Open-access “Uma perigosa travessia”. Equilibrista e bufão em Assim falava Zaratustra*

“A Dangerous Across.” Tightrope Walker and Jester in Thus spoke Zarathustra

Resumo

Livro para todos e para ninguém, Assim falava Zaratustra ocupa, com efeito, um lugar especial no conjunto da obra de Nietzsche. Já no Prólogo do livro, o filósofo alemão faz intervir concepções únicas e personagens sui generis, tais como, por exemplo, a noção de além-do-homem e as figuras do equilibrista e do bufão. Explorando a rica mediação narrativa e as finas referências textuais que constituem essas duas simbólicas personagens, bem como os possíveis sentidos conferidos à ideia de superação do tipo “homem”, o presente artigo conta lançar uma nova luz sobre um dos núcleos temáticos mais discutidos do legado nietzschiano.

Palavras-chave: além-do-homem; equilibrista; bufão; superação

Abstract

A book for all and none, Thus spoke Zarathustra definitely occupies a special place within Nietzsche’s writings. Already in its Prologue, the German philosopher introduces original conceptions and sui generis characters, such as the notion of overman and the tightrope walker and the jester. By exploring the rich narrative mediation and the fine text references that form these two symbolic personae, as well as the possible meanings conveyed to the overcoming of “human” type, the present article aims at shedding a new light on one of the most discussed topics of Nietzsche’s philosophical legacy.

Keywords: overman; tightrope walker; jester; overcoming

Ignorou-se, com frequência, que a ideia de além-do-homem não se acha isolada em Assim falava Zaratustra de Nietzsche. A obra não apresenta apenas o além-do-homem, senão que um inteiro panorama de formas humanas de existência. A seguir, tomando como exemplo o célebre § 6 do Prólogo, que trata da performance e da queda de um equilibrista, gostaria de mostrar como a ideia do além-do-homem é iluminada, de modo extremamente elaborado, por outras figuras aparentemente periféricas do texto.

Pelos flancos, Assim falava Zaratustra ombreia o conceito de além-do-homem com uma ampla variedade de projetos relativos ao “ser-homem”. Trata-se, em tais projetos, não apenas de imagens idealizadas, senão que também de visões negativas, imagens assustadoras e fortemente deformadas de um tipo atrofiado e, tal como enfatiza Zaratustra amiúde, desprezível de homem. Uma boa parte dessas concepções e visões acerca do homem só pode ser encontrada nos discursos de Zaratustra, constituindo, portanto, um elemento integrante de sua visão subjetiva de mundo. Zaratustra não ensina, pois, apenas o além-do-homem, mas ao mesmo tempo se refere, enfaticamente, a formas de aparência pervertidas do homem. E, ao fazê-lo, promove formas humanas de existência que possuem, de saída, fortes apreciações valorativas. Tal como, por exemplo, quando se volta depreciativamente contra as pessoas pequenas, ou, então, em franco tom agressivo, contra aqueles que denomina os “excessivos”: “Repleta é a Terra de supérfluos, estragada está a vida pelos excessivos [Viel-zu-Viele]” (ZA/ZA I, Dos pregadores da morte, KSA 4.55). Zaratustra emite continuamente juízos acerca da vida alheia, de sorte que, com seus discursos, ele termina por propagar um inteiro sistema de valor a propósito do “ser-homem”. Mas nem sempre é simples distinguir, aqui, se ele diagnostica o homem do presente como um tipo degenerado, ou, se com isso, está a pintar a imagem assustadora de um homem do porvir.

Já no Prólogo de Zaratustra dá-se a aplicação de um procedimento contrastante, quando, por exemplo, Zaratustra coteja o além-do-homem com a utopia negativa do último-homem. Enquanto as determinações positivas do além-do-homem permanecem extremamente vagas e ambiguamente metafóricas, Zaratustra define o além-do-homem negativamente como contra-modelo em relação ao último-homem, o qual, a seu ver, personifica a absoluta mediocridade, o homem das massas brotado inteiramente da comodidade e auto-complacência. Num apontamento elaborado à época da Segunda Parte d’Assim falava Zaratustra, Nietzsche apresenta o além-do-homem e último-homem como resultados de “movimentos” opostos. Descreve então o além-do-homem como um “movimento” iniciado por si mesmo, que visaria a uma programática “intensificação de todos os contrários”, voltada contra as tendências democrático-igualitárias da modernidade. O propósito norteador seria o de delinear acentuadamente as diferenças na forma humana de existência, de modo a impor iniciativas contrárias às tendências de “nivelamento” socialmente predominantes que desaguam no último-homem, as quais apontariam, num sentido precisamente inverso, para a “criação do super-poderoso”. Nas palavras de Nietzsche:

Um dos movimentos é incondicional: o nivelamento da humanidade, grandes formigueiros etc. (...) / O outro movimento, o meu movimento: é, ao contrário, a intensificação de todos os contrários e abismos, eliminação da igualdade, a criação do super-poderoso. / Aquele, o primeiro, engendra o último-homem. O meu movimento, o além-do-homem.” (FP/Nachlass 1883, 7[21], KSA 10.244)

Mas também há, em Assim falava Zaratustra, figuras que parecem atuar num mundo fictício e que, ainda assim, de uma maneira fundamental, acham-se ligadas à pergunta pela natureza e possibilidades do homem. Isso vale tanto mais, é claro, para os homens superiores, que formam o centro da Quarta Parte do livro. A própria caracterização “homens superiores” indica, já, que eles se incumbem de um estágio determinado de desenvolvimento do homem. Ao desenvolvimento desse último referem-se, porém, igualmente, as duas figuras que dominam o curso dos acontecimentos no § 6 do Prólogo, a saber, o equilibrista e o bufão. É a eles que dirigirei minha atenção.

Mediação narrativa do episódio do equilibrista

Depois que Zaratustra mostrou-se malsucedido em seu discurso tripartite de anúncio do além-do-homem, no § 6 do Prólogo decorre então a performance do equilibrista, anunciada desde o início e a qual era ansiosamente aguardada pelo povo reunido na praça do mercado. A apresentação toma um rumo espetacularmente inesperado. O número acrobático resulta em algo gravíssimo, pois, durante seu ato acrobático, o equilibrista cai da corda. Ele não tomba, no entanto, por azar ou falha própria, mas porque é importunado por um outro equilibrista, surgido como que do nada. Com isso, o episódio passa a conter um caráter enigmático e fantasmagórico. Se, tradicionalmente, o tema do equilibrista expressa leveza artística e equilíbrio existencial, aqui ele encerra um significado oposto: alude ao risco do homem. O equilibrista de Nietzsche não apenas cai, senão que, em consequência de sua queda, termina por morrer pouco tempo depois.

O episódio do equilibrista marca não somente uma nítida inflexão no interior do Prólogo, mas também lhe cabe uma posição de destaque no inteiro Assim falava Zaratustra. Pode-se caracterizá-lo claramente como um ápice dramático da obra, a qual, antes do mais, é assaz pobre em ações externas. E, sendo predominantemente constituída pelos discursos de Zaratustra, justamente a Primeira Parte do livro distingue-se, em especial, pela falta de ação. Mas, além disso, ao episódio convém um estatuto excepcional, porque ele parece não estar vinculado ao resto do enredo. À primeira vista, acha-se isolado na obra, qual um bloco errático.

Como exposição performativa, a exibição do equilibrista provoca um fim abrupto dos discursos de Zaratustra de anúncio do além-do-homem. Da perspectiva do povo reunido na praça do mercado, isso significa que, por fim, algo foi efetivamente levado a cabo e o mero palavrório do profeta solitário chegou ao término. Assim é que, de repente, o tom e a forma da exposição narrativa alteram-se crucialmente. Não se narra mais a partir da perspectiva de Zaratustra, senão que um acontecimento, cujo desdobramento é dele independente, passa a ser comunicado a partir da soberana visão panorâmica de um narrador autoral. Isso é algo ímpar na inteira obra; apenas aqui Zaratustra recua por completo. Com efeito, o narrador também assume para si, alhures, outras passagens mais curtas, mas os trechos narrativos mais longos, como, por exemplo, a narração do pastor e da serpente, em “Da visão e do enigma”, são proferidos por Zaratustra. Apenas depois da queda do equilibrista a exposição reorienta-se e volta a ecoar a sonoridade habitual d’Assim falava Zaratustra. Somente aí ela volta a seguir a perspectiva de Zaratustra e só então o discurso literal (como diálogo entre Zaratustra e o equilibrista) readquire predominância.

A enigmática e fatal disputa sobre a corda bamba fascinou os leitores desde cedo, sendo que, de tão impressionados, inúmeros foram os artistas que por ela se deixaram inspirar em suas próprias criações. O episódio nietzschiano do equilibrista teve uma recepção produtiva tanto na literatura (como, por exemplo, pelos escritores expressionistas Georg Heym ou Klabund) quanto nas artes plásticas. A pesquisa tratou de relacionar o episódio do equilibrista d’Assim falava Zaratustra, em especial, com a pintura “As equilibristas”, de August Macke, a gravura “Os equilibristas” (1921), de Max Beckmann, e com o conhecido desenho “O equilibrista” (1923), de Paul Klee.

As fontes do episódio do equilibrista

A arte de entretenimento dos equilibristas, que realizavam acrobacias sobre cordas bambas, desfrutava de grande popularidade já na antiguidade. Em A história dos costumes europeus, uma obra do político e historiador irlandês William Edward Hartpole Lecky, a qual Nietzsche estudou com avidez, é apresentada a tese, à primeira vista paradoxal, de que a periculosidade de tais acrobacias teria despertado, num período propriamente desumano, os primeiros sinais de um comportamento humanitário; de fato, à época do Imperador Marco Aurélio, ocorrera um acidente numa exibição de malabaristas comum àquele período e em reação ao qual ele, tal como escreve Lecky, com sua “usual e delicada filantropia, ordenou que nenhum equilibrista deveria subir na corda bamba sem que antes fosse estendida, por debaixo dela, uma rede ou um colchão.”1 Equilibrismo com rede de segurança, eis o que Lecky reputa ser uma centelha de humanidade e da qual infere, pois, o nível humanitário da antiguidade: “O posicionamento filantrópico era bastante reduzido, mas o sentimento a seu respeito sempre foi ativo, embora suas manifestações fossem inconstantes e instáveis.”2 Curiosamente, segundo Lecky, ao cristianismo vale precisamente o contrário: uma elevada exigência de humanidade numa práxis simultaneamente desumana.

Parece perfeitamente possível que Nietzsche tenha se deixado motivar pelas considerações de Lecky, mas, em todo caso, o episódio do equilibrista também visa a indicar, em especial, o precário grau de humanidade do público, que se acha enraizado em representações valorativas cristãs. Sensacionalista e pouco filantrópica, a ação sobre a corda bamba - sem rede ou acolchoado protetor - é acompanhada, pois, com “espanto e curiosidade” (ZA/ZA, Prólogo 6, KSA 4.22), mas não suscita nenhuma empatia pelo equilibrista acidentado. Tampouco esse último encontra consolo em sua própria crença, senão que, através dela, ao contrário, vivencia uma agonia ainda maior. Os artigos de fé cristãos agem sobre o moribundo como um aparato angustiante, saturando-o com o pavor face à impendente morte. Zaratustra tenta livrar o equilibrista do temor pelo diabo, inferno e eterno sofrimento de sua alma, ao declará-los como coisas inexistentes:

Pela minha honra, amigo, respondeu Zaratustra, nada disso sobre que tu falas existe: não há nem diabo nem inferno. Tua alma morrerá mais rapidamente do que teu corpo; não temas então mais nada! (ZA/ZA Prólogo 6, KSA 4.22)

Mas isso também não produz qualquer efeito libertador sobre o equilibrista, o qual termina por experimentar a perda da crença como perda de sentido. Considera sua existência desvalorizada e vê-se reduzido ao nível de um animal. Num enfático contra-movimento, Zaratustra procura então valorizar a existência do equilibrista, prometendo ao desfalecido enterrá-lo com as próprias mãos. Naturalmente, o hipotético “como se” do narrador deixa em aberto, pois, se o equilibrista de fato estava apto a aceitar a mensagem de Zaratustra: “ele [o equilibrista] moveu a mão como se procurasse a mão de Zaratustra, para lhe agradecer” (ZA/ZA Prólogo 6, KSA 4.22), diz-se, de modo ambíguo, ao final da seção. Essa é apenas uma dentre as muitas passagens nas quais o texto d’Assim falava Zaratustra se abstém de uma definição. De pronto, tratarei de adentrar mais detalhadamente na questão de saber em que medida a história do equilibrista e do bufão está orientada para semear incertezas e gerar irritações.

Que se retome, de saída, uma vez mais, o tema do equilibrista e a pergunta pelas fontes de Nietzsche. Mesmo que o episódio do equilibrista impossibilite qualquer localização histórica concreta, a situação e a referência à corda distendida entre “duas torres” (ZA/ZA Prólogo 6, KSA 4.21) lembram a exibição dos grupos de saltimbancos atuantes desde a Idade Média tardia, os quais, de preferência, ajustavam suas cordas nas torres das igrejas e que, ainda no século XIX, viajavam de lá para cá. Nietzsche deve ter tomado conhecimento de tais exibições com seus próprios olhos. Consta que ele, junto com Richard e Cosima Wagner, em Bayreuth, assistiu a um espetáculo da família de equilibristas Knie.3 E, quanto a Wagner, sabe-se igualmente que a arte do equilibrismo o fascinava e que, quando criança, aventurou-se a praticá-la inclusive. “Morávamos”, relata Wagner, em sua autobiografia - cujas primeiras páginas, aliás, coube a Nietzsche imprimir, na Basiléia, na virada do ano de 1869/70 -, “perto do mercado, o que, não raro, proporcionava-me espetáculos peculiares, tal como, por exemplo, a apresentação de uma companhia de acrobatas que andavam sobre uma corda esticada de uma torre a outra, por cima da praça; algo que, durante muito tempo, despertou em mim uma paixão por acrobacias semelhantes. Cheguei, de fato, munido de uma vara de equilíbrio, a me movimentar com grande habilidade sobre cordas entrelaçadas que estendi no pátio; até hoje perdura, em mim, uma inclinação a satisfazer meu ímpeto acrobático.”4

Na segunda metade do século XIX, a acrobacia sobre corda estava em alta. Disseminavam-se não apenas os relatos das inacreditáveis façanhas dos artistas da corda bamba (causou um grande alarde internacional, por exemplo, a travessia sobre corda das cataratas do Niágara, em 1859, por Charles Blondin), senão que as notícias acerca de acidentes fatais também comoviam a opinião pública também mais e mais. Em Berlim, uma equilibrista inglesa chegou a despencar de uma corda atada à torre5 e, em Regensburg, em 1878, um jovem acrobata terminou por morrer numa queda, um acontecimento que, segundo relatos, foi recebido com grande consternação por Richard Wagner, o qual, não muito tempo antes, havia assistido a uma de suas exibições, em Bayreuth.6 Wojciech Kunicki refere-se a uma possível fonte direta de Nietzsche, a saber, ao lendário relato de uma disputa entre um acrobata inglês e um equilibrista alemão, a qual deve ter ocorrido, em 1818, diante dos olhos de imperadores e reis, por ocasião do Congresso de Aquisgrão [Aachener Kongreß], e da qual o alemão Wilhelm Kolter saiu vitorioso.7 Esse episódio, no qual a rivalidade sobre a corda atingiu às raias de uma competição em dimensão nacional, foi relatado em diferentes variações no século XIX e adquiriu uma grande popularidade, sobretudo porque, em 1875 - algo que escapa a Kunicki -, o periódico familiar Die Gartenlaube terminou igualmente por noticiá-lo. A anedota a propósito de Kolter também consta, por fim, do conto Sob a pereira8 de Theodor Fontane, publicado em 1885 - ao qual Kunicki, por sua vez, faz referência.

A entusiasmada reportagem da Gartenlaube parece ser a fonte imediata mais óbvia de Nietzsche.9 Conforme a descrição, o primeiro a se apresentar, em Aachen, foi o equilibrista inglês Jack Badred, o qual era considerado um mestre incontestável em sua especialidade. No entanto, quando ele

“já havia percorrido quase a metade da corda, com sua vestimenta de cavaleiro, trajando uma armadura com capacete e munido de uma longa vara de equilíbrio, e a multidão extasiada lhe aplaudia pelo caminhar ousado e seguro, aí então, de repente,” segundo o relato da Gartenlaube, “pela janela da torre, subiu na corda uma figura obscura, a qual, lançando fora sua comprida capa, revelou-se um jovem na flor da idade (...) E, sem portar barra de equilíbrio, estendendo apenas os braços e mantendo somente assim a estabilidade, caminhou contra o inglês naquela altura vertiginosa, como que sobre um fino barbante.” O júbilo foi estrondoso, quando o jovem herói alemão apareceu sobre a corda, sendo que o inglês ficou assaz nervoso; então esse, tomado por “um calafrio, treme e a corda começa a balançar, de sorte que o tempo irregular dos passos de ambos aumenta mais e mais a oscilação (...) ‘gire ou volte de costas’, grita o do cima ao que está mais abaixo. Não lhe é dado fazer nem uma coisa nem outra; mas ele precisa efetuar urgentemente aquilo que o outro lhe exige - caso não queiram, os dois, despencar rumo ao chão; eis que um deles se ajoelha e, com as mãos, agarra a corda, inclinando a cabeça o mais baixo possível - e o outro? Mais alguns poucos passos e, por fim, um salto de vida ou morte - a arriscada e frenética ação é levada a cabo!” Sob aplausos tempestuosos, os pés do herói das alturas voltam a encontrar a corda, depois de seu temerário salto - tal é, pois, a entusiasmada descrição da Gartenlaube.

Ao contrário do equilibrista de Nietzsche, o inglês consegue chegar à salvadora janela da torre, “mas seu brilho”, tal como registra o aludido periódico, doravante “desvanece”. Saltam aos olhos as analogias com o episódio do equilibrista d’Assim falava Zaratustra, já que os momentos centrais da narrativa coincidem: a perseguição sobre a corda, o grito e o salto. As diferenças também são igualmente notórias: em Assim falava Zaratustra, a disputa sobre a corda culmina numa catástrofe; e aquele que salta, ao final, não sai da rixa como um radiante vitorioso, senão que desponta como uma figura altamente duvidosa, cuja identidade e motivações permanecem às escuras.

Perspectivas de interpretação do episódio do equilibrista

Não é então de admirar que, desde o início, o episódio do equilibrista tenha chamado tamanha atenção dos leitores e de seu público destinatário. Como um acontecimento enigmático, o qual, à primeira vista, introduz um corpo estranho no interior da totalidade da obra, ele desafia em grande medida os esforços interpretativos do leitor. O surgimento repentino do “colorido colega de ofício” (ZA/ZA Prólogo 6, KSA 4.21) e as consequências fatais de sua performance não são motivadas com precisão no texto, de sorte que fica a cargo do leitor a tarefa de atribuir uma significação ao incidente - em todo caso, contanto que não se queira preterir a aparição do equilibrista e do bufão como um mero intermezzo divertido, mas pouco relevante para a obra em geral. Contra essa apreciação, o próprio texto oferece, porém, enormes resistências. Pois, a aparição do equilibrista não é, em absoluto, transmitida como um acontecimento realista, mas como um evento que, por causa de sua misteriosa opacidade, requer um significado simbólico-indireto. No âmbito da recepção e da pesquisa, seu caráter alegórico e parabólico também parece ser algo inquestionável. Contribuiu para que a seção fosse inserida, por exemplo, numa coletânea de Parábolas alemãs.10 O episódio do equilibrista não é, pois, apenas uma das passagens mais conhecidas de todo Assim falava Zaratustra, senão que igualmente uma das mais interpretadas. O que permanece questionável, porém, é como o acontecimento transmitido no nível imagético deve ser interpretado e se é possível lhe atribuir uma interpretação concisa. De qualquer forma, as propostas de interpretação feitas pela pesquisa divergem amplamente entre si.

A gama interpretativa começa com tentativas bastante concretas de operar uma remissão a constelações biográficas. Compreendeu-se o episódio como uma alusão codificada da relação concorrencial que Nietzsche estabeleceu com Wagner, mas igualmente como uma imagem-sentido [Sinnbild] do perigo de uma vida sob o influxo do niilismo. Outro é o caminho trilhado por C. G. Jung, que interpreta psicanaliticamente o equilibrista como a “sombra de Nietzsche”,11 que aqui se confrontaria com a economia pulsional mesma. Segundo a versão de Jung, o equilibrista e o bufão representam figurações da própria natureza instintiva de Nietzsche, a qual ele, porém, não teria conseguido aceitar, deixando-a, então, ainda que no plano de uma obra literária, despencar num audacioso e arqueado salto sobre a vida e o cristianismo.

O que essas interpretações ignoram é a estreita ligação temática do evento do equilibrista com o restante do texto. O episódio não constitui, pois, de modo algum, o corpo estranho que se oferece ao olhar fugaz, senão que, sob uma visada mais detida, ele se revela, em termos temáticos, íntima e artisticamente atrelado ao discurso precedente acerca do além-do-homem. O elo central de ligação entre o evento do equilibrista e o discurso sobre o além-do-homem é representado pelo tema da corda. Quando de sua chegada à praça do mercado, Zaratustra se vale oportunamente da situação na tentativa de prender a atenção do povo, à espera dos acrobatas da corda bamba, em prol de seus próprios interesses. Ele então aborda o tema da corda para instrumentalizá-lo metaforicamente com vistas à sua doutrina do além-do-homem: “O homem é uma corda (...) sobre um abismo” (ZA/ZA Prólogo 4, KSA 4.16) - com essas palavras, Zaratustra espera comprometer seus ouvintes com um modo de vida caracterizado pelo abandono das velhas certezas e pelo aventurar-se rumo ao que é aberto e incerto; um modo de vida que, conforme Zaratustra, conduz ao além-do-homem. Como expediente imagético, o evento do equilibrista acha-se, dessa forma, imediatamente relacionado com a doutrina do além-do-homem.

Ainda que às avessas, a efetiva performance e a queda do equilibrista lançam uma luz intensa sobre o discurso anterior do homem enquanto uma corda sobre um abismo. Pois, aquilo que era concebido por Zaratustra como uma alusão ao perigo do trajeto, mas também, e sobretudo, como um estímulo para percorrer o arriscado caminho, transmuda-se aqui numa imagem do fracasso. De acordo com a interpretação de Annemarie Pieper, o equilibrista refere-se ao homem que ainda não está maduro para o além-do-homem, o qual, segundo a comentadora, aniquilaria seu aprisionamento no cristianismo.12 Em contraposição a isso, Heinrich Meier vê, no equilibrista, a personificação das forças conservadoras e recalcitrantes do homem, já que ele se desloca lentamente sobre a corda e é interpretado como um obstáculo pelo bufão: o equilibrista “tenciona conservar o homem como homem, sem ultrapassagem, superação ou ocaso, sem um mais além.”13 Meier identifica o equilibrista com um “humanista conservador”, que fracassa em seu esforço de conservação e que despenca na tentativa de manter o equilíbrio sobre abismo. O bufão, em contrapartida, defenderia a renovação do homem. Intercederia em favor “do utopista revolucionário ou milenarista, que conta acelerar a história e saltar sobre o homem tal como ele é.”14 Se seguirmos a interpretação de Meier e virmos, no equilibrista, alguém que se agarra ao antigo homem, como se explica, então, seu papel de destaque, que o distingue de todos aqueles que, como espectadores, reuniram-se na praça do mercado? Não teria o equilibrista, segundo a interpretação de Meier, de pertencer ele mesmo à massa inerte, quer dizer, à plateia no mercado? E oferece a leitura de Meier uma explicação satisfatória para a afirmação de que o equilibrista teria “feito do perigo” o seu “ofício” (ZA/ZA Prólogo 6, KSA 4.22)? E, no final das contas, o equilibrista não fica de modo algum parado sobre a corda, senão que se movimenta em diante, ainda que mais vagarosamente que o bufão, o qual, aliás, também o xinga de “coxo” (ZA/ZA Prólogo 6, KSA 4.21). Isso parece sugerir que, com o equilibrista e o bufão, são tematizadas, antes de mais nada, as diferentes velocidades com as quais se pode levar a efeito o referido desenvolvimento rumo ao além-do-homem a partir da superação do antigo homem.

A figura verdadeiramente enigmática é, porém, o bufão, algo que também é mencionado por Corinna Schubert em seu ensaio acerca do episódio do equilibrista.15 E, em rigor, é incorreto falar de um bufão, pois, no que concerne a essa figura, trata-se de um “colorido colega de ofício”, que então é apenas comparado a um bufão. Tal “colorido colega de ofício” entra em cena como que do nada e dela sai de modo igualmente abrupto. Tradicionalmente, como palhaço e arlequim, tipificado pela colorida vestimenta de retalhos, o bufão pertence às figuras do comediante e bobo da corte, tais como essas se apresentavam à diversão pública na Idade Média, frequentemente juntas com malabaristas e equilibristas. Todavia, ao artista que surge no episódio do equilibrista, comparado a um bufão, não recai nenhum papel de animador, senão que, mediante sua súbita aparição e seu grito diabólico, ele acaba provocando, antes do mais, um terror generalizado, o qual, tal como se lê no texto, “fez calar toda boca e petrificar todo olhar” (ZA/ZA Prólogo 6, KSA 4.21). Com isso, ele interrompe a situação performática voltada à diversão dos espectadores, agindo sobre a cena de sorte a converter o entretenimento em algo grave, haja vista que, com a queda do equilibrista, o espetáculo na praça do mercado tem um fim abrupto. Na seção seguinte, o próprio Zaratustra interpreta a repentina aparição do equilibrista como irrupção do absurdo e expressão da contingência da existência humana: “Perturbadora é a existência humana e ainda sem sentido: um bufão pode se lhe tornar uma fatalidade” (ZA/ZA Prólogo 7, KSA 4.23). Sugere-se, a ser assim, que ao bufão cabe o papel de um antagonista ou alguém potencialmente ameaçador. Mas, como figura, parece que ele não teria nenhuma importância própria, como se, enquanto modelo de um curso humano de desenvolvimento, não tivesse qualquer peso.16

Apenas pouco depois, no § 8 do Prólogo, surge uma figura que alerta Zaratustra para o risco de sua posterior permanência na cidade e a qual será explicitamente identificada como “o bufão da torre” (ZA/ZA, Prólogo 8, KSA 4.23). Dessa forma, aquilo que antes era indicado por comparação (“um colorido colega de ofício, semelhante a um bufão”), agora se converte na identidade da figura. E, como se não bastasse, o próprio Zaratustra, de sua parte, compara a personagem bufamente caracterizada com um bufão: “Tua sorte foi que riram de ti; e, em verdade, tu falas como um bufão” (ZA/ZA, Prólogo 8, KSA 4.23). Tão logo Zaratustra é relacionado, assim, de pronto, com o bufão, os contornos rígidos da figura começam a vacilar, mostrando-se permeáveis.17 A impressão de difusão da identidade intensifica-se ainda mais, quando consultamos um apontamento póstumo do outono de 1883, que não apenas compara Zaratustra ao bufão, senão que o iguala a esse último: “O próprio Zaratustra, o bufão que salta sobre o pobre equilibrista” (Nachlass/FP 1883, 16 [88], KSA 10.531). E, no § 9 do Prólogo, Zaratustra mesmo se atribui o papel do bufão que passa por cima dos demasiadamente indolentes e os conduz implacavelmente para o abismo: “Quero chegar ao meu alvo, sigo o meu caminho; hei de ultrapassar os hesitantes e retardatários. Que o meu caminho seja ocaso deles!” (ZA/ZA Prólogo 9, KSA 4.27).

Não se dissolvem apenas as identidades das figuras, senão que a alegada representação do bufão está sujeita a uma curiosa inversão. Ele não aparece como uma figura que faz brincadeiras e de quem as pessoas riem, mas como alguém que, à força, impele-nos para frente, removendo temerária e irremediavelmente os obstáculos em seu caminho. Nesse sentido, um capítulo posterior intitulado “Das velhas e novas tábuas”, na Terceira Parte, retoma a constelação formada pelo equilibrista, bufão e Zaratustra. Mas, ali, esse último trata de classificar explicitamente o salto histriônico do homem como o caminho errado rumo à sua superação: “O homem é algo que deve ser superado. / Há inúmeros caminhos e múltiplas maneiras de superação: observa isso! Mas apenas um bufão pensa: ‘o homem também pode ser ultrapassado por um salto [auch übersprungen werden]’” (ZA/ZA III, Das velhas e novas tábuas, KSA 4.249).

Conclusão

É sobretudo com o leitor d’Assim falava Zaratustra que, por fim, o bufão pratica suas bufonarias. Tal figura escapa a uma interpretação estipulativa, já que o próprio texto de Nietzsche a submete constantemente a novas interpretações. A narrativa alegórica do equilibrista e do bufão fornece, pois, sem dúvida, um pano de fundo interpretativo à ideia de além-do-homem, mas não lhe cabe um sentido fixo. Serve, antes do mais, para iluminar e relativizar incessantemente a ideia de além-do-homem a partir de um ângulo diferente de visão.

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    Lecky, 1869, p. 308.
  • 2
    Lecky, 1873, p. 261.
  • 3
  • 4
  • 5
  • 6
  • 7
    Wojciech Kunicki, 2006, pp. 229-231.
  • 8
    Unterm Birnbaum (N.T.)
  • 9
  • 10
  • 11
    Segundo Jung, o equilibrista e o bufão representam figurações da natureza pulsional de Nietzsche que ele, no entanto, não podia aceitar: Nietzsche “falava de afirmação e viveu, porém, um ‘não’ à vida.” (C.G.Jung, 1943, p. 36)
  • 12
    Para Pieper, a queda do equilibrista simboliza “o triunfo da moral cristã, que castiga cada transgressão de seu princípio como uma queda no pecado, a ser penalizado com a pena de morte” (Annemarie Pieper, 2010, p. 76). De modo semelhante argumentam Burnham e Jesinghausen, segundo os quais o equilibrista está a caminho do além-do-homem; o bufão “simboliza a necessária ou intrínseca vulnerabilidade daqueles que tentam empreender a perigosa travessia rumo ao além-do-homem” (Douglas Burnham & Martin Jesinghausen (org.), 2010, p. 25).
  • 13
  • 14
  • 15
    Para Corinna Schubert, cumpre atribuir à atitude do bufão uma valoração claramente negativa; ela o compreende como um “jogador que quer se auto-comprazer com o prejuízo do poder alheio e, além disso, escarnece dos que são por ele vitimados” (Corinna Schubert, 2011, p. 195 S. 191-200, hier: 195). Algo semelhante se encontra, já, em August Messer, 1922, p. 15.
  • 16
    Reto Winteler aponta para essa direção, fazendo valer uma distinão categorial entre equilibrista e bufão. Winteler tenciona reconhecer, no bufão, “o mero ator do além-do-homem”, pois não se trataria, para ele, “da superação do homem ou de si mesmo, senão que unicamente da aniquilação daqueles que obstaculizam o caminho daquele.” (Reto Winteler, 2010, p. 457).
  • 17
    Parece, pois, assaz coerente que, na pesquisa, tenham ganhado individualmente destaque as vozes que abandonam a tentativa de compreender tais figuras como atores autônomos entre si, dando mais ênfase, em vez disso, à diluição de suas identidades. Assim é que, para Volker Gerhardt, “equilibrista, bufão e Zaratustra são uma só pessoa, que se deixa compreender em diferentes papéis (Volker Gerhardt, 2000, p. 116; é também de modo semelhante que interpreta Werner Stegmaier (cf., a esse respeito, Werner Stegmaier, 2000, p. 200).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2019
  • Aceito
    11 Fev 2020
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