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O ensino da odontologia no Brasil: uma leitura com base nas recomendações e nos encontros internacionais da década de 1960

Dental teaching in Brazil: an interpretation based on recommendations and international meetings from the 1960s

Resumos

Identificam-se as propostas para o ensino da odontologia no Brasil contidas nos anais dos três seminários sobre ensino odontológico ocorridos na década de 1960 e promovidos pela Organização Pan-americana da Saúde, e no relatório do Comitê de Expertos em Higiene Dental da Organização Mundial da Saúde. Observa-se que, no Brasil, as recomendações posteriores a essa década sobre mudanças na área revelam a tensão entre distintos atores e concepções, nem sempre compreendidos pelos profissionais da área. Conclui-se que as recomendações para o ensino da odontologia visando a sua inovação foram construídas a partir de então e se apresentam, em sua maioria, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Odontologia.

políticas educacionais; políticas de saúde; ensino odontológico


The study identifies the proposals regarding dental teaching in Brazil put forward in documents dating from the 1960s, to wit, the annals of the three Paho-sponsored seminars on dental teaching and a WHO Expert Committee report on dental hygiene. It can be noted that later recommendations about changes to the field in Brazil reveal tension between different actors and conceptions, not always understood by the area's professionals. It is concluded that recommendations aimed at innovations in dental teaching trace their development to this time and that most can be found in the Diretrizes Curriculares Nacionais [National Syllabus Guidelines] for undergraduate courses in dentistry.

education policy; health policy; dental teaching


ANÁLISE

O ensino da odontologia no Brasil: uma leitura com base nas recomendações e nos encontros internacionais da década de 1960* * Este artigo é parte da tese intitulada O ensino da odontologia no Brasil: concepções e agentes, pesquisa documental e exploratória desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira FE/UFG, linha de pesquisa Estado e Políticas Educacionais.

Dental teaching in Brazil: an interpretation based on recommendations and international meetings from the 1960s

Maria Goretti QueirozI; Luiz Fernandes DouradoII

IProfessora-assistente da Faculdade de Odontologia/Universidade Federal de Goiânia (UFG). Rua 5ª Radial, 131/1003, 74823-030 - Goiânia - GO - Brasil. goretti@odonto.ufg.br

IIProfessor titular da Faculdade de Educação/UFG. Rua Delenda Resende de Melo, s/n, 74605-050 - Goiânia - GO - Brasil. douradol@terra.com.br

RESUMO

Identificam-se as propostas para o ensino da odontologia no Brasil contidas nos anais dos três seminários sobre ensino odontológico ocorridos na década de 1960 e promovidos pela Organização Pan-americana da Saúde, e no relatório do Comitê de Expertos em Higiene Dental da Organização Mundial da Saúde. Observa-se que, no Brasil, as recomendações posteriores a essa década sobre mudanças na área revelam a tensão entre distintos atores e concepções, nem sempre compreendidos pelos profissionais da área. Conclui-se que as recomendações para o ensino da odontologia visando a sua inovação foram construídas a partir de então e se apresentam, em sua maioria, nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Odontologia.

Palavras-chave: políticas educacionais; políticas de saúde; ensino odontológico.

ABSTRACT

The study identifies the proposals regarding dental teaching in Brazil put forward in documents dating from the 1960s, to wit, the annals of the three Paho-sponsored seminars on dental teaching and a WHO Expert Committee report on dental hygiene. It can be noted that later recommendations about changes to the field in Brazil reveal tension between different actors and conceptions, not always understood by the area's professionals. It is concluded that recommendations aimed at innovations in dental teaching trace their development to this time and that most can be found in the Diretrizes Curriculares Nacionais [National Syllabus Guidelines] for undergraduate courses in dentistry.

Keywords: education policy; health policy; dental teaching.

Nos anos finais da década de 1950 foi iniciado um mapeamento das faculdades de odontologia latino-americanas visando subsidiar as discussões em três seminários sobre o ensino odontológico na América Latina, que seriam realizados entre 1962 e 1966 com a organização da Organização Pan-americana da Saúde (Opas), Fundação Kellogg e Associação Latino-americana das Faculdades de Odontologia (Alafo). Para esses eventos foram levantados dados sobre cursos, professores e estudantes, permitindo compor um minucioso cenário das escolas de odontologia, o qual balisou as discussões e legitimou as recomendações nos seminários subsequentes.

Conhecer o campo da saúde integrava as recomendações da Carta de Punta del Este (Opas, 1966), para que as ações pudessem ser planejadas. Por isso se fazia necessário investigar quantos eram e como se formavam os profissionais de saúde. Na América Latina, a Opas, representada pela Oficina Sanitária Pan-americana, por entender que os problemas do ensino odontológico são de ordem pedagógica, buscou parcerias com a Alafo e a Fundação Kellogg. Assim foi anunciada a questão:

O ensino da odontologia na América Latina se ressente ... da falta da influência benéfica dos conhecimentos e técnicas da pedagogia moderna. Por um lado, os pedagogos têm concentrado sua atenção no ensino primário e secundário; por outro, entre os que se dedicam a ensinar odontologia tem prevalecido a convicção de que, para ensinar as disciplinas dessa carreira, basta conhecê-la bem. A chamada experiência docente pode medir-se, em geral, pelo número de anos de ensino ... . Consequência disso é que a maioria dos professores de odontologia, de todas as categorias, tem sido autodidata quanto à ciência e à arte de ensinar (Opas, 1963a, p.V).1 1 Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.

A parceria entre Opas, Fundação Kellogg e Alafo, naquele momento, teve como objetivo a organização de uma série de três seminários envolvendo os países latino-americanos na discussão do ensino odontológico. O primeiro, realizado em Bogotá em outubro de 1962, reuniu professores da Bolívia, Colômbia, Chile, Equador, Peru e Venezuela. Do segundo, no México, em 1964, participaram os países da América Central. O terceiro, em 1966, no Brasil, destinou-se aos países da Costa Oeste da América do Sul. Os documentos resultantes foram selecionados por sua importância histórica quanto à recomendação das inovações desejadas para o ensino da odontologia na América Latina.

O curso de odontologia na perspectiva do Comitê de Expertos em Higiene Dental da Organização Mundial da Saúde

Reunido em Genebra, de 31 de julho a 6 de agosto de 1962, com o objetivo de "examinar os problemas que acometem o ensino da odontologia" (OMS, 1962, p.5), o Comitê de Expertos em Higiene Dental da Organização Mundial da Saúde (OMS) elaborou recomendações, que passarão a ser analisadas.

O ensino odontológico deveria ser integrado a uma estrutura universitária. Seus objetivos deveriam adequar-se à realidade e às necessidades do país. O sistema se deveria organizar de forma a priorizar a formação de profissionais para o ensino e para o exercício da profissão. Superada essa etapa, caberia preocupar-se com a formação do especialista e do pesquisador. O ensino da odontologia deveria revelar, além do conhecimento e da técnica, as atitudes necessárias ao exercício profissional. O documento assim sintetiza as qualidades desejáveis do futuro profissional:

1) Alto nível de instrução geral;

2) Compreensão clara das ciências biológicas;

3) Capacidade para prestar os serviços de odontologia reparadora e de tratamento clínico ...;

4) Correto sentido da moral profissional;

5) Aceitação das responsabilidades que assume o dentista ante a coletividade de que faz parte, e das funções diretivas que dentro dela lhe cabem no setor de sua competência;

6) Atitude e desejo de prestar serviços preventivos de odontologia;

7) Competência para organizar e administrar os serviços profissionais em seu setor, incluído o emprego de pessoal auxiliar;

8) Propósito de seguir completando a própria formação durante toda a vida profissional;

9) Conhecimento suficiente para avaliar os resultados das investigações e para aplicá-los por si mesmo no exercício da profissão;

10) Aceitação das responsabilidades correspondentes da higiene dental da coletividade, particularmente nos países em vias de desenvolvimento e, por conseguinte, atitude para definir os problemas de higiene dental, para educar a população em higiene dental e para assessorar a execução dos programas e avaliar seus resultados (OMS, 1962, p.8-9).

Assim, o cirurgião-dentista deveria ser um profissional apto a trabalhar nos serviços de saúde pública e a planejar e executar ações coletivas de saúde bucal. A formação deveria equilibrar "capacidade" de executar ações de reparação e tratamento clínico com "atitude e desejo" de executar ações preventivas. O profissional deveria ser capaz de planejar os serviços de saúde pública, ou seja, realizar o diagnóstico situacional; determinar prioridades e objetivos; programar atividades; e avaliar resultados.

A formação desse profissional deveria ser conduzida de tal forma, que lhe permitisse adaptar-se à realidade, visando a sua transformação. Em outra parte, o documento afirma:

A escola de odontologia tem de adaptar-se ao meio em que seus alunos vão executar a profissão, mas também capacitá-los a influir nas atitudes da população e da administração pública quanto à higiene dental, de maneira que facilite alcançar o objetivo de estender os benefícios da saúde dental ao mundo inteiro (OMS, 1962, p.14). O Comitê acenava para função específica da educação, a de formar sujeitos aptos a transformar sua realidade. Afirmava, ainda, que havia diferenças na formação do profissional conforme o local em que ele estava sendo preparado para atuar - se no exercício privado da profissão, em empresas públicas ou privadas. Nesse sentido, advogava uma formação equilibrada, que contemplasse os diferentes aspectos da atuação profissional. A formação equilibrada consistiria em uma estratégia para superar um problema reiteradamente relatado ao longo de todo o período estudado: "O dentista graduado nem sempre consegue aplicar, no exercício da profissão, os critérios, os conhecimentos e as técnicas que tem aprendido no curso de seus estudos, por não haver correlação entre as condições da formação acadêmica e as exigências da prática profissional" (OMS, 1962, p.12).

O mercado de trabalho do cirurgião-dentista brasileiro permaneceu quase exclusivamente conformado como liberal até meados dos anos 1980, quando o processo de assalariamento passou a ser tendência observada também nessa profissão. A influência do mercado de trabalho na formação profissional é indiscutível, na premissa de que a educação tem a função de preparar o indivíduo para atuar na sociedade em que vive. Nesse entendimento, os dados sobre o número de cirurgiões-dentistas brasileiros, em 1963, levantados pelos organizadores do Terceiro Seminário Latino-americano Sobre o Ensino da Odontologia (Tercer Seminario..., 1968), podem ser reveladores. A estimativa apresentada no documento é de que haveria, no Brasil, 20.700 cirurgiões-dentistas, com um profissional para cada grupo de 3.691 habitantes. Esse dado alia-se ao fato de ocorrer então no Brasil um fenômeno de urbanização, havendo, portanto, a perspectiva de ampliação do espaço de atuação para o profissional ainda em processo de formação. Além disso, o projeto da profissão era o da formação de profissionais voltados para o exercício liberal da profissão, e não para atuar na saúde pública, como defendia a proposta apresentada. Enquanto prevaleceu, entretanto, uma relação favorável de oferta e procura dos serviços odontológicos, a perspectiva de inserção no mercado de trabalho teve pouca importância para o profissional.

Teixeira (1989) relata que, de 1955 a 1966, a população brasileira cresceu na ordem de 40,9%, enquanto, no mesmo período, o número de matrículas nos cursos de odontologia cresceu na ordem de 41,3%. Iniciava-se, nessa época, uma tendência de incremento de formação de cirurgião-dentista superior ao crescimento da população brasileira. Apesar desses indicadores, grande parcela da população era alijada do acesso aos serviços odontológicos, tendo em vista tanto o fenômeno nacional da crescente concentração de renda, quanto a lógica predominantemente privada desses serviços.

O Comitê de Expertos recomendava orientação nacional para os cursos de odontologia, quanto às normas gerais de funcionamento; a medida deveria ser tomada principalmente nos países onde houvesse grande número de escolas. Sugeria também a criação de associações de escolas de odontologia (OMS, 1962), a exemplo do que aconteceu no Brasil, em 1956, com a fundação da Associação Brasileira de Ensino Odontológico (Abeno) e, posteriormente, na década de 1960, com a criação da Alafo, que passou a congregar as instituições de ensino odontológico da América Latina.

Recomendava, ainda, o Comitê de Expertos que o curso de odontologia tivesse duração mínima de quatro anos e que pelo menos noventa dias do ano letivo fossem dedicados às disciplinas clínicas e pré-clínicas. Propunha currículo integrado, que deveria abranger os conteúdos das matérias e a atuação interdisciplinar dos professores. Requeria que professores de outras áreas do conhecimento ministrassem disciplinas ou conteúdos dentro das escolas de odontologia, embora o controle acadêmico das disciplinas devesse estar a cargo da faculdade de odontologia. E indicava métodos pedagógicos variados, incluindo a adoção dos 'modernos' meios audiovisuais, entre eles a televisão, de modo a evitar as aulas expositivas. O curso, segundo o Comitê, deveria ser concebido de forma a estimular no aluno a prática do estudo independente, o que lhe permitiria estudar ao longo da vida. Para tanto, a proporção ideal recomendada entre professor e aluno era de 1:7, uma vez que as atividades deveriam ser desenvolvidas, preferencialmente, em pequenos grupos (OMS, 1962).

As recomendações do Comitê chegavam a minúcias, em relação às instalações de uma unidade de ensino, apontando, entre outros detalhes, que as escolas de odontologia deveriam estar próximas às escolas de medicina e aos hospitais de clínica. Indicavam também a necessidade de salas de aula em número suficiente, clínica, biblioteca e laboratório. A proporção vaga/equipamento odontológico recomendada era um equipo por vaga, quando os cursos fossem de quatro anos (OMS, 1962).

Propunha currículo com seis grupos de matérias: (1) ciências biológicas (anatomia humana, histologia, embriologia, anatomia comparada, fisiologia, biofísica, bioquímica, microbiologia, genética, e bioestatística); (2) ciências biológicas aplicadas (relacionando as ciências biológicas com a prática clínica); (3) disciplinas humanísticas e ciências sociais (sociologia, psicologia, odontologia social e odontologia em saúde pública); (4) ciências médicas (anatomia patológica, farmacologia, medicina clínica, cirurgia geral, anestesia e radiologia); (5) técnicas clínicas (materiais odontológicos e procedimentos laboratoriais de odontologia reparadora); e (6) matérias clínicas (a compreensão e a perícia clínica) - que deveriam ser distribuídos ao longo dos quatros anos do curso (OMS, 1962). Essa proposta de organização curricular assemelha-se às recomendações para os cursos médicos relatadas por Nunes (2000, p.4), "um ensino que integrasse horizontal e verticalmente as disciplinas já existentes, que enfatizasse a prevenção e introduzisse novas disciplinas de caráter humanístico". As mesmas determinações foram discutidas nos seminários em Viña del Mar, em 1955, e em Tehuacán, em 1956, e a proposta de ensino integrado foi fruto das discussões da Conferência de Colorado Springs, realizada em 1953, ideias que foram divulgadas também nas publicações da Opas.2 2 A Opas agregou os relatórios finais dos seminários de Viña del Mar e de Tehuacán e das duas reuniões do Comitê do Programa de Livros de Textos da Opas/OMS para o ensino de medicina preventiva e social (1968 e 1974) em publicação única (Opas,1976).

O currículo que vigorava no Brasil, desde 1931, para os cursos de odontologia mostrava-se defasado e obsoleto em relação ao proposto pelo Comitê de Expertos, além de ter dimensão apenas técnica de atuação profissional. Guimarães Jr. (1961, p.37) já constatara que "o currículo-padrão mínimo ... ainda não pôde ... ser totalmente realizado, em grande número de faculdades" no Brasil, em 1959, em razão de deficiências na instalação e reduzido número de docentes. A inovação da proposta do Comitê de Expertos situava-se na perspectiva nela implícita de integração dos conteúdos curriculares, que não se restringia ao aspecto técnico da profissão e incluía as dimensões biológica e social na formação profissional - proposta que, para a realidade dos cursos de odontologia relatada por Guimarães Jr., estava muito longe de se concretizar.

De fato, as condições do ensino da odontologia, no Brasil, não permitiam sequer começar a pensar na adoção dessas recomendações, porque havia problemas que exigiam, antes, a solução das condições materiais em que o ensino superior era realizado. Nesse período, a expansão do ensino superior se deu pela criação de novas escolas e não, como se poderia esperar, pela ampliação do número de matrículas, tendo em vista os custos de manutenção dos espaços físicos das instituições, como, por exemplo, os de biblioteca e laboratórios.

Primeiro Seminário Latino-americano Sobre o Ensino da Odontologia

Destinado aos professores de odontologia, o Primeiro Seminário Latino-americano Sobre o Ensino da Odontologia visava à divulgação de experiências e trabalhos na área e, sobretudo, à reformulação do ensino da odontologia com base nas recomendações feitas no Seminário de Vinã del Mar, em 1955. Foi concebido de acordo com a linha de atuação da Opas e da Fundação Kellogg, que privilegiavam a estratégia da divulgação de ideias e das recomendações, como forma de criar a necessidade de mudança.

Seu informe final inicia com a seguinte afirmação:

O número de odontólogos dos países latino-americanos não satisfaz às necessidades atuais da população e continuará sendo cada vez mais insuficiente em relação às necessidades futuras desses países. Agravam essa situação a concentração de odontólogos nos principais centros urbanos, sua escassez nas comunidades pequenas e sua falta quase absoluta nas populações rurais dispersas (Opas, 1963a, p.316).

Na esteira das constatações, o documento do Primeiro Seminário relacionava as deficiências do ensino da odontologia decorrentes da formação oferecida nas faculdades latino-americanas, no período:

1) Tendência ao excessivo tecnicismo e exagero da odontologia restauradora e de alguns aspectos da cirurgia;

2) Limitações na preparação biológica e médica do odontólogo;

3) Limitação ainda maior em relação ao enfoque social de sua atividade profissional, especialmente quanto aos aspectos preventivistas e da saúde pública;

4) Falta de cursos regulares para graduados;

5) Falta de cultura humanística (Opas, 1963a, p.316).

O diagnóstico das deficiências do ensino odontológico, feito pelos participantes do Primeiro Seminário, deve ser entendido no contexto em que foi produzido. Todos os documentos recomendados para subsidiar as discussões defendiam a proposta da medicina preventiva como modelo inovador, 'moderno', de atuação na saúde. As publicações da Opas, bem como as da Fundação Kellogg, cujo objetivo era disseminar essa proposta 'inovadora', contribuíam para conquistar adeptos, principalmente no meio acadêmico. Ademais, a Fundação Kellogg e a Fundação Rockefeller privilegiavam as propostas que tinham sua orientação na concessão de apoio financeiro aos projetos.

O Primeiro Seminário teve grande influência da Carta de Punta del Este. Para haver mudanças na forma de conceber e atuar na saúde, eram imprescindíveis mudanças na formação dos profissionais. Seria necessário criar fóruns que discutissem a saúde na dimensão e implicações que a Carta apontava. Na Reunião dos Ministros da Saúde, em 1963, assim foram assinalados os problemas de saúde mais prevalecentes na América Latina: "São próprios de uma população jovem, em crescimento acelerado, com produção e ingressos inferiores às necessidades. A estrutura da população, sua distribuição por idade, as condições ambientais e de saúde se refletem na menor capacidade para o trabalho, no absenteísmo e na produtividade" (Opas, 1963b, p.17-18).

A preocupação com a saúde extrapolava, sim, a dimensão biológica e colocava a saúde no patamar de estratégia político-econômica para preservar a força de trabalho da "população jovem e que crescia aceleradamente". Como mecanismos para proteger, fomentar e recuperar a saúde da comunidade, propunham-se quatro instrumentos: "planificação, organização e administração dos serviços, formação e capacitação de técnicos e da investigação científica" (Opas, 1963b, p.18). Essas seriam, então, as áreas nas quais, de forma sincrônica, os organismos multilaterias e os nacionais deveriam investir para consolidar os princípios da Carta de Punta del Este na área da saúde pública.

A estratégia adotada nas conferências ampliadas e nas recomendações de comitês de especialistas, entre outros, tinha o propósito explícito de fazer com que as mesmas viessem a "servir de antecedentes e ser levadas em conta pelos governos dos Estados-membros, na preparação de seus programas nacionais de desenvolvimento" (Opas, 1963b, p.1).

O modelo de ensino norte-americano começava a se consolidar como hegemônico, na América Latina. As primeiras experiências de propostas de ensino com ênfase no modelo da medicina preventiva, flexível e com integração curricular, foram realizadas justamente nos Estados Unidos e são citadas em textos dos anais do Primeiro Seminário (Opas, 1963a).

Nos Estados Unidos também se inaugurava uma configuração distinta do mercado de trabalho das profissões de saúde. O Estado alegava a impossibilidade de financiamento de uma prática centrada na atenção médica e na cura da doença, bem como no paciente. Surgiram, como intermediários da relação, os seguros de saúde, que também combatiam essa prática, por ser onerosa (Freidson, 1978). Na verdade, não havia, naquele país, apoio explícito ao modelo da medicina preventiva desse novo agente (as seguradoras de saúde), mas sim uma tentativa de frear os custos da atenção médica.

Em suas análises, Narvai (1994) afirma que durante os anos 1950 a questão que se colocava a respeito do ensino da odontologia era a criação ou não de disciplinas específicas de odontologia preventiva, em resposta às recomendações do Seminário de Viña del Mar. Ainda segundo o autor, "nos Estados Unidos a resposta foi sim e, a partir daí, essa orientação ganhou o mundo e também, claro, a América Latina ... . Chegou ao Brasil, no início dos anos 1960, seduzindo inicialmente apenas restritos setores universitários e sendo objeto de grande desinteresse pelos clínicos, tanto do setor público quanto, principalmente, do setor privado" (p.39-40). O autor prossegue argumentando que esse "ranço em relação à odontologia preventiva" só foi superado na década de 1980, com o desenvolvimento da cariologia nos países escandinavos e o êxito lá alcançado no controle da cárie. No Brasil, sob influência dos estudos e das experiências escandinavas, bem como dos profissionais brasileiros que se especializaram naqueles países, fundou-se, em São Paulo, em maio de 1981, a Associação Brasileira de Odontologia Preventiva (Aboprev), que teve papel decisivo na consolidação das propostas da odontologia preventiva formuladas no início dos anos 1960 (Narvai, 1994). A apropriação que se deu a esse conhecimento, entretanto, resultou no que Cordon e Garrafa (1991, p.12) chamaram de preventivismo:

Foi lançado, no mercado, um arsenal de novidades preventivas de uso individual como verdadeira solução mágica, criando-se um discurso preventivista dependente do que vem do exterior, apoiado e divulgado pelo mercado odontológico (especialmente em congressos, reuniões e outros) e pelas principais revistas odontológicas nacionais. Nasceram, assim, o mercado e o lucro a partir da prevenção: e a isso chama-se preventivismo.

O conceito de prevenção e a prática resultante desse preventivismo não são consensuais no setor. A maioria da categoria odontológica assimilou com mais facilidade as práticas do preventivismo da odontologia tradicional. Essa identificação se deveu ao fato de que "a racionalidade preventivista (como teoria generalista) defende a tese de que não existe crise social, mas sim inadequada distribuição de recursos, falta de educação e má vontade política; tenta modificar toda uma situação caótica sem transformá-la, negando dessa forma o problema fundamental" (Cordon, Garrafa, 1991, p.14-15). A prevenção assim concebida resultou em prática onerosa, excludente, individualista e dependente de uma tecnologia inacessível à maioria da população e dos profissionais da área. No entanto, um grupo minoritário dessa categoria continuou a defendê-la como prática engajada ideologicamente, com uma

visão mais integral e politicamente comprometida da prática odontológica e por conseguinte da própria prevenção, que tomava como ponto de partida as reais necessidades da sociedade e, através de ações multidisciplinares e economicamente determinadas, desenvolviam métodos coletivos de evitar o aparecimento dos problemas o mais precocemente possível, tomando em consideração as características sociais, econômicas, biológicas, culturais e psicológicas da sociedade como um todo concreto (Cordon, Garrafa, 1991, p.11-12).

Mas tanto essa possibilidade de prática da odontologia como a prevenção não eram reconhecidas pela maioria da categoria profissional.

O que se pretende problematizar é que o diagnóstico formulado pelos participantes do Primeiro Seminário não era compartilhado pelos demais agentes do campo. Da mesma forma que não o foram as alternativas de atuação construídas pela categoria profissional a partir de conceitos aparentemente consensuais. Residia aí a dificuldade de implantação das propostas de 'inovação' do ensino da odontologia no Brasil. Delas fora excluído o componente político, aparecendo apenas o pedagógico, e, no entanto, o que se colocava era uma disputa entre modelos de atenção na odontologia. Claro, o modelo de atenção defendido pela Fundação Kellogg não tinha a pretensão do modelo apontado no texto de Cordon e Garrafa (1991).

Em relação ao plano de estudo, o Primeiro Seminário recomendava a uniformização da duração mínima dos cursos de odontologia, bem como a de conteúdos e denominações das disciplinas. Propunha que o aluno entrasse em contato, o mais cedo possível, com a 'realidade' da prática odontológica, recomendação traduzida no contato precoce com o paciente, acentuando o aspecto prático da formação (Opas, 1963a).

Uma preocupação que perpassa todo o documento é a relação entre as matérias básicas e as clínicas. Apresentava-se como solução um docente que, dominando o conteúdo desses grupos de matérias, seria o responsável por fazer a 'ponte' entre elas, visando à integração dos conteúdos. Uma das deficiências apontadas, que resultava na dificuldade de relacionar os conteúdos básicos com os clínicos, era o relevo dado ao tratamento, em detrimento do diagnóstico, nos cursos de odontologia. Para se realizar o diagnóstico em odontologia, assim como, aliás, em toda a área da saúde, é imprescindível o domínio do conhecimento ministrado nas matérias básicas. O documento registra que o "objetivo básico da educação é ensinar ao estudante a pensar e a raciocinar de forma lógica e equilibrada" (Opas, 1963a, p.320). Ao privilegiar o tratamento das doenças como fulcro dos cursos de odontologia, criou-se um ensino baseado na ênfase do fazer em detrimento do pensar.

O Primeiro Seminário recomendava a criação de uma "clínica integrada", em que o aluno pudesse executar um tratamento completo no paciente, ou seja, do planejamento à execução integral de tratamento, que seria apresentado, primeiramente, a uma junta de professores de diferentes especialidades, para apreciação. A recomendação procurava superar a crítica da fragmentação na formação do profissional (Opas, 1963a). Considerava matérias fundamentais para a formação de um dentista geral a operatória dental, a periodontia (que deveria ser ministrada majoritariamente por um clínico), o diagnóstico oral e o plano de tratamento e odontologia preventiva. Sobre a última, propugnava: "É necessário incluí-la no plano de estudo como matéria à parte. Infiltrar-se-á e coordenar-se-á, entretanto, aos programas das diferentes matérias odontológicas. Para isso deverá criar nos professores uma verdadeira consciência preventiva" (p.323). Sugeria intensificar o ensino de saúde pública, bioestatística, psicologia aplicada à odontologia, odontologia preventiva, odontologia legal e legislação odontológica. Com a inclusão dessas disciplinas se pretendia ampliar a possibilidade de atuação do profissional, tornando-o mais susceptível a atuar na comunidade, criando nele a chamada consciência preventivista. O que a história nos mostra é que esse objetivo não foi alcançado, com a introdução de algumas dessas matérias no currículo dos cursos de odontologia no Brasil.

Em uma visão geral, as recomendações do Primeiro Seminário não avançaram muito em relação ao documento do Comitê de Expertos, mais rico no detalhamento dos cursos de odontologia no que se refere a carga horária, sequência de disciplinas, relação professor/aluno, entre outros aspectos. No documento do Comitê, o curso de odontologia estava materializado em suas recomendações, nos objetivos estabelecidos, na metodologia sugerida; o Primeiro Seminário apontava para o aprofundamento dessas questões, nos eventos que se seguiriam.

A recomendação geral, bem como todas as outras formuladas pelos organismos internacionais pertinentes à área da saúde pública, esbarrou em uma situação específica da realidade brasileira: a estrutura administrativa do Estado. Em 1930 foram criados dois ministérios com atuação na área da saúde e atribuições bem distintas: o Ministério dos Negócios de Educação e Saúde Pública e o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio. Ao primeiro couberam as ações mais pertinentes à saúde pública e, supõe-se, em virtude da proximidade administrativa, à formação dos recursos humanos na área. Ao segundo coube, entre outras, a missão de orientar e supervisionar a Previdência Social, criada pela junção dos Institutos de Aposentadoria e Pensão (IAPs), que prestavam assistência médica a seus segurados, atribuição que a nova instituição continuou exercendo. Na prática, havia um ministério que discutia e assinava as recomendações internacionais sobre a formação de recursos humanos na área da saúde, e outro que empregava os profissionais conforme política e racionalidade muito distintas do que vinha sendo discutido como tendências no campo. Essa dualidade administrativa prevaleceu até 1988, quando as ações de saúde (promoção, prevenção, recuperação, reabilitação e ordenação de recursos humanos) passaram para o âmbito exclusivo do Ministério da Saúde.

Em 1966, os IAPs foram substituídos pelo Instituto Nacional da Previdência Social (INPS), resultando na uniformização dos benefícios, que eram bastante diferenciados, entre os institutos, de acordo com a categoria profissional à qual estavam ligados. A criação do INPS constituiu marco na consolidação do modelo médico-assistencial privatista, que privilegiou "uma prática médica curativa, individual, assistencialista e especializada, em detrimento da saúde pública" (Mendes, 1995, p.22). O modelo médico-assistencial privatista foi o que, na realidade, legitimou o sistema formador de recursos humanos em saúde. Suas características são as mesmas atribuídas ao sistema formador: curativo, individual, assistencialista, especializado e orientado em termos de lucratividade. Paradoxalmente, as propostas até então assumidas as combatiam.

Segundo Seminário Latino-americano Sobre o Ensino da Odontologia

Foram convidados pela Oficina Sanitária Pan-Americana a participar do Segundo Seminário Latino-americano Sobre o Ensino da Odontologia, ocorrido no México, de 18 a 24 de outubro de 1964, professores de escolas ou faculdades de odontologia de universidades de Costa Rica, Cuba, El Salvador, Guatemala, Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Porto Rico e República Dominicana. Participaram como observadores professores de Argentina, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Estados Unidos, Guatemala, Honduras, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela, todos indicados pela Alafo. Estiveram presentes, também, delegados da Federação Dentária Internacional (FDI), Associação Americana de Escolas de Odontologia e da Alafo. Ao todo, professores de trinta países tomaram parte do evento (Opas, 1965), o que, em comparação com os vinte professores participantes do Primeiro Seminário (Opas, 1963a), mostra o incremento no número de países, bem como no de suas delegações.

Os temas discutidos durante o Segundo Seminário foram: (1) educação universitária pré-profissional; (2) condições físicas de uma escola ou faculdade de odontologia; (3) organização da faculdade ou escola de odontologia; (4) correlação entre as ciências básicas e as clínicas; e (5) aspectos preventivos e sociais da odontologia (Opas, 1965).

No relatório final do evento encontra-se a definição de educação universitária pré-profissional, formulada pela Oficina Sanitária Pan-Americana e que orientara as discussões: "a preparação correspondente a um período compreendido entre o ensino secundário e o começo da carreira propriamente dita" (Opas, 1965, p.301). Voltando ao Primeiro Seminário, entre as recomendações sobre a seleção de estudantes para os cursos de odontologia, encontra-se o seguinte:

Os atuais planos de estudos do ensino secundário padecem de sérias deficiências, e, como consequência, as comissões consideram conveniente um ano de estudos pré-dentais para melhorar a preparação e seleção de estudantes, desde que não se aumentem os anos de estudos. O possível meio de seleção de estudantes deve ser estabelecido faculdade a faculdade.

Há risco de que o aumento dos anos de estudos possa reduzir o número de candidatos ao ingresso nas faculdades de odontologia, e, por essa razão, acredita-se que a introdução de um ano de estudos pré-dentais é conveniente sempre e quando não se produza um aumento na duração dos estudos (Opas, 1963a, p.327-328).

Os participantes do Primeiro Seminário demonstram muita cautela nessa recomendação, fato que a princípio não a qualificaria a constituir tema para o seminário seguinte. No Apêndice, com os dados da avaliação do evento pelos participantes, há um item sobre sugestões de tema para o próximo seminário, a ser escolhido entre dez listados, incluindo o ensino pré-odontológico, que ficou entre os cinco escolhidos (Opas, 1963a). Os seminários eram destinados a determinados grupos de países, mas tiveram sequência de assuntos que foram sendo desencadeados pelos participantes, o que pressupunha a necessidade de acompanhamento dos três eventos. A eleição de grupos de professores de determinados países tinha conotação apenas estratégica.

Embora não houvesse nenhum país com experiência nos estudos pré-odontológicos, os participantes acharam que eles deveriam ser realizados, seguindo, como já dito, recomendação do Comitê de Expertos (OMS, 1962). Não houve consenso quanto a tempo de sua duração, as matérias que os deveriam compor, se a responsabilidade de ministrá-los seria do curso ou da universidade. Enfim, foram levantados muito mais problemas decorrentes dessa proposta do que estratégias para viabilizá-la.

As instituições de ensino odontológico foram pensadas dentro de uma universidade - os participantes do seminário não conceberam a existência de escolas de odontologia isoladas, como acontecia na realidade brasileira. Segundo levantamento realizado por Galvão Neto (1989-1990), até o final da década de 1960 havia, no Brasil, 44 instituições de ensino odontológico; delas, 31 (70,4%) faziam parte de alguma instituição universitária federal, estadual, municipal ou privada, e as restantes (29,5%) eram instituições isoladas. Quanto à organização de uma faculdade de odontologia, o Segundo Seminário recomendava que ela fosse dividida em departamentos, por entender que: "esse método agrupa em forma correlacionada o material de ensino e o controle administrativo" (Opas, 1965, p.305). Foi uma medida racionalizadora dos recursos, tão em voga na teoria de planejamento normativo que vigorava na época. Prossegue o documento:

Fundando-se no princípio de coordenação e integração do ensino, se facilita a coordenação da investigação, e das observações e levantamentos necessários ao ensino, a correlação entre ciências básicas e clínicas, os projetos de intercâmbio no plano de estudos e nos métodos de ensino.

Deve haver meios adequados de coordenação e controle de atividades, por exemplo, um conselho técnico ou comitê central constituído pelos chefes de departamento, uma comissão de investigação, uma comissão de ensino etc. (p.305).

Dois dos pontos mais controversos durante os trabalhos do grupo foram a carga horária contratual do docente e a necessidade de exclusividade à docência. As discussões revelaram uma prática docente, na odontologia, de conciliação da docência com atividades que proporcionam "outras fontes de ingresso econômico", por múltiplas razões (as mais apontadas sendo os parcos salários recebidos por aqueles que se dedicavam exclusivamente ao magistério). Foram discutidos a necessidade de implantação da carreira docente e o estímulo a uma forma de remuneração que privilegiasse o tempo dedicado à docência e a titulação (Opas, 1965).

No Segundo Seminário não houve avanços muito significativos, em relação ao primeiro, na construção de proposta mais concreta para o ensino da odontologia. Se em 1962 as questões discutidas foram mais conceituais, as de 1964 foram mais operacionais, até mesmo pela pauta proposta. No entanto, manteve-se a função estratégica de mobilização dos docentes, discutindo-se e formulando-se conclusões gerais acerca do ensino da odontologia.

Os seminários tiveram pautas distintas para cada evento, bem como diferentes públicos-alvo. Isso implicou a necessidade de desdobramento das discussões em nível regional, não só nos países participantes dos seminários como em toda a região. Nesse sentido, tanto a Alafo quanto as associações nacionais das instituições de ensino da odontologia tiveram papel fundamental na divulgação das recomendações dos seminários.

Terceiro Seminário Latino-americano Sobre o Ensino da Odontologia

Em 1966 a cidade de Petrópolis (RJ) acolheu o Terceiro Seminário Latino-americano Sobre o Ensino da Odontologia, em que se discutiram quatro temas: (1) desenvolvimento das bibliotecas e aumento do uso da literatura na odontologia; (2) treinamento de pessoal auxiliar nas faculdades de odontologia; (3) educação após a graduação na faculdade de odontologia; e (4) papel da investigação nas faculdades de odontologia.

Sobre as bibliotecas, os participantes concluíram que o material bibliográfico deveria contemplar as necessidades do curso e ser adquirido a partir da solicitação dos responsáveis pelo ensino e pela pesquisa na instituição. Segundo as recomendações discutidas, o incentivo ao uso da biblioteca era uma forma de "ensinar ao estudante o raciocínio científico" e prepará-lo como leitor, reduzindo, assim, "o emprego de métodos poucos desejáveis", tais como os apontamentos e apostilas (Tercer Seminario..., 1968, p.22).

Para atenuar a escassez de material bibliográfico nas instituições de ensino na América Latina, problema que já haviam detectado, a Opas e a Fundação Kellogg estabeleceram programas específicos de tradução e distribuição de obras básicas. O relatório da diretoria da Abeno (Boletim Abeno, jun. 1970, p.52) registrou, como um de seus pleitos à Fundação, um subsídio que permitisse "conseguir uma pequena biblioteca básica, para cada uma das escolas brasileiras". Ainda nesse tema, os participantes foram levados a refletir sobre a qualidade das publicações na área da odontologia, concluindo que, além da baixa qualidade, elas padeciam de falta de periodicidade. A reflexão estendeu-se às características de um editor científico. Manuseando os periódicos 'científicos', principalmente da década de 1960, de algumas universidades latino-americanas, nota-se que lembram muito os almanaques da época, devido à diversidade de assuntos abordados: de pesquisas a eventos sociais, entremeados por grande quantidade de anúncios publicitários. A inclusão desses temas nas discussões do evento teve como objetivo suscitar a reflexão sobre essas publicações, com relação tanto à forma quanto ao conteúdo. Foi recomendado, assim, o estabelecimento de normas comuns de publicação para os periódicos nacionais, destacando-se a importância de um padrão de comunicação científica, o que reforçaria a representação social da profissão, que Larson (Carvalho, 2003) denomina superioridade cognitiva, reafirmando-se a necessidade da formação distinta de seus membros.

Os integrantes do Terceiro Seminário reconheciam a necessidade de formar um número maior de cirurgiões-dentistas e de pessoal auxiliar para a odontologia. No entanto, não discutiram uma tendência que ganhava força no Brasil e em toda a América Latina: a má distribuição geográfica dos profissionais, que se estabeleciam preferencialmente nos grandes centros urbanos.

No documento da Opas (1966) em que se relatam "feitos que revelam progresso" em relação às metas da Carta de Punta del Este, encontra-se menção aos seminários ocorridos em 1963 e 1965, além de levantamentos, que os antecederam, sobre as condições de ensino da odontologia. Com base no levantamento realizado nas escolas brasileiras de odontologia, em 1959, foi realizada uma estimativa para 1964, apontando a razão de 2,7 cirurgiões-dentistas para cada grupo de 10 mil habitantes, mais favorável do que a encontrada na América Latina, de 2,3. O documento afirma que "existe a oportunidade de melhorar a educação odontológica e ampliar as escolas para formar um maior número de dentistas" (p.34), sem mencionar, como de praxe, onde o aumento seria considerado salutar.

No Brasil, a Abeno se manifestara contrária à abertura de novas escolas até que a precariedade das condições de ensino fosse resolvida, uma vez que o número de vagas era suficiente para cobrir a demanda:

na maioria das faculdades, se a solicitação foi superior ao número de vagas, a aprovação foi inferior. Os números mostram ser a proporção dos estudantes que com preparo adequado se candidatam ao curso de odontologia insuficiente para preencher as vagas atualmente existentes, as quais, portanto, são satisfatórias em quantidade. De fato, para 1.820 vagas nas 32 faculdades em funcionamento, a média anual de matrículas foi de 1.581,5, o que representa saldo anual de, em média, 238,5 vagas (Guimarães Jr., 1961, p.37).

Em relação à utilização dos recursos humanos auxiliares, os participantes do Terceiro Seminário aventaram as tarefas a delegar, contudo sem obter consenso. A necessidade de supervisão direta, por parte do cirurgião-dentista, do trabalho do pessoal auxiliar foi, entretanto, opinião unânime. Recomendou-se que a formação do pessoal auxiliar se desse nas instituições de ensino odontológico, situação que, para os participantes, favoreceria o aprendizado do aluno, além de racionalizar tempo e espaço de formação (Tercer Seminario..., 1968).

As recomendações sobre a incorporação de pessoal auxiliar na odontologia começaram a aparecer nos documentos oficiais da Opas e da Fundação Kellogg no início da década de 1960, e, na seguinte, a Fundação deu início a subvenções para projetos de ensino e serviço que incorporassem essa função, incentivando os programas a partir da concepção da odontologia simplificada, constituindo um de seus tripés a desmonopolização do saber. A utilização de pessoal auxiliar na área da saúde tomou maior impulso com a Declaração de Alma-Ata, em 1978.

Chaves (1994) considera a utilização de pessoal auxiliar com diferentes formações e função, na odontologia, sinal de 'evolução' da profissão. No entanto, tal prática enfrentou muita resistência e acaloradas manifestações contrárias junto à categoria profissional. A incorporação, no Brasil, principalmente do técnico de higiene dental (THD) restringiu-se a poucos serviços públicos de odontologia, entre eles os de Porto Alegre, Belo Horizonte, algumas prefeituras do estado de São Paulo, Distrito Federal e Goiás. Na década de 1980, Goiás destacou-se com a implantação do Projeto Dente São, destinado ao atendimento a escolares da rede oficial de ensino, que formou e utilizou expressivo número de THDs. A responsabilidade pela formação desse recurso humano não foi assumida, no Brasil, pelas instituições de ensino odontológico, salvo aquelas beneficiadas por subvenções da Fundação Kellogg para tal finalidade, entre elas a Pontifícia Universidade Católica Minas Gerais. Os serviços que utilizam esses recursos humanos tiveram que assumir a responsabilidade por sua formação na prática, recorrendo às prerrogativas legais para a formação de técnicos de nível médio.

Como estratégia de formação, principalmente do docente, foi referendada a criação dos centros regionais, a exemplo do criado na Universidade de São Paulo, em 1958, que visava à formação do especialista em saúde pública. Esses centros deveriam ser criados nas instituições que tivessem condições estruturais para os comportar. As áreas consideradas prioritárias para formação foram: saúde pública, odontopediatria e dentística. Em 1966 havia, na América Latina, dez escolas de saúde pública, sendo três no Brasil e as restantes na Argentina, Colômbia, Chile, México, Peru, Porto Rico e Venezuela (Opas, 1966).

Em 1968 foi criado, em Medellin, na Colômbia, o Curso Latino-americano em Odontologia Preventiva e Social. Tinha como objetivo promover a formação de "agentes de um processo de mudança por difusão" e entre seus objetivos específicos constava "treinar os bolsistas sobre os objetivos, organização e métodos de trabalho de um departamento de odontologia preventiva e social" (Santos, 1968, p.2), ideia defendida por Philip Blackerby, Jr., diretor-geral adjunto da Fundação Kellogg desde 1963. Na ocasião foi publicado, no Journal of Dental Education, artigo que defendia a criação de um departamento de odontologia social nas instituições de ensino odontológico, com a finalidade de "reforçar o ensino da saúde pública e outros temas de significação social" nos currículos. O artigo foi traduzido para o espanhol e publicado como texto de apoio nos Anais do Segundo Seminário, em 1965.

Em 1973, sob os auspícios da Opas/OMS e da Fundação Kellogg, foi criado, na Universidade de Illinois, o Curso Latino-americano de Odontopediatria e Periodontia Social. Os vários profissionais que formou posteriormente implantaram programas de saúde em seus países de origem com base nos conhecimentos ali divulgados (Escobar, 19883 3 O evento a que se refere a obra organizada por Escobar foi patrocinado pela Fundação Kellogg para marcar os 15 anos de criação desses cursos, e uma de suas atividades foi a apresentação de ex-alunos sobre as experiências desenvolvidas em seus países. ).

Considerações finais

Utilizando expressão de Santos (1968), o Terceiro Seminário cumpriu a função de agente de um "processo de mudança por difusão". No evento foram apresentados, para discussão, vários pontos do ideário da Fundação Kellogg: utilização e formação de pessoal auxiliar; formação docente; e a pesquisa como instrumento de leitura da realidade para sua transformação. Serviu, principalmente, para suscitar necessidades de mudança visando à inovação do ensino da odontologia e de parcerias para otimizar os recursos regionais.

Os três seminários sobre o ensino de odontologia cumpriram seus propósitos. Conseguiram mobilizar alguns cursos de odontologia para desenvolver experiências de inovação na formação de recursos humanos. Produziram dados sobre as condições de ensino da odontologia. No caso do Brasil, possibilitaram a criação de currículo ampliado para a formação profissional, com base nas sugestões apresentadas ao Conselho Federal de Educação, que para tal passou a ter atribuições após a implantação da Lei de Bases da Educação, instituída em 1961.

Os documentos apresentados possuem característica comum: a atualidade das propostas, materializada nas Diretrizes Curriculares Nacionais para os Cursos de Graduação em Odontologia, vigentes desde 2002. Recomendações discutidas desde o início da década de 1960 - como adequação do ensino à realidade local e regional, formação de docentes para o ensino da odontologia, integração do ciclo básico profissional, ensino integrado à pesquisa e equilíbrio na formação contemplando as distintas dimensões do processo saúde/doença - (re)apresentam-se como 'novidades'. No entanto, essa atualidade das propostas também pode ser compreendida por sua dificuldade de implantação. As causas dessa situação e suas consequências extrapolam os objetivos deste artigo, embora tenham sido aqui superficialmente abordadas. Vale, entretanto, ressaltar o distanciamento do projeto de profissão da odontologia do processo de reorientação da formação do cirurgião-dentista que se pretende implementar.

NOTAS

Recebido para publicação em agosto de 2008.

Aprovado para publicação em fevereiro de 2009.

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  • NARVAI, Paulo Capel. Odontologia e saúde bucal coletiva São Paulo: Hucitec. 1994.
  • NUNES, Everaldo Duarte. Ensinando ciências sociais em uma escola de medicina: a história de um curso (1965-90). História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v.1, n.3, p. 631-657. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702000000400007&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt Acesso em: 18 ago. 2006. 2000.
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  • SANTOS, Renato Quintino. Relatório do Primeiro Curso Latino-americano de Odontologia Preventiva e Social. Belo Horizonte: s.n.. 1968.
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  • *
    Este artigo é parte da tese intitulada
    O ensino da odontologia no Brasil: concepções e agentes, pesquisa documental e exploratória desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira FE/UFG, linha de pesquisa Estado e Políticas Educacionais.
  • 1
    Nesta e nas demais citações de textos em outros idiomas, a tradução é livre.
  • 2
    A Opas agregou os relatórios finais dos seminários de Viña del Mar e de Tehuacán e das duas reuniões do Comitê do Programa de Livros de Textos da Opas/OMS para o ensino de medicina preventiva e social (1968 e 1974) em publicação única (Opas,1976).
  • 3
    O evento a que se refere a obra organizada por Escobar foi patrocinado pela Fundação Kellogg para marcar os 15 anos de criação desses cursos, e uma de suas atividades foi a apresentação de ex-alunos sobre as experiências desenvolvidas em seus países.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Abr 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2008
    • Aceito
      Fev 2009
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