Acessibilidade / Reportar erro

Nietzsche: ciência, contradição e nuance* * A primeira versão deste texto resulta de pesquisa financiada pela FAPESP (processo nº 14/23282-4, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). A primeira versão foi retrabalhada e se transformou neste artigo durante pós-doutorado realizado no Departamento de Filosofia da UNIFESP, com bolsa de Pós-doutorado Júnior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPq. Dedico este texto a Ivo da Silva Júnior, supervisor desse pós-doutorado.

Nietzsche: science, contradiction and nuance

Resumo:

Estudiosos da filosofia de Nietzsche não deixaram de atribuir-lhe contradições. Um exemplo de incongruência seriam suas posições sobre a ciência, objeto de elogio e crítica. Se assim for, Nietzsche teceria observações contraditórias sobre um domínio que, por princípio, busca livrar-se de contradições. Da perspectiva da filosofia nietzschiana, atribuir-lhe contradição significaria uma objeção? O elogio e a crítica de Nietzsche à ciência seriam incompatíveis? Após tentar responder a essas perguntas, buscaremos mostrar que as considerações do filósofo sobre a ciência revelam uma forma de proceder que ele não só reivindica para si como também prescreve ao pensamento científico: a arte da nuance.

Palavras-chave:
Ciência; contradição; nuance; lógica; realidade; mecanicismo

Abstract

Scholars point out contradictions in Nietzsche’s philosophy. An example would be his po itions on science, object of praise and criticism. If so, Nietzsche would make contradictory remarks about a domain that, on principle, seeks to rid itself of contradictions. From the perspective of Nietzschean philosophy, would attributing contradiction to it mean an objection? Would Nietzsche’s praise and criticism of science be incompatible? After trying to answer these questions, we will aim to show that the philosopher’s considerations on science reveal a way of proceeding that he not only claims for himself but also prescribes to scientific thought: the art of nuance.

Keywords
Science; contradiction; nuance; logic; reality; mechanism

Introdução

No “Posfácio” ao terceiro volume da Kritische Studienausgabe, Giorgio Colli (1999, p. 659COLLI, Giorgio. Nachwort. In: NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. Editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Munique: de Gruyter, 1999, v. 2, pp. 653-663.) afirma que,“em A gaia ciência, deixam-se descobrir todas as contradições de Nietzsche, as quais, porém, não operam ali de maneira saliente nem ofensiva, quase não aparecendo como contradições” 1 1 Quando não se indica o tradutor de textos que na bibliografia se encontram em língua estrangeira, as traduções são de minha responsabilidade. . Se, a despeito de tais incongruências, a obra se caracterizava pela ponderação com que abordava os extremos (Colli, 1999, p. 660COLLI, Giorgio. Nachwort. In: NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. Editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Munique: de Gruyter, 1999, v. 2, pp. 653-663.) e pela “mágica harmonia” expressiva que, no entender do intérprete italiano (1999, p. 663COLLI, Giorgio. Nachwort. In: NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. Editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Munique: de Gruyter, 1999, v. 2, pp. 653-663.), conhecia seu ponto alto no “Livro IV”, os acréscimos à segunda edição – de um “Prólogo”, do “Livro V” e das “Canções do príncipe Vogelfrei” 2 2 NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. A partir de agora indicado como PCS. –já não dão mais testemunho de semelhante equilíbrio. Assim argumenta Colli (1999, p. 663COLLI, Giorgio. Nachwort. In: NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. Editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Munique: de Gruyter, 1999, v. 2, pp. 653-663.): “Comparem-se – como um exemplo entre muitos – o aforismo 373, que critica ferozmente a ciência, e o aforismo 293, situado antes, que promove, de maneira serena e perspicaz, seu reconhecimento”.

Essa leitura de Colli suscita interesse por ao menos duas razões. Em primeiro lugar, de um ponto de vista mais geral, porque ela pode ser considerada como um exemplo da posição segundo a qual Nietzsche seria um autor contraditório 3 3 Para Karl Jaspers (1981, p. 16 e ss.), “a autocontradição é o traço fundamental do pensamento nietzschiano”. Argumentando, escreve ele: “Todas as afirmações parecem ser neutralizadas por outras […]. Em Nietzsche, para um juízo, pode-se quase sempre encontrar o [juízo] contrário. Parece que ele tem duas opiniões a respeito de tudo”. No entender de Jaspers, porém, tais contradições não se devem ao acaso, mas são necessárias. E, para compreender o pensamento de Nietzsche, o leitor deve apreender essas contradições justamente em sua necessidade, além de levar em conta as diferentes proposições do filósofo a respeito de um mesmo assunto. Em um trabalho de outra natureza, Louis Pinto (1995, p. 17) inicia a “Introdução” de seu estudo sobre a recepção de Nietzsche na França com a seguinte declaração: “Tendo de contar com a ação dos intérpretes, o conhecimento de uma obra tão portadora de elipses, enigmas e contradições como a de Nietzsche pressupõe, sem dúvida mais do que outras, uma análise das leituras e dos leitores”. Como se nota, por vezes, a posição segundo a qual Nietzsche é um autor contraditório é assumida como um dado e serve como ponto de partida. Convém, entretanto, perguntar se todas as contradições atribuídas a Nietzsche são realmente contradições ou se por vezes, ao contrário, atribuem-se-lhe incongruências que, examinadas de perto, não se revelam tais. O propósito deste artigo consiste precisamente em examinar um determinado caso, a saber, a atribuição de contradição a certas posições de Nietzsche sobre a ciência apresentadas nos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência. . Em segundo lugar, de um ponto de vista mais específico, porque, para apontar a ausência de harmonia e de equilíbrio em algumas posições de Nietzsche, Colli menciona considerações do filósofo sobre a ciência. Ora, se, como indica Colli, certas observações de Nietzsche a respeito da ciência carecem de harmonia e de equilíbrio, pode-se dizer então que elas encerram contradição e se revelam imponderadas: a crítica feroz presente no parágrafo 373, do “Livro V”, contrasta com o antigo reconhecimento sereno e perspicaz expresso no parágrafo 293, do “Livro IV”. Se assim for, Nietzsche teceria considerações contraditórias sobre um domínio — a ciência — caracterizado justamente pela busca por livrar-se de contradições.

A tese de que certas concepções de Nietzsche envolveriam contradições soaria ao próprio filósofo como uma objeção? Responder a essa pergunta é o objetivo da primeira seção deste artigo. Para tanto, é preciso examinar a complexa posição de Nietzsche em relação à lógica: com efeito, ao mesmo tempo em que ele a considera uma ficção e uma expressão de limitações humanas, o filósofo rejeita pensamentos que a transgridem.Na segunda seção do artigo, de modo mais específico, perguntamos se o elogio à ciência formulado no parágrafo 293 de A gaia ciência e a crítica exposta no parágrafo 373 encerram contradição: não seria possível, sem contradição, elogiar e criticar a ciência? Na terceira seção, procuramos mostrar que as considerações de Nietzsche sobre a ciência, por vezes vistas não só como diversas mas também como divergentes, refletem um modo de proceder que o filósofo reivindica para si e que, a nosso ver, deve ser um instrumento do pensamento científico, tal como o compreende o autor de Para além de bem e mal: a arte da nuance. Como se caracteriza a nuance e em que ela se diferencia da contradição? Qual é o papel da nuance no pensamento científico? Eis algumas das questões que cumpre examinar.

1. O estatuto da lógica e da contradição, segundo Nietzsche

Para conjecturar como a atribuição de contradição seria considerada da perspectiva da filosofia de Nietzsche, julgamos indispensável examinar previamente se e até que ponto o pensador alemão confere um papel decisivo à lógica em geral e, em particular, ao princípio de contradição 4 4 Temos em vista aqui a lógica formal, na medida em que estabelece as condições de validade do raciocínio. Tal não é o único significado que o termo lógica assume na obra de Nietzsche. A respeito de outros sentidos, cf. Günter Abel (1987) e Nikolaos Loukidelis (2014). . Uma observação unilateral de seus textos, a depender do lado que deles se levasse em conta, poderia sem dúvida provocar a impressão de que o autor de Zaratustra rejeita completamente a lógica e, por conseguinte, recusa-lhe qualquer função positiva em seu pensamento. De fato, por estratégias argumentativas diversas, uma parte considerável de seus escritos sobre o tema, do início ao fim de sua obra, destina-se a fundamentar e defender a posição basilar de que a lógica não pode constituir um critério de verdade e realidade: “A aberração da filosofia reside em que, em vez de se ver na lógica e nas categorias da razão um meio para arranjar o mundo para fins de utilidade (portanto, ‘por princípio’, para uma falsificação útil), acreditou-se ter nelas o critério da verdade, isto é, da realidade” (NF/FP 1888, 14[153], KSA 13.336).

O lógico, ao contrário, “não fala senão de casos que jamais ocorrem na efetividade” (NF/FP 1888, 14[152], KSA 13.335). Já em Humano, demasiado humano declara Nietzsche que “a lógica repousa sobre pressupostos, aos quais nada no mundo efetivo corresponde”, citando como exemplos “o pressuposto da igualdade entre coisas, da identidade da mesma coisa em diferentes pontos do tempo” (MA I/HH I 11, KSA 2.31) 5 5 NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. Col. “Os Pensadores”. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 2000. A partir de agora indicado como RRTF. , em cuja realidade, entretanto, aquela ciência havia acreditado. Tal como o princípio de identidade, o princípio de contradição, assegura Nietzsche, também não oferece garantia alguma de acesso à efetividade: ele não constitui uma necessidade (NF/FP 1887, 9[97], KSA 12.389-391) nem, muito menos, uma prova da verdade em si (NF/FP 1888, 14[152], KSA 13.333-335), mas tão somente uma incapacidade: “Não logramos afirmar e negar a mesma e única coisa: esse é um princípio subjetivo de experiência, nele não se expressa nenhuma ‘necessidade’ [Nothwendigkeit], as apenas uma não capacidade” (NF/FP 1887, 9[97], KSA 12.389). E, numa anotação posterior, ao insistir que “o não-poder-contradizer demonstra uma incapacidade, não uma ‘verdade’”, Nietzsche assevera: “A necessidade [Nöthigung] subjetiva de aqui não poder contradizer é uma necessidade biológica: o instinto da utilidade em raciocinar como raciocinamos acha-se em nosso corpo, nós quase somos esse instinto” (NF/FP 1888, 14[152], KSA 13.334). A lógica e seus princípios não respondem, pois, a uma pura necessidade (Bedürfniß) de “conhecimento” nem correspondem à efetividade, consistindo antes em meios úteis para a conservação do homem (NF/FP 14[152], KSA 13.333-335): “Os princípios da lógica, o princípio de identidade e o de contradição, [...] não são nenhum conhecimento! mas sim artigos de fé reguladores” (NF/FP 1886-1887, 7[4], KSA 12.266).

Admitir, de um lado, que a lógica figura entre ficções e inverdades – as quais, contudo, bem podem favorecer a conservação e o cultivo da vida (JGB/BM 4, KSA 5.18) – e, de outro, que o ilógico se mostra necessário ao homem – em duplo sentido: porque lhe é inextirpável e porque lhe traz muitas coisas boas (MA I/HH 31, KSA 2.51) 6 6 Nas notas do curso Introdução ao estudo dos diálogos platônicos (KGW II/4.15), Nietzsche afirma que “a natureza de Platão não é, de modo algum, nenhuma [natureza] absolutamente lógica” e estima que “aí reside por vezes sua força”. – não impede Nietzsche de voltar-se contra “maus hábitos de raciocínio” (MA I/HH 30, KSA 2.50, trad. PCS) e de exigir do pensamento alheio coerência lógica. O caráter incontornável de tal requisito deixa-se notar com toda clareza de uma forma negativa, isto é, nos casos em que Nietzsche rejeita certas ideias já pelo fato de, a seu ver, incorrerem elas em contradição. É o que se observa na série de expressões desaprovadas pelo filósofo em razão de incidirem, em seu entender, nesta espécie de contradição que é a contradictio in adjecto: “‘certeza imediata’”, “‘conhecimento absoluto’” e “‘coisa em si’” (JGB/BM 16, KSA 5.29, trad. RRTF) são algumas delas, ao lado de “‘razão pura’”, “‘espiritualidade absoluta’” e “‘conhecimento em si’”, que constituem igualmente “conceitos contraditórios” ou conceitos, por assim dizer, inconcebíveis (Unbegriff) (GM III, 12, KSA 5.365, trad. PCS).

Se Nietzsche desabona determinados pensamentos na medida em que se revelam contraditórios, pode-se depreender daí que a observância da lógica e, em especial, do princípio de contradição se apresenta como exigência indispensável, embora garanta apenas, quando muito, irrefutabilidade, mas jamais verdade entendida como adequação entre o que se exprime em palavras e o real: “Algo pode ser irrefutável: ainda não é por isso verdadeiro” (NF/FP 1885, 34[247], KSA 11.503). Mostrando-se imprescindível, pois, o respeito à lógica e ao princípio de contradição, a tese segundo a qual Nietzsche seria em certos momentos inconsequente soaria aos seus ouvidos, ao que tudo indica, como uma objeção digna de interesse e, se correta, capaz de invalidar suas considerações sobre a ciência, caso elas sejam, como aponta Colli, desarmônicas ou contraditórias. Por isso, a atribuição de contradição às posições de Nietzsche sobre a ciência merece ser investigada.

2. Os parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência são contraditórios?

Seria possível falar em contradição no caso dos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência? Para que as posições manifestadas nesses dois textos se mostrassem logicamente contraditórias, seria preciso que, em uma delas, Nietzsche estabelecesse uma determinada relação com a ciência e que, na outra, simultaneamente rejeitasse essa mesma relação. Se isso ocorresse, uma dessas posições teria de ser inválida na medida em que a ciência, na condição de objeto de seu julgamento, não pode comportar e, sincronicamente, não comportar igual avaliação: de um ponto de vista lógico, em dado momento, ou a ela se aplica ou a ela não se aplica uma determinada apreciação, inexistindo, de acordo com o princípio do terceiro excluído, outra possibilidade 7 7 Sobre os princípios de contradição e do terceiro excluído, cf. Moritz Wilhelm Drobisch (1887, p. 65 e ss.). De maneira paradoxal, o jovem Nietzsche utiliza o princípio do terceiro excluído para, em uma série de cartas enviadas a Paul Deussen entre 1867 e 1870, defender a ideia de que, em certo sentido, não só o sistema filosófico de Schopenhauer, ao qual era simpático, como o de qualquer outro estão protegidos de críticas lógicas: “Não se escreve absolutamente a crítica de uma visão de mundo: mas se compreende ou não se compreende [uma visão de mundo], um terceiro ponto de vista sendo-me insondável” (KSB 2.328). A declarada blindagem dos sistemas em relação à lógica não dissuade Nietzsche, entretanto, da busca por incoerências, como testemunham suas anotações denominadas Zu Schopenhauer (cf. Friedrich Nietzsche: Werke und Briefe. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Werke (nach fünf Bänden abgebrochen) (BAW). München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1933-1940, v. 3, p. 358, página essa que contém anotações de Nietzsche de outubro de 1867 a abril de 1868; doravante, essa edição será designada BAW, e a referência conterá, após a designação da edição, o número do volume, seguido sucessivamente por um ponto, pelo número da página, por uma vírgula e pela indicação do período a que se refere a anotação de Nietzsche; no caso da presente referência: BAW 3.358, outubro de 1867/abril de 1868). De início elaboradas em esfera privada, as objeções lógicas se tornarão, num momento seguinte, públicas e suficientes para a rejeição de ideias julgadas incongruentes. .

Assim, para que se julguem contraditórias as ponderações enunciadas nos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência, é preciso supor que Nietzsche atribui e, concomitantemente, subtrai a mesma determinação ao mesmo objeto. Na interpretação de Colli, a combinação entre os princípios de contradição e do terceiro excluído assume os contornos de um arrazoado segundo o qual, no primeiro texto, a ciência seria objeto de reconhecimento e, no segundo, de crítica, compreendida como uma forma de não reconhecimento, donde se conclui pela incongruência do pensador alemão. Logicamente admissível seria reconhecimento ou crítica, mas não reconhecimento e crítica.

Contudo, mesmo admitindo a tese de que Nietzsche dota e priva um único objeto (a ciência) de certa apreciação (o que resultaria em seu reconhecimento e não reconhecimento), não nos parece possível, nesse caso, imputar-lhe desarmonia, menos ainda se esta for definida como uma espécie de contradição: pelo simples fato de terem sido os dois parágrafos publicados em momentos distintos, tratar-se-ia antes de mera transformação de suas posições precedentes. Com efeito, para o autor de Humano, demasiado humano, a alteração do julgamento sobre um assunto não configura, por si mesma, uma contradição nem se mostra digna de reprimenda. Ao contrário, a mudança de opinião pode até, de um ponto de vista científico, revelar-se merecedora de valorização, enquanto a atitude contrária, a de permanência a todo custo na mesma convicção, é, essa sim, por ele depreciada como sinal de “culturas atrasadas” (MA I/HH 632, KSA 2.358, trad. PCS). Dessa forma, Nietzsche pretende operar uma inversão na maneira de avaliar que ele considera comumente praticada: normalmente, estima-se a fidelidade às próprias convicções e, de modo inverso, condena-se a modificação delas, modificação, aliás, que geralmente se acompanha de sofrimento e sentimento de culpa (MA I/HH 629 e 637, KSA 2.354-355 e 362).

Esse propósito de inversão de sinais deixa-se ver com nitidez nas últimas páginas de Humano, demasiado humano, nas quais se lê uma crítica veemente à convicção e à superestima de sua imutabilidade. Compreendida como “a crença de estar [...] na posse da verdade incondicionada”, toda convicção pressupõe, segundo Nietzsche, a realidade de verdades absolutas, bem como a existência e o efetivo uso dos métodos que a elas conduziriam. Mas ele adverte imediatamente: “Todos esses três postulados demonstram que o homem das convicções não é o homem do pensamento científico; está, diante de nós, na idade da inocência teórica [...]; pelo menos a expressão dogmática de sua crença terá sido não científica ou científica pela metade” (MA I/HH 630, KSA 2.356, trad. RRTF).

Colocada em evidência nessa passagem, a oposição entre o homem de convicção e o homem de ciência repousa sobre uma distinção básica: enquanto o primeiro concentra seus esforços em tentar fazer prevalecer a própria crença em vez de investigar os motivos que o levaram à sua adesão (MA I/HH 630, KSA 2.356-357), o segundo, tendo cultivado não apenas os resultados como também os métodos científicos, adota como postura a prudência e a desconfiança em relação ao pensamento em geral e, por conseguinte, ao seu próprio (MA I/HH 635, KSA 2.360-361).

É certo que o aperfeiçoamento metodológico, em larga medida responsável pela desqualificação das convicções, não se produz em completa independência destas últimas; pelo contrário, por paradoxal que possa parecer, é a elas que deve sua origem e seu estímulo. Reputando-se detentores de verdades absolutas, homens de convicção procuram impor suas próprias crenças uns aos outros. Para tanto, eles recorrem a diversos expedientes, entre os quais figura, a par do empenho para demonstrar positivamente suas respectivas ideias, a análise dos meios utilizados pelos adversários na edificação das opiniões que estimam verdadeiras. Ao proceder assim, cada um identifica e expõe os erros com base nos quais os rivais forjam seus métodos (MA I/HH 634, KSA 2.359-360) e, no que concerne a si mesmo, toma consciência da cautela necessária para fabricar e usar o seu próprio.

Despertando e intensificando a suspeita em relação ao pensamento em geral (MA I/HH 635, KSA 2.360-361), a qual se torna instintiva no homem de ciência, o processo acima descrito tem ainda por consequência a modificação na maneira de apreciar o sentimento de cada um em referência às suas próprias opiniões e às dos outros: “O pathos de possuir a verdade vale hoje bem pouco em relação àquele outro, mais suave e nada altissonante, da busca da verdade, que nunca se cansa de reaprender e reexaminar” (MA I/HH 633, KSA 2.359, trad. PCS).

Entendida como crença na verdade das opiniões, a convicção, que pode implicar fanatismo e violência em sua defesa (MA I/HH 630, KSA 2.356-357), cede lugar, no homem de ciência, ao emprego metodológico da prudência e da desconfiança, à propensão ao exame e ao reexame, à predisposição ao abandono, quando necessário, de uma posição em favor de outra. Assim, a convicção em si mesma e, sobretudo, a estima da imutabilidade das convicções se veem assaz depreciadas (MA I/HH 632, KSA 2.358), em benefício do reconhecimento e da valorização da transitoriedade das opiniões (MA I/HH 629 e 637, KSA 2.354-355 e 362). Num processo que tende à autossupressão, a convicção dá origem ao espírito científico e, em seguida, nele se extingue ou ao menos deveria desaparecer, pois a ciência, em termos negativos, se assenta, ou aspira assentar-se, sobre uma ausência, precisamente a ausência de convicções. É o que reitera Nietzsche posteriormente:

Na ciência as convicções não têm nenhum direito de cidadania, assim se diz com bom fundamento: somente quando elas se resolvem a rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista provisório de ensaio, de uma ficção regulativa, pode ser-lhes concedida a entrada e até mesmo um certo valor dentro do reino do conhecimento – sempre com a restrição de permanecerem sob vigilância policial, sob a polícia da desconfiança. – Mas isso, visto com mais precisão, não quer dizer: somente quando a convicção deixa de ser convicção, ela pode ter acesso à ciência? A disciplina do espírito científico não começa com o não mais se permitir convicções? (FW/GC 344, KSA 3.574-575, trad. RRTF) 8 8 Afirmamos que a convicção apenas tende à autossupressão, num processo que se completaria na formação do espírito científico tal como descrito na passagem citada do parágrafo 344 de A gaia ciência, na medida em que aquele movimento orientado para a autoaniquilação não se efetiva de fato na ciência, a qual, segundo Nietzsche, ainda repousa sobre uma convicção, a saber, a crença no valor supremo da verdade. .

Portanto, mesmo a comprovação de uma mudança de opinião em momentos distintos não é suficiente para defender a ideia de que Nietzsche incorre em contradição. A transitoriedade, se transitoriedade há, de sua posição sobre qualquer assunto – e, assim, também sobre a ciência – encontra-se, isto sim, em plena conformidade com o que, segundo o autor, se propõem a disciplina e o modo de avaliar característicos ao espírito científico 9 9 O pendor a não condenar e a propensão a estimar a alteração das opiniões não implicam, de um ponto de vista científico, valorizar a mudança por si só: não haveria razão para aclamar, por exemplo, uma modificação de posição desprovida de rigor. Tampouco significam depreciar toda forma de permanência: quando se toma consciência do “caráter mutável de tudo o que é humano”, a ciência se torna fonte de felicidade justamente ao produzir resultados que, de alguma forma, se conservem (FW/GC 46, KSA 3.411-412, trad. PCS). .

Mesmo supondo, porém, que as apreciações opostas contidas nos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência tivessem sido sustentadas em concomitância, seria preciso ainda saber, para considerá-las incongruentes, se Nietzsche teria de fato atribuído e subtraído a mesma determinação ao mesmo objeto, designado por Colli (1990, p. 663) como “a ciência”, a qual seria motivo de reconhecimento no primeiro texto e alvo de crítica, isto é, de não reconhecimento, no segundo. Se tais avaliações se endereçam exatamente ao mesmo destinatário, então, de uma perspectiva lógica, elas são, com toda obrigatoriedade, mutuamente excludentes, incompatíveis e, assim, contraditórias. Todavia, caso não recaiam sobre o mesmo objeto, aquelas apreciações não envolvem inevitável contradição, reclamando, por conseguinte, outra qualificação. Examinemos, pois, se e em que medida a reverência e a censura veiculadas naqueles textos dizem respeito ao mesmo objeto.

Manifestação, segundo Colli, de reconhecimento, o parágrafo 293 (FW/GC 293, KSA 3.533-534, trad. PCS) versa principalmente sobre aquilo que o próprio Nietzsche denomina, com conotação positiva, “‘rigor da ciência’”; outro assunto ali abordado é o modo como tal atitude é vista pelos próprios homens de ciência, de um lado, e pelos “não-iniciados”, de outro. A severidade da ciência se faz observar sob duas formas: na relação que seus adeptos estabelecem tanto com seus objetos quanto entre si mesmos. No primeiro caso, a natureza implacável de seu comportamento se traduz na “inflexibilidade nas pequenas como nas grandes coisas” e na “rapidez em ponderar, julgar, condenar”; no segundo, sua severidade manifesta-se na prevalência da repreensão entre os pares em detrimento de elogios e distinção, ainda que, em regra, na ciência se exija o mais difícil e se faça o melhor.

Semelhante prática, intrínseca ao espírito científico, inspira vertigem e medo em quem não é iniciado. Em contrapartida, indivíduos habituados àquela maneira de ser a percebem até mesmo como a sua única condição de existência, afigurando-se impossível a vida em outro meio e de outra forma. A esse tipo de conduta Nietzsche se refere já no título do parágrafo, de modo inclusivo, como “nosso ar”, qualificado linhas adiante como um “ar claro, transparente, vigoroso, [...] viril”.

No parágrafo 373, por sua vez, “a ciência” figuraria, na leitura de Colli, como alvo de uma crítica mordaz. Um dos intuitos principais do texto consiste, de fato, em evidenciar as limitações da ciência e sua própria incapacidade para percebê-las 10 10 Com justeza entende Stegmaier (2012, p. 27) que, enquanto o tema do parágrafo 293 é o rigor (Strenge) da ciência, o assunto do parágrafo 373 é a sua estreiteza (Enge). . A tese central é colocada logo de início: “Das leis da hierarquia decorre que os eruditos, na medida em que pertencem à classe média espiritual, não podem ter visão dos problemas e interrogações realmente grandes” (FW/GC 373, KSA 3.624-625, trad. PCS). Semelhante inaptidão, ajuíza o filósofo, decorre do fato de que o olhar e a coragem dos eruditos são acanhados em demasia: seus desejos, antecipações, medos e esperanças encontrariam satisfação e tranquilidade com excessiva rapidez. A argumentação desenvolvida no texto dá a entender que, constituindo um problema e um ponto de interrogação de relevo, a limitação da ciência, que é parte da limitação dos eruditos, não pode ser notada por aqueles que a praticam, isto é, pelos próprios eruditos enquanto homens de ciência, justamente em razão de sua mediocridade espiritual. Estes, insensíveis às grandes questões e, por extensão, às grandes respostas que elas demandam, só de maneira ilegítima aspiram a abordá-las 11 11 A questão da legitimidade se faz presente pelo uso do verbo modal dürfen (KSA 3.625, linha 1). . Tal falta de legitimidade explica-se, então, por aquela inépcia.

Nietzsche procura sustentar essa sua posição geral lançando mão de dois exemplos que ilustrariam a incompetência dos eruditos, a qual compreende também a incompetência para notar a própria incompetência. No primeiro caso, o alvo é Herbert Spencer. A conciliação entre egoísmo e altruísmo ocuparia em seu pensamento o lugar de horizonte máximo do desejo e se apresentaria como a mais elevada esperança para a humanidade, ao passo que é percebida por outros, entre os quais Nietzsche, como merecedora de asco e desprezo, não podendo, por isso, ser estimada como pertencente às “perspectivas derradeiras” do homem, mas apenas como uma “possibilidade repugnante” (FW/GC 373, KSA 3.625, trad. PCS). Contudo, se aos eruditos, dada a sua incapacidade, não é permitido discernir os pontos de interrogação e os problemas autenticamente grandes, então Spencer não poderia atinar com aquela oposição perceptiva, que constitui ela própria, de acordo com Nietzsche, uma grande questão.

No segundo exemplo, mais importante para o propósito de nossa análise, o autor de A gaia ciência volta-se contra a satisfação de que dão mostra “tantos naturalistas materialistas” em relação a certa crença. Eles acreditam, escreve Nietzsche, em um mundo verdadeiro apreensível pelo pensamento humano ou, mais precisamente, pela interpretação mecanicista, que, justamente por essa suposta capacidade de apreensão, arroga-se o monopólio da legitimidade científica. Embora nesse caso ciência não signifique mais do que “contar, calcular, pesar, ver, pegar”, por intermédio dela se acredita possível compreender, de maneira definitivamente válida, as “leis primeiras e últimas, sobre as quais toda a existência deve estar construída”. No entender de Nietzsche, entretanto, semelhante “interpretação do mundo ‘científica’” não faz senão reduzir a existência a um mero exercício de cálculo, despojando-a de “seu caráter polissêmico”. Para evidenciar o viés redutor de tal concepção, ele se vale de uma analogia musical. Uma avaliação “‘científica’” da música que dela levasse em conta apenas o que se deixa contar, calcular e expressar em fórmulas seria, diz ele, “absurda”, já que não captaria “nada daquilo que nela é de fato ‘música’!...”. Fosse música a existência, então aquele modo de conceber o mundo careceria dos ouvidos necessários para apreendê-la: seria surdo e absurdo 12 12 Segundo consta do volume KSA 14 (p. 275), Nietzsche suprimiu da versão final do parágrafo 373 a seguinte conclusão, que figurava no manuscrito: “Os naturalistas de confissão mecanicista negam no fundo, como todos os surdos, que exista música, que a existência seja música, até mesmo que possam existir ouvidos.… Com isso, eles desvalorizam a existência”. . Daí Nietzsche assegurar: “Uma interpretação do mundo ‘científica’, tal como a entendem [os mecanicistas], poderia então ser uma das mais estúpidas, isto é, das mais pobres de sentido de todas as possíveis interpretações do mundo” (FW/GC 373, KSA 3.624-626, trad. PCS). Precisamente por se reduzir o mecanicismo a uma determinada “linguagem dos sentidos” (NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.258), seria coerente suspeitar de sua pobreza de sentido (FW/GC 373, KSA 3.624-626) e se revelaria sem sentido conceder-lhe o estatuto que reivindica.

Para procurar decidir se o parágrafo 373 de A gaia ciência contradiz o precedente 293, é necessário, conforme já indicado, verificar se as apreciações neles exteriorizadas se aplicam ao mesmo destinatário, identificado por Colli como “a ciência”. Comecemos então por tentar compreender em que sentido o parágrafo 373 representa uma crítica “à ciência”. Para tanto, bastará examinarmos alguns pontos da visão nietzschiana do mecanicismo.

Ao grafar o epíteto “‘científico’” entre aspas (FW/GC § 373), Nietzsche evidencia e reforça o questionamento que lança à pretensa cientificidade da interpretação de mundo mecanicista. Agindo assim, ele marca sua posição, que é de oposição, diante de um interlocutor considerado vitorioso e que, em decorrência, desempenha um papel dominante: “De todas as interpretações de mundo até agora tentadas”, escreve num fragmento póstumo (NF/FP 1885, 36[34], KSA 11.564), “a mecanicista parece situar-se hoje em primeiro plano como vencedora: ela tem visivelmente ao seu lado a boa consciência; e nenhuma ciência acredita em seu próprio progresso e sucesso, senão quando alcançados com o auxílio de procedimentos mecanicistas”. Se, estabelecendo o primeiro princípio de sua “prática de guerra”, Nietzsche afirma: “ataco somente causas vitoriosas” (EH/EH, Por que sou tão sábio 7, KSA 6.274, trad. PCS), então o mecanicismo, já por sua qualidade de interpretação de mundo reputada vitoriosa, figura naturalmente como um alvo em potencial de suas invectivas. Papel que de fato lhe coube 13 13 Ao rubricar fragmentos inutilizados na redação de Para além de bem e mal, dos prefácios elaborados em 1886 e em 1887 e do “Livro V” de A gaia ciência (cf. KSA 14, p. 738), Nietzsche reserva um tópico particular “[c]ontra a mecânica” (NF/FP 1886-1887, 5[50] 33, KSA 12.203). À luz da sociologia do conhecimento de Pierre Bourdieu (2001, pp. 67–77), não surpreende que Nietzsche conceba como primeira cláusula de sua práxis de conflito a investida contra causas vencedoras, tampouco que ele se posicione, contrapondo-se, em relação ao mecanicismo, visto precisamente como forma de pensamento vitoriosa e determinante na esfera científica. Segundo a lógica da oposição fundamental, presente em todo campo e, naturalmente, também no científico, entre dominantes e dominados, os primeiros procuram impor aos últimos como legítima a representação de ciência mais conveniente aos seus interesses e, dada sua posição prevalente, tornam-se referência obrigatória aos concorrentes, que devem se posicionar em relação aos que gozam de preponderância. .

A contraposição de Nietzsche a essa forma de pensamento prevalente realiza-se em duas frentes principais: numa delas, de cunho sobretudo negativo, concentra-se ele em descortinar os limites do mecanicismo; já na outra, de orientação mais propositiva, apresenta a título de alternativa sua própria concepção de mundo como vontade de potência.

Lançando mão de uma estratégia crítica cuja aplicação, é bem verdade, não se restringe ao mecanicismo, Nietzsche procura basicamente defender a ideia de que as noções que constituem essa concepção da existência são meros conceitos, símbolos, signos e ficções, jamais fatos em si mesmos, de sorte que elas não servem para explicar nem para compreender, mas somente para designar, descrever e interpretar de maneira antropomórfica 14 14 A diversidade subjacente ao que se chama mecanicismo, alerta Wilson Frezzatti Junior (2003, p. 437), ver-se-ia desconsiderada em uma abordagem que fizesse uso de conceitos gerais e simplistas. Examinando a contraposição de Nietzsche a essa forma de pensamento, Frezzatti (p. 450) esclarece: “Nessa crítica, o termo ‘mecanicismo’ aparece muitas vezes no seu sentido mais estrito, ou seja, como a explicação da realidade através do movimento de átomos e moléculas, mas por vezes esse termo aparece como uma metonímia do pensamento científico e filosófico dominante”. Com efeito, em certos momentos, o filósofo alemão dirige sua censura ao mecanicismo considerado de modo genérico; noutros, alveja algumas de suas modalidades; às vezes, ainda, ao atacá-lo, visa a ciência e a filosofia em sentido mais abrangente, embora estas não se reduzam àquele. Por outro lado, consideramos oportuno sublinhar que, em diversos contextos, desde suas análises mais específicas até as globais, ele mobiliza um aparato crítico cuja possibilidade de aplicação transcende o mecanicismo e mesmo, num escopo mais dilatado, a ciência e a filosofia, empregando-se igualmente nos domínios da religião e da arte – por exemplo, ao apontar como determinadas posições decorrem de leituras psicológicas grosseiras. A respeito da posição de Nietzsche em relação ao mecanicismo, cf. ainda Pietro Gori (2012, 2014). .

Entretanto, para além dessas observações de teor global, Nietzsche examina de modo particularizado como se forma cada uma das noções que estima fundamentais para o mecanicismo. A partir de tais análises, ele assegura, por exemplo, que “a mecânica como uma doutrina do movimento consiste numa tradução para a linguagem dos sentidos do homem”, repousando sobre um “preconceito dos sentidos”, nomeadamente da visão e do tato (NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.258-259). Na mesma direção, assevera que a ideia de unidade, indispensável para o cálculo e, portanto, para se tomar o mundo como calculável, “deriva de nosso conceito de ‘eu’ – de nosso mais antigo artigo de fé”, assentando-se, pois, sobre um “preconceito psicológico”(NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.258-259). E não seria outra a proveniência do conceito de átomo como unidade (NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.259), o qual permite “a distinção entre uma ‘sede da força motriz e ela mesma’” (NF/FP 1888, 14[122], KSA 13.302) 15 15 Sobre o “modo de pensar mecanicista atomístico” como um sistema de signos, cf. ainda NF/FP 1884, 26[411], KSA 11.261 e NF/FP 1885-1886, 2[61], KSA 12.88. e que também auxilia na tentativa de “construir o mundo para o olho, e para o entendimento aritmético calculador (portanto, [construir um mundo] intuitivo e calculável)” (NF/FP 1885, 34[127], KSA 11.463). Quanto à ideia de causalidade, além de decorrer de certas crenças, como aquela segundo a qual a vontade atuaria como causa 16 16 Nietzsche analisa o conceito de causalidade a partir de diversas perspectivas durante toda a sua obra. De acordo com uma das chaves de leitura, a crença em causa e efeito se remeteria à crença em ação e agente, que, por sua vez, se reportaria à crença em sujeito e objeto. Acreditando-se inicialmente na causalidade da vontade e no homem como agente, todos os acontecimentos passam, por uma espécie de projeção, a ser vistos como ações que supõem sujeitos como agentes. Exames da noção de causalidade em contextos nos quais Nietzsche se posiciona em relação ao mecanicismo encontram-se, por exemplo, em NF/FP 1885-1886, 2[83] e 2[139], bem como em NF/FP 1886-1887, 7[34], todos em KSA 12, além de JGB/BM 36, em KSA 5.54-55. , ela presta-se a mau uso: assim é que Nietzsche censura a coisificação de causa e efeito, que deveriam servir, justamente, “somente como puros conceitos, isto é, como ficções convencionais para fins de designação, de entendimento, não de explicação”; para ele, esse emprego equivocado de tais conceitos deve-se ao predomínio da “tacanhez mecanicista dominante, que faz espremer e sacudir a causa, até que ‘produza efeito’” (JGB/BM 21, KSA 5.35-36, trad. PCS). Aludidas com ironia nessa passagem, as noções de pressão e choque, sendo elas “apenas uma hipótese baseada na visão e no sentido de tato” (NF/FP 1885, 34[247], KSA 11.504), também não devem ser admitidas como explicação, mas tão somente como interpretação (NF/FP 1885-1886, 2[69], KSA 12.92, e NF/FP 1885, 36[34], KSA 11.564-565). É assim igualmente no tocante às leis (NF/FP 1884, 25[427], KSA 11.124-125) e à necessidade (NF/FP 1887, 9[91], KSA 12.383-387) mecanicistas, as quais não constituem fatos nem estão nas próprias coisas, mas simplesmente foram nelas introduzidas por nós, de maneira interpretativa 17 17 Ao indicar que a ciência é governada pela moral, Nietzsche menciona, entre outros exemplos, o privilégio conferido à noção de lei (NF/FP 1885, 39[14], KSA 11.624-625). Traduzir em fórmula um acontecimento regular não significa, todavia, constatar uma “lei”, mas somente facilitar e abreviar a designação daquele fenômeno; de resto, não passa de mitologia supor que fenômenos iguais se produzam pela obediência de forças a uma lei (NF/FP 1886-1887, 7[14], KSA 12.299). . Desse modo, empenhando-se em examinar como se formaram as principais noções mecanicistas e, a partir daí, retirando-lhes o estatuto muitas vezes a elas conferido, Nietzsche sentencia, generalizando: “Todos os pressupostos do mecanicismo, matéria, átomo, pressão e choque, gravidade [,] não são ‘fatos em si’, mas interpretações com o auxílio de ficções psíquicas” (NF/FP 1888, 14[82], KSA 13.262) 18 18 Levando em conta os fragmentos póstumos acima mencionados, é possível entender a expressão “todos os pressupostos” no sentido de uma efetiva generalização. Se essa leitura estiver correta, não é exaustiva, portanto, a enumeração dos pressupostos mecanicistas apresentada no excerto da última anotação citada (NF/FP 1888, 14[82], KSA 13.262). Tampouco as passagens que evocamos no corpo do texto dão conta de todos os conceitos por Nietzsche julgados cardinais para o mecanicismo e, como tais, criticados. Sobre a recusa da noção mecanicista de matéria, por exemplo, conferir NF/FP 1884, 26[432], KSA 11.266, e NF/FP 1887, 9[8], KSA 12.342-343, entre outros. .

Mas o pensador alemão não se limita a apontar os limites do mecanicismo lançando mão de um procedimento puramente desconstrutivo. O desfecho de sua estratégia de enfrentamento consiste em substituir a visão mecânica da existência por sua própria concepção de mundo. Ou melhor: consiste em fazer ver que as ideias mecanicistas cardinais podem e devem ser reportadas a uma noção mais básica, isto é, à vontade de potência entendida como “o fato mais elementar” (NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.259) e, portanto, dotada de maior amplitude interpretativa. Em linhas gerais, Nietzsche sustenta que o mecanicismo se restringiria a traduzir – em linguagem sensível ou em fórmulas, por exemplo – meras consequências de processos mais originários, que se deixariam caracterizar com maior justeza pela noção de vontade de potência e por todo o campo semântico que em torno dela gravita e lhe precisa o sentido 19 19 Sobre a vontade de potência como “o caráter global da existência”, “o mais fundamental e o mais íntimo”, cf. NF/FP 1888, 14[82], KSA 13.262. A respeito do mecanicismo como tradução de processos mais originários, cf. NF/FP 1888, 14[122], KSA 13.301-303. .

Embora o mecanicismo, estimado vitorioso, ocupe aos olhos de muitos o primeiro plano (Vordergrund) da cena (NF/FP 1885, 36[34], KSA 11.564), na avaliação de Nietzsche tal “modo de pensar” não passa de uma “filosofia de fachada” (Vordergrunds-Philosophie) (NF/FP 1885, 34[247], KSA 11.504). A esta, ele contrapõe sua própria “tentativa de uma nova interpretação de todo acontecimento” como vontade de potência (NF/FP 1885, 39[1], KSA 11.619), interpretação julgada mais profunda 20 20 Tal antagonismo evidencia-se com particular literalidade no sobrescrito de um fragmento póstumo (NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.257) que traz as seguintes palavras: “Vontade de potência[.] Filosofia[.] Quanta de potência. Crítica do mecanicismo”. . Em especial nos fragmentos póstumos, pode-se realmente constatar o empenho de Nietzsche no sentido de sublinhar o contraste entre o que se revela exterior e derivado, de um lado, e o que se deve ter por intrínseco e mais fundamental, de outro. O intuito de distinguir-se de seu adversário patenteia-se no esforço para demonstrar que, com alcance limitado, o mecanicismo se reduziria a uma interpretação ou descrição quantitativa, jamais explicação, dos fenômenos mais superficiais da existência (NF/FP 1886-1887, 5[16], KSA 12.190): incapaz de apreciar de outro modo o valor do que existe e ignorante dessa incapacidade, tal forma de apreender o mundo não merece o valor a ela (auto)atribuído. Em compensação, em textos de confronto declarado com aquela forma de pensamento, Nietzsche reserva à sua própria noção de vontade de potência os superlativos opostos: sendo “o fato mais elementar” (NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.259), ela abrangeria “o caráter global da existência” e alcançaria “o mais fundamental e o mais íntimo” (NF/FP 1888, 14[82], KSA 13.262), aquele “processo original” (NF/FP 1888, 14[122], KSA 13.301-303) que permaneceria inacessível ao mecanicismo. É assim que, após definir o mecanicismo como “apenas uma linguagem de sinais para o mundo interno de fatos de quanta de vontade que lutam e vencem”, Nietzsche caracteriza “todos os processos da vida” como “uma vontade de acumulação de força” e “aspiração por mais potência” (NF/FP 1888, 14[82], KSA 13.262). Em seguida, considerando “a vida como a forma do ser que nos é mais conhecida” e “como um caso singular”, ele julga legítimo elaborar, a partir daí, uma “hipótese sobre o caráter global da existência” como vontade de potência. E com estas palavras conclui o fragmento póstumo em tela: “[O] mais fundamental e o mais íntimo permanece essa vontade: mecânica é mera semiótica das consequências”.

Se a superficialidade da visão de mundo mecanicista se explicaria em grande medida por sua consideração exclusiva das quantidades 21 21 Além do parágrafo 373 de A gaia ciência, cf., por exemplo, NF/FP 1885-1886, 2[76], KSA 12.96: “‘Concepção mecanicista’: não quer nada além de quantidades: mas a força se encontra na qualidade: portanto, a mecânica pode apenas descrever processos, não explicar”. Ou ainda NF/FP 1886-1887, 5[16], KSA 12.190, em que Nietzsche aponta a ausência de profundidade do mecanicismo e da lógica: “A exatidão científica se alcança primeiro nos fenômenos mais superficiais[,] portanto onde se pode contar, calcular, tatear, ver, onde se podem constatar quantidades”. , Nietzsche reconhece, entretanto, a autoridade que tende a granjear junto aos físicos “a interpretação dinâmica de mundo”, ressalvando que na “força [Dynamis] [reside] ainda uma qualidade interna” (NF/FP 1885, 36[34], KSA 11.565). De que qualidade se trata é o que elucida outra anotação. Nela, após assegurar que o conceito de “‘força [Kraft]’” utilizado pelos físicos carece de um complemento, Nietzsche precisa: “é necessário atribuir-lhe um mundo interno que eu designo como ‘vontade de potência’, i.e. como insaciável apetite de demonstração de potência; ou aplicação, exercício de potência, como impulso criador etc.” (NF/FP 1885, 36[31], KSA 11.563).

De maneira idêntica àquele procedimento crítico que, particularizando a análise, buscava evidenciar as crenças sobre as quais se baseava cada noção mecanicista, também agora, ao fazer operar sua própria concepção de mundo, Nietzsche procura mostrar que e como cada conceito central para o mecanicismo consiste numa tradução ou numa consequência daquela vontade mais fundamental e íntima, a vontade de potência 22 22 Essa intenção manifesta-se concisamente na sequência do acima mencionado fragmento póstumo (NF/FP 1885, 36[31], KSA 11.563), em que, logo após a afirmação de que a vontade de potência é intrínseca à força, lê-se: “Os físicos não eliminam de seus princípios a ‘ação a distância’: tampouco a força de repulsão (ou de atração)[.] Não adianta: é preciso conceber todos os movimentos, todos os ‘fenômenos’, todas as ‘leis’ apenas como sintoma de um acontecimento interno e servir-se até o fim da analogia do homem. No animal, é possível derivar da vontade de potência todos os seus impulsos: do mesmo modo, dessa mesma fonte única, [derivam-se] todas as funções da vida orgânica”. Sobre a inaptidão explicativa dos conceitos de pressão e choque e a impossibilidade de livrar-se da ideia de ação a distância, cf. NF/FP 1885, 36[34], KSA 12.135-136, e JGB/BM 22, KSA 5.37. . É assim que, para mencionar apenas um exemplo, ao tomar o “movimento como sintoma de um acontecimento não mecanicista”, Nietzsche, empregando uma analogia musical próxima daquela utilizada no parágrafo 373 de A gaia ciência, assevera: “Permanecer na concepção mecanicista de mundo – isso é como se um surdo tomasse como meta a partitura de uma obra” (NF/FP 1886-1887, 7[34], KSA 12.306). Em um fragmento póstumo posterior (NF/FP 1888, 14[81], KSA 13.260-261), insistindo que “a mecânica nos indica apenas consequências” em forma imagética e que também o “movimento é um discurso em imagem [...]”, o filósofo se pergunta se não seria legítimo estender “a vontade de acumulação de força”, que é “específica ao fenômeno da vida”, “como causa movente também na química” e “na ordem cosmológica” 23 23 “O conceito mecanicista de movimento já é uma tradução do processo original em uma linguagem de sinais de olho e tato” (NF/FP 1888, 14[122], KSA 13.301-303). A natureza imagética do discurso mecanicista acha-se mais bem explanada, por exemplo, em NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.257-259. .

Embora possam, com razão, ser consideradas predominantes e mais significativas em comparação com as passagens apologéticas, as reservas relativas ao mecanicismo não impedem Nietzsche de nele enxergar aspectos positivos. Se a “representação mecanicista” – como qualquer outra, aliás – se revela insuficiente para apreender um suposto mundo verdadeiro, ela envolve certas características que a tornam passível de ser vista “como princípio regulador do método”: “Não como a mais provada observação do mundo, mas como a que exige maior rigor e disciplina, e a que afasta ao máximo toda sentimentalidade” (NF/FP 1885, 34[76], KSA 11.443) 24 24 Nietzsche identifica ainda no mecanicismo, em virtude da exigência de rigor e disciplina, uma função seletiva, tomando-o como “uma prova para a prosperidade física e mental” (NF/FP 1885, 34[76], KSA 11.443). . São esses fatores que possibilitam a Nietzsche asseverar: “O método da observação mecânica de mundo é por ora de longe o mais probo: a boa vontade para tudo o que se controla, todas as funções lógicas de controle, tudo o que não mente nem engana está aí em atividade” (NF/FP 1884, 25[448], KSA 11.133). Outro elemento que lhe permite tomar o mecanicismo como “hipótese reguladora” é sua dimensão antiteleológica: visto sob esse prisma, o modo de pensamento mecanicista constitui até mesmo uma condição de possibilidade de toda ciência (NF/FP 1884, 26[386], KSA 11.258). Digno de distinção é também o fato de que “ele pressupõe o mínimo e, sob todas as circunstâncias, primeiro deve ser testado [...]” (NF/FP 1884, 26[386], KSA 11.258). E o que faz com que o mecanicismo seja, em certo sentido, alçado à condição de um “ideal” é sua ambição de “com o menos possível explicar o máximo possível, i.e., pôr em fórmulas” (NF/FP 1885, 34[56], KSA 11.438): “Mecânica[,] um tipo de ideal, como método regulador – não mais” (NF/FP 1885, 43[2], KSA 11.701), sintetiza.

A leitura do parágrafo 373 de A gaia ciência, assim como de fragmentos póstumos em que Nietzsche se dedica a apontar os limites das noções mecanicistas, utilizando por vezes em seu lugar a teoria da vontade de potência como princípio heurístico mais básico e de maior alcance, mostra-nos que o filósofo desabona a pretensão mecanicista à exclusividade do uso legítimo do epíteto “científico” e desautoriza sua presumida capacidade para apreender um suposto mundo verdadeiro. Proferir tais impugnações, entretanto, não equivale a pôr em questão a ciência em sua integralidade, isto é, considerada em todos os seus aspectos. Tanto é assim que, conforme acabamos de ver, sequer o mecanicismo se acha repelido por completo.

Não nos parece, portanto, que os parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência incorram, como aponta Colli, em desarmonia ou contradição. Antes de tudo porque o primeiro texto não significa necessariamente um reconhecimento da ciência por inteiro nem o segundo, inversamente, sua crítica absoluta 25 25 Stegmaier (2012, p. 26) afirma que no parágrafo 373 Nietzsche apresenta “a sua filosofia da ciência de maneira concentrada”. Também a nosso ver o parágrafo 373 de A gaia ciência parece relevante, razão por que em nossa exposição lhe dedicamos mais espaço do que ao parágrafo 293 da mesma obra. Porém, em nosso entender, a concepção nietzschiana de ciência é significativamente mais ampla e complexa do que o conteúdo tratado no parágrafo 373. Em nossa avaliação, embora Nietzsche empreenda ali um ataque eloquente, não está em sua mira toda a ciência, mas somente dado aspecto dela. . Em seguida – e aqui nosso argumento leva em conta a hipótese de que, com a expressão “a ciência”, Colli não se refira a esta em sua totalidade –, porque a aclamação, presente no primeiro parágrafo, destinada a certas características da ciência não é incompatível com a repreensão, expressa no segundo, dirigida a outros de seus elementos: com efeito, o enaltecimento do rigor científico tomado como regra geral de comportamento (FW/GC 293, KSA 3.533-534) não inviabiliza a constatação de limites da ciência nem a admoestação direcionada em particular ao mecanicismo devido ao seu reivindicado monopólio da legitimidade científica e devido à sua alegada aptidão para compreender um suposto mundo verdadeiro (FW/GC 373, KSA 3.624-626); tampouco essa exprobração ao mecanicismo impossibilita o elogio de determinados elementos de seu método, apreciados justamente por seu rigor. Dessa forma, as apreciações comunicadas nos dois parágrafos são de fato opostas, mas, não se referindo ao mesmo ponto da ciência, mostram-se, afinal, compatíveis e não contraditórias. Aptas à conciliação, as avaliações sobre “a ciência” externadas nos dois textos poderiam ser designadas como não incondicionais, o mesmo é dizer, como condicionadas, exprimindo, em suma, um reconhecimento com crítica ou, inversamente, uma crítica com reconhecimento.

3. A arte da nuance: suas condições e seu papel na ciência

No procedimento de formação de juízos sobre a ciência presente nos parágrafos em análise, discernem-se em operação elementos de uma estratégia avaliativa mais geral adotada por Nietzsche. Dela, o próprio filósofo oferece indicações no decurso de sua obra.

Em um parágrafo intitulado “Investigadores e experimentadores”, o autor de Aurora começa por descartar a existência de um método científico exclusivo capaz de produzir saber. Em seguida, exprimindo-se, de modo inclusivo, na primeira pessoa do plural, ele prescreve exatamente o contrário:

Temos que lidar experimentalmente com as coisas, sendo ora maus, ora bons para com elas e agindo sucessivamente com justiça, paixão e frieza em relação a elas. Esse homem dirige-se às coisas como policial, aquele como confessor, um terceiro como andarilho e curioso. Ora com simpatia, ora com violência se arrancará algo delas; a reverência ante os seus segredos leva adiante e à compreensão um indivíduo, indiscrição e velhacaria na elucidação de segredos fazem o mesmo por outro. (M/A 432, KSA 3.266, trad. PCS).

Esse experimentalismo apresentado em Aurora como característico do método da ciência” corresponde àquilo que, ao definir sua concepção de “‘objetividade’” em Genealogia da Moral (III, 12, KSA 5.365, trad. PCS), Nietzsche descreverá como “diversidade de perspectivas e interpretações afetivas” úteis ao conhecimento: “Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um ‘conhecer’ perspectivo”, afirma ali, acrescentando imediatamente: “e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa mesma coisa, tanto mais completo será nosso ‘conceito’ dela, nossa ‘objetividade’” (GM/GM III, 12, KSA 5.365, trad. PCS modificada).

Ora, as avaliações sobre a ciência, aparentemente contraditórias, expressas nos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência bem podem ser vistas como um exemplo desse experimentalismo perspectivístico que, conforme se pode depreender do excerto de Aurora supramencionado, deve constituir o próprio método científico 26 26 Scarlett Marton (2000, p. 34) mostra que, “intimamente ligados, perspectivismo e experimentalismo explicam as aparentes contradições que surgem dos textos [de Nietzsche]”. Dialogando com as posições de Jaspers, Granier e Kaufmann, ela argumenta (p. 32): “O confronto com os textos, sem dúvida, traz à tona as contradições neles presentes. Mas elas dever-se-iam ao estilo adotado pelo autor? Em parte, talvez. Se perseguir uma ideia é abandonar várias outras pelo caminho, o que é o aforismo – modo de expressão privilegiado por Nietzsche – senão a possibilidade de perseguir uma mesma ideia partindo de diferentes perspectivas? Nessa medida, as contradições que se deparam são necessárias, tornam-se compreensíveis e acabam por dissolver-se. São necessárias, não por terem sido colocadas por uma ‘dialética real’, como quer Jaspers, mas por emergirem da diversidade de ângulos de visão assumidos na abordagem da mesma questão; tornam-se compreensíveis, não por corresponderem a momentos que seriam em seguida ‘ultrapassados’, como pretender Granier, mas por surgirem da pluralidade de pontos de vista tomados no tratamento do mesmo tema; acabam por dissolver-se, não por se apresentarem enquanto etapas preparatórias que levariam a posições finais, como espera Kaufmann, mas por brotarem da multiplicidade de perspectivas adotadas na reflexão sobre a mesma problemática. Frutos do estilo aforismático, as contradições devem-se muito mais ao que torna o próprio estilo tão adequado a esse modo de pensar, ou seja, ao perspectivismo, que é a marca mesma da filosofia de Nietzsche”. . Em outros termos, pode-se dizer que Nietzsche aplica o que entende ser um procedimento científico – o experimentalismo perspectivístico – na avaliação da própria ciência.

Sem dúvida, é o próprio Nietzsche que recomenda, como acabamos de ler, a multiplicação de perspectivas em relação à “mesma coisa” (GM/GM III, 12, KSA 5.365). De certa forma, porém, só em aparência as apreciações decorrentes dessa pluralidade de pontos de vista dizem respeito à “mesma coisa”. E aqui não nos interessa tanto considerar o fato de que a ideia de “identidade da mesma coisa em diferentes pontos do tempo” (MA I/HH I 11, KSA 2.31, trad. de RRTF) não encontra respaldo em uma concepção de mundo em pleno vir-a-ser (MA I/HH I 2, KSA 2.24-25), repugnando-lhe antes. É, também, em outro sentido que as diversas avaliações podem não incidir sobre a “mesma coisa”, a saber, quando nela se observam, a cada vez, suas diferentes faces. Esse ponto se tornará mais claro se levarmos em conta a crítica de Nietzsche à noção de unidade entendida como unicidade e simplicidade em oposição à pluralidade e à complexidade, sendo as primeiras preteridas em prol das duas últimas.

Desde seus escritos de juventude, Nietzsche relativiza, sob diversos ângulos, a noção de unidade 27 27 Cf. Wolfgang Müller-Lauter (1974). . O que se chama unidade, sustenta ele em suas anotações Sobre a Teleologia, não passa de uma abstração de nosso intelecto, abstração a que nada corresponde na efetividade. Conquanto designemos como unidades (Einheiten), por exemplo, os organismos, estes são, na realidade, pluralidades (Vielheiten) (BAW 3.379). De igual maneira, o que pensamos ser um indivíduo consiste, a bem dizer, numa multiplicidade de indivíduos. “[...] Só há unidades para o intelecto [...]”, resume Nietzsche (BAW 3.388). O mesmo se aplica, aliás, à própria noção de intelecto, como atesta uma nota posterior: “O intelecto não é uma unidade real, mas apenas [uma unidade] pensada: uma palavra sintetizando muitos fenômenos” (BAW 5.189).

Naturalmente, a linguagem contribui de forma decisiva para fomentar a ilusão de unidade, já que, não raro, da unicidade da palavra se deduz a unicidade do que ela significa. A rigor, entretanto, “a unidade da palavra não garante a unidade da coisa” (MA I/HH I 14, KSA 2.35, trad. de PCS). Pelo contrário, o que se tem com frequência é um único vocábulo para “algo complicado [Complicirtes], algo que somente como palavra constitui uma unidade” (JGB/BM 19, KSA 5.32, trad. de PCS). De fato, Nietzsche identifica em diversas circunstâncias a dissimulação do caráter multifacetado de um fenômeno designado por uma simples palavra ou expressão. Quando, por exemplo, “fala-se do sentimento moral, do sentimento religioso, como se fossem simples unidades”, trata-se, em realidade, de pensamentos e sentimentos vinculados uns aos outros, que “não são percebidos como complexos [Complexe], mas como unidades” (MA I/HH I 14, KSA 2.35, trad. de PCS). O mesmo ocorre com a vontade, à qual o “preconceito popular” e o filosófico reservam uma única palavra. Um exame mais minucioso permite constatar, segundo o autor de Para além de bem e mal, que a vontade, essa “coisa tão múltipla [vielfachen]”, consiste num “complexo [Complex]” de sentimentos, pensamentos e afetos (JGB/BM 19, KSA 5.32, trad. de PCS). Ilustra o descuido dos filósofos também o “eu penso” de Descartes: “Cogito é naturalmente apenas uma [Ein] palavra: mas significa algo plural [Vielfaches]: várias coisas são plurais [vielfach] e nós, com boa fé, as apreendemos grosseiramente como unas [Eins]” (NF/FP 1885, 40[23], KSA 11.639) 28 28 Cf. ainda o seguinte fragmento póstumo, em que a ideia de unidade se associa à de organização e se opõe à de anarquia: “Toda unidade [Einheit] é unidade apenas como organização e interação: não é diferente em relação ao modo como uma comunidade humana é uma unidade: portanto, o oposto da anarquia atomística: com isso, uma formação de domínio que significa uma unidade [Eins], mas que não é uma unidade [eins]” (NF/FP 1886, 2[87], KSA 12.104). .

Valendo-se, pois, de um procedimento de complexificação, Nietzsche sugere que apenas um olhar mais grosseiro e negligente percebe como unos e simples fenômenos que, para uma análise mais perspicaz, mostram-se plurais e complexos. E, assim como o experimentalismo perspectivístico caracteriza o método da ciência, detectar a natureza multifacetada do que é visto como simples constitui igualmente um traço da conduta científica. É o que, em nossa avaliação, pode-se depreender desta passagem de Aurora em que o homem de ciência, já contrastado com o homem de convicções em Humano, demasiado humano, distingue-se agora em relação ao prestidigitador, o qual representa o papel do indutor de visões simplificadoras:

O que é espantoso na ciência é o contrário do que é espantoso na arte do prestidigitador. Pois este quer que vejamos uma causalidade bem simples [einfache] onde atua, na realidade, uma causalidade bem complexa [complicirte]. Enquanto a ciência nos faz abandonar causalidades simples onde tudo parece facilmente compreensível e nós somos os bufões da aparência. As coisas “mais simples” são muito complicadas [complicirt] – não podemos nos maravilhar o bastante com isso! (M/A 6, KSA 3.20, trad. de PCS).

Assim, ao tecer avaliações sobre determinado objeto, Nietzsche põe em prática, a nosso ver, um duplo movimento de complexificação. De um lado, o objeto em exame, multifacetado, mesmo que designado por uma simples palavra, é observado a cada vez em uma ou algumas de suas múltiplas faces; de outro, o mesmo aspecto pode ser considerado sob diferentes perspectivas, mostrando-se ele passível de aclamação ou de censura, a depender do prisma a partir do qual é julgado. No primeiro caso, tem-se, pois, a complexificação do objeto em exame; no segundo, multiplicam-se os pontos de vista apreciativos. A rigor, porém, tornar o objeto mais complexo já significa proliferar os enfoques, e vice-versa.

Levando em conta semelhante procedimento, é possível sustentar que as avaliações contrárias elaboradas por Nietzsche muitas vezes só em aparência dizem respeito ao mesmo, ao mesmíssimo objeto – “à ciência”, por exemplo. Cada uma das apreciações destina-se, mais precisamente, ora a um ora a outro aspecto de um objeto, o que equivale a afirmar que os objetos dos julgamentos não são perfeitamente os mesmos. Dito de outro modo: quando se consideram diferentes aspectos de um objeto, tido por complexo, então os objetos das sentenças (ora um, ora outro aspecto) são diferentes, não os mesmos. Por isso, mesmo a oposição de tais juízos pode não configurar automaticamente uma contradição.

Como vimos, no parágrafo 293 de A gaia ciência, Nietzsche não expressa seu reconhecimento em relação “à ciência” em geral, mas a determinada característica dela, isto é, ao rigor de sua conduta. De igual maneira, no parágrafo 373 do mencionado livro, ele não critica a ciência por completo, mas a pretensão de apreender com o seu procedimento, por mais rigoroso que seja, um suposto mundo verdadeiro. Acima dissemos também que a posição de Nietzsche sobre “a ciência” poderia ser descrita como não incondicional e resumida como reconhecimento com crítica, em vez de reconhecimento tout court (ou, inversamente, como crítica acompanhada de reconhecimento, no lugar de pura e simples crítica). Entretanto, faz-se necessário salientar que esse parecer é, ele próprio, complexo. Com efeito, nele conjugam-se dois juízos que não têm exatamente o mesmo destinatário, aplicando-se cada um deles – o que manifesta reconhecimento, de um lado, e o que veicula a crítica, de outro – a uma dimensão diferente da ciência ou, o mesmo é dizer, à ciência considerada sob ângulos distintos. É por isso que tais apreciações – tendo por objetos não “a ciência”, simples palavra significando algo complexo, mas diversas faces dela – não são logicamente incompatíveis nem contraditórias; elas só poderiam ser qualificadas de inconsequentes se consideradas como dirigidas à ciência observada sob a mesma relação.

A essa complexificação do objeto e das perspectivas analíticas, nota-se, corresponde a diversificação das apreciações que se fazem dele, ou melhor, de seus diferentes aspectos 29 29 À complexificação do objeto e ao aumento dos pontos de vista a partir dos quais ele é considerado, somam-se a plurivocidade das noções nietzschianas, já que a unidade de uma palavra não implica a unidade de sentido, e a multiplicidade de funções a que se submetem tais noções, a depender do contexto. Esses são fatores que também contribuem para a variedade das apreciações. . Assim, a crítica à unidade, de que tratamos há pouco, prolonga-se na rejeição à unilateralidade das avaliações, unilateralidade que se exprime sob a forma de sins e nãos incondicionais. Apresentando-se como portador de “um gosto que rejeita todos os opostos pesados e grosseiros”, Nietzsche assegura: “Somos cautelosos, nós, homens modernos, quanto a convicções derradeiras; nossa desconfiança fica à espreita dos encantamentos e embustes da consciência que se acham em toda crença poderosa, em todo incondicional Sim e Não [...]” (FW/GC 375, KSA 3.627-628, trad. de PCS) 30 30 Em O Anticristo (54, KSA 6.236-237, trad. de PCS), Nietzsche contrapõe ao cético, expressão de força, o homem das convicções, cuja “necessidade de fé, de algum incondicional Sim e Não” é vista como manifestação de fraqueza; cf. igualmente NF/FP 1887-1888, 11[48], KSA 13.22-23. Numa formulação próxima do título de um livro seu, ele afirma, ao contrário, que é preciso situar-se “Para além de sim e não” (NF/FP 1885-1886, 1[141], KSA 12.43). Sobre a reivindicação de Nietzsche como pensador da nuance, cf. Wotling, 2009, pp. 7 e ss. . Ao “pior dos gostos, o gosto pelo incondicionado” vem substituir-se o cultivo e a valorização da capacidade para captar nuances, sinal de maturidade: “Nos anos da juventude, ainda veneramos e desprezamos sem a arte da nuance, que constitui nossa melhor aquisição na vida, e, como é justo, pagamos caro por atacar de tal modo com Sins e Nãos as pessoas e as coisas” (JGB/BM 31, KSA 5.49, trad. de PCS). Dessa forma, é possível afirmar que aquele procedimento de tornar cada vez mais complexos os objetos e de multiplicar os pontos de vista a partir dos quais são examinados – procedimento de que resultam a diversidade e mesmo a aparente divergência das apreciações – constitui uma condição dessa arte da nuance, que, de um lado, Nietzsche reivindica para si próprio 31 31 Nietzsche atribui-se a arte da nuance, por exemplo, no NF/FP 1888, 24[1], KSA 13.618. Em Ecce homo, também assegura ter desenvolvido “dedos para nuances” (Por que sou tão sábio, 1, KSA 6.266, trad. de RRTF) e, adiante no mesmo escrito, declara ser ele próprio uma nuance (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, O Caso Wagner, 4, KSA 6.362). e, de outro, exige de seus leitores 32 32 Cf. NF/FP 1885-1886, 2[79], KSA 12.99. Sobre as exigências de Nietzsche a seus leitores e sobre o próprio Nietzsche como leitor, cf. Silva Júnior (2014) e Sommer (2019). . Ademais, se aquele experimentalismo perspectivístico se revela intrínseco ao método da ciência e, ao mesmo tempo, à arte da nuance, então se pode dizer que a arte da nuance é, também ela, um atributo da conduta científica, tal como o filósofo a entende.

Conclusão

Para Nietzsche, a lógica e seus princípios, entre os quais o de não contradição, constituem mera ficção e uma das formas pelas quais se expressa a limitação humana, de modo que não são critérios suficientes para atestar a apreensão de uma realidade ou verdade absoluta. Mesmo assim, o autor de Para além de bem e mal rejeita certas concepções que se mostram contraditórias e, desse modo, transgridem a lógica. Ao proceder dessa maneira, o filósofo indica que a observância da lógica e do princípio de não contradição, embora não seja condição suficiente para comprovar o conhecimento de uma realidade ou verdade absoluta, equivale a uma exigência indispensável para a admissão de ideias alheias. Se aplicarmos ao pensamento de Nietzsche a exigência de respeito à lógica que ele coloca às posições alheias, a descoberta de contradições em suas concepções acerca da ciência poderia invalidá-las e, assim, poderia ser considerada, da perspectiva nietzschiana, uma objeção.

A nosso ver, porém, os juízos sobre a ciência expressos nos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência não são um caso de desarmonia ou contradição, como aponta Colli, mas de nuance. Aquelas apreciações, embora em certo sentido opostas (uma é expressão de reconhecimento; a outra, de crítica), não são contraditórias entre si na medida em que não têm o mesmo destinatário, “a ciência”, e sim diferentes facetas desta. Aquelas apreciações são nuançadas, ademais, porque consideram a ciência como objeto multifacetado, evitando asserções unilaterais, e porque constituem avaliações condicionadas. Com efeito, a arte da nuance decorre da complexificação dos objetos, da multiplicação das perspectivas apreciadoras e da consideração do caráter condicionado das apreciações. Como esses procedimentos compõem também o experimentalismo que deve caracterizar o método científico proposto por Nietzsche, pode-se dizer que da conduta científica também faz parte a arte da nuance.

Se a multiplicidade de apreciações bem pode suscitar a suspeita de contradição, nem sempre ela envolve, parece-nos, real transgressão da lógica. Ao analisar o pensamento alheio, Nietzsche, atento à coerência, procura identificar contradições que, camufladas pela linguagem, podem passar despercebidas. Típicos exemplos são as situações de contradictio in adjecto em que se associam noções muitas vezes observadas como compatíveis, mas que, reunidas, compõem conceitos, na visão de Nietzsche, inconcebíveis, tais como “conhecimento absoluto”, “puro espírito” e “certeza imediata”. Quando examinamos os escritos do próprio Nietzsche, pode suceder exatamente o contrário, isto é, que posições inicialmente consideradas como contradições patentes acabem por mostrar-se compatíveis. Com tal asserção, obviamente não pretendemos a priori eximir o filósofo de toda e qualquer incongruência. Esperamos apenas defender a ideia de que pelo menos às vezes nos parece possível — levando em conta a aplicação, por parte de Nietzsche, daquele procedimento, a seu ver característico da ciência, que consiste em complexificar os objetos e em multiplicar as perspectivas de apreciação a respeito deles — mostrar que juízos que inicialmente podem ser tidos por contraditórios, como é o caso das observações sobre a ciência apresentadas nos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência, terminam por revelar-se nuançados e não incongruentes.

Referências

  • ABEL, Günter. Logik und Ästhetik. In: Nietzsche-Studien, Berlin/New York, v. 16, pp. 112-148, 1987.
  • BOURDIEU, Pierre. Science de la science et réflexivité. Paris: Raisons D’Agir Éditions, 2001.
  • COLLI, Giorgio. Nachwort. In: NIETZSCHE, Friedrich. Kritische Studienausgabe. Editada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Munique: de Gruyter, 1999, v. 2, pp. 653-663.
  • DROBISCH, Moritz Wilhelm. Neue Darstellung der Logik nach ihren einfachsten Verhältnissen mit Rücksicht auf Mathematik und Naturwissenschaft. Fünfte Auflage. Hamburg/Leipzig: Verlag von Leopold Voss, 1887.
  • FREZZATTI JUNIOR., Wilson Antonio. Haeckel e Nietzsche: aspectos da crítica ao mecanicismo no século XIX. In: Scientiæ Studia, v. 1, n. 4, pp. 435-461, 2003.
  • GORI, Pietro. Nietzsche as Phenomenalist? In: HELMUT, Heit; ABEL, Günter; BRUSOTTI, Marco (org.). Nietzsches Wissenschaftsphilosophie: Hintergründe, Wirkungen und Aktualität. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012, pp. 345-355.
  • GORI, Pietro. Nietzsche and Mechanism. In: HELMUT, Heit; HELLER, Lisa (org.). Handbuch. Nietzsche und die Wissenschaften. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2014, pp. 119-137.
  • JASPERS, Karl. Nietzsche: Einführung in das Verständnis seines Philosophierens. 4. Aufl. Berlin/New York: de Gruyter, 1981.
  • LOUKIDELIS, Nikolaos. Nietzsche und die ”Logiker“. In: HEIT, Helmut; HELLER, Lisa (org.). Handbuch Nietzsche und die Wissenschaften. Natur-, geistes- und sozialwissenschaftliche Kontexte. Berlin/Boston: de Gruyter, 2014, pp 222-241.
  • MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
  • MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsches Lehre vom Willen zur Macht. In: Nietzsche-Studien, Berlin/Nova York, v. 3, pp. 1-60, 1974.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Werke. Kritische Gesamtausgabe in 33 Bänden (KGW). Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1963 e ss.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke. Kritische Studienausgabe in 15 Bänden (KSA). Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. München: Walter de Gruyter, 1999.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe in 8 Bänden (KSB). Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlin/New York: Walter de Gruyter, 1986.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Friedrich Nietzsche: Werke und Briefe. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Werke (nach fünf Bänden abgebrochen) (BAW). München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1933-1940.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Friedrich Nietzsche. Obras Incompletas. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
  • NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • NIETZSCHE, Friedrich. O Anticristo: Maldição ao Cristianismo: Ditirambos de Dionísio. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
  • NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo: como alguém se torna o que é. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
  • PINTO, Louis. Les Neveux de Zarathoustra. La réception de Nietzsche en France. Paris: Éditions du Seuil, 1995.
  • SILVA JÚNIOR, Ivo. Nietzsche, entre a arte de ler bem e seus leitores. In: Cadernos Nietzsche, v. 1, n. 35, pp. 17-31, 2014.
  • SOMMER, Andreas Urs. O que Nietzsche leu e o que não leu. Trad. de Saulo Krieger. In: Cadernos Nietzsche, v. 40, n. 1, pp. 9-43, 2019.
  • STEGMAIER, Werner. ”Wissenschaft” als Vorurteil. Kontextuelle Interpretation des Aphorismus Nr. 373 der Fröhlichen Wissenschaft. In: HELMUT, Heit; ABEL, Günter; BRUSOTTI, Marco (org.). Nietzsches Wissenschaftsphilosophie: Hintergründe, Wirkungen und Aktualität. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012, pp. 25-37.
  • WOTLING, Patrick. Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: Presses Universitaires de France, 2009.
  • 1
    Quando não se indica o tradutor de textos que na bibliografia se encontram em língua estrangeira, as traduções são de minha responsabilidade.
  • 2
    NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. A partir de agora indicado como PCS.
  • 3
    Para Karl Jaspers (1981, p. 16JASPERS, Karl. Nietzsche: Einführung in das Verständnis seines Philosophierens. 4. Aufl. Berlin/New York: de Gruyter, 1981. e ss.), “a autocontradição é o traço fundamental do pensamento nietzschiano”. Argumentando, escreve ele: “Todas as afirmações parecem ser neutralizadas por outras […]. Em Nietzsche, para um juízo, pode-se quase sempre encontrar o [juízo] contrário. Parece que ele tem duas opiniões a respeito de tudo”. No entender de Jaspers, porém, tais contradições não se devem ao acaso, mas são necessárias. E, para compreender o pensamento de Nietzsche, o leitor deve apreender essas contradições justamente em sua necessidade, além de levar em conta as diferentes proposições do filósofo a respeito de um mesmo assunto. Em um trabalho de outra natureza, Louis Pinto (1995, p. 17PINTO, Louis. Les Neveux de Zarathoustra. La réception de Nietzsche en France. Paris: Éditions du Seuil, 1995.) inicia a “Introdução” de seu estudo sobre a recepção de Nietzsche na França com a seguinte declaração: “Tendo de contar com a ação dos intérpretes, o conhecimento de uma obra tão portadora de elipses, enigmas e contradições como a de Nietzsche pressupõe, sem dúvida mais do que outras, uma análise das leituras e dos leitores”. Como se nota, por vezes, a posição segundo a qual Nietzsche é um autor contraditório é assumida como um dado e serve como ponto de partida. Convém, entretanto, perguntar se todas as contradições atribuídas a Nietzsche são realmente contradições ou se por vezes, ao contrário, atribuem-se-lhe incongruências que, examinadas de perto, não se revelam tais. O propósito deste artigo consiste precisamente em examinar um determinado caso, a saber, a atribuição de contradição a certas posições de Nietzsche sobre a ciência apresentadas nos parágrafos 293 e 373 de A gaia ciência.
  • 4
    Temos em vista aqui a lógica formal, na medida em que estabelece as condições de validade do raciocínio. Tal não é o único significado que o termo lógica assume na obra de Nietzsche. A respeito de outros sentidos, cf. Günter Abel (1987ABEL, Günter. Logik und Ästhetik. In: Nietzsche-Studien, Berlin/New York, v. 16, pp. 112-148, 1987.) e Nikolaos Loukidelis (2014LOUKIDELIS, Nikolaos. Nietzsche und die ”Logiker“. In: HEIT, Helmut; HELLER, Lisa (org.). Handbuch Nietzsche und die Wissenschaften. Natur-, geistes- und sozialwissenschaftliche Kontexte. Berlin/Boston: de Gruyter, 2014, pp 222-241.).
  • 5
    NIETZSCHE, F. Obras Incompletas. Col. “Os Pensadores”. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 2000. A partir de agora indicado como RRTF.
  • 6
    Nas notas do curso Introdução ao estudo dos diálogos platônicos (KGW II/4.15), Nietzsche afirma que “a natureza de Platão não é, de modo algum, nenhuma [natureza] absolutamente lógica” e estima que “aí reside por vezes sua força”.
  • 7
    Sobre os princípios de contradição e do terceiro excluído, cf. Moritz Wilhelm Drobisch (1887, p. 65DROBISCH, Moritz Wilhelm. Neue Darstellung der Logik nach ihren einfachsten Verhältnissen mit Rücksicht auf Mathematik und Naturwissenschaft. Fünfte Auflage. Hamburg/Leipzig: Verlag von Leopold Voss, 1887. e ss.). De maneira paradoxal, o jovem Nietzsche utiliza o princípio do terceiro excluído para, em uma série de cartas enviadas a Paul Deussen entre 1867 e 1870, defender a ideia de que, em certo sentido, não só o sistema filosófico de Schopenhauer, ao qual era simpático, como o de qualquer outro estão protegidos de críticas lógicas: “Não se escreve absolutamente a crítica de uma visão de mundo: mas se compreende ou não se compreende [uma visão de mundo], um terceiro ponto de vista sendo-me insondável” (KSB 2.328). A declarada blindagem dos sistemas em relação à lógica não dissuade Nietzsche, entretanto, da busca por incoerências, como testemunham suas anotações denominadas Zu Schopenhauer (cf. Friedrich Nietzsche: Werke und Briefe. Historisch-kritische Gesamtausgabe. Werke (nach fünf Bänden abgebrochen) (BAW). München: C. H. Beck’sche Verlagsbuchhandlung, 1933-1940, v. 3, p. 358, página essa que contém anotações de Nietzsche de outubro de 1867 a abril de 1868; doravante, essa edição será designada BAW, e a referência conterá, após a designação da edição, o número do volume, seguido sucessivamente por um ponto, pelo número da página, por uma vírgula e pela indicação do período a que se refere a anotação de Nietzsche; no caso da presente referência: BAW 3.358, outubro de 1867/abril de 1868). De início elaboradas em esfera privada, as objeções lógicas se tornarão, num momento seguinte, públicas e suficientes para a rejeição de ideias julgadas incongruentes.
  • 8
    Afirmamos que a convicção apenas tende à autossupressão, num processo que se completaria na formação do espírito científico tal como descrito na passagem citada do parágrafo 344 de A gaia ciência, na medida em que aquele movimento orientado para a autoaniquilação não se efetiva de fato na ciência, a qual, segundo Nietzsche, ainda repousa sobre uma convicção, a saber, a crença no valor supremo da verdade.
  • 9
    O pendor a não condenar e a propensão a estimar a alteração das opiniões não implicam, de um ponto de vista científico, valorizar a mudança por si só: não haveria razão para aclamar, por exemplo, uma modificação de posição desprovida de rigor. Tampouco significam depreciar toda forma de permanência: quando se toma consciência do “caráter mutável de tudo o que é humano”, a ciência se torna fonte de felicidade justamente ao produzir resultados que, de alguma forma, se conservem (FW/GC 46, KSA 3.411-412, trad. PCS).
  • 10
    Com justeza entende Stegmaier (2012, p. 27STEGMAIER, Werner. ”Wissenschaft” als Vorurteil. Kontextuelle Interpretation des Aphorismus Nr. 373 der Fröhlichen Wissenschaft. In: HELMUT, Heit; ABEL, Günter; BRUSOTTI, Marco (org.). Nietzsches Wissenschaftsphilosophie: Hintergründe, Wirkungen und Aktualität. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012, pp. 25-37.) que, enquanto o tema do parágrafo 293 é o rigor (Strenge) da ciência, o assunto do parágrafo 373 é a sua estreiteza (Enge).
  • 11
    A questão da legitimidade se faz presente pelo uso do verbo modal dürfen (KSA 3.625, linha 1).
  • 12
    Segundo consta do volume KSA 14 (p. 275), Nietzsche suprimiu da versão final do parágrafo 373 a seguinte conclusão, que figurava no manuscrito: “Os naturalistas de confissão mecanicista negam no fundo, como todos os surdos, que exista música, que a existência seja música, até mesmo que possam existir ouvidos.… Com isso, eles desvalorizam a existência”.
  • 13
    Ao rubricar fragmentos inutilizados na redação de Para além de bem e mal, dos prefácios elaborados em 1886 e em 1887 e do “Livro V” de A gaia ciência (cf. KSA 14, p. 738), Nietzsche reserva um tópico particular “[c]ontra a mecânica” (NF/FP 1886-1887, 5[50] 33, KSA 12.203). À luz da sociologia do conhecimento de Pierre Bourdieu (2001, pp. 67–77BOURDIEU, Pierre. Science de la science et réflexivité. Paris: Raisons D’Agir Éditions, 2001.), não surpreende que Nietzsche conceba como primeira cláusula de sua práxis de conflito a investida contra causas vencedoras, tampouco que ele se posicione, contrapondo-se, em relação ao mecanicismo, visto precisamente como forma de pensamento vitoriosa e determinante na esfera científica. Segundo a lógica da oposição fundamental, presente em todo campo e, naturalmente, também no científico, entre dominantes e dominados, os primeiros procuram impor aos últimos como legítima a representação de ciência mais conveniente aos seus interesses e, dada sua posição prevalente, tornam-se referência obrigatória aos concorrentes, que devem se posicionar em relação aos que gozam de preponderância.
  • 14
    A diversidade subjacente ao que se chama mecanicismo, alerta Wilson Frezzatti Junior (2003, p. 437FREZZATTI JUNIOR., Wilson Antonio. Haeckel e Nietzsche: aspectos da crítica ao mecanicismo no século XIX. In: Scientiæ Studia, v. 1, n. 4, pp. 435-461, 2003.), ver-se-ia desconsiderada em uma abordagem que fizesse uso de conceitos gerais e simplistas. Examinando a contraposição de Nietzsche a essa forma de pensamento, Frezzatti (p. 450) esclarece: “Nessa crítica, o termo ‘mecanicismo’ aparece muitas vezes no seu sentido mais estrito, ou seja, como a explicação da realidade através do movimento de átomos e moléculas, mas por vezes esse termo aparece como uma metonímia do pensamento científico e filosófico dominante”. Com efeito, em certos momentos, o filósofo alemão dirige sua censura ao mecanicismo considerado de modo genérico; noutros, alveja algumas de suas modalidades; às vezes, ainda, ao atacá-lo, visa a ciência e a filosofia em sentido mais abrangente, embora estas não se reduzam àquele. Por outro lado, consideramos oportuno sublinhar que, em diversos contextos, desde suas análises mais específicas até as globais, ele mobiliza um aparato crítico cuja possibilidade de aplicação transcende o mecanicismo e mesmo, num escopo mais dilatado, a ciência e a filosofia, empregando-se igualmente nos domínios da religião e da arte – por exemplo, ao apontar como determinadas posições decorrem de leituras psicológicas grosseiras. A respeito da posição de Nietzsche em relação ao mecanicismo, cf. ainda Pietro Gori (2012GORI, Pietro. Nietzsche as Phenomenalist? In: HELMUT, Heit; ABEL, Günter; BRUSOTTI, Marco (org.). Nietzsches Wissenschaftsphilosophie: Hintergründe, Wirkungen und Aktualität. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012, pp. 345-355., 2014GORI, Pietro. Nietzsche and Mechanism. In: HELMUT, Heit; HELLER, Lisa (org.). Handbuch. Nietzsche und die Wissenschaften. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2014, pp. 119-137.).
  • 15
    Sobre o “modo de pensar mecanicista atomístico” como um sistema de signos, cf. ainda NF/FP 1884, 26[411], KSA 11.261 e NF/FP 1885-1886, 2[61], KSA 12.88.
  • 16
    Nietzsche analisa o conceito de causalidade a partir de diversas perspectivas durante toda a sua obra. De acordo com uma das chaves de leitura, a crença em causa e efeito se remeteria à crença em ação e agente, que, por sua vez, se reportaria à crença em sujeito e objeto. Acreditando-se inicialmente na causalidade da vontade e no homem como agente, todos os acontecimentos passam, por uma espécie de projeção, a ser vistos como ações que supõem sujeitos como agentes. Exames da noção de causalidade em contextos nos quais Nietzsche se posiciona em relação ao mecanicismo encontram-se, por exemplo, em NF/FP 1885-1886, 2[83] e 2[139], bem como em NF/FP 1886-1887, 7[34], todos em KSA 12, além de JGB/BM 36, em KSA 5.54-55.
  • 17
    Ao indicar que a ciência é governada pela moral, Nietzsche menciona, entre outros exemplos, o privilégio conferido à noção de lei (NF/FP 1885, 39[14], KSA 11.624-625). Traduzir em fórmula um acontecimento regular não significa, todavia, constatar uma “lei”, mas somente facilitar e abreviar a designação daquele fenômeno; de resto, não passa de mitologia supor que fenômenos iguais se produzam pela obediência de forças a uma lei (NF/FP 1886-1887, 7[14], KSA 12.299).
  • 18
    Levando em conta os fragmentos póstumos acima mencionados, é possível entender a expressão “todos os pressupostos” no sentido de uma efetiva generalização. Se essa leitura estiver correta, não é exaustiva, portanto, a enumeração dos pressupostos mecanicistas apresentada no excerto da última anotação citada (NF/FP 1888, 14[82], KSA 13.262). Tampouco as passagens que evocamos no corpo do texto dão conta de todos os conceitos por Nietzsche julgados cardinais para o mecanicismo e, como tais, criticados. Sobre a recusa da noção mecanicista de matéria, por exemplo, conferir NF/FP 1884, 26[432], KSA 11.266, e NF/FP 1887, 9[8], KSA 12.342-343, entre outros.
  • 19
    Sobre a vontade de potência como “o caráter global da existência”, “o mais fundamental e o mais íntimo”, cf. NF/FP 1888, 14[82], KSA 13.262. A respeito do mecanicismo como tradução de processos mais originários, cf. NF/FP 1888, 14[122], KSA 13.301-303.
  • 20
    Tal antagonismo evidencia-se com particular literalidade no sobrescrito de um fragmento póstumo (NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.257) que traz as seguintes palavras: “Vontade de potência[.] Filosofia[.] Quanta de potência. Crítica do mecanicismo”.
  • 21
    Além do parágrafo 373 de A gaia ciência, cf., por exemplo, NF/FP 1885-1886, 2[76], KSA 12.96: “‘Concepção mecanicista’: não quer nada além de quantidades: mas a força se encontra na qualidade: portanto, a mecânica pode apenas descrever processos, não explicar”. Ou ainda NF/FP 1886-1887, 5[16], KSA 12.190, em que Nietzsche aponta a ausência de profundidade do mecanicismo e da lógica: “A exatidão científica se alcança primeiro nos fenômenos mais superficiais[,] portanto onde se pode contar, calcular, tatear, ver, onde se podem constatar quantidades”.
  • 22
    Essa intenção manifesta-se concisamente na sequência do acima mencionado fragmento póstumo (NF/FP 1885, 36[31], KSA 11.563), em que, logo após a afirmação de que a vontade de potência é intrínseca à força, lê-se: “Os físicos não eliminam de seus princípios a ‘ação a distância’: tampouco a força de repulsão (ou de atração)[.] Não adianta: é preciso conceber todos os movimentos, todos os ‘fenômenos’, todas as ‘leis’ apenas como sintoma de um acontecimento interno e servir-se até o fim da analogia do homem. No animal, é possível derivar da vontade de potência todos os seus impulsos: do mesmo modo, dessa mesma fonte única, [derivam-se] todas as funções da vida orgânica”. Sobre a inaptidão explicativa dos conceitos de pressão e choque e a impossibilidade de livrar-se da ideia de ação a distância, cf. NF/FP 1885, 36[34], KSA 12.135-136, e JGB/BM 22, KSA 5.37.
  • 23
    “O conceito mecanicista de movimento já é uma tradução do processo original em uma linguagem de sinais de olho e tato” (NF/FP 1888, 14[122], KSA 13.301-303). A natureza imagética do discurso mecanicista acha-se mais bem explanada, por exemplo, em NF/FP 1888, 14[79], KSA 13.257-259.
  • 24
    Nietzsche identifica ainda no mecanicismo, em virtude da exigência de rigor e disciplina, uma função seletiva, tomando-o como “uma prova para a prosperidade física e mental” (NF/FP 1885, 34[76], KSA 11.443).
  • 25
    Stegmaier (2012, p. 26STEGMAIER, Werner. ”Wissenschaft” als Vorurteil. Kontextuelle Interpretation des Aphorismus Nr. 373 der Fröhlichen Wissenschaft. In: HELMUT, Heit; ABEL, Günter; BRUSOTTI, Marco (org.). Nietzsches Wissenschaftsphilosophie: Hintergründe, Wirkungen und Aktualität. Berlin/Boston: Walter de Gruyter, 2012, pp. 25-37.) afirma que no parágrafo 373 Nietzsche apresenta “a sua filosofia da ciência de maneira concentrada”. Também a nosso ver o parágrafo 373 de A gaia ciência parece relevante, razão por que em nossa exposição lhe dedicamos mais espaço do que ao parágrafo 293 da mesma obra. Porém, em nosso entender, a concepção nietzschiana de ciência é significativamente mais ampla e complexa do que o conteúdo tratado no parágrafo 373. Em nossa avaliação, embora Nietzsche empreenda ali um ataque eloquente, não está em sua mira toda a ciência, mas somente dado aspecto dela.
  • 26
    Scarlett Marton (2000, p. 34MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.) mostra que, “intimamente ligados, perspectivismo e experimentalismo explicam as aparentes contradições que surgem dos textos [de Nietzsche]”. Dialogando com as posições de Jaspers, Granier e Kaufmann, ela argumenta (p. 32): “O confronto com os textos, sem dúvida, traz à tona as contradições neles presentes. Mas elas dever-se-iam ao estilo adotado pelo autor? Em parte, talvez. Se perseguir uma ideia é abandonar várias outras pelo caminho, o que é o aforismo – modo de expressão privilegiado por Nietzsche – senão a possibilidade de perseguir uma mesma ideia partindo de diferentes perspectivas? Nessa medida, as contradições que se deparam são necessárias, tornam-se compreensíveis e acabam por dissolver-se. São necessárias, não por terem sido colocadas por uma ‘dialética real’, como quer Jaspers, mas por emergirem da diversidade de ângulos de visão assumidos na abordagem da mesma questão; tornam-se compreensíveis, não por corresponderem a momentos que seriam em seguida ‘ultrapassados’, como pretender Granier, mas por surgirem da pluralidade de pontos de vista tomados no tratamento do mesmo tema; acabam por dissolver-se, não por se apresentarem enquanto etapas preparatórias que levariam a posições finais, como espera Kaufmann, mas por brotarem da multiplicidade de perspectivas adotadas na reflexão sobre a mesma problemática. Frutos do estilo aforismático, as contradições devem-se muito mais ao que torna o próprio estilo tão adequado a esse modo de pensar, ou seja, ao perspectivismo, que é a marca mesma da filosofia de Nietzsche”.
  • 27
    Cf. Wolfgang Müller-Lauter (1974MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsches Lehre vom Willen zur Macht. In: Nietzsche-Studien, Berlin/Nova York, v. 3, pp. 1-60, 1974.).
  • 28
    Cf. ainda o seguinte fragmento póstumo, em que a ideia de unidade se associa à de organização e se opõe à de anarquia: “Toda unidade [Einheit] é unidade apenas como organização e interação: não é diferente em relação ao modo como uma comunidade humana é uma unidade: portanto, o oposto da anarquia atomística: com isso, uma formação de domínio que significa uma unidade [Eins], mas que não é uma unidade [eins]” (NF/FP 1886, 2[87], KSA 12.104).
  • 29
    À complexificação do objeto e ao aumento dos pontos de vista a partir dos quais ele é considerado, somam-se a plurivocidade das noções nietzschianas, já que a unidade de uma palavra não implica a unidade de sentido, e a multiplicidade de funções a que se submetem tais noções, a depender do contexto. Esses são fatores que também contribuem para a variedade das apreciações.
  • 30
    Em O Anticristo (54, KSA 6.236-237, trad. de PCS), Nietzsche contrapõe ao cético, expressão de força, o homem das convicções, cuja “necessidade de fé, de algum incondicional Sim e Não” é vista como manifestação de fraqueza; cf. igualmente NF/FP 1887-1888, 11[48], KSA 13.22-23. Numa formulação próxima do título de um livro seu, ele afirma, ao contrário, que é preciso situar-se “Para além de sim e não” (NF/FP 1885-1886, 1[141], KSA 12.43). Sobre a reivindicação de Nietzsche como pensador da nuance, cf. Wotling, 2009, pp. 7 e ss.
  • 31
    Nietzsche atribui-se a arte da nuance, por exemplo, no NF/FP 1888, 24[1], KSA 13.618. Em Ecce homo, também assegura ter desenvolvido “dedos para nuances” (Por que sou tão sábio, 1, KSA 6.266, trad. de RRTF) e, adiante no mesmo escrito, declara ser ele próprio uma nuance (EH/EH, Por que escrevo livros tão bons, O Caso Wagner, 4, KSA 6.362).
  • 32
    Cf. NF/FP 1885-1886, 2[79], KSA 12.99. Sobre as exigências de Nietzsche a seus leitores e sobre o próprio Nietzsche como leitor, cf. Silva Júnior (2014SILVA JÚNIOR, Ivo. Nietzsche, entre a arte de ler bem e seus leitores. In: Cadernos Nietzsche, v. 1, n. 35, pp. 17-31, 2014.) e Sommer (2019SOMMER, Andreas Urs. O que Nietzsche leu e o que não leu. Trad. de Saulo Krieger. In: Cadernos Nietzsche, v. 40, n. 1, pp. 9-43, 2019.).
  • *
    A primeira versão deste texto resulta de pesquisa financiada pela FAPESP (processo nº 14/23282-4, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). A primeira versão foi retrabalhada e se transformou neste artigo durante pós-doutorado realizado no Departamento de Filosofia da UNIFESP, com bolsa de Pós-doutorado Júnior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico — CNPq. Dedico este texto a Ivo da Silva Júnior, supervisor desse pós-doutorado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Ago 2023
  • Aceito
    02 Nov 2023
Grupo de Estudos Nietzsche Av. Pasteur, 458, CEP: 22290-240, Urca, Tel.: (55 21) 2542-8227 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: cadernosnietzschegen@gmail.com