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Educação em odontologia no Brasil: produção de conhecimento no período 1995-2006

Dental education in Brazil: the production of knowledge during 1995-2006

Resumos

Apresenta resultados de estudo sobre a produção de conhecimento na área de educação em odontologia, no período 1995-2006, com base em 52 dissertações e vinte teses do banco da Capes. O objetivo foi mapear a produção e estabelecer interface com os movimentos de mudança em saúde e educação no país. Conclui-se que a produção é ainda incipiente, mas as temáticas são múltiplas: experiências disciplinares inovadoras, análises do impacto de novas metodologias de ensino, formação docente, currículo e perfil do egresso. O conjunto demonstra a vitalidade do campo e seu potencial na geração de sínteses em face da complexidade e amplitude da tarefa de pensar a educação de profissionais de saúde no Brasil.

formação em odontologia; educação em odontologia; educação superior; Brasil


The article presents the findings of a study on the production of knowledge in dental education during 1995-2006. A corpus of 52 theses and twenty dissertations from Capes' databank were researched. The purpose was to survey production and relate it to Brazilian trends in health and education. It is concluded that while production is still incipient, a variety of themes appear: innovative disciplinary experiences, analyses of the impact of new teaching methodologies, teacher training, syllabuses, and profiles of graduates. Overall, these papers reflect the vitality of the field and its potential for arriving at syntheses, taking into account the complexity and scope of the task of reflecting on the education of healthcare professionals in Brazil.

dental education; higher education; Brazil


ANÁLISE

Educação em odontologia no Brasil: produção de conhecimento no período 1995-2006

Dental education in Brazil: the production of knowledge during 1995-2006

Elisete CasottiI; Victoria Maria Brant RibeiroII; Mônica Villela GouvêaIII

IDoutoranda, membro do Núcleo de Tecnologia Educacional Para a Saúde/Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). R. Eliseu Visconti, 403A/101subsolo, 20251-250 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. elisete.casotti@gmail.com

IIProfessora-associada da UFRJ, lotada no Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde Estrada da Gávea, 698/802, 22610-002 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. victorianutes@gmail.com

IIIProfessora do Instituto de Saúde da Comunidade/Departamento de Planejamento em Saúde/Universidade Federal Fluminense. Rua Álvares de Azevedo, 121/903/bl.2, 24220-020 - Niterói - RJ - Brasil. monicagouvea@terra.com.br

RESUMO

Apresenta resultados de estudo sobre a produção de conhecimento na área de educação em odontologia, no período 1995-2006, com base em 52 dissertações e vinte teses do banco da Capes.

O objetivo foi mapear a produção e estabelecer interface com os movimentos de mudança em saúde e educação no país. Conclui-se que a produção é ainda incipiente, mas as temáticas são múltiplas: experiências disciplinares inovadoras, análises do impacto de novas metodologias de ensino, formação docente, currículo e perfil do egresso. O conjunto demonstra a vitalidade do campo e seu potencial na geração de sínteses em face da complexidade e amplitude da tarefa de pensar a educação de profissionais de saúde no Brasil.

Palavras-chave: formação em odontologia; educação em odontologia; educação superior; Brasil.

ABSTRACT

The article presents the findings of a study on the production of knowledge in dental education during 1995-2006. A corpus of 52 theses and twenty dissertations from Capes' databank were researched. The purpose was to survey production and relate it to Brazilian trends in health and education. It is concluded that while production is still incipient, a variety of themes appear: innovative disciplinary experiences, analyses of the impact of new teaching methodologies, teacher training, syllabuses, and profiles of graduates. Overall, these papers reflect the vitality of the field and its potential for arriving at syntheses, taking into account the complexity and scope of the task of reflecting on the education of healthcare professionals in Brazil.

Keywords: dental education; higher education; Brazil.

Atualmente, a reflexão sobre a educação superior, especialmente quanto à formação de profissionais em saúde, tem ocupado lugar importante na agenda estatal. A criação de mecanismos regulatórios e avaliativos das instituições de ensino superior (IES) e a definição de diretrizes curriculares para os cursos da saúde, somadas às múltiplas iniciativas1 1 O Ministério da Saúde criou o Estágio e vivência no SUS (VER-SUS), o Aprender SUS, o Promed, o Pró-Saúde e o PET-Saúde - todos projetos estratégicos para a mudança da formação dos profissionais de saúde. de indução de mudança propostas pelo Ministério da Saúde, algumas em parceria com o Ministério da Educação, têm significado a introdução de novas questões e desafios para os centros formadores no Brasil. Considerando, de acordo com Masseto (1998), que a produção e a socialização do conhecimento e a formação dos profissionais constituem os principais núcleos de definição e existência da universidade, pode-se dimensionar o quanto as propostas de reforma do ensino de graduação estão imbricadas e tensionadas pelo cenário em permanente mudança e pela diversidade de interesses que gravitam em torno da universidade.

Historicamente, a formação superior em odontologia no Brasil esteve alinhada com os interesses de mercado, o que modulou tanto a organização curricular como a definição do perfil dos docentes, consolidando um modelo autossuficiente, baseado na transmissão de conteúdos e práticas. Essa perspectiva de lugar único - da supremacia do saber e do ensinar para o mundo do trabalho - retardou a incorporação da pesquisa e da produção de conhecimento como parte do processo educativo, ficando a maior parte dessa rede de ensino circunscrita à reprodução interna de conhecimentos, sem interlocução com as necessidades e as potenciais parcerias de seu entorno.

A ideia da centralidade da universidade na formação de profissionais, sejam técnicos, especialistas ou pesquisadores, é uma das questões que o avanço tecnológico das últimas décadas tem relativizado impiedosamente: o profissional deixa de ser monolítico e monotemático, para interagir com outras áreas do saber, contextualizar e processar dados e informações de fontes diversas e estabelecer redes colaborativas na análise de problemas. Essa nova tarefa e esse desafio estão a exigir da universidade uma revisão de seu modus operandi, incluindo desde o currículo até o exercício da docência.

A educação em saúde, especialmente a educação médica, vem sendo alvo de processos de mudança desde o final dos anos 1970, mas foi só a partir do início da década de 1990 que ganhou densidade e espaço - em parte resultado das mudanças tecnológicas, como também do afinamento de políticas públicas dos Ministérios da Educação e da Saúde no reordenamento da formação. No caso da odontologia, classicamente associada à prática liberal de venda de procedimentos reparadores, a inclusão de novas perspectivas tecnoassistenciais e da adoção de metodologias ativas de ensino, centradas no desenvolvimento da autonomia e da capacidade crítica, constitui uma verdadeira arena de disputa, em que os interesses da odontologia de mercado digladiam-se com aqueles da saúde bucal coletiva.

O presente trabalho tem como objetivo mapear e caracterizar a produção de conhecimento na área da educação em odontologia, localizada nos cursos de mestrado e doutorado no Brasil, no período de 1995 a 2006, com o intuito de analisar e estabelecer interface com os movimentos de mudança em curso na área da saúde.

Materiais e métodos

A busca dos dados foi realizada exclusivamente no banco de resumos de dissertações e teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes)2 2 Acesso pelo site: http://www.capes.br. , incluindo os anos de 1995 até 2006, último ano disponível na base. Essa escolha, ainda que só seja representativa de parte dos estudos e das publicações sobre o assunto em questão, tem importância pelo caráter institucional da produção - que mostra a existência ou ausência de linhas de pesquisa sobre educação em odontologia nos cursos de pós-graduação stricto-sensu e aponta tendências a respeito da formação dos futuros docentes dos cursos de odontologia.

A primeira fase consistiu na exploração mais abrangente do volume total de trabalhos produzidos na área, utilizando-se a palavra 'odontologia'no campo de busca por assunto. Nessa fase, a informação coletada foi o número total de dissertações e teses indexadas segundo o ano que, posteriormente, serviu para analisar a tendência temporal do volume geral da produção e comparar com o recorte em questão.

Na segunda fase, as palavras ou expressões usadas para a busca por assunto foram: 'formação e odontologia', 'educação superior e odontologia' e 'ensino e odontologia'. A opção 'todas as palavras' foi selecionada. A busca foi feita ano a ano, separando-se as dissertações das teses, e todos os resumos foram acessados e copiados para um arquivo de texto. Após breve análise deles, mantivemos apenas os que tratavam do processo de formação do cirurgião-dentista, mais especificamente aqueles que se situavam nas áreas de investigação sobre currículo, formação docente, avaliação de experiências de ensino-aprendizagem, metodologias de ensino e perfil de egressos.

O processamento inicial dos dados incluiu uma consolidação do volume total de trabalhos, de acordo com as seguintes informações: ano de publicação, tipo de publicação (tese ou dissertação), localização da instituição por região e o tipo de IES (pública ou privada). Em seguida, realizou-se a leitura de todos os resumos, para identificação dos sujeitos ou objetos de análise e da temática dos trabalhos.

Para a organização das categorias temáticas, foram analisados os objetivos contidos nos resumos, gerando uma lista preliminar dos temas explicitados, cuja leitura posterior orientou a agregação dos trabalhos por afinidade temática, e, por último, definiram-se as categorias mais abrangentes. A definição dessas categorias teve como base o universo de assuntos estudados, bem como sua capacidade de representar o maior número de trabalhos, devendo, portanto, ser tomada apenas como uma das possibilidades de análise.

Por último, classificou-se cada trabalho segundo sua metodologia (qualitativa, quantitativa, mista e não explicitada). Para essa etapa, tomou-se como referência a descrição literal contida no resumo ou referências a técnicas e autores reconhecidamente inscritos em um tipo de abordagem; nos casos em que essa informação não estava clara, foi usada a classificação 'não explicitada'.

Resultados e discussão

Do número de trabalhos

O volume da produção de dissertações e teses está representado na Tabela 1, mostrando um crescimento exponencial de trabalhos nos últimos anos para a área de odontologia. Observou-se, especialmente no período entre 2001 e 2006, crescimento de 167% na produção de dissertações e de 133% na produção de teses na área de odontologia, quando comparado com os seis anos anteriores. Tal crescimento é reflexo direto da ampliação dos postos de trabalho em docência superior, associada ao aumento do número de IES privadas a partir da metade da década de 1980 e da indução da qualificação promovida pelo Estado, no sentido de avaliar a educação superior, cobrando das IES o aumento do índice de titulação do corpo docente. Essa medida provocou tanto a abertura quanto o aumento da procura por programas de mestrado e doutorado.

Considerando o recorte 'educação em odontologia', pode-se perceber crescimento proporcional ao crescimento da área, mas ainda com número de trabalhos que não ultrapassa 3% e 4% do total de dissertações e teses em odontologia, respectivamente.

Percebe-se, na Tabela 1, que a produção de dissertações no campo da educação em odontologia ganha fôlego a partir de 2002, possivelmente sintonizada com o movimento induzido pelas discussões das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), aprovadas em 2002, e das estratégias promovidas pelo setor saúde na intenção de construir um novo perfil profissional. Esse aumento do número de trabalhos pode sugerir que está a constituir-se no Brasil - tardiamente em relação a cursos como a medicina e a enfermagem - uma linha investigativa mais estável nesse campo.

O volume de teses, ainda que tenha alcançado importante crescimento em 2006, tem maior irregularidade. Ao longo de 12 anos, em seis deles não há produção sobre o tema analisado. Tal oscilação, que é mostrada no Gráfico 1, sugere a inexistência ou fragilidade de centros e linhas de pesquisa consolidados nessa área, um pouco diferente da realidade dos mestrados.


Olhando retrospectivamente, esses dados representam, de fato, o distanciamento que a odontologia estabeleceu entre as questões da docência e da formação de profissionais na especialidade. Não há dúvida de que a adoção e a valoração de um conjunto de conhecimento em detrimento de outros têm determinações históricas e são, em última análise, socialmente definidas. Nesse caso, pode-se pensar na insuficiência de estratégias destinadas a colocar em pauta o papel dos cursos de graduação em odontologia, a hegemonia confortável da odontologia de mercado e as tímidas inserções em projetos que financiaram processos de mudanças na década de 1990. O Programa UNI - Uma Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde: União com a Comunidade3 3 Programa financiado pela Fundação W.K. Kellogg, com o objetivo de desencadear mudanças simultâneas nas universidades, serviços e comunidades. Abrangeu várias escolas da América Latina, incluindo cursos no Brasil. O programa iniciou em 1992, e só em 1998 foi realizado o primeiro Seminário UNI Odontologia (Apresentação, 2000). - é exemplo que incluiu alguns cursos, mas, particularmente nesse caso, com falhas no acompanhamento das experiências.

Da localização dos trabalhos

De acordo com a Tabela 2, a produção no tema de interesse está fortemente concentrada na região sudeste, o que é em parte explicado pela maior concentração de IES com oferta de cursos de pós-graduação stricto-sensu. O volume de dissertações está homogeneamente distribuído entre as IES públicas e privadas, diferentemente das teses de doutorado, em que as IES públicas respondem por 100% da produção.

No processo de análise dos dados, destaca-se o grande número de programas inscritos como da área de educação, em que estão vinculados quase um terço (n=6) das teses de doutoramento e exatamente a metade das dissertações (n=26) apresentadas no período. Nesse caso, os cursos de mestrados em educação são predominantemente de natureza privada, e os programas com maior contribuição percentual na área estão ligados à Pontifícia Universidade Católica.

O fato de parte da produção em análise estar localizada em programas específicos da área de educação e ser, na sua maioria, desenvolvida por cirurgiões-dentistas significa, na prática, uma aproximação desses futuros formadores com outro universo de conhecimento e, principalmente, com outros profissionais que possuem saberes de origem diversa. Esse convívio interdisciplinar e a perspectiva de itinerário comum pode ser um diferencial na formação dos pós-graduandos. Entretanto, esse dado mostra também uma fragilidade das pós-graduações da área de odontologia, que, embora contem com número expressivo de programas, não contemplam essa linha de investigação na maioria das escolas. De acordo com a "Relação de cursos recomendados e reconhecidos", disponível no site da Capes4 4 Disponível em: http://conteudoweb.capes.gov.br/conteudoweb/ProjetoRelacaoCursosServlet?acao=pesquisarIes&codigoArea=40200000&descricaoArea=CI%CANCIAS+DA+SA%DADE+&descricaoAreaConhecimento=ODONTOLOGIA&descricaoAreaAvaliacao= ODONTOLOGIA. Acesso em: 14 abr. 2008. , atualmente a área de odontologia tem noventa programas de pós-graduação que reúnem 137 cursos, sendo 72 em nível de mestrado, 48 de doutorado e 17 de mestrado profissional.

Analisando as linhas de pesquisa de cada programa (n=90) para 2006, último ano disponível nos "Cadernos de indicadores" da Capes, encontram-se: oito programas "sem dados para esta consulta" - motivo relacionado ao aguardo de homologação (2) ou homologações recentes (6) - e 82 com informações completas. Destes, somente quatro têm linhas de pesquisa relativas à educação em odontologia (Odontologia - UFMG; Ciências Odontológicas - USP; Odontologia - ULBRA; Odontologia Preventiva e Social - UNESP/Araçatuba) e dois apresentam produções avulsas classificadas em "projetos isolados" (Odontologia - UFU; Odontologia (endodontia) - UNAERP).

Dos sujeitos e da temática

Considerando que o universo de sujeitos é representado majoritariamente por aqueles que interagem diretamente no processo educativo-acadêmico - o gestor, o professor, o aluno e o usuário da assistência acadêmica -, buscou-se analisar quais têm sido os principais alvos de investigação. A importância desse mapeamento está em identificar os sujeitos que têm sido considerados nos processos de leitura da realidade da educação em odontologia no Brasil e pensar na abrangência da interlocução que os trabalhos investigativos têm estabelecido com os múltiplos sujeitos (Tabela 3).

No conjunto das dissertações predominam pesquisas com categoria única de sujeito (49%). Nesse grupo estão incluídas as pesquisas só com discentes, docentes ou egressos. As investigações com múltiplos sujeitos representam 1/3 do total de investigações, prevalecendo a combinação de docentes e discentes - associando, em alguns casos, usuários da clínica odontológica, contratantes de egressos e egressos inseridos na rede pública de saúde.

Nas teses de doutoramento, metade dos trabalhos (50%) tem sujeito único, dividindo o universo de investigação com os estudos documentais (30%) e pesquisas com inclusão de mais de um sujeito (15%).

As categorias temáticas definidas pelo potencial de agregação dos trabalhos estão expostas na Tabela 4. Para as dissertações, o maior número de trabalhos está relacionado à categoria "currículo" e à implementação das diretrizes curriculares, seguido de estudos sobre experiências, metodologias e projetos inovadores. Nas teses, as linhas mais desenvolvidas são as mesmas, mas em posição inversa quanto à frequência.

Quanto à natureza da análise dos dados (Tabela 5) a maioria dos pesquisadores opta por abordagem qualitativa - consoante com o tipo de dados coletados e a intenção de compreender o objeto na riqueza de seus signos e significados. O grande número de trabalhos classificados na categoria "não explicitado" aponta a insuficiência de conteúdo do resumo apresentado, o que pode não representar a realidade do trabalho completo.

Algumas reflexões

O setor de saúde, no Brasil, passou por significativo processo de reforma de Estado e vem exigindo permanentemente ações que consolidem o Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com o ideário da reforma sanitária. O SUS assumiu papel ativo na reorientação das estratégias e modos de cuidar, tratar e acompanhar a saúde individual e coletiva, expondo premente necessidade de reformar os profissionais em saúde (Ceccim, Feuerwerker, 2004). Assim, a demanda no cenário nacional de reforma do sistema de saúde brasileiro, intensificada após a Conferência de Alma Ata (1978), ganhou espaço nas instituições de ensino, e muitos profissionais ligados à academia se envolveram com processos de mudança no setor. Mas o papel indutor da mudança precisava ser assumido, tanto no campo das práticas de saúde como no campo da formação profissional.

Na realidade, a discussão sobre a formação em saúde no Brasil não é recente, visto que há pelo menos sessenta anos verificam-se reflexões sobre o tema, inauguradas pela medicina - tanto pela dimensão da sua intervenção nos corpos como pelo tempo de existência como escola e profissão. Trabalhos de Feuerwerker, Almeida, Llanos (1999), Lampert (2002), Feuerwerker e Sena (2002), Feuerwerker (2002), Paiva (2004) Paiva, Pires-Alves, Hochman (2008), Pires-Alves (2008), entre outros, relatam essa trajetória, mapeando preocupações e estratégias, em conjunto ou não com outros países latino-americanos.

Sobre o ensino da odontologia, aqui tratado sem distinção com a expressão educação em odontologia e assumido como o processo de produção de cirurgiões-dentistas5 5 Definição semelhante à adotada por García (1972), referindo-se à educação médica. , pode-se afirmar que o conjunto de reflexões iniciais sobre o tema não se deu deslocado das outras áreas da saúde nem do cenário latino-americano, tendo a Organização Pan-americana da Saúde (Opas), apoiada pela Fundação Kellogg, como a principal catalisadora.

De fato, muitas iniciativas propiciaram o desenvolvimento do pensamento crítico e estimularam o fortalecimento do movimento por mudanças no processo de formação. Projetos como o Integração Docência Assistência (IDA), na década de 1970, e Uma Nova Iniciativa na Educação dos Profissionais de Saúde: União com a Comunidade (UNI), dos anos 1990, são exemplos importantes de antecedentes que sensibilizaram alguns cursos da área da saúde - sobretudo a medicina e a enfermagem, e residualmente a odontologia - pautando a comunidade e o serviço de saúde como partícipes essenciais nessa reformulação (Feuerwerker, Almeida, Llanos, 1999; Feuerwerker, Sena, 2002).

No entanto, esse movimento não significou a imediata constituição ou o fortalecimento de um campo de investigação e produção de conhecimento sobre o ensino em saúde. Levcovitz et al. (2003) apontam lacunas na temática de formação, especificamente na "análise das dificuldades na formação de recursos humanos adequados à construção de uma reforma para a saúde ... [e nas] relações de poder instituídas e a relação com as práticas em saúde, formação profissional e perfis das organizações" (p.63; grifos nossos).

Na odontologia, foi a partir da década de 1980 que as reflexões sobre os limites do modelo de atenção e as propostas de revisão ganharam força e espaço no cenário da produção de conhecimento setorial (Zanetti, 1993). Deve-se considerar que fatores como a crise do mercado liberal e a inclusão de profissionais de saúde bucal na equipe de saúde da família (Brasil, 2000), com consequente abertura de novos postos de trabalho, contribuíram para o avanço na discussão de questões ligadas ao ensino odontológico. Esse acúmulo foi fundamental para o reaquecimento das abordagens em torno do perfil do egresso e da responsabilidade das instituições com a realidade sociossanitária do país.

A necessidade de incorporar os princípios do sistema público de saúde nos projetos pedagógicos dos cursos de saúde demandou orientações tanto do setor saúde como da educação, e a aproximação entre os respectivos ministérios foi fundamental para a construção de uma política articulada de educação na saúde (Neto Fernandes, 2006). Essa interlocução convergiu para a implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais - DCN (Brasil 2002a), como estratégia para as mudanças na graduação, buscando orientar a formação às necessidades de saúde da população.

Com o objetivo de contribuir para a capilarização das diretrizes curriculares e fomentar a mudança nos cursos de odontologia, a Associação Brasileira de Ensino de Odontologia (Abeno), por meio de uma parceria entre Ministério da Saúde e Opas, percorreu a partir de 2005 os diversos cursos e realizou sessenta oficinas, que contaram com 2.200 participantes, provocando uma reflexão no meio acadêmico sobre os limites do perfil do egresso e oficializando o discurso da necessidade de mudança junto às instituições de ensino superior (Zilbovicius, 2007).

Outras iniciativas institucionais mais abrangentes têm colaborado no aquecimento das discussões. São exemplos a criação dos Polos de Saúde da Família, que foram os embriões dos Polos de Educação Permanente; o Programa de Incentivo a Mudanças Curriculares nos Cursos de Medicina - Promed (Brasil, 2002b), que resultou posteriormente no Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde - Pró-Saúde (Brasil, 2005); e a criação do Exame Nacional de Cursos, seguido do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Brasil, 2004).

Diante desse quadro, o estudo permitiu observar múltiplas temáticas na produção de conhecimento, na área de educação em odontologia, demonstrando a vitalidade do campo e seu potencial na geração de sínteses, diante da complexidade e amplitude da tarefa que é pensar a formação de profissionais de saúde no Brasil.

Outro aspecto interessante relaciona-se com o fato de as pesquisas incluírem os vários sujeitos envolvidos com o processo de formação: docentes, discentes, coordenadores de curso, usuários e egressos. Destaque-se a atenção dada aos discentes, o que reforça a compreensão de que o aluno - e futuro profissional - ocupa lugar central, e sua interlocução é essencial na reflexão do processo de ensino.

Nesse contexto, a incipiência e, ao mesmo tempo, o crescimento da produção de conhecimento na área da educação em odontologia podem ser entendidos tanto como resultado do movimento que se estabeleceu no âmbito da educação e da saúde - de forma mais organizada e intensa na década de 2000 - como também uma resposta do campo científico para alimentar essa discussão socialmente necessária, que é a da formação dos profissionais de saúde perante os desafios da realidade brasileira.

Feuerwerker (2004, p.24), ao analisar problemas e desafios da educação dos profissionais de saúde em face das diretrizes curriculares, afirma que "é indispensável que produção de conhecimento, formação profissional e prestação de serviços sejam tomados como elementos indissociáveis de uma nova prática", condição que exigirá mudanças de concepções e prática, mas também de relações de poder no cotidiano de cada instituição.

Como processos de mudança não são construções histórico-lineares, o que está permanentemente em jogo é a disputa pela legitimação de discursos e práticas, não restando dúvida de que esse momento representa um ponto de tensão, ao menos no que se refere à produção teórica, da concepção de como se ensina e se pratica a odontologia no Brasil - argumento que pode ser corroborado com o aumento do número de publicações nessa área.

Estudo que avaliou a adesão dos cursos de odontologia às DCN, envolvendo 97 projetos pedagógicos depositados no sistema Inep de 2002 a 2006, concluiu que ainda predominam cursos com grades curriculares muito tradicionais: disciplinas isoladas divididas em ciclos básico, pré-clínico e clínico e com nenhuma aproximação com a rede de serviços. Chama a atenção, entretanto, para a divergência entre a manutenção dessa forma de organização prática e a visível mudança discursiva dos Projetos Pedagógicos dos Cursos (PPC), que incorporaram, no período, as orientações de mudança contidas nas Diretrizes Curriculares (Haddad et al., 2006). Essa situação é reflexo tanto da dificuldade de operar mudanças num sistema educacional - que ficou propriamente quase três décadas refém das definições de currículo mínimo, com detalhamentos excessivos de conteúdos e cargas horárias - como da resistência ideológica em aderir a propostas que revisam a racionalidade hegemônica, qual seja, a da doença e da produção de procedimentos e não a da produção do cuidado na acepção mais ampla do conceito de saúde.

A pertinência de uma produção mais encorpada e quantitativa nesse campo investigativo continua a ser necessária, e os programas de pós-graduação em odontologia precisam repensar, se não a abertura de linhas de pesquisa em educação, ao menos o lugar e a dimensão que a discussão sobre ensino tem ocupado nos currículos. Essa não é uma tarefa isolada; ao contrário, precisa ser assumida com status de agenda prioritária.

NOTAS

Recebido para publicação em agosto de 2008.

Aprovado para publicação em abril de 2009.

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  • 1
    O Ministério da Saúde criou o Estágio e vivência no SUS (VER-SUS), o Aprender SUS, o Promed, o Pró-Saúde e o PET-Saúde - todos projetos estratégicos para a mudança da formação dos profissionais de saúde.
  • 2
    Acesso pelo site:
  • 3
    Programa financiado pela Fundação W.K. Kellogg, com o objetivo de desencadear mudanças simultâneas nas universidades, serviços e comunidades. Abrangeu várias escolas da América Latina, incluindo cursos no Brasil. O programa iniciou em 1992, e só em 1998 foi realizado o primeiro Seminário UNI Odontologia (Apresentação, 2000).
  • 4
    Disponível em:
  • 5
    Definição semelhante à adotada por García (1972), referindo-se à educação médica.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Aceito
      Abr 2009
    • Recebido
      Ago 2008
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