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O encontro entre Fonoaudiologia e Práticas Integrativas e Complementares (PIC): reflexões para muito além da pandemia.

ILUSTRÍSSIMAS EDITORAS-CHEFES DA REVISTA CODAS

Respeitosas saudações.

Esta carta tem o objetivo de apresentar à comunidade acadêmica ações recentes da Fonoaudiologia que marcam o caminhar na direção de uma nova identidade. Trata-se do Parecer Técnico nº 610, homologado pelo Ministério da Saúde, de 13 de dezembro de 2018, que insere as Práticas Integrativas e Complementares (PIC) nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial dos fonoaudiólogos(11 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 610, de 13 de dezembro de 2018. Aprova parecer DCN da graduação em Fonoaudiologia [Internet]. 2018 [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em: http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/71711726
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), o qual embasou o Parecer CFFa nº 45, de 15 de fevereiro de 2020 do Conselho Federal de Fonoaudiologia, que dispõe sobre o uso profissional das PIC por fonoaudiólogos(22 Conselho Federal de Fonoaudiologia [Internet]. Nota técnica sobre o uso profissional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde por fonoaudiólogos. Brasília, DF: Conselho Federal de Fonoaudiologia; 2020 [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em https://www.fonoaudiologia.org.br/cffa/wp-content/uploads/2020/03/Parecer_CFFa_45_2020.pdf
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).

A presente comunicação ganha relevância pela recomendação do Ministério da Saúde, Nº 041, de 21 de maio de 2020, sobre o uso e divulgação das PIC, no contexto da COVID-19(33 Brasil. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Recomendação nº 041, de 21 de maio de 2020. Recomenda ações sobre o uso das práticas integrativas e complementares durante a pandemia da Covid-19 [Internet]. 2020 [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em https://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1192-recomendacao-n-041-de-21-de-maio-de-2020
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). O fenômeno mundial tem impactado fortemente a sociedade do Século XXI. O SARS-Cov-2, notificado em 31 de dezembro de 2019, na província de Wuhan, na China, propagou-se rapidamente pelo mundo. Em janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou emergência de saúde pública, de interesse internacional e, cerca de dois meses depois, pandemia. A globalização, marca da contemporaneidade, responsável pela difusão do conhecimento e aproximação de diferentes culturas, foi também responsável pela velocidade da disseminação do vírus, dando origem a demandas imediatas de reorganização social. A ciência, provocada pela necessidade de soluções urgentes a problemas muito complexos, revelou a existência de um mundo ainda não validado cientificamente(44 Morin E. Um festival de incertezas. Paris: Ed. Gallimard; 2020.). As questões relacionadas à pandemia não são puramente biológicas, mas têm ligação estreita com a cultura das pessoas, que portam ou interagem com o vírus. O mundo foi inserido em um balão de ensaio, ciência e cientistas, inclusive. Ainda não existem estudos “padrão-ouro” que autorizem a ciência a prescrever regras ou medicamentos, no entanto, o debate mundial legitimou fortemente a representação cultural de ciência autoritária e controladora, que teve início no século XVII e dura até os dias atuais. Não existe ciência fora do contexto de sua relação com a sociedade e sem tensionamento de poder. Em outras palavras, a ciência é política e não é sinônimo de verdade(55 Castiel LD, Sanz-Valero J, Vasconcellos-Silva PR. Das loucuras da razão ao sexo dos anjos: biopolítica, hiperprevenção, produtividade científica. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2011. http://dx.doi.org/10.7476/9788575413128.
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). O “terceiro olho”(66 Lorite M. El tercer ojo: Se puede transformar el sentido común? Rev Filos. 2003;30:71-86.) torna-se indispensável para a melhor compreensão da pandemia e das representações culturais cristalizadas e represadas pelo cientificismo, que geram distorções e impedem o avanço do conhecimento. Para Morin (2020)(44 Morin E. Um festival de incertezas. Paris: Ed. Gallimard; 2020.), a pandemia revelou “mais uma vez a insuficiência do modo de conhecimento que nos foi inculcado, que nos faz separar o que é inseparável e reduzir a um único elemento aquilo que é ao mesmo tempo uno e diverso. De fato, a importante revelação dos impactos que sofremos é que tudo aquilo que parecia separado está conectado, porque uma catástrofe sanitária envolve integralmente a totalidade de tudo o que é humano.”

No contexto da COVID-19, a representação cultural de PIC é a que suporta a ideia que vem sendo cunhada pela OMS, desde Alma-Ata até o Plano de Ação Global para 2030(77 WHO: World Health Organization. Global report on traditional and complementary medicine. Geneve: WHO; 2019.). Ela foi fortemente corroborada pela Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, na qual “as PIC são ações contra o epistemicídio e a favor da inclusão da lógica integrativa, que combina o núcleo duro de diferentes práticas com qualidade, segurança e efetividade, para além da perspectiva excludente e alternativa”(88 Barros NF. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: uma ação de inclusão. Ciência Saúde Coletiva.2006; 11(3): 850.).

Enquanto o conceito de PIC é cunhado numa lógica inclusiva e intercultural, a origem da Fonoaudiologia remete aos movimentos higienistas, escolanovistas e nacionalistas brasileiros(99 Brasil BC, Gomes E, Teixeira MRF. O ensino de fonoaudiologia no brasil: retrato dos cursos de graduação. Trab Educ Saúde. 2019;17(3):e0021443. http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00214.
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). É impossível prever com exatidão o resultado do desenvolvimento das PIC no ensino e prática da fonoaudiologia. No entanto, as aproximações de diferentes culturas de cuidado podem gerar estranhamento, num primeiro momento; mas, com muita segurança, o encontro com o diferente é sempre uma janela de possibilidades para a pluralidade e ampliação de uma nova visão de mundo(1010 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União; 22 Mar 2018. [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html#:~:text=PORTARIA%20N%C2%B0%20702%2C%20DE,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC.&text=1%C2%BA%20Ficam%20inclu%C3%ADdas%20novas%20pr%C3%A1ticas,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC
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).

A inovação técnica representada pelas PIC é um “fazer diferente” que denota o resgate de experiências no cuidado e atenção. Esse modelo de cuidado em saúde, diferente do modelo biomédico, vem sendo amplamente difundido e legitimado mundialmente, por profissionais da saúde e também por usuários. O modelo de cuidado biomédico ou cientificista, além de, gradualmente, ter tornado a saúde onerosa e inacessível às populações mais pobres, estabeleceu fronteiras fixas, não só entre as profissões da área da saúde, como entre profissionais e pacientes. Inclusão e autonomia são valores importantes do modelo de cuidado das PIC, com uma forte pressão para o borramento entre fronteiras, tanto na área do conhecimento, como na prática profissional. A compreensão de que o modelo de cuidado das PIC teve origem na necessidade de preencher lacunas deixadas pelo modelo de cuidado biomédico deixa ver que ele produz alargamento epistemológico na área da saúde(77 WHO: World Health Organization. Global report on traditional and complementary medicine. Geneve: WHO; 2019.,88 Barros NF. Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS: uma ação de inclusão. Ciência Saúde Coletiva.2006; 11(3): 850.,1010 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União; 22 Mar 2018. [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html#:~:text=PORTARIA%20N%C2%B0%20702%2C%20DE,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC.&text=1%C2%BA%20Ficam%20inclu%C3%ADdas%20novas%20pr%C3%A1ticas,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC
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Não foi por acaso que, no Brasil, se fez a substituição dos termos “Medicina Tradicional” e “Medicina Alternativa e Complementar” e “Medicina Integrativa” por “Práticas Integrativas e Complementares”. A mudança expressou a necessidade de estabelecer relações de poder mais equilibradas entre as profissões do campo da saúde e entre esses profissionais e seus pacientes(77 WHO: World Health Organization. Global report on traditional and complementary medicine. Geneve: WHO; 2019.,1010 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União; 22 Mar 2018. [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html#:~:text=PORTARIA%20N%C2%B0%20702%2C%20DE,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC.&text=1%C2%BA%20Ficam%20inclu%C3%ADdas%20novas%20pr%C3%A1ticas,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC
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A literatura vem apresentando a Fonoaudiologia brasileira atrelada ao cientificismo, na origem e durante grande parte da sua trajetória(99 Brasil BC, Gomes E, Teixeira MRF. O ensino de fonoaudiologia no brasil: retrato dos cursos de graduação. Trab Educ Saúde. 2019;17(3):e0021443. http://dx.doi.org/10.1590/1981-7746-sol00214.
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). Possivelmente por essa associação, a Fonoaudiologia esteve ausente do debate acadêmico sobre as PIC e sua demanda mundial crescente, por parte de usuários e de profissionais de saúde. Além disso, também por isso, não participou da criação e desenvolvimento da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), que tem promovido a oferta dessas práticas no Sistema Único de Saúde (SUS), desde 2006, com importantes ampliações, em 2017 e 2018(1010 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria n° 702, de 21 de março de 2018. Altera a Portaria de Consolidação nº 2/GM/MS, de 28 de setembro de 2017, para incluir novas práticas na Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares - PNPIC. Diário Oficial da União; 22 Mar 2018. [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2018/prt0702_22_03_2018.html#:~:text=PORTARIA%20N%C2%B0%20702%2C%20DE,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC.&text=1%C2%BA%20Ficam%20inclu%C3%ADdas%20novas%20pr%C3%A1ticas,Pr%C3%A1ticas%20Integrativas%20e%20Complementares%20%2D%20PNPIC
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).

O olhar cuidadoso sobre o processo de hibridização cultural decorrente do encontro das PIC com a Fonoaudiologia é necessário e, sem dúvida, o Parecer CFFa nº 45, de 15 de fevereiro de 2020, emitido pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia, que dispõe sobre o uso profissional das PIC por fonoaudiólogos(22 Conselho Federal de Fonoaudiologia [Internet]. Nota técnica sobre o uso profissional das Práticas Integrativas e Complementares em Saúde por fonoaudiólogos. Brasília, DF: Conselho Federal de Fonoaudiologia; 2020 [citado em 2020 Jun 10]. Disponível em https://www.fonoaudiologia.org.br/cffa/wp-content/uploads/2020/03/Parecer_CFFa_45_2020.pdf
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), é um marco legal fundamental para a construção das práticas de fonoaudiologia complementares e integrativas.

  • Trabalho realizado na Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, Campinas (SP), Brasil.
  • Fonte de financiamento: nada a declarar.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Out 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    12 Jun 2020
  • Aceito
    20 Jun 2020
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