Acessibilidade / Reportar erro

Ter hanseníase e trabalhar na enfermagem: história de lutas e superação

To be with leprosy and to work as a nurse: histories of fight and overcoming

Tener la lepra y trabajar como enfermera: historias de luchas y superación

Resumos

A pesquisa teve como objetivo conhecer a história dos ex-trabalhadores de enfermagem, que tiveram hanseníase internados compulsoriamente desde início do século XX no Brasil. A hanseníase, permeada de preconceitos e estigmas, no início dos anos 20 foi tratada por décadas com severas políticas públicas de isolamento compulsório dos doentes em Hospitais Colônias. Devido ao preconceito, havia dificuldade em contratar recursos humanos para manter estes estabelecimentos. As histórias dos sujeitos pesquisados surgiram a partir de entrevistas gravadas com sete moradores da colônia, pelo método da história oral. Os resultados da pesquisa apresentados parcialmente neste trabalho relatam as histórias de vida dos sujeitos, suas lutas, sofrimentos e sonhos. Confirmou-se que os próprios doentes eram mantenedores dos serviços dentro das colônias, inclusive os de Enfermagem.

Enfermagem; Trabalho; Hanseníase; Pesquisa qualitativa


This research aimed at knowing the history of ex-workers, leprosy patients admitted compulsorily from the early twentieth century in Brazil. Leprosy, fraught with prejudice and stigma in the early 20s was treated for decades with stringent policies of compulsory isolation of patients in hospitals colonies. Because of prejudice, there was difficulty in hiring staff to maintain these establishments. The stories of the individuals came from taped interviews with seven residents of the colony, by the method of oral history. The research results partially presented in this paper reported the life histories of individuals, their struggles, sorrows and dreams. It was confirmed that the patients themselves were keepers of services within the colonies, including nursing.

Nursing; Work; Leprosy; Qualitative research


Esta investigación tuvo como objetivo conocer la historia de los ex-trabajadores, que tuvieron la lepra admitidos en carácter obligatorio a partir del siglo XX en Brasil. La lepra, cargada de prejuicios y el estigma en los 20 años fue tratado durante décadas con las políticas estrictas de aislamiento forzoso de los pacientes en los hospitales colonias. Debido a los prejuicios, hubo dificultad en la contratación de personal para mantener estos establecimientos. Las historias de las personas fueran obtenidas por medio de entrevistas con siete residentes de la colonia, por el método de la historia oral. Los resultados de la investigación en parte se presentan en este documento se informaba de las historias de vida de las personas, sus luchas, penas y sueños. Se confirmó que los mismos pacientes fueron los poseedores de los servicios en las colonias, incluida la enfermería.

Enfermería; Trabajo; Lepra; Pesquisa cualitativa


PESQUISA

Ter hanseníase e trabalhar na enfermagem: história de lutas e superação

To be with leprosy and to work as a nurse: histories of fight and overcoming

Tener la lepra y trabajar como enfermera: historias de luchas y superación

Ana Paula Batista Gusmão; Maria José Moraes Antunes

Secretaria de Saúde de Betim, Programa Saúde da Família. Betim, MG

Correspondência Correspondência: Ana Paula Batista Gusmão Rua Mato Grosso, 520. Bairro Tereza Cristina CEP 32920-000. São Joaquim de Bicas, MG

RESUMO

A pesquisa teve como objetivo conhecer a história dos ex-trabalhadores de enfermagem, que tiveram hanseníase internados compulsoriamente desde início do século XX no Brasil. A hanseníase, permeada de preconceitos e estigmas, no início dos anos 20 foi tratada por décadas com severas políticas públicas de isolamento compulsório dos doentes em Hospitais Colônias. Devido ao preconceito, havia dificuldade em contratar recursos humanos para manter estes estabelecimentos. As histórias dos sujeitos pesquisados surgiram a partir de entrevistas gravadas com sete moradores da colônia, pelo método da história oral. Os resultados da pesquisa apresentados parcialmente neste trabalho relatam as histórias de vida dos sujeitos, suas lutas, sofrimentos e sonhos. Confirmou-se que os próprios doentes eram mantenedores dos serviços dentro das colônias, inclusive os de Enfermagem.

Descritores: Enfermagem; Trabalho; Hanseníase; Pesquisa qualitativa.

ABSTRACT

This research aimed at knowing the history of ex-workers, leprosy patients admitted compulsorily from the early twentieth century in Brazil. Leprosy, fraught with prejudice and stigma in the early 20s was treated for decades with stringent policies of compulsory isolation of patients in hospitals colonies. Because of prejudice, there was difficulty in hiring staff to maintain these establishments. The stories of the individuals came from taped interviews with seven residents of the colony, by the method of oral history. The research results partially presented in this paper reported the life histories of individuals, their struggles, sorrows and dreams. It was confirmed that the patients themselves were keepers of services within the colonies, including nursing.

Descriptors: Nursing; Work; Leprosy; Qualitative research.

RESUMEN

Esta investigación tuvo como objetivo conocer la historia de los ex-trabajadores, que tuvieron la lepra admitidos en carácter obligatorio a partir del siglo XX en Brasil. La lepra, cargada de prejuicios y el estigma en los 20 años fue tratado durante décadas con las políticas estrictas de aislamiento forzoso de los pacientes en los hospitales colonias. Debido a los prejuicios, hubo dificultad en la contratación de personal para mantener estos establecimientos. Las historias de las personas fueran obtenidas por medio de entrevistas con siete residentes de la colonia, por el método de la historia oral. Los resultados de la investigación en parte se presentan en este documento se informaba de las historias de vida de las personas, sus luchas, penas y sueños. Se confirmó que los mismos pacientes fueron los poseedores de los servicios en las colonias, incluida la enfermería.

Descriptores: Enfermería; Trabajo; Lepra; Pesquisa cualitativa.

INTRODUÇÃO

A hanseníase, causada pelo Micobacterium leprae, é uma doença infecciosa endêmica, considerada um problema de saúde pública no Brasil. Acomete a pele (manchas, hipocrômicas ou hipercrômicas, e lesões), os olhos e os nervos periféricos (perda da sensibilidade no local da mancha e nas extremidades, além de neurites), o que a torna de simples e fácil diagnóstico na maioria dos casos(1). O período de incubação da doença pode ser de dois a sete anos, sendo de evolução lenta e manifestando-se "principalmente através de sinais e sintomas dermatoneurológicos: lesões na pele e nos nervos periféricos, principalmente nos olhos, mãos e pés"(2). Atualmente existem aproximadamente 500 mil pessoas acometidas pela hanseníase no mundo e cerca de 20 milhões de ex-hansenianos. Se acrescentarmos nestes números os familiares, também atingidos pelo preconceito da sociedade, teremos mais de 100 milhões de vítimas em todo o mundo(3).

A história da saúde pública brasileira, no controle da hanseníase, demonstra a "preocupação"das autoridades em apenas extinguir a doença do meio social. O objetivo, portanto, era sanar a sociedade isolando o doente através do seu confinamento compulsório dentro de hospitais colônias. O modelo de tratamento adotado no Brasil do século XX foi o de afastamento dos doentes de hanseníase da sociedade. Iniciou-se, por volta de 1929 a política de isolamento compulsório dos doentes, com a criação da Lei Estadual Paulista nº 2416. "Entre 1928 e 1936, os infectados foram alijados da sociedade paulatinamente"(4).

No Brasil foram criadas, desde o início do século XX, 57 colônias de leprosários, 36 preventórios e 40 dispensários. No Estado de Minas Gerais foram criadas oito colônias de leprosários (entre elas a Colônia de Santa Izabel), cinco preventórios e um dispensário(5). Os serviços públicos responsáveis pelo controle de Hanseníase eram o dispensário - arma avançada que descobre, seleciona, trata interna os doentes devolvendo-os ao meio social; o leprosário - (colônias) que isola, assiste, material e moralmente, trata e recupera os doentes, devolvendo-os ao meio social; e o preventório - recolhe os filhos sadios dos hansenianos, quer nascidos nos leprosários, quer os oriundos dos lares de onde saíram os doentes(6).

A Colônia Santa Izabel, hoje Casa de Saúde Santa Izabel (CSSI), localizada na zona rural de Betim, Minas Gerais, foi construída entre 1922 e 1931, sendo inaugurada em 23 de dezembro de 1931. Teve a finalidade de abrigar e tratar indivíduos atingidos pela Hanseníase, sendo, à época, considerada um modelo de leprosário em Minas Gerais, com grandes pavilhões onde os internos eram divididos por sexo e faixa etária.

Até a década de 1990 o tratamento da doença no Brasil se restringia as práticas curativistas experimentais com plantas medicinais, resina de caju, banhos em águas termais, dentre outros, sem atingir grandes sucessos. Em 1990 é implantado no Brasil o tratamento de poliquimioterapia, tornando a hanseníase curável em 100% dos casos. Este tratamento dura em geral de seis meses a dois anos e não necessita de internação, já que a primeira dose dos medicamentos impede a transmissão do bacilo(7,8).

No início do século XXI apesar de existir ainda o preconceito por parte da sociedade, muito está sendo feito para que as pessoas atingidas pela hanseníase sejam re-inseridas na sociedade, garantindo seus direitos de cidadania. Entidades como o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN) trabalham contra o estigma e o preconceito em torno da doença.

Durante décadas, os hansenianos segregados viveram e trabalharam nas colônias, construindo sua identidade social. Alguns destes já idosos ou com seqüelas físicas trabalharam como atendentes de enfermagem. Conhecer o relato das suas vidas, crenças, medos e esperanças, finalidade ímpar deste trabalho pode contribuir para elucidar parte da história da enfermagem mineira exercida nas colônias de "leprosos"implantadas no Estado de Minas Gerais, no século XX, a partir da década de 1930(6).

O presente estudo teve como finalidade pesquisar a identidade social de ex-trabalhadores e trabalhadoras do serviço de enfermagem, que tiveram a hanseníase moradores da Colônia Santa Izabel, em Citrolândia, Betim, MG. Investigou-se o que pensam de si mesmos, da enfermagem, dos pacientes a quem prestaram cuidados e como esta percepção influenciou na qualidade da assistência de enfermagem prestada aos pacientes acometidos pela hanseníase, internados compulsoriamente na Colônia Santa Izabel.

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, buscando resgatar a história de vida e do trabalho na enfermagem dos sujeitos do estudo(9). O cenário foi a Colônia Santa Izabel, em Citrolândia, Betim, MG. Os critérios para escolha dos sujeitos foram: ter sido trabalhador do serviço de enfermagem, ter morado na colônia e ter tido a doença (hanseníase). Para análise dos resultados obtidos na pesquisa foram utilizados os fundamentos da história ou relato oral(10-12).

A identificação dos sujeitos desta pesquisa se deu por meio de contato prévio com o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), quando foi apresentado o projeto de pesquisa e assinado o termo de compromisso pelo representante desta organização não-governamental.

Nos arquivos do setor de recursos humanos da FHEMIG, que assumiu a gestão da CSSI a partir da década de 1970, foram identificados 34 trabalhadores que tiveram a hanseníase, classificados pela instituição como ex-bolsistas da enfermagem, sendo que 21 estavam categorizados como "ativos"no serviço e 13 como "afastados"(licença médica). É importante ressaltar que não foi encontrado nenhum documento histórico que registre os nomes das dezenas de trabalhadores hansenianos que trabalharam na Enfermagem ou em qualquer outra atividade na antiga Colônia Santa Izabel, no período anterior à gestão da FHEMIG, ou seja, das décadas de 1930 à de 1970; estas informações ficaram perdidas na história.

Com o auxílio dos dirigentes do MORHAN, dos registros da FHEMIG/CSSI e dos próprios moradores da colônia conseguiu-se identificar 11 pessoas que cumpriam os requisitos preestabelecidos para a escolha dos sujeitos. Estes foram visitados em seus endereços residenciais. Após o primeiro contato foram selecionados sete sujeitos, todos identificados como ex-trabalhadores de enfermagem (ex-bolsistas) e que tiveram a hanseníase, moradores da colônia, que concordaram em participar e que tinham condições mentais de participação.

As entrevistas com os sete sujeitos selecionados foram realizadas durante o mês de novembro de 2006. O instrumento utilizado para a coleta de dados foi a entrevista com cinco questões abertas, aplicadas durante a realização da pesquisa de campo, utilizando-se dois gravadores para o registro simultâneo das entrevistas individuais, para garantir a transcrição completa das informações coletadas e máquina fotográfica, para registro da imagem dos entrevistados, mediante assintura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Após a realização das entrevistas, procedeu-se a escuta de cada uma na íntegra, seguida da transcrição literal, incluindo perguntas e intervenções. Foram gastas 12 horas para a transcrição de cada entrevista, cerca de 84 horas no total. Os resultados foram analisados e organizados em duas partes; a primeira contém a síntese da história pessoal de cada um dos sete entrevistados, que é apresentada neste artigo; a segunda segunda foi mantida em sigilo, por conter depoimentos de situações clínicas antigas, passíveis de trazer constrangimentos aos entrevistados, já que se referem às denuncias de fatos relacionados às graves questões éticas ocorridas durante nas décadas de 1930 à 1970.

Foram respeitadas as normas da Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da FHEMIG e PUC Minas Gerais, Parecer CAAE 0010. 0.287.213-06 de 18/10/2006.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em conseqüência do grande estigma gerado em relação à hanseníase existia muita dificuldade em encontrar recursos humanos para manter o cuidado e os serviços dentro das colônias. As pessoas tinham medo de irem trabalhar nestes locais e acabarem se contaminando com a doença. Os que cuidavam eram os próprios doentes dentro das colônias, pois não havia quem cuidasse deles, devido ao pânico em adquirir a doença(13). Separados de suas famílias, da sociedade e de seus antigos "ofícios"de trabalho, diversos internos dos hospitais-colônia se transformam em cuidadores, compondo o corpo de Enfermagem dentro destas instituições.

Devido ao medo de contrair a doença e à distância da cidade de Belo Horizonte, não se conseguia contratar trabalhadores para a manutenção da colônia. Assim, cabiam às irmãs de caridade que lá moravam cuidar dos hansenianos e ajudar na administração, selecionar os pacientes internos para os mais diversos trabalhos, necessários para o funcionamento da colônia, inclusive para a prestação de cuidados de enfermagem(6). Confirmou-se no desenvolvimento deste trabalho que o sujeito atingido pela hanseníase foi por muito tempo obrigado a se aprisionar por detrás dos muros dos grandes hospitais-colônias. Teve, deste modo, seu destino desviado e sua identidade "perdida"perante a sociedade e obrigado a assumir uma nova identidade, marcada por preconceitos e estigmas relacionados à doença. A escuta dos sete sujeitos deste trabalho confirmou esta realidade. Os relatos obtidos revelaram a construção de uma nova identidade, demarcada pela violência das políticas sanitárias estatais, adotadas para controle da hanseníase e legitimada pelas crenças e valores culturais vigentes no Brasil e no mundo.

Verificou-se que a inserção no trabalho da enfermagem para os hansenianos letrados e com mãos em boas condições físicas era compulsória, sendo eles selecionados pelas irmãs de caridade que administravam a colônia.

Os doentes eram levados à força para as colônias pelas autoridades de saúde, tinham suas casas queimadas, eram separados de suas famílias e filhos, enfim, perdiam sua identidade social, "morriam"socialmente, o que foi confirmado nas entrevistas(13). O relato dos entrevistados evidenciou a questão da "perda"de identidade e do confinamento compulsório nas Colônias como única forma de tratamento da doença.

Os relatos obtidos nesta pesquisa confirmaram as evidências dos autores pesquisados, de que os doentes eram selecionados pelas irmãs de caridade para trabalharem dentro das colônias, tornando-se cuidadores aqueles cujas condições físicas eram mais favoráveis ao trabalho na enfermagem, conforme trechos extraídos dos relatos das histórias de vida.

[...] quando eu tava na casa do meu tio, lá num posto lá perto eu fui fazer um treinamento de prática. Que eles me perguntaram, né, assim "você sabe ler?", falei "oh... mais ou menos... um pouquinho..."[...] Aí ela (dona S.) falou assim "você tem as mãos boa! Você pode fazer treinamento, vem cá que eu vou te ensinar!"(E1).

[...] eu num sabia mexer na enfermagem, nunca tinha entendido da enfermagem não... mas aí eu comecei a trabalhar [...] Aí a menina saiu da, da, da cirurgia aí a irmã me contratou. Aí eu falei com ela "irmã, eu num posso não, eu num sei, como é que... eu num sei atender cirurgia...". Ela falou assim "não! Ocê aprende!"(E2).

A irmã de caridade que tinha aqui, que era mandona. [...] Aí ela arrumou pra mim, depois a gente foi "enganjando direitim". Ela é que dominava com a gente (E3).

Aí melhorei, comecei a cuidar, ajudar a cuidar dos próprios enfermos, né. Já tava bem! E forte, né; aí a irmã pegou e colocou pra gente, né, antigamente era assim, os mais fortes ajudava nas Colônias, né, ia ajudando [...] aqueles que tinha as mãos boas e tal, esses que era escolhido pra aplicar injeção, pra ajudar cuidar dos doentes, né. Depois que as irmãs gostavam das pessoas, elas obrigava a trabalhar na enfermagem... selecionava assim. Porque as irmãs faziam o trabalho das enfermeiras, né, elas que escolhia as pessoas pra, pra trabalhar, era a gente que trabalhava, né, elas... elas que indicavam. [...] antigamente era nós doente mesmo que cuidava uns dos outros. Não... porque... porque assim a doença era muito discriminada, sabe, então os profissionais da área de saúde, só médico mesmo que trabalhava aqui... só médico... se chegasse aqui um... um enfermeiro chefe, ela só olhava assim e ela não ficava! Ela não ficava, nem enfermeiro nem ninguém ficava! Né, porque a discriminação era muita né... então era só mesmo nós doentes que olhava uns aos outros , né. A gente que cuidava uns aos outros (E4).

[...] quando eu cheguei aos 14 anos, a irmã me chamou e falou assim "Ô"... ela me chamava de M.F... "M.F., cê quer ir pra sala costura ou pra sala de injeção?". [...] Aí eu falei que num queria não! Nada não, ia mexer com isso não. Só que eu fiquei de castigo por isto, até que eu tive que escolher, né. [...] Aí eu escolhi, falei então eu vou. [...] aqui o sistema da colônia era o seguinte, quando, no caso das crianças, os meninos e as meninas quando chegavam na idade de 14... 13 a 14 anos, a irmã geralmente colocava os meninos pra fazer alguma coisa, [...] A opção das meninas, quer dizer, num era uma opção, era opção da colônia, né. Era, ou trabalhar, na casa de algum casal, né, que morava aqui na colônia; ou ir pra sala de costura, que era do Estado, né; ou ir pra sala de injeção, aprender dar injeção... [...] as pessoas chegavam aqui, se era rapaz novo as irmãs olhavam pra ele, achava com cara de enfermeiro, e falava assim "Cê vai ser enfermeiro!"... se achava com cara de guarda, ele ia ser guarda; se achava com cara de capinador de rua, então ele ia capinar rua; se era mais forte, uma coisa, ia pra olaria fabricar tijolos, né. Então era assim! (E5).

[...] e cê era obrigado a tomar conta dos doentes [...] Aí a quando ocê saía do pavilhão das crianças, ocê ia pra aquele pavilhão onde é que eles tão arrumando ali agora, onde era o pavilhão dos homens, né. Lá, ali cê já tinha que trabalhar! Ali cê era obrigado a trabalhar porque ali tinha quase 200 pessoas naquele pavilhão [...] a gente não tinha outra coisa pra fazer, então a gente, então a gente tinha que trabalhar mesmo (E 6).

Aí eu cheguei aqui em 9 de abril... quando foi dia 11 de junho, um enfermeiro, que era da enfermaria que eu estava, adoeceu, e a irmã falou assim "o senhor vai trabalhar de enfermeiro no lugar dele!", falei assim "ô irmã! Eu sou é pedreiro! Eu nunca mexi com enfermagem não!", "não, aqui, sabendo ler um pouquinho pode ser enfermeiro". [...] eu tava com mão boa, saudável, mão perfeita [...] ês que olhava pra gente e falava "cê vai trabalhar"; e como eu tinha um pouquinho de leitura, a irmã "olha, cê vai trabalhar"... aí comecei a trabalhar (E7).

Pode-se observar nos relatos supracitados que os doentes não tinham escolha, eram simplesmente direcionados para os serviços e obrigados a trabalharem para se manterem financeiramente nas colônias. E ainda que os internos fossem "punidos"com castigos caso não obedecessem às normas impostas pelas coordenadoras da colônia, as irmãs de caridade.

Além de serem obrigados a trabalharem, as pessoas atingidas pela hanseníase não obtinham treinamento adequado para o exercício da enfermagem, sendo exigência para sua inserção neste serviço apenas que fossem alfabetizados ou que tivessem "as mãos boas". O aprendizado acontecia de forma empírica, sendo transmitido de trabalhador para trabalhador

E aí eu fui fazendo o treinamento, né, tirava a água da seringa, sem entorná, né, e fazia, injetava na toalha, que era a veia, né, ali [...] Dali eu já comecei a trabalhar, aí eu fui aprender a fazer a no músculo. As outras injeção no músculo, né,[...] logo com 15 dias que eu estava já terminando esse treinamento no músculo pra... que as paciente foi a minha cobaia, né [...] a menina que trabalhava lá, então ela já foi me acompanhando (E1).

a Enfermagem aqui começou de um nada né, nossos trabalho começou de um nada, a gente num sabia nada. (E3).

Aí o enfermeiro que tava meio "perrengado"me ensinou lá como é que pegava as veia e tudo, né, que eu fui e comecei a trabalhar. Aí comecei a trabalhar na enfermagem (E7).

Há relatos ainda que citam trabalhadores da enfermagem (outros personagens) que não eram nem mesmo alfabetizados.

Inclusive nós tivemos um chefe de enfermagem aqui, de nome T.A.G., ele era totalmente analfabeto! E foi um dos melhores chefes que nós tivemos aqui, ele entendia tudo na prática de enfermagem. [...] Ele tinha uma memória, sabe, ele consegui aprender tudo! Tanta assim, se o médico apresentasse pra ele uma injeção, falasse assim "essa injeção é boa pra isso, isso e isso; mas não pode tomar neste, neste caso"; ele fixava era o rótulo da injeção. Que ele num sabia ler (E5).

A enfermagem aqui era tão esquisita, que o chefe nosso da enfermagem não sabia ler não; ele conhecia a medicação pelo rótulo. Era pelo rótulo. Sabia ler não. Então, eu era muito mais letrado do que ele. Mas como se diz nunca matou ninguém quando ele ia aplicar não, ele era cuidadoso. Então, é, nossa história da enfermagem é assim (E7).

O preconceito contra a doença e contra os atingidos pela hanseníase também é explicitado na fala dos entrevistados. E todo este preconceito da sociedade em relação à doença fazia com que os próprios doentes se sentissem obrigados a se internarem nas colônias para livrarem-se da "vergonha"de terem adquirido a hanseníase.

Portanto, pôde-se evidenciar após análise das narrativas dos entrevistados que estes tinham seus sonhos perdidos, suas identidades "apagadas"socialmente, sendo obrigados a assumirem uma nova identidade: a de pessoas atingidas pela hanseníase.

CONCLUSÕES

A idéia de se realizar este trabalho surgiu da curiosidade da autora, incitada a partir da vivência com os moradores da colônia, em estágio curricular e trabalhos de extensão do Curso de Enfermagem da PUC Minas, Betim, em conhecer melhor as histórias dos sujeitos moradores da Colônia Santa Izabel, que trabalharam na enfermagem.

Na apresentação dos resultados descreveu-se as histórias de vida dos sete indivíduos que tiveram hanseníase e que foram trabalhadores de enfermagem, resgatando as suas identidades "perdidas"e marcadas pelo preconceito e estigma em relação à hanseníase. A apresentação dos resultados obtidos por meio da descrição das histórias de vida obtidas dos sujeitos do estudo teve o intuito de dar visibilidade a estas pessoas, que por várias décadas foram alijadas socialmente por uma doença, que bania o ser atingido dos seus direitos de cidadania.

Considera-se que os registros obtidos junto aos entrevistados que tão generosamente contaram as histórias de suas vidas e de seus trabalhos na enfermagem contribuiu notavelmente para elucidar parte da história da enfermagem mineira nestas colônias.

É claramente observado nos relatos o discurso de que ser atingido pela hanseníase era um "mal social"e que o preconceito era implacável, o que fazia com que estes doentes fossem trancafiados dentro das colônias para um tratamento que nem mesmo era eficaz. Com a promessa de terem uma vida "feliz", num lugar "bonito e tranqüilo"e tratamento contra um "mal", que era ainda pouco conhecido no início do século XX, no Brasil, as pessoas atingidas pela hanseníase se viam obrigadas a se internarem nas colônias, se juntando aos que compartilhavam deste "mal"e incorporando uma nova identidade: a de sujeitos acometidos pela hanseníase. Nem mesmo o direito de trabalhar e estudar da forma como desejavam lhes era permitido, sendo estas pessoas obrigadas a fazer o que lhes era imposto pelos que coordenavam os grandes hospitais leprosários. Por isto a importância de se resgatar esses relatos, de pessoas que vivenciaram esta política de exclusão e asilamento, como meio de lhes devolver o direito de falarem de seus sonhos e esperanças. E ainda de fazer com que todos saibam quem foram estes grandes seres humanos que, além de se verem atingidos por uma moléstia milenarmente repudiada pela sociedade, foram os que contribuíram para os cuidados com a vida daqueles que, como eles mesmos eram banidos socialmente.

Todas estas questões são frutos do preconceito e do estigma criados em torno da hanseníase, que vêm sendo construídos milenarmente na sociedade.

A experiência de concretizar este trabalho pôde ampliar a visão do tema abordado, o que contribuiu para o enriquecimento pessoal e da formação da pesquisadora deste estudo. A oportunidade de estar em contato com os sujeitos em uma pesquisa de campo é uma vivência inigualável, o que proporcionou um crescimento humano, espiritual e profissional consideráveis. A visão inicial que se tinha da hanseníase, do sujeito acometido pela hanseníase e do trabalho de enfermagem dentro da colônia foi ampliada significativamente, proporcionando a conscientização em relação a estas questões. Pôde-se perceber que a riqueza das informações colhidas nos relatos dos sujeitos contribuiu em muito para resgatar parte da história da enfermagem mineira dentro das colônias de tratamento da hanseníase e dá margem a diversos estudos.

Portanto, muito trabalho ainda há de ser feito, para que estes sujeitos tenham suas histórias conhecidas e sejam dignificados pela sociedade e que esta seja conscientizada e informada de que o preconceito deve ser combatido, e que só tem preconceito aqueles que não conhecem e não sabem nada a respeito da história da hanseníase.

Submissão: 05/10/2008

Aprovação: 19/09/2009

  • 1. Araujo, MAG. Hanseníase no Brasil. Rev Soc Bras Med Trop 2003; 36(3): 373-82.
  • 2
    Ministério da Saúde (BR). Guia para o controle da hanseníase. Brasilia: Ministério da Saúde; 2002.
  • 3. Machado K. Hanseníase: meta é erradicar a doença até 2005. Vai ser possível? Rev Comun Saúde 2004; 27: 08-11.
  • 4
    Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. Conjuntura: uma análise da história da hanseníase no país. São Paulo: CREMESP; 2006.
  • 5. Santos VSM. Pesquisa documental sobre a história da hanseníase no Brasil. Hist Cien Saude Manguinhos 2003;10 (sup I): 415-26.
  • 6. Diniz O. Também somos gente (trinta anos entre leprosos). Rio de Janeiro: Livraria São José; 1961.
  • 7. Borges J. Vergonha Pública. Repórter Brasil; 2006. [citado 25 jan 2006]. Disponível em: http://www.reporterbrasil.com.br/showarticle.php?articleID=29
  • 8. Cunha AZS. Hanseníase: aspectos da evolução do diagnóstico, tratamento e controle. Ciên Saúd Coletiva 2002; 7(2): 235-42.
  • 9. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes; 2003.
  • 10. Thompson P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1998.
  • 11. Schraiber LB. Pesquisa qualitativa em saúde: reflexões metodológicas do relato oral e produção de narrativas em estudo sobre a profissão médica. Rev Saúd Pública 1995; 29(1): 63-74.
  • 12. Neto ES. História oral: uma síntese reflexiva. [citado 28 jan 2006]. Disponível em: http://www.unir.br/~primeira/artigo159.html
  • 13. Matos DM, Fornazari SK. A lepra no Brasil: representações de poder. Cadernos Étic Filos Política 2005; 6(1): 45-57.
  • Correspondência:
    Ana Paula Batista Gusmão
    Rua Mato Grosso, 520. Bairro Tereza Cristina
    CEP 32920-000. São Joaquim de Bicas, MG
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      19 Set 2009
    • Recebido
      05 Out 2008
    Associação Brasileira de Enfermagem SGA Norte Quadra 603 Conj. "B" - Av. L2 Norte 70830-102 Brasília, DF, Brasil, Tel.: (55 61) 3226-0653, Fax: (55 61) 3225-4473 - Brasília - DF - Brazil
    E-mail: reben@abennacional.org.br