o horizonte político do liberalismo, sintetizado em torno das ideias de sociedade de mercado, democracia liberal e capitalismo. O economista e assessor com estatuto de ministro de Juscelino Kubistcheck e um dos formuladores do Plano de Metas (BIELSCHOWISKY, 2004; PEREZ, 2021), Roberto Campos também tinha sua leitura sobre a história da modernização capitalista, embora não tenha se ocupado de descrevê-la com a ênfase na história nacional. Diferentemente também da leitura weberiana de Berlinck e Faoro, o autor não percebia o processo como uma ruptura com a Idade Média. Em sua narrativa hegeliana, o capitalismo teria sido levado à frente por -ideias-força desde as cruzadas religiosas, que reabriram o mediterrâneo. Depois, com a exploração de novos territórios na expansão marítima e, em seguida, o imperialismo do século XIX (-CAMPOS, 1963a, p. 86-87). Roberto Campos, assim, se inscrevia com maior força na tradição de pensamento liberal conectada a uma filosofia da história (KOSELLECK, 2006). Nesta concepção linear de progresso - que na história do pensamento ocidental podemos remeter desde Adam Smith e Immanuel Kant - o telos a ser atingido era a autonomia dos indivíduos e a sua liberdade. Ela se expressaria tanto na tendência ao aumento da liberdade de criar, quanto da liberdade de não ser impedido por outros (BERLIN, 2002).8

Em uma perspectiva que dá maior protagonismo ao mercado que ao Estado no processo, o autor aponta que no século XX o caminhar linear do progresso teria se alterado. O capitalismo estaria em crise na sua inovação ideológica, até que o socialismo surgiu com a ideia força da justiça distributiva. A reação antitética do capitalismo foi, então, a de criar uma ideia-força que respondeu à eliminação da desigualdade entre os indivíduos com a diminuição das desigualdades econômicas entre as nações. Segundo Campos, esta ideia-força era a de desenvolvimento. Assim, o Estado teria ganhado função de ator econômico para além de regulador e fiscalizador, uma vez que dele deveria sair o planejamento que guiaria as nações para o seu bem-estar.

Os EUA seriam para ele um caso exemplar disso, constituindo-se como liderança ocidental na iniciativa e que auxilia com empréstimo o desenvolvimento dos demais. Era por esta via que Roberto Campos defendia a cooperação do Brasil com o seu irmão do Norte, de modo que o planejamento de seu processo de desenvolvimento fosse feito com auxílio de capital estrangeiro. No entanto, dado o nosso lugar de subdesenvolvido, não caberia uma isenção do Estado brasileiro no processo, que deveria exercer sua função planejadora através das melhores teorias e técnicas internacionais. Apesar do remédio ser distinto, Campos se aproxima dos demais liberais aqui analisados ao apontar como motivos de nosso atraso o mesmo diagnóstico de Faoro e Berlinck, de que o grande culpado seria a colonização portuguesa: “A península ibérica ficou à margem da revolução industrial e se achava em pleno capitalismo mercantil e num semifeudalismo agrário, quando a Inglaterra, a França e a Holanda se entregaram às manufaturas no albor da Revolução Industrial” (CAMPOS, 1963b, p. 113).

Naqueles primeiros anos da República de 1946, muito diferente era a interpretação histórica sobre a formação do mundo moderno de outro quadro udenista, Afonso Arinos de Melo e Franco. Talvez este seja um dos motivos que o levaram a defender a via liberal-desenvolvimentista9, com presença atuante do Estado no planejamento. Segundo Jorge Chaloub (2015), o posicionamento da liderança do partido era mais comum tanto na UDN quanto no liberalismo brasileiro anterior a 1964, no qual o conceito de mercado seria periférico (CHALOUB, 2015, p. 48). Estes autores e atores políticos teriam uma visão politizada da economia e, portanto, liam o processo histórico de modo que fazia jus a esta ontologia e epistemologia. A economia política dos bacharéis da UDN - como a do próprio Afonso Arinos, Prado Kelly e Aliomar Baleeiro - percebia a economia como um subsistema do social que dependia da decisão política e da construção de políticas públicas para se concretizar. Portanto, conceitos como o de mercado não tinham centralidade em seu liberalismo (CHALOUB, 2017) e, consequentemente, não era protagonista da história segundo Afonso Arinos.

Embora formado intelectualmente em um paradigma no qual o direito e não a economia servia como ciência social aplicada por excelência a ser mobilizada por políticos e intelectuais públicos (CHALOUB, 2015, LATTMAN-WELTAN, 2005), ele havia percebido a alteração nas formas de explicação da realidade e de solução dos problemas. Afonso Arinos afirma isso em texto publicado no Digesto Econômico em 1953, por ocasião do centésimo número do periódico. Ele diagnostica uma mudança de orientação dos estudos brasileiros, na qual os temas econômicos teriam ganhado “o primeiro plano”, resultando em uma “uma nova mentalidade econômica” brasileira, com um rigor científico que até então seria inédito nos nossos estudos e em nossa historiografia (FRANCO, 1961, p. 227). O autor elogia, entre outros, a Faculdade de Ciências Econômicas da FGV, Caio Prado Jr. e Roberto Simonsen como expoentes deste novo paradigma. Foi dentro desta percepção que o jurista realizou seu esforço de inserção no paradigma desenvolvimentista, aumentando o protagonismo da questão econômica em seus textos pós-1946. Ele tenta conciliar o seu bacharelismo guiado pelo direito com as novas interpretações econômicas da realidade que ele percebia.

Mantendo a percepção que ele já apresentava em obras anteriores (FRANCO, 1933; 1934; 1936), o bacharel da UDN concebia a história em uma chave reformista-conservadora, com forte presença das elites10. Ao invés do mercado desregulado em uma concepção clássica de economia (RICARDO, 1996), para Afonso Arinos de Melo Franco, os processos que formaram o Ocidente moderno (e o Brasil dentro dele como parte periférica) foram dirigidos politicamente por figuras esclarecidas que souberam direcioná-lo para a evolução que cada tempo exigia, os “estadistas” (LATTMAN-WELTMAN, 2005, p 60). Em suas palavras: “Os grandes movimentos históricos do Brasil foram, invariavelmente, controlados, orientados e inspirados pelas elites, que souberam compreender com generosidade as necessidades populares e canalizar com sabedoria o seu desenvolvimento” (FRANCO, 2005, p. 147)

Esta interpretação é perceptível nos seus textos de história econômica do Brasil publicados em Estudos e discursos (FRANCO, 1961), mas que datam desde 1946. Em um primeiro texto da série, o jurista preocupa-se em esclarecer o leitor sobre seu ponto de partida teórico como analista da história econômica. Ele aponta que seria preciso diferenciar o estudo que pretende realizar com uma leitura economicista da própria história - comum em perspectiva materialista e marxista. Ele afirma que a economia é a instituição social como as outras, e, por isso, estaria em relação à política, à sociedade e à cultura, sem ser variável explicativa de nenhuma delas. Nos textos seguintes, Afonso Arinos se mostra coerente com seus pressupostos, apontando para uma primazia do político. Para além de artigos sobre momentos de crise e sua solução direcionada pelos quadros políticos do Império e da República, havia também aqueles dedicados ao elogio de personagens célebres.

Diferentemente do juízo radicalmente negativo contido em Berlinck e Faoro, o jurista considera a história brasileira como ilustrada de grandes personagens. Ao se referir aos quadros que fizeram a independência, ele não reproduz a visão de que se tratava de indivíduos portadores de uma mentalidade atrasada. Eles seriam influenciados pelas mesmas ideias que circulavam na Europa, sem diferir de seus contemporâneos. Isto não significa que ele não considerasse haver países mais adiantados do que outros. Para ele, a modernidade tinha dupla paternidade: a França e a Inglaterra. Do primeiro, teriam sido legados os valores da liberdade, cuja concepção ética e política teria servido de molde e inspiração para os demais. Já da ilha britânica, veio o incremento de produtividade, o espírito de trabalho e o avanço técnico que possibilitaram o aumento de bem-estar. O autor se considerava adepto de ambos, em suas palavras: “Sou um liberal do século XX, isto é, um homem para quem a concepção moderna de organização social se expressa pelo binômio “trabalho e liberdade” (FRANCO, 1961, p. 58). Entretanto, ele compreendia o porquê de uma figura ilustre como o Visconde de Cairu - a quem o texto em questão é dedicado - tivesse espécie de horror da França, afinal em sua época ele só teria visto a violência causada pelo país, sem ter vivido para ver os efeitos positivos da revolução.

Embora não hesite em afirmar suas convicções republicanas, em texto sobre a economia do Império, ele se demonstra aborrecido com leituras que viam em D. Pedro II um inepto favorecedor de burocratas. O imperador seria figura culta e com habilidade política que o permitiu catapultar na segunda metade do século XIX o desenvolvimento brasileiro. A visão do imperador como um autoritário desinteressado para com a modernização seria falsa e precisaria ser desfeita pelos historiadores econômicos. Em sua interpretação, o apogeu do reinado de D. Pedro II foi um dos períodos mais dinâmicos da vida econômica brasileira. Naqueles anos haveriam se realizado obras de infraestrutura que eram demandadas para dar conta da mudança na estrutura social e econômica, como estradas de ferro, embarcações a vapor, telégrafo e iluminação a gás. No direito, igualmente o período soube processar as exigências do tempo: criou-se a lei das sociedades, fizeram-se reformas bancárias e o Código do Comércio.

Na república, sua leitura é igualmente atenta para o papel de lideranças políticas para resolver problemas de ordem econômica. Ele enfatiza, a partir do episódio da crise cafeeira, como o convênio de Taubaté foi um esforço acertado das elites políticas de solucionar a questão que se impunha. Isto porque a abolição haveria feito os produtores substituírem a mão de obra escrava por trabalhador assalariado, enquanto o país tinha alto endividamento externo e baixo crédito. Sem a intervenção do Estado pelo Convênio, por meio de figuras que o sabiam dirigir, a crise não poderia ter sido resolvida.

Apesar de seu prestígio para com a história nacional, o udenista não foge de um diagnóstico do atraso. O Brasil tinha uma história meritória, mas com defeitos intrínsecos em sua formação. Ao apontar as diferenças de nossa história para com os EUA, ele destaca não só a diferença de clima e vegetação como importantes, mas as origens da colonização. Enquanto os norte-americanos partiriam de um protestantismo de tonalidade capitalista, nós vínhamos de um catolicismo ibérico que funcionou “como força paralisadora do progresso econômico” (FRANCO, 1961, p. 89).

Em texto sobre a modernização do comércio, ele afirma que até fins do século XVIII, este setor era atrasado no Brasil, tal como o modelo português que o comandava. A abertura dos portos realizada por D. João com a vinda da Corte teria representado a possibilidade da moderna influência inglesa no comércio. Com esta medida, ele teria se dinamizado e diversificado sua oferta de produtos, tal como sua organização, que com o espírito anglo-saxão passou a ter feição mais próxima do progresso capitalista. Afonso Arinos é mais moderado e menos fatalista sobre a questão, no entanto partilha com outros liberais - como Eodoro Berlinck e Raymundo Faoro - o raciocínio de tipo weberiano, no qual opõe uma lógica anglo-saxã, protestante, racional e baseada no trabalho à outra, ibérica, católica, aventureira, burocrata e avessa às liberdades. Para além dos resultados econômicos, isto teria o efeito político do caudilhismo latino-americano. Em trecho de texto de 1957 sobre sua evolução para o parlamentarismo, isto fico expresso:

A América Latina tende para a forma de governo caudilhista, que, tomada na sua essência, é menos o sistema em que governa um caudilho, do que o regime em que predomina politicamente a força armada. Esta é a tradição ibérica, que visivelmente se transmitiu aos Estados latinos do Novo Mundo. Suas causas têm sido perquiridas por historiadores e sociólogos e, de resto, pouco interessam ao presente escrito. No fundo, essas causas se integram em um complexo de fatores. A expansão geográfica luso-espanhola foi mais baseada na aventura dominadora e estatal do que no trabalho organizado e privado, que marcou preferencialmente as colonizações holandesa e inglesa. A preocupação das minas, posta acima da produção de bens de consumo, foi outro elemento de singularização da expansão ibérica, em contraste com a flamenga e saxônica. Além disso, deve-se contar com os resultados das influências contrastantes do protestantismo e do catolicismo. Todas essas causas convergiam para constituir, na América ibérica, mercantilista e católica, um ambiente mais propício à criação de uma classe dominante burocrática e militar, governando uma massa pobre e despreocupa da das liberdades individuais. Do lado protestante, privatista e saxônico, ao contrário, cedo se revelou uma forte classe média independente do Estado, desconfiada da militança, concentrada nas atividades privadas e ciosa das suas liberdades (FRANCO, 1961, p. 186-187).

Considerações finais

No esforço de entender uma linguagem ou ideologia política, o analista encontra-se com a problemática de ao mesmo tempo reconhecer o vocabulário e contexto linguístico que compõe seu objeto e compreender que contextos específicos podem modificá-lo. Tal questão foi formaliza por John Pocock (2003) como a diferença entre a langue e a parole. Neste artigo, partimos do pressuposto da existência de uma langue, o liberalismo, mas não com o intuito de confirmar a sua perenidade. A partir da reconstituição da parole de liberais da República de 1946, buscamos compreender como o contexto pode modificar uma ideologia, a partir de novas questões que surgem com as mudanças que ocorrem no mundo. A ascensão do desenvolvimentismo e da ampliação do papel do Estado na atividade econômica empurrou os liberais a repensar este conjunto de questões, dando centralidade a elas em suas narrativas.

A análise da interpretação histórica destes autores é objeto particularmente propício para esta percepção. Partindo da reflexão sobre o que já passou, os agentes históricos da República de 1946 interpretavam a história a partir de questões do seu tempo, a conferindo de sentidos específicos. Assim, pode surgir um juízo crítico da planificação econômica de Berlinck e Faoro, que buscam as origens deste suposto mal nas raízes ibéricas do Brasil. Há condições igualmente para emergir um olhar elogioso do nacional-desenvolvimentismo, como o de Afonso Arinos - que o vê como a continuação de uma tendência histórica bem-sucedida - ou de Roberto Campos, que o percebe como síntese dialética necessária àqueles tempos.

Em sua época, essas ideias se inseriram em um contexto de radicalização ideológica e de guerra fria (SANTOS, 2003) em que estes liberais percebiam as ideias mais à esquerda - como o trabalhismo e o comunismo - como avesso à concretização de seu modelo de desenvolvimento. Em 1964, todos os autores analisados neste trabalho apoiaram o golpe civil-militar, por mais que durante a ditadura tenham se demonstrado arrependidos, ao perceber que aquele regime era avesso às suas doutrinas.

Já no tempo presente, ainda existe em parte do pensamento liberal este conjunto de leituras do processo histórico, sobretudo aquela que vê o Estado como um empecilho ao desenvolvimento. Pegando por exemplo textos do ministro da Economia do governo Jair Bolsonaro, Paulo Guedes (2003; 2019) percebemos uma leitura da formação brasileira como atrasada porque boicotada pelo iberismo e pelo Estado patrimonial (GUEDES, 2003, p. 9). O Brasil só não seria uma país desenvolvido porque teria apostado em uma via estatista equivocada (GUEDES, 2019, p. 1). Ao mesmo tempo, aparece de maneira latente uma ideia de que o telos da história é a realização de um projeto liberal, onde o futuro é o lugar da economia de mercado, em um padrão perceptível desde a antiguidade clássica (GUEDES, 2003, p. 3). Por mais que neste artigo enfatizemos a necessidade de entender como o contexto altera as ideologias, não desprezamos que existem repertórios diacrônicos. Talvez o desafio seja compreender qual é o contexto hodierno que permite que este conjunto de ideias ainda tenha repercussão na esfera pública.

  • 1
    O conceito de paradigma que mobilizamos é o de Thomas Khun, no qual ele diria respeito ao conjunto de referenciais linguísticos, filosóficos e de ideias que orientam a produção de conhecimento em determinado período. Nesse sentido, os autores são paradigmáticos do liberalismo da República de 1946 por fazerem parte dessa linguagem e a mobilizarem para as questões do seu tempo, tal como buscaremos demonstrar no decorrer do texto. Cf. Khum (2017).
  • 2
    Cabe apontar que os textos de Arinos e de Campos selecionados não são análises de conjuntura ou colunas de comentários do tempo presente. Embora os textos de Arinos tenham sido publicados originalmente no periódico Digesto Econômico, eles faziam parte de uma série do autor de textos de história econômica, que depois ele reuniu e publicou em livro. No caso de Roberto Campos, os textos são colunas no Correio da Manhã, palestras em conferências acadêmicas e ensaios publicados em periódicos acadêmicos. Diferentemente de outros textos do autor, os escolhidos tratavam de processos mais amplos nos quais ele entendia seu tempo como parte de uma diacronia. O economista também reuniu esse conjunto de textos e o publicou na forma de livro. Isso não implica dizer que entendemos esses textos como menos políticos, pelo contrário, afirmamos que mesmo estes escritos expressam o pertencimento destes autores a uma linguagem política liberal a partir de uma visão de história orientada nesse sentido.
  • 3
    João Feres Jr. (2005) é crítico à ideia de que a filosofia da linguagem de Austin e a teoria dos atos de fala seriam aplicáveis ao texto escrito. No entanto, não percebemos elementos de incompatibilidade fundamental.
  • 4
    Embora seja muito crítico dos efeitos da escravidão no Brasil, o autor não faz qualquer referência no livro a sua presença no sul dos EUA.
  • 5
    Segundo os autores, as áreas que recebiam maior atenção eram ligadas à indústria de base, com ênfase no setor automobilístico. O crescimento acelerado gerado pelo Plano de Metras resultou em uma mudança estrutural que deslocou trabalhadores do setor agrícola para o industrial, aumentando a importância da indústria e do setor de serviços na força de trabalho e no PIB. As áreas de maior destaque foram as de metas relativas à produção de energia elétrica (83%), petróleo (78%), cimento (99%) e na produção de carros e caminhões. No entanto o processo acabou produzindo inflação, ampliação do desequilíbrio regional e desatenção para pautas de cunho social, como previdência, educação, saúde pública, habitação e assistência social.
  • 6
    O “capítulo final” sobre a viagem redonda não existia na edição original de Os donos do poder e a discussão sobre o período republicano era menor. O tamanho da obra de uma edição para a outra difere consideravelmente, enquanto a original apresenta menos de 300 páginas, a segunda aproxima-se das 1.000. Para além de novos capítulos, o texto inclui mais fontes primárias e referências bibliográficas. Enquanto em seu contexto original o texto era uma crítica ao nacional-desenvolvimentismo de JK e dos governos que o antecederam, ele foi recepcionado de forma diferente na sua republicação em 1976, como crítica à ditadura militar. Cf. Vianna (2009). Já para uma visão comparada entre as duas edições, ver Jasmin (2003).
  • 7
    Para Max Weber, patrimonial é toda forma de dominação originalmente orientada pela tradição e que se exerce pelo poder pessoal. No patrimonialismo, a administração poderia ser gerida por um estamento que, neste caso, está de posse de todos os meios de administração ou ao menos suas partes mais fundamentais. Na análise do sociólogo, o patrimonialismo inibiria a economia racional, pois o tradicionalismo não permitiria a criação de estatutos formalmente racionais, impedindo a construção de quadros técnico de funcionários especializados e deixando amplo espaço à vontade puramente pessoal do senhor ou do corpo administrativo por ele escolhido dentro destes critérios tidos como contrários aos da burocracia racional-legal (WEBER, 1999, p. 152).
  • 8
    Importante ressaltar que existe uma longa literatura de crítica a esta concepção linear de progresso e a sua leitura liberal. Para uma leitura que percebe um suposto desencaixe entre estas ideias e a realidade socioeconômica brasileira, cf. Schwarz (1992). Para uma crítica de época dos autores analisados sobre os problemas de uma concepção de desenvolvimento que via o mercado como um fim, cf. Furtado (1964). Já na literatura internacional, para uma leitura que visa desnaturalizar a visão liberal sobre a história do capitalismo, cf. Polanyi (2021). Do ponto de vista da análise das ideias, cf. Hoover (2003).
  • 9
    O termo não é original nosso, mas recepcionado de Jorge Chaloub (2015), que o utiliza em chave similar para se referir ao pensamento de Roberto Campos. Segundo o autor, ele retirou o texto da autobiografia do economista, que o usa para se referir a sua ação durante o Plano de Metas. Verificamos a referência e ela é condizente com o texto original. Cf. Campos (1994).
  • 10
    Segundo Lattman-Weltman (2005), as elites eram figuras centrais também nos discursos políticos de Afonso Arinos enquanto parlamentar, sendo característica forte de sua visão de mundo o entendimento delas como centrais nos processos políticos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2022
  • Aceito
    14 Set 2022
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