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A Inteligência Artificial Pode Mudar Nossa Interpretação dos Escores de Risco Cardiovascular?

Palavras-chave
Infarto do Miocárdio com Elevação do ST; Síndrome Coronariana Aguda; Inteligência Artificial; Intervenção Coronária Percutânea

A necessidade de buscar meios de predizer a ocorrência de eventos futuros é um fascínio da raça humana desde seus primórdios. Através de observações armazenadas na memória humana, a previsão de eventos fazia parte da segurança e sobrevivência da humanidade. Com o decorrer dos séculos, a necessidade de previsão se tornou parte de diversas ciências pela extrema importância na orientação de tomada de decisões estratégicas, na medicina não foi diferente.

O ser humano desenvolveu habilidades em registrar, organizar e armazenar dados para uma análise futura. Passamos do armazenamento analógico para o digital e, junto ao desenvolvimento dos métodos estatísticos, enormes bancos de dados passaram a ser possível de analise. Na medicina, o emprego de algoritmos complexos pelos sistemas computacionais, passou a prever risco de desenvolvimento de doenças, prognósticos, melhores estratégias terapêuticas, risco de eventos, mortalidade, dentre outros.11 Rajkomar A, Dean J, Kohane I. Machine Learning in Medicine. N Engl J Med. 2019;380(14):1347-58. doi: 10.1056/NEJMra1814259.
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Em cardiologia, diversos estudos descrevem maior mortalidade em mulheres por infarto agudo do miocárdio com supra se ST (STEMI), comparada aos homens, sendo as prováveis causas amplamente debatidas.22 Sarma AA, Braunwald E, Cannon CP, Guo J, Im K, Antman EM, et al. Outcomes of Women Compared with Men after Non-ST-Segment Elevation Acute Coronary Syndromes. J Am Coll Cardiol. 2019;74(24):3013-22. doi: 10.1016/j.jacc.2019.09.065.
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Maior percentagem de comorbidades no sexo feminino seria o suficiente para justificar?33 Haider A, Bengs S, Luu J, Osto E, Siller-Matula JM, Muka T, et al. Sex and Gender in Cardiovascular Medicine: Presentation and Outcomes of Acute Coronary Syndrome. Eur Heart J. 2020;41(13):1328-36. doi: 10.1093/eurheartj/ehz898.
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Diferenças no tratamento ou situações biológicas específicas do sexo feminino poderiam estar envolvidas?44 Chandiramani R, Cao D, Claessen BE, Sorrentino S, Guedeney P, Blum M, et al. Sex-Related Differences in Patients at High Bleeding Risk Undergoing Percutaneous Coronary Intervention: A Patient-level Pooled Analysis from 4 Postapproval Studies. J Am Heart Assoc. 2020;9(7):e014611. doi: 10.1161/JAHA.119.014611.
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Análise do registro SWEDEHEART discorda desta diferença de mortalidade, afirmando que em uma análise mais precisa, com ajustamento de diversos fatores, a diferença pode não existir. Entre eles dados demográficos, comorbidades, tempo adequado de utilização da melhor terapia, uso prévio de fibrinolíticos, acesso vascular para angioplastia primária e a associação de terapia medicamentosa.55 Redfors B, Angerås O, Råmunddal T, Petursson P, Haraldsson I, Dworeck C, et al. Trends in Gender Differences in Cardiac Care and Outcome after Acute Myocardial Infarction in Western Sweden: A Report from the Swedish Web System for Enhancement of Evidence-Based Care in Heart Disease Evaluated According to Recommended Therapies (SWEDEHEART). J Am Heart Assoc. 2015;4(7):e001995. doi: 10.1161/JAHA.115.001995.
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,66 Alabas OA, Gale CP, Hall M, Rutherford MJ, Szummer K, Lawesson SS, et al. Sex Differences in Treatments, Relative Survival, and Excess Mortality Following Acute Myocardial Infarction: National Cohort Study Using the SWEDEHEART Registry. J Am Heart Assoc. 2017;6(12):e007123. doi: 10.1161/JAHA.117.007123.
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Neste estudo,77 Silva JSN, Barros IML, Guimarães JAN, Cao D, Martins SM, Carvalho TXM, et al. Beyond the GRACE ACS Score: Do We Need a Different Model for Men and Women after STEMI? Arq Bras Cardiol. 2024;121(4):e20230060. doi: 10.36660/abc.20230060.
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os autores discorrem sobre esta questão, avaliando a diferença da mortalidade intra-hospitalar entre os sexos dos pacientes atendidos com STEMI em um hospital terciário. Baseado nos resultados, questionam a eficácia do GRACE score em prever mortalidade igualmente em ambos os sexos.

O GRACE score, desenvolvido por um estudo nos primeiros anos deste século, é amplamente utilizado até hoje para predizer mortalidade nas síndromes coronarianas agudas. O escore inclui, entre os fatores preditores, algumas comorbidades e o estado clínico-laboratoriais dos pacientes, mas não inclui sexo.88 GRACE Investigators. Rationale and Design of the GRACE (Global Registry of Acute Coronary Events) Project: A Multinational Registry of Patients Hospitalized with Acute Coronary Syndromes. Am Heart J. 2001;141(2):190-9. doi: 10.1067/mhj.2001.112404.
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A medicina tem um dinamismo acentuado em relação as melhores estratégias diagnósticas e terapêuticas, portanto o GRACE score vem sendo questionado, não somente por não incluir sexo, como também outros fatores.99 Georgiopoulos G, Kraler S, Mueller-Hennessen M, Delialis D, Mavraganis G, Sopova K, et al. Modification of the GRACE Risk Score for Risk Prediction in Patients with Acute Coronary Syndromes. JAMA Cardiol. 2023;8(10):946-56. doi: 10.1001/jamacardio.2023.2741.
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1111 Klingenberg R, Aghlmandi S, Räber L, Akhmedov A, Gencer B, Carballo D, et al. Cysteine-Rich Angiogenic Inducer 61 Improves Prognostic Accuracy of GRACE (Global Registry of Acute Coronary Events) 2.0 Risk Score in Patients with Acute Coronary Syndromes. J Am Heart Assoc. 2021;10(20):e020488. doi: 10.1161/JAHA.120.020488.
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Embora um maior número de comorbidade tenha sido considerado uma possível justificativa para maior mortalidade no sexo feminino, algumas comorbidades fazem parte do cálculo do GRACE escore e há evidências na literatura que suportam que o escore possui acurácia igual a ambos os sexos.1212 Gong IY, Goodman SG, Brieger D, Gale CP, Chew DP, Welsh RC, et al. GRACE Risk Score: Sex-based Validity of In-hospital Mortality Prediction in Canadian Patients with Acute Coronary Syndrome. Int J Cardiol. 2017;244:24-9. doi: 10.1016/j.ijcard.2017.06.055.
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Um ponto comum nos diversos estudos sobre doença coronariana se refere ao baixo número de mulheres incluídas nos estudos clínicos.1313 Ferreira MCM, Oliveira MV, Paiva MSM, Lemke V, Mangione F, Oliveira GMM. Closing the Gender Gap in Ischemic Heart Diseases and Myocardial Infarction. Int J Cardiovasc Sci 2021;34(4):471-83. doi: 10.36660/ijcs.20210001.
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O artigo de Silva J. et al. reflete essa realidade com inclusão de 36% de pacientes do sexo feminino. Mulheres são a maioria da população e são frequentemente subestudadas, esta discrepância necessita ser corrigida, principalmente se desejamos desenvolver medidas específicas para este sexo. Um outro estudo brasileiro de análise de validação do Grace score, 60% da população foi do sexo masculino.1414 Neves VB, Roman RM, Vendruscolo T, Heineck G, Mattos CAS, Mattos EI, et al. Validation of the Grace Risk Score to Predict in-hospital and 6-month Post-Discharge Mortality in Patients with Acute Cornary Syndrome. Int J Cardiovasc Sci 2021;35(2):174-80. doi: 10.36660/ijcs.20210019.
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Porém, chama atenção no estudo de Silva J et al.77 Silva JSN, Barros IML, Guimarães JAN, Cao D, Martins SM, Carvalho TXM, et al. Beyond the GRACE ACS Score: Do We Need a Different Model for Men and Women after STEMI? Arq Bras Cardiol. 2024;121(4):e20230060. doi: 10.36660/abc.20230060.
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a diferença na qualidade de tratamento entre os sexos. O tempo total de isquemia maior nas mulheres é estatisticamente muito significativo (p<0,001), podendo refletir o pior desfecho. Ao analisarmos os diversos subintervalos, considerando desde o início da dor até o momento da reperfusão por balão de angioplastia coronária (pain-balloon), nenhum subintervalo identificou diferença estatisticamente significativa entre os sexos que justificasse o atraso na terapêutica de reperfusão do sexo feminino. Desta forma, fica a dúvida qual estágio do atendimento possamos responsabilizar pela terapêutica menos adequada oferecida ao sexo feminino, o que representa um fator fundamental para orientação de prover um tratamento igualitário a ambos os sexos.

O artigo traz um importante tema a discussão, chamando a atenção quanto a necessidade de corrigir falhas para na instituição da melhor terapêutica para as mulheres. Escore de risco fazem parte de uma interligação de sistemas complexos e dinâmicos que interagem diversos fatores entre si, devendo estar em evolução constante. Interconexões limitadas e falta de dinamismo tornam os escores menos preditivos. Assim ocorre com o GRACE score, onde diversos estudos procuram uma maior associação de fatores interrelacionados para melhorar sua precisão prognóstica. A questão da necessidade de incluir sexo, fator único, para melhor precisão prognóstica, permanece em aberto, especialmente a luz dos conhecimentos atuais em que a utilização de algoritmos complexos identificando múltiplas associações entre variáveis aumentam efetivamente a precisão das análises.

  • Minieditorial referente ao artigo: Além do Escore GRACE SCA: É Necessário um Modelo Diferente para Homens e Mulheres após IAMCSST?

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024
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