Open-access Natureza, caos e transformação: para uma antropologia filosófica transformadora*

Nature, Chaos and Transformation: towards a Transforming Philosophical Anthropology

Resumo:

O objetivo deste artigo é esboçar os traços de uma antropologia nietzschiana que sustente um processo de transformação humana. Na primeira parte, antropologia literária, argumento que sua antropologia resgata a noção grega arcaica da natureza como arte ou cultura. Na segunda parte, antropologia científica, apresento o método científico de Nietzsche e de Freud em sua aproximação filosófica da questão da natureza. Na terceira e última parte, antropologia transformadora, discuto o desafio da renaturalização do ser humano, isto é, compreender não apenas o que somos como seres humanos, mas também do que podemos nos tornar, questão que ilustro apelando para a ideia do “além-do-homem” de Nietzsche.

Palavras-chave: antropologia; natureza; cultura; humano

Abstract:

The purpose of this article is to sketch traces of a Nietzschean anthropology that supports a process of human transformation. In the first part, literary anthropology, I argue that his anthropology recovers Greek notion of nature as art and culture. In the second part, scientific anthropology, I present Nietzsche’s and Freud’s scientific method and its philosophical approach to the question of nature. In the third part, transformational anthropology, I discuss the challenge of renaturalizing human being, i. e., of understanding not only what we are as human beings, but also what we might become, issue that I illustrate by relating it to the Nietzschean overman.

Keywords: Anthropology; nature; culture; human being

Introdução

No aforismo 230 de Para além de bem e mal, Nietzsche cunha o enigmático termo homo natura com o propósito de capturar num conceito sua visão do ser humano como criatura da natureza. Neste lugar, a questão da natureza humana adquire a forma de uma tarefa, da “estranha (seltsame) e louca (tolle) tarefa” de “retraduzir (zurückübersetzen) o ser humano de volta à natureza” (JGB/BM, 230, KSA 5.169).

Durante as duas últimas décadas, o significado de homo natura foi levado ao centro das discussões dos especialistas, que têm girado principalmente em torno da questão do naturalismo de Nietzsche e de sua relação com as ciências da vida do século XIX.1 No interior desses debates, o naturalismo de Nietzsche é vinculado a uma epistemologia naturalista de tipo neokantiana, que oferece uma descrição da natureza humana modelada a partir das ciências naturais. Em primeiro lugar, devido à ênfase da epistemologia sobre a natura, as interpretações naturalistas correm o risco de reduzir o ser humano a mero objeto da natureza, perdendo de vista, com isso, a dimensão autorreflexiva do conhecimento. Em segundo lugar, ao atribuir a Nietzsche uma concepção da natureza em grande parte extraída das ciências da vida do século XIX, essas interpretações não levam em conta, de maneira satisfatória, a influência que a Grécia antiga exerceu no pensamento de Nietzsche sobre a natureza. De fato, enquanto que, para a perspectiva naturalista, a natureza denota algo que pode ser apreendido mediante leis científicas, nas concepções arcaicas a natureza designa mais o caos, isto é, algo inacessível e indeterminável, mas, ao mesmo tempo, criativo e criador. Para Nietzsche, apenas ao tornar-se reflexivo e adquirir estas características da natureza, o conhecimento pode liberar o potencial criativo dela para a geração e a criação de vida no interior do próprio ser humano. Assim, o conhecimento realiza, dentro do ser humano, uma extraordinária força da metamorfose (Verwandlung), da transformação e da autotransformação. Considero, portanto, a metamorfose como a chave ou ideia principal do termo homo natura de Nietzsche, assim como da tarefa de retraduzir o ser humano de volta à natureza.

O objetivo deste artigo é esboçar os traços de uma antropologia nietzschiana que dê conta desse processo de transformação humana. Meu artigo possui três partes. Na primeira parte, antropologia literária, argumento que a antropologia resgata a noção grega arcaica da natureza como arte ou cultura. Na segunda parte, antropologia científica, apresento o método científico de Nietzsche e de Freud em sua aproximação filosófica da questão da natureza humana e da pergunta se é possível implantar um tipo diferente de consciência que considere as dimensões corporais (animais e vegetais) da vida humana como o terreno de onde emergirá uma humanidade natural. Esta pergunta levou Nietzsche e Freud a uma reflexão sistemática em torno da corporeidade (Leiblichkeit) e da vitalidade (Vitalität) do ser humano enquanto ser vivente. Na terceira e última parte, antropologia transformadora, discuto o desafio da renaturalização do ser humano, que é oferecer não apenas uma compreensão do que somos como seres humanos, mas, o mais importante, do que podemos chegar a ser, questão que ilustro apelando para a ideia do “além-do-homem” de Nietzsche enquanto uma reflexão sobre o devir (para além) do humano. Sustento que Nietzsche e Freud fundam suas visões sobre concepções antigas da natureza enquanto caos, segundo a qual a natureza é uma fonte criativa e artística de transformação e transfiguração. Minha hipótese é que o homo natura de Nietzsche e Freud reflete uma concepção da natureza humana segundo a qual ela se encontra implicada num processo de (auto)transformação cultural. Em suma, tanto Nietzsche como Freud advogam uma recuperação dos impulsos naturais do ser humano, com o propósito de superar os conceitos falsos sobre si mesmo produzidos pela civilização e de cultivar uma humanidade mais genuína e natural.

I. Antropologia Literária: Recuperando a Natureza como Arte

A recuperação, por parte de Nietzsche, de certas concepções arcaicas sobre a natureza coincide com a importância adquirida pela questão da natureza humana na antropologia literária do início do século XX, assunto que é bem documentado por Wolfgang Riedel.2 A modernidade literária, de fato, tem sua origem numa mudança de paradigma dentro da antropologia literária, que refletia uma nova configuração entre a filosofia da natureza, a biologia e a antropologia. Fundamental, no interior dessa mudança de paradigma, é o conceito de natureza. De acordo com Riedel, esta reconceitualização da natureza teve uma grande importância antropológica, já que conduziu a uma reconsideração da natureza do ser humano, sendo o principal sintoma disso o deslocamento, do conceito de “natureza” para o de “vida”.3 A meu modo de ver, esse deslocamento conceitual confirma a questão da antropologia filosófica de Nietzsche, a saber, que a filosofia natural (Naturphilosophie) se converte em filosofia da vida (Lebensphilosophie).

Riedel atribui esse movimento - da “natureza” para a “vida” - à ascensão da biologia como nova episteme da natureza. Contudo, para esse autor, a modernidade literária e sua reconceitualização da natureza humana não se encontrariam sob o signo de uma aliança entre literatura e biologia, mas antes entre literatura e filosofia natural: quando a ideia de natureza que se encontra nas ciências naturais foi absorvida pela literatura, esta se transformou na ideia da “natureza em geral (ganze Natur)”.4 Em outras palavras, a ideia científica da natureza tinha sido apropriada pela literatura através da filosofia natural. Foi assim, graças a essa aliança entre literatura e filosofia, que a modernidade literária pôde preservar uma ideia não-cientificista da natureza (humana).

Riedel, por último, relaciona esta nova concepção da natureza dentro da antropologia filosófica com o homo natura de Nietzsche. Com Nietzsche, a natureza do ser humano deixa de ser interpretada a partir de critérios puramente idealistas ou cientificistas. Em Nietzsche, este novo pensamento da natureza humana se condensa no nome do Deus grego Dioniso: “o culto à fertilidade entre os primeiros gregos”, exemplificando uma “genuína e mais natural humanidade”.5

A ideia da humanidade natural na Grécia antiga deriva de uma noção da natureza como base da cultura humana. De fato, de acordo com os gregos, o ser humano é homo natura, isto é, um ser cuja cultura é imanente à natureza. Nietzsche articula pela primeira vez essa ideia da natureza como cultura (arte) na passagem inicial de “A disputa de Homero”.

O ser humano, também em suas mais nobres e elevadas capacidades, é sempre parte da natureza e ostenta o duplo carácter sinistro dela. Suas qualidades terríveis, consideradas geralmente como inumanas, são talvez o terreno mais fértil em que crescem todos aqueles impulsos, fatos e obras que compõem o que chamamos humanidade. (FV/CP, Justa de Homero, KSA 1.783).

O texto assinala que a cultura humana é imanente à natureza na medida em que as características denominadas “humanas” e “naturais” do ser humano estão entrelaçadas entre si ao ponto de ser indistinguíveis. Nietzsche considera que as conquistas culturais da humanidade são suscitadas pela naturalidade do ser humano. Como destaca a passagem recém citada, o que consideramos como terrível e inumano é, na realidade, o terreno fértil de onde a humanidade é cultivada. Este deslocamento do significado da natureza a partir do “terrível (furchtbar)” até a ideia do “fértil (fruchtbar)” permite a Nietzsche reafirmar, como fizeram os gregos, a ideia da natureza como fonte criativa e artística, isto é, como criadora de cultura. Desse modo, os gregos anunciam, segundo Nietzsche, uma humanidade natural e genuína que se encontraria nos antípodas da humanidade defendida pelos modernos.

Em Nietzsche, a cultura não implica, portanto, uma superação da natureza. Pelo contrário, ela exige a superação da crença na diferença entre o humano e a natureza, mais precisamente, a recusa da suposta superioridade do humano sobre a natureza e a animalidade. Desse modo, a compreensão da natureza do ser humano enquanto homo natura conduz não a uma transformação do animal humano, mas a uma transformação daquilo no que o ser humano se converteu no processo de sua civilização. Este último ponto é importante, já que sugere que o que necessita se submeter a uma transformação cultural no ser humano não é sua naturalidade ou sua animalidade, mas sua “segunda natureza”, adquirida no processo de sua civilização, isto é, a “humanização (Vermenschlichung)” (JGB/BM 242, KSA 5.182).

II. Antropologia científica: a descoberta da corporeidade do ser humano e o método destrutivo-construtivo de Nietzsche e Freud

Essa transformação do homem natural no homem civilizado está também no centro do projeto de renovação cultural de Sigmund Freud. Ludwig Binswanger, psicanalista e amigo de Freud, nota que Freud usa o termino homo natura exatamente no mesmo sentido que Nietzsche, e reconhece que ambos adotam o ponto de vista das ciências naturais em suas investigações acerca da natureza humana: o homo natura de Freud é “verdadeiramente uma ideia científica natural, biológico-psicológica”.6 Não obstante, ele também afirma que eles fazem isso para desconstruir as concepções metafísicas, morais e religiosas sobre a natureza humana. O ponto de vista das ciências naturais é, portanto, adotado por esses autores por razões estratégicas e não como um fim em si mesmo.7 Nesse sentido, Binswanger enfatiza o esforço de Nietzsche e Freud em desmantelar a hipocrisia e vaidade do ser humano, revelando o homo natura debaixo dos construtos civilizacionais do homo cultura.8

Embora Binswanger insista no carácter científico das aproximações de Freud e Nietzsche da questão do ser humano, ele tem o cuidado de não cair em concepções naturalistas e cientificistas da natureza humana, para as quais o ser humano é um objeto da natureza. Segundo Binswanger, Nietzsche e Freud investigam a “história interior da vida” (innere Lebensgeschichte), isto é, a história da existência encarnada do ser humano, e não as “funções vitais” (Lebensfunktionen) do corpo empírico. De acordo com Binswanger, as antropologias de Nietzsche e Freud se inspiram no descoberta da corporeidade (Leiblichkeit) e da vitalidade (Vitalität) do ser humano enquanto ser vivente.9 Ambos acolhem de boa vontade a revolução darwinista na biologia, já que estão conscientes de que qualquer investigação a respeito da natureza humana deve partir do reconhecimento de que o ser humano é uma criatura animal (animalische Kreatur). Binswanger, entretanto, tem cuidado de distinguir as reflexões de Nietzsche e Freud sobre a corporeidade e a vitalidade do ser humano de qualquer tipo de naturalismo reducionista e/ou cientificista. Isso é evidente pelo fato de que, segundo Binswanger, tanto para Nietzsche como para Freud o corpo humano está situado no interior do horizonte da (auto)experiência do ser humano enquanto ser vivente.10 Binswanger identifica no pensamento de Freud e Nietzsche um naturalismo centrado na (auto)experiência do ser humano enquanto ser vivente que produz cultura: “para Freud, a questão fundamental (Grundfrage) é determinar até que ponto se estende a capacidade cultural do ser humano”.11

Freud, de acordo com Binswanger, havia empregado o método científico para fins principalmente desconstrutivos:

Em nenhum lugar a destruição (Destruktion) do ser humano é mais rigorosa e completa como o é na ciência natural. Agora, a ideia científico-natural do homo natura deve também desconstruir (destruieren) o ser humano enquanto ser que habita dentro de una multiplicidade de direções de sentido (in den mannigfachsten Bedeutungsrichtungen lebendes) e que pode ser compreendido unicamente no interior de tal multiplicidade. A dialética científico-natural deve ser aplicada ao ser humano até que a única coisa que permaneça seja o resultado dessa tábula rasa, o produto dialético da redução, e que tudo o que constitui o ser humano enquanto humano, não só como criatura animal, tenha se extinguido. Este deve ser - de fato assim o é - o ponto de partida para qualquer um que “enfrente” (umgeht) a questão do ser humano, seja na ciência ou na prática.12

Numa nota de pé de página, Binswanger acrescenta a importante observação de que Nietzsche havia seguido o mesmo método. Assim, quando lemos que Nietzsche e Freud reduzem o ser humano a sua natureza animal, isso não deve ser entendido em termos de um reducionismo cientificista. Ao contrário, o objetivo da desconstrução do humano é demostrar que tudo aquilo que na vida é mais que a vida, a saber, o sentido (Sinn) e o significado, é ficção (Erdichtung) ou ilusão, mera consolação, “bela aparência” (schöner Schein).13 Nietzsche e Freud adotam o método das ciências naturais, ao reduzir o ser humano ao status de um acontecimento “portador de sentido (sinnbares Geschehen), a um ser vivido e constrangido (ein Gelebt und Übermächtig Werden) por cegas forças motrizes (treibenden blinden Machten)”.14 Binswanger declara que o objetivo do “método destrutivo-construtivo (destructive-konstruktive Weise)” não é “exibir a crença no sentido (Sinnglaube) como algo que pertence de modo absoluto ao humano (Menschheit) ou à humanidade em seu conjunto (Menschsein als Ganzes)”. Afirmar isso teria sido um ato niilista.15 A grande perspicácia de Nietzsche e Freud, ao contrário, consistiu em revelar a hipocrisia de certos indivíduos, grupos e/ou épocas culturais, e não da humanidade em geral.

Segundo Binswanger, a importância que Nietzsche e Freud atribuem à investigação sobre o corpo é uma característica distintiva de sua concepção da natureza humana:

Enquanto a ideia rousseauniana do homo natura é uma utopia animada pela ideia da natureza angelical do ser humano, nascido de uma natureza benévola, um homo natura benignus et mirabilis, por assim dizer, e a de Novalis é resultado tanto de uma idealização mágica da corporeidade como de uma naturalização mágica do espírito, a ideia do homo natura em Nietzsche e Klages se fundamenta sobre o seguinte argumento, também defendido por Freud: a corporeidade (Leiblichkeit) determina o que o ser humano é em sua essência.16

A recomendação de Nietzsche de seguir “o fio condutor do corpo” (Leitfaden des Leibes) em “toda investigação científica” (Nachlass/FP 26[432], KSA 11.266), especialmente nas questões relacionadas com o espírito” (Nachlass/FP 26[374], KSA 11.249). Cf. também Nachlass/FP 2[91], KSA 12.106), confirma a observação anterior de Binswanger. Nietzsche tematiza esta nova perspectiva filosófica numa nota póstuma:

Aceitando que a “alma” tenha sido um pensamento mais atrativo e misterioso, do qual os filósofos se separaram, com razão, mas só à força - é possível que o que os filósofos nos ensinam para suprir a alma seja ainda mais atrativo, mais misterioso: o corpo humano. O corpo humano, naquilo que revive e encarna o passado mais remoto e mais próximo de todo o devir orgânico, através, por cima e para além do qual parece fluir uma enorme corrente imperceptível: o corpo é um pensamento mais maravilhoso que a velha “alma” (Nachlass/FP 36[35], KSA 11.565).17

A respeito dessa nova perspectiva, gostaria de fazer três afirmações gerais. Em primeiro lugar, a passagem citada mostra que o que interessa a Nietzsche (e a Freud, acrescentaria) é a ideia, não empírica, mas sim filosófica do corpo: “o corpo é um pensamento mais maravilhoso que a velha ‘alma’” (Nachlass/FP 36[35], KSA 11.565). Nesse sentido, o central para Nietzsche não é apenas compreender que no corpo humano “revive e encarna o passado mais remoto e mais próximo de todo o devir orgânico” (Nachlass/FP 36[35], KSA 11.565), mas também que “os tempos primitivos e o passado de toda existência sensível, seguem vivendo em mim [Nietzsche], escrevem, amam, odeiam, raciocinam” (FW/GC 54, KSA 3.416-7). Embora Nietzsche reconheça que as ciências naturais realizam uma contribuição importante na tarefa de alcançar uma melhor compreensão da natureza humana, nem os conhecimentos que elas produzem nem seus métodos são capazes, por si mesmos, de oferecer uma resposta satisfatória a tal problemática. Para dizer de outro modo, se explicar como é que no ser humano “revive e encarna o passado mais remoto e mais próximo de todo o devir orgânico” (Nachlass/FP 36[35], KSA 11.565) e o poder de apreciar de que modo “os tempos primitivos e o passado de toda existência sensível, seguem vivendo em mim [Nietzsche], escrevem, amam, odeiam, raciocinam” (FW/GC 54, KSA 3.416-7), depende da imaginação do filósofo e do poeta, que têm ouvidos para escutar a “enorme corrente imperceptível” que flui “através, por cima e para além” do corpo humano (Nachlass/FP 36[35], KSA 11.565). Certamente, Nietzsche concebe a pessoa como um organismo natural, daí sua atenção aos discursos das ciências naturais. Esses discursos, porém, não têm o poder de tornar inteligível todos os aspectos da vida de este organismo. As concepções naturalistas reducionistas do corpo humano, segundo Nietzsche, não percebem a diferença existente entre o corpo empírico e o corpo vivente enquanto “maravilhosa reunião da vida mais múltipla” (Nachlass/FP 37 [4], KSA 11.576) e, portanto, fornecem uma imagem bastante parcial da natureza humana.

Em segundo lugar, sustento que tanto Nietzsche quanto Freud estão cientes dos limites de suas investigações da natureza humana. Freud, por exemplo, descreve suas tentativas de apreender a natureza humana por meio de uma teoria dos impulsos que busca dar conta da vida psíquica do ser humano, bem como seu vínculo com a “fonte arcaica da vida (Urgrund allen Lebens)”,18 como uma experiência estranha e desconcertante que, de fato, o leva a reconhecer a natureza mitológica de seu empreendimento científico:

A doutrina das pulsões é nossa mitologia, por assim dizer. As pulsões são entes míticos, grandiosos em sua indeterminação. Em nosso trabalho não podemos prescindir nem um instante delas, e no entanto nunca estamos seguros de vê-las com clareza.19

O “pasmo” de Freud, “seu estremecimento diante da ‘invisibilidade inquietante’ (ungeheuren)” das pulsões, atesta a impossibilidade de discernir com certeza a verdade da natureza humana.20 Para Freud, portanto, o labor dos cientistas naturais têm um caráter trágico inerente; não existe consolação possível a respeito da força violenta da natureza e da morte que lhe é imanente. A propósito disso, Freud conclui que o destino do ser humano consiste em suportar a dor e o sofrimento infligidos pela natureza, chegando inclusive a afirmar que tal resistência constitui o “primeiro dever de todos os seres vivos”:

O incessante assombro do cientista natural diante da seriedade e do poder da vida e sua morte imanente, o assombro diante de uma vida que, para Freud [e Nietzsche, acrescentaria], era “causa de nosso sofrimento (wir all schwer leiden)” (1933, XI, p. 464) e para o qual não existe compensação (ibid.) nem consolo, uma vida, em suma, que todos devemos suportar como o “primeiro dever de todos os seres viventes” (1933, X, pp. 345 ss.).21

A visão trágica de Freud sobre a vida, assim como seu reconhecimento dos limites do conhecimento humano, são aspectos também reconhecíveis no pensamento de Nietzsche. De fato, a impossibilidade de traçar uma linha que demarque claramente o que pertence ao conhecimento e o que pertence à mitologia é um tema recorrente na obra do filósofo alemão. Em Sobre verdade e mentira no sentido extramoral, Nietzsche ilustra esses limites propondo a imagem de um ser humano dormindo aferrado, sem saber, no dorso de um tigre, afirmando, além disso, que a natureza jogou fora a chave do recinto do conhecimento sobre os processos fisiológicos do corpo humano - “de modo que [o ser humano] acabou banido e encerrado numa consciência soberba e enganosa, sem saber nada das circunvoluções de seus intestinos, nem de sua rápida circulação sanguínea, nem das complexas vibrações de suas fibras nervosas” (WL/VM, 1, KSA 1.877). A natureza, de acordo com Nietzsche, se revela no e através do corpo como uma força selvagem, indômita e incontrolável, de sorte que se torna inacessível para a consciência humana, cujos poderes empalidecem diante aqueles da primeira. Evidentemente, esta visão dificulta o fornecimento de uma resposta à questão colocada por Nietzsche e Freud sobre como cultivar uma consciência outra, que abarque as dimensões corporais (animais e vegetais) da vida humana, enquanto as considera o terreno a partir do qual brotará uma humanidade natural.

A terceira e última afirmação que desejo fazer a respeito das investigações de Nietzsche e Freud sobre o ser humano enquanto ser vivo e encarnado é que tais investigações estão orientadas para a superação do humano. Como assinalaram corretamente Bertino e Stegmaier, a antropologia de Nietzsche e Freud é, ao mesmo tempo, uma crítica da antropologia.22 Nietzsche e Freud, com efeito, se apoiam sobre as descobertas de seus contemporâneos nas ciências naturais, a fim de mostrar que o ser humano não é uma criatura nem racional nem moral. Um fragmento do Nachlass, centrado no desenvolvimento da vida orgânica, nos confirma a ideia de que a motivação subjacente aos projetos de Nietzsche e Freud é desfazer-se das concepções dominantes sobre o ser humano, insustentáveis à luz das descobertas científicas da época:

Talvez qualquer desenvolvimento do espírito se reduz unicamente ao corpo (Leib): é a história da formação de um corpo superior (Leib) que se torna perceptível. O orgânico está ascendendo até instancias superiores. Nosso desejo de conhecimento da natureza não é senão um meio através do qual o corpo (Leib) se esforça para se aprimorar (perfeccionarse). Ou melhor: centenas de milhares de experimentos em nutrição, habitação e formas de vida, cujo fim é transformar o corpo (Leibes): a consciência e o estabelecimento de valores, todo tipo de desejos e de falta de entusiasmo, são sintomas dessas mudanças e experimentos sobre o corpo. No fim, não se trata do ser humano: se trata de sua superação (Nachlass/FP 24[16], KSA 10.655).

Mais ainda, essa passagem mostra que, no contexto do desenvolvimento da vida orgânica, a natureza humana não é algo estável nem fixo, mas que se encontra implicada nas contínuas formações e transformações da natureza em geral. A partir dessa perspectiva, a cultura não é uma característica distintiva do ser humano, mas imanente à natureza. Para Nietzsche e Freud, responder à pergunta a respeito de como criar um tipo diferente de consciência, que abrace as dimensões corporais da vida humana enquanto terreno sobre o qual crescerá uma humanidade natural, implica considerar a natureza como uma força criativa e artística.23 Assim mesmo, requer uma superação não do que é o ser humano, a saber, uma criatura natural, mas sim daquilo que ele se converteu no processo de tornar-se civilizado. Insisto que o modo que se deverá conceber tal autossuperação é um problema que excede os limites das ciências naturais, requerendo uma antropologia filosófica que seja capaz de providenciar uma concepção de cultura que não transcenda a natureza. Considero este o principal propósito do projeto de reconstrução da natureza humana sobre a base de uma natureza “desdeificada”, “descoberta e novamente emancipada” (FW/GC 109, KSA 3.469).24

III. Antropologia transformadora: o além-do-homem nietzschiano

Enquanto Binswanger está de acordo com Freud no que diz respeito aos méritos de seu naturalismo, argumenta que a renaturalizacão do ser humano envolve algo “mais” que uma teoria das pulsões. Por esta razão, Binswanger recorre à ideia do Übermensch de Nietzsche como exemplo de uma reconstrução filosófico-criativa da natureza humana que oferece uma descrição da produtividade cultural do ser humano mais convincente que a que proporciona o naturalismo científico (antifilosófico) de Freud.

Em Jean Granier é possível encontrar uma perspectiva sobre a relação entre Nietzsche e Freud, relativa ao estatuto da filosofia e a questão da natureza do ser humano, que contrasta ao mesmo tempo que complementa o ponto de vista de Binswanger.25 Segundo Granier, o fato de que Nietzsche e Freud tenham usado una terminologia comum - os conceitos de Es e homo natura - sugere que a concepção freudiana do ser humano como homo natura é essencialmente filosófica.26 Com efeito, quando Freud apela para o termo Es, cunhado por Nietzsche, para designar a origem da vida psíquica do ser humano, estaria fazendo algo mais que adotar uma palavra. A escolha desse termo por Freud, sustenta Granier, está fundada “num tipo de reflexão de natureza filosófica”.27 Do mesmo modo, a referência à natura do homo natura comprova que as reflexões de Freud sobre a questão do ser humano excedem largamente o marco interpretativo estabelecido por sua experiência clínica e suas investigações socioculturais. Granier também cita, assim como Binswanger, a passagem em que Freud reconhece o estatuto mitológico de sua teoria dos impulsos.28 Agora, segundo Granier, a mitologia para Freud não é, de modo algum, um mero conjunto de fantasmas e ilusões. Ao contrário, Freud teria restabelecido o poder do mito para revelar (dévoilment) a verdade.

Além disso, afirma que o modo com que Freud se refere à natureza traz à memória a “adoração e aflição que os gregos experimentavam diante daquilo eles chamavam ‘aidos’”, e infere que a mitologia freudiana é, como para os gregos, “um discurso sobre a origem, sobre o primordial”.29 Para Granier, a origem da vida psíquica não é mais que outro nome para denominação do ser, da totalidade da vida, e conclui, desse modo, que a concepção freudiana do homo natura é, assim como a de Nietzsche, uma concepção filosófica.

De acordo com a leitura de Granier, quando Nietzsche emprega a noção de natura para referir-se à natureza humana, seu objetivo não é nem apreender a vida psicológica do ser humano, nem articular uma antropologia. O propósito buscado, ao reconstruir a natureza humana enquanto homo natura é, segundo Granier, o de articular uma concepção alternativa da natureza, a saber, a concepção antiga da natureza como caos: “chaos sive natura” (Nachlass/FP 21[3], KSA 9.686 e 11[197], KSA 9.519).30 Natureza como caos designa uma concepção da natureza como força abundante e criativa, que produz vida a partir e fora de si mesma. É mediante a recuperação dessa força criativa e artística da natureza que Nietzsche espera liberar o potencial de formação e transformação no ser humano.

Para Granier, o caos é, para Nietzsche, a realidade abissal do ser enquanto vontade de potência. Tanto em Nietzsche como em Freud a natureza se revela como algo inaccessível ao ser humano, remetendo a uma origem, a um solo (Grund) que se apresenta como abismo (Abgrund).31 É nesse ponto que as reflexões de Nietzsche e Freud sobre a natureza do ser humano voltam a coincidir. Segundo a interpretação de Granier, com efeito, Freud concebe os impulsos do ser humano da mesma maneira que Nietzsche concebe a natureza, isto é, como caos. Granier conclui, então, que, ao tomar de empréstimo o termo Es de Nietzsche, Freud alcança a verdade filosófica de suas reflexões psicanalíticas:

Embora esteja certo que a crítica radical de Nietzsche e Freud à civilização revolucionou a natureza da filosofia, esta subversão não culmina na destruição (destruction) ou anulação da filosofia, mas conduz a uma superação, no sentido nietzschiano do termo Überwindung. Quer dizer, à reconversão (reconversion) da filosofia por meio de um retorno à origem que desvela o ser como algo que se encentra para além do que pode ser demostrado pela razão objetiva e, desse modo, permite à filosofia reconquistar sua verdade enquanto discurso do mundo.32

Certamente, Binswanger e Granier perseguem diferentes objetivos teóricos: abrir o caminho para uma análise filosófico-antropológica da existência humana na psicanálise, no caso do primeiro; recuperar a verdade da filosofia - para além da metafísica - enquanto discurso sobre a natureza e o mundo, no caso de Granier. Porém, a reconstrução que ambos oferecem das antropologias de Nietzsche e Freud conduzem à mesma abertura ao futuro, à transformação do ser humano: a metamorfose do ser humano, em Binswanger, e a renovação da filosofia, em Granier.

Nietzsche ilustra esta ideia do devir invocando a poderosa imagem do Übermensch, na qual o humano é superado através da recuperação da animalidade do ser humano como fonte eterna de autotransformação. Nesse sentido, considero que o über contido no termo Übermensch pode ser interpretado de modo que forneça um sentido diferente de “mais (mehr)” de Para além de bem e mal 230. O prefixo “sobre” no conceito “Übermensch”, em lugar de estabelecer uma ordem hierárquica, cujo efeito seria sancionar a dominação do homem “sobre” o animal, designaria o projeto de autossuperação do ser humano. Assim, enquanto o “além” em Para além de bem e mal 230 denota a suposta “superioridade” ou a origem “diferente” do ser humano, tal como o expressam “as atraentes melodias de todos os velhos passarinheiros metafísicos, que durante demasiado tempo vêm soprando com sua flauta: ‘Tu és mais! Tu és superior! Tu és de outra origem!’” (JGB/BM 230, KSA 5.169), o “sobre” no Übermensch se refere a uma relação horizontal que estabelece a equivalência entre o humano e o natural. Na noção de Übermensch de Nietzsche, o prefixo “sobre” não é, em suma, utilizado com o desígnio de separar o humano da natureza nem, muito menos, para alocar um (o humano) acima do resto da natureza.33 Este “sobre”, ao contrário, nos recorda que a natureza é “mais” que o ser humano e que, por conseguinte, a reconstrução da natureza humana não deve ser concebida como um “retorno à natureza”, mas sim como uma elevação, uma ascensão do ser humano por meio da recuperação desse “mais”, quer dizer, da força criativa e geradora da natureza. A renaturalização do ser humano é, assim, um movimento que conduz o ser humano à “natureza e à naturalidade elevada, livre, inclusive terrível” (GD/CI, Incursões de um extemporâneo, 48).34

Referências

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  • *
    Tradução: André Luís Mota Itaparica.
  • 1
  • 2
  • 3
    Riedel, 1996, pp. viii-ix.
  • 4
    Riedel, 1996, p. xii.
  • 5
    Riedel, 1996, p. 186. Nesse sentido, a interpretação de Riedel do homo natura em Nietzsche pode ser lida como uma correção tanto do esteticismo de Nehamas como o anti-esteticismo de Leiter (1992).
  • 6
    Binswanger, 1947, p. 166. Para uma versão mais extensa do texto de Binswanger, cf. Lemm (2019).
  • 7
    Nietzsche e Freud tomam distância tanto do humanismo como do cientificismo que caracterizam o Iluminismo. Em particular, Nietzsche é bastante consciente da denominada dialética do esclarecimento, rechaça seu desejo de conhecimento a qualquier preço, invocando os gregos, de quem diz que “sabiam como viver: para isso é necessário permanecer valentemente de pé ante a superficie, as dobras, a pele” (FW/GC, Prefácio, 4). Para a crítica nietzschiana da dialética do esclarecimento, cf. Adorno & Horkheimer, 2002, pp. 98-99; Maurer, 1990, pp. 1019-1026.
  • 8
    Binswanger, 1947, p. 161.
  • 9
    Binswanger, 1947, p. 168.
  • 10
    Binswanger, 1947, p. 168.
  • 11
    Binswanger, 1947, p. 163.
  • 12
    Binswanger, 1947, p. 184. Grifos meus.
  • 13
    Binswanger, 1947., p. 185.
  • 14
    Binswanger, 1947, p. 185.
  • 15
    A descrição naturalista de Leiter do fatalismo de Nietzsche, na medida em que define uma visão de mundo determinista, na qual liberdade e a criatividade humanas são reduzidas a meras ilusões, ilustra bem esse tipo de niilismo: Knobe & Leiter, 2007, especialmente pp. 89-90. De acordo com Binswanger, o mal-entendido relacionado com a redução científica em Freud tem sua raiz na tradução errônea das “possibilidades a priori ou essenciais da existência humana em processos de desenvolvimento genético” (apriorische oder wesensmässige Möglichkeiten des menschlichen Existierens in genetische Entwicklungsprozesse). Essa tradução da existência como história natural se reflete, por exemplo, nas tentativas de explicar “o modo de vida religioso como resultado do temor e da impotência da criança […], a forma de vida artística como resultado do prazer na ‘bela aparência’, etc.” (Binswanger, 1947, p. 185). A inversão proposta por Leiter da relação de dependência entre a arte e a natureza parece refletir esse erro quando sustenta que “a natureza não deve ser interpretada artisticamente; ao contrário, a obra de arte deve ser entendida naturalisticamente (isso é, como produto dos ‘instintos básicos de poder, natureza’)” (Leiter, 1992, p. 284).
  • 16
    Binswanger, 1947, p. 168. Sobre a posição de Nietzsche contra a idea do “retorno à natureza” de Rousseau, cf. GD/CI, “Incursões”, 48, KSA 6.150, assim como sua crítica ao romantismo (FW/GC 59, KSA 3.422-4).
  • 17
    Em outra nota póstuma, Nietzsche também afirma que é através do corpo que “nós” fazemos juízos de valor: “o corpo é o melhor conselheiro, o corpo (Leib) pode ao menos ser estudado”, algo que não é possível com a ‘alma’ (Nachlass/FP 25[485], KSA 11.141). Ver também: “Mas o desperto, aquele que sabe, diz: sou inteiramente corpo (Leib) e nada mais; e a alma é apenas uma palavra para designar algo no corpo” (Za/ZA, Dos desprezadores do corpo, KSA 4.39).
  • 18
    Binswanger, 1947, p. 160.
  • 19
    Freud, 1933, p. 95. Binswanger, 1947, p. 160; Granier, 1981, p. 101.
  • 20
    Binswanger, 1947, p. 160.
  • 21
    Binswanger, 1947, p. 160. Cf. JGB/BM, 226, KSA 5.162, no capítulo initulado “Nossas virtudes”, o que Nietzsche diz a respeito do “dever” dos espíritos livres.
  • 22
    Stegmaier & Bertino, 2015, pp. 65-80.
  • 23
    Christa David Acampora cunhou o termo “naturalismo artístico (artful naturalism)” para capturar esse aspecto do naturalismo de Nietzsche (Acampora, 2006, pp. 314-333.
  • 24
    De acordo com Paul Bishop, a naturalização da humanidade tambén se encontra em jogo na psicologia de Carl Gustav Jung. A partir de sua perspectiva, invocando uma nova concepção de natureza, diferente da noção de leis naturais, Nietzsche está forjando uma nova concepção do ser humano (MA/HH 3, KSA 2.25-6). Cf. Bishop, 2009, pp.12-24.
  • 25
    Granier, 1981, pp. 88-102.
  • 26
    Granier parece considerar que Freud adotou o termo homo natura de Nietzsche, mas, até onde sei, é Binswanger quem apela a essa noção para descrever a concepção freudiana do ser humano. Mais ainda, segundo Gasser, Freud desconhecia que Binswanger estava citando Nietzsche quando definiu sua concepção do ser humano com o termo homo natura.
  • 27
    Granier, 1981, p. 100.
  • 28
    Binswanger, 1947, p. 160; Freud, 1933, p. 95; Granier, 1981, p. 101.
  • 29
    1981, p. 101.
  • 30
    1981, p. 101.
  • 31
    Ver também Nietzsche sobre este ponto: “A renaturalização do ser humano exige a vontade de aceitar o repentino e o imprevisível (Durchkreuzende)” (Nachlass/FP 11 [228], KSA 9.529).
  • 32
    Granier, 1981, p. 102.
  • 33
    Lemm, 2009, pp. 19-23.
  • 34
    Ver também “a renaturalização do ser humano no século XIX (o século XVIII é o século da elegância, da delicadeza e dos sentimentos generosos). Não um ‘retorno à natureza’: jamais houve uma humanidade natural (natürliche Menschheit) […]. O ser humano chega à natureza só despois de uma longa luta - nunca ‘retorna’ a ela […]. A natureza: isto é, se atrever a ser imoral como a natureza” (Nachalass/FP 10[53], KSA 12.482).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2021
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2020
  • Aceito
    18 Abr 2020
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