Open-access Estimulação Transcraniana por Corrente Contínua no Tratamento da Hipertensão: Uma Hipótese Plausível?

Hipertensão; Sistema Nervoso Autônomo; Estimulação Elétrica Nervosa Transcutânea

A hipertensão arterial (HAS) é a doença crônica mais prevalente em todo o mundo,1 sendo um dos mais importantes fatores de risco cardiovascular.2 Dentre as diversas variáveis que controlam a pressão arterial (PA), aquelas que interagem diretamente com os mecanismos neurais envolvem múltiplas áreas do sistema nervoso central (SNC).3

A relação entre a atividade cerebral e a hipertensão foi demonstrada por estudos neurofisiológicos em animais, mostrando que a estimulação elétrica ou química direta de diferentes estruturas do cérebro e do córtex cerebral pode modificar significativamente a PA e a frequência cardíaca (FC).4-6

Além disso, os sistemas simpático e renal parecem contribuir para as alterações vasculares que ocorrem inicialmente na hipertensão, como aumento da resistência vascular basal mantida pelo remodelamento dos vasos e redução do número de vasos.7 Ademais, a redução da PA periférica normalmente falha em reverter as alterações na função, estrutura e organizações cerebrais associadas à doença, sugerindo que as influências no cérebro não são secundárias à elevação da PA.7 As causas iniciais exatas da hipertensão permanecem obscuras, e a origem multifatorial é a principal hipótese. Assim, não podemos dizer que o cérebro inicia a hipertensão, mas é claro que a hipertensão prejudica o funcionamento do cérebro. Portanto, mais estudos são necessários para confirmar se a hipertensão se origina principalmente como uma doença cerebral ou uma doença da vasculatura periférica.

A revisão de Jennings e Zanstra (2009)7 demonstra que a hipertensão está associada ao suporte do fluxo sanguíneo cerebral (FSC) alterado para o processamento cognitivo. Em suma, a hipertensão parece induzir uma leve redução do FSC, que pode ser mais acentuada nas regiões frontal e subcortical.

Dada a relação entre PA e atividade cortical, as técnicas de estimulação cerebral parecem ser uma ferramenta potencialmente útil a ser explorada. A estimulação transcraniana por corrente contínua (ETCC) é um tipo de técnica de estimulação cerebral não invasiva (ECNI) que se refere à aplicação de uma corrente contínua através de um par de eletrodos de superfície (ânodo e cátodo).3

Estudos em animais e humanos forneceram informações sobre os mecanismos subjacentes aos efeitos da ETCC na neuroplasticidade e mostraram que a ETCC pode induzir alterações específicas na atividade neuropsicológica, psicofisiológica e motora, dependendo da área cerebral alvo.8 No entanto, uma revisão sistemática mostrou que a heterogeneidade dos estudos impossibilitou a extração de evidências conclusivas sobre os efeitos da ECNI nos sistemas cardiovascular e autonômico.9 Isso ocorre principalmente porque a maioria dos estudos existentes foi desenvolvida para entender a segurança da ECNI usando parâmetros cardiovasculares e não para estudar a conexão cérebro-coração.3

As técnicas de ECNI que têm sido mais intensamente estudadas em relação ao sistema nervoso autônomo e cardiovascular são a estimulação magnética transcraniana repetitiva (rTMS) e a ETCC. A ETCC modula a atividade espontânea da rede neural aplicando correntes elétricas fracas em diferentes áreas corticais.3 No nível neuronal, o principal mecanismo de ação é a indução de alterações dependentes da polaridade na excitabilidade cortical.10

Embora o posicionamento dos eletrodos ainda não esteja totalmente resolvido devido a influências em áreas adjacentes após o estímulo, o seguinte posicionamento é o International EEG 10-20 System. É onde um eletrodo ânodo e um eletrodo cátodo são colocados na pele visando a modulação de uma área focal pré-determinada do córtex.8

A principal teoria é que a ECNI poderia modular o fluxo simpático do tronco cerebral a partir da atividade neural de áreas corticais autônomas, como o córtex sensório-motor, o córtex pré-frontal medial (CPFM) e o córtex insular ou regiões hipotalâmicas por meio de projeções do córtex pré-frontal. O CPFM pode ser o alvo mais adequado para a aplicação da ECNI, pois possui várias projeções para as principais localizações do tronco encefálico envolvidas na função autonômica e também porque a estimulação elétrica e química direta do CPFM está associada a respostas simpáticas inibitórias. Nesta estrutura, pode-se supor que a aplicação de ETCC anódica de excitabilidade aumentada ativaria essa área-alvo, que modularia a PA por inibição da atividade simpática.11

Portanto, a justificativa para nossa hipótese é que o uso de ETCC pode ser capaz de modular a PA sistêmica por meio de estímulos no córtex cerebral.12 Dessa forma, procuramos elucidar, de forma experimental, o melhor entendimento desse mecanismo de controle e investigar uma possível nova alternativa para o controle da PA e tratamento da hipertensão.

Um primeiro estudo de Rodrigues et al.13 composto por 13 participantes com HAS, avaliou a efetividade de uma intervenção aguda de ETCC. Confirmou-se a hipótese de que uma única sessão de ETCC pode reduzir a atividade simpática e melhorar a modulação autonômica cardiovascular levando a uma redução da PA por 24 horas.

Outro estudo que avaliou a eficácia a curto prazo da ETCC em 20 participantes foi realizado por Silva-Filho et al.14 onde os autores observaram redução da PA sistólica e diastólica durante o sono e três horas após a intervenção. No entanto, nada sugeriu mudanças significativas nos valores de variabilidade.

Um terceiro estudo de Rodrigues et al.15 envolveu 13 participantes com HAS resistente. Com um intervalo de pouco menos de 1 mês, avaliou uma intervenção aguda e uma intervenção de curto prazo. Durante a intervenção aguda, observou-se que a estimulação leva à redução dos valores hemodinâmicos, como débito cardíaco, resistência vascular periférica e PA sistólica, diastólica e média. Esses resultados foram mantidos 24 horas após a estimulação. Em contraste, a intervenção de curto prazo não forneceu evidências suficientemente fortes de redução dos valores hemodinâmicos ligados à PA, mas a modulação autonômica teve respostas positivas após as sessões.

Todos os autores citados encontraram dificuldades não relatadas na realização dos estudos. No entanto, um ponto comum entre os artigos é que os resultados às vezes são inconclusivos, provavelmente devido ao pequeno tamanho da amostra, curto tempo de intervenção e não padronização do protocolo de aplicação.

O córtex cerebral é uma estrutura fundamental para o controle cardiovascular, pois o sistema nervoso está relacionado ao controle da PA e à patogênese de diversas formas de hipertensão.11 Também é importante destacar o papel do hipotálamo, especificamente o núcleo paraventricular, na mediação das respostas endócrinas e autonômicas que mantêm a pressão sanguínea e a homeostase do fluido corporal por meio de fenótipos neuronais distintos que controlam os eixos endócrinos e o fluxo simpático. Embora existam alguns tratamentos para hipertensão, uma porcentagem substancial de pacientes sofre de hipertensão “resistente a medicamentos”, uma condição associada ao aumento da ativação cerebral dos receptores de angiotensina, aumento da atividade do sistema nervoso simpático e níveis elevados de vasopressina.

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Evidências mostram que os neurônios aumentam a expressão do receptor de angiotensina Tipo 1a localizado dentro da lâmina terminal por meio da regulação endócrina e respostas comportamentais que estão envolvidas na manutenção da homeostase cardiovascular, revelando assim conexões excitatórias funcionais entre os neurônios sensíveis à angiotensina nos terminais da lâmina e os neurônios da vasopressina no núcleo paraventricular do hipotálamo, indicando ainda que a ativação desse circuito aumenta a PA. Assim, esses neurônios também podem ser um alvo promissor para a terapia anti-hipertensiva.16

Por fim, resultados de estudos em animais obtêm ampla margem de melhora na aplicação das técnicas de ECNI. Assim, a aplicação dessas técnicas em humanos para pesquisas e tratamentos clínicos poderiam ser baseados nos achados que faremos para otimizar e refinar o protocolo de estimulação.14

Agradecimentos

Agradeço ao apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) – Edital N. 010/2021 – CT&I ÁREAS PRIORITÁRIAS.

Referências

  • 1 Précoma DB, Oliveira GMM, Simão AF, Dutra OP, Coelho OR, Izar COM et al. Atualização da Diretriz de Prevenção Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Soc Bras Cardiol. Arq Bras Cardiol. 2019;113(4):787-891. doi: 10.5935/abc.20190204.
  • 2 Perumareddi P. Prevention of Hypertension Related to Cardiovascular Disease. Prim Care. 2019;46(1):27-39. doi: 10.1016/j.pop.2018.10.005.
  • 3 Makovac E, Thayer JF, Ottaviani C. A Meta-Analysis of Non-Invasive Brain Stimulation and Autonomic Functioning: Implications for Brain-Heart Pathways to Cardiovascular Disease. Neurosci Biobehav Rev. 2017;74(Pt B):330-41. doi: 10.1016/j.neubiorev.2016.05.001.
  • 4 Burns SM, Wyss JM. The Involvement of the Anterior Cingulate Cortex in Blood Pressure Control. Brain Res. 1985;340(1):71-7. doi: 10.1016/0006-8993(85)90774-7.
  • 5 Owens NC, Verberne AJ. Regional Haemodynamic Responses to Activation of the Medial Prefrontal Cortex Depressor Region. Brain Res. 2001;919(2):221-31. doi: 10.1016/s0006-8993(01)03017-7.
  • 6 Tavares RF, Antunes-Rodrigues J, Corrêa FM. Pressor Effects of Electrical Stimulation of Medial Prefrontal Cortex in Unanesthetized Rats. J Neurosci Res. 2004;77(4):613-20. doi: 10.1002/jnr.20195.
  • 7 Jennings JR, Zanstra Y. Is the Brain the Essential in Hypertension? Neuroimage. 2009;47(3):914-21. doi: 10.1016/j.neuroimage.2009.04.072.
  • 8 Brunoni AR, Nitsche MA, Bolognini N, Bikson M, Wagner T, Merabet L, et al. Clinical Research with Transcranial Direct Current Stimulation (tDCS): Challenges and Future Directions. Brain Stimul. 2012;5(3):175-95. doi: 10.1016/j.brs.2011.03.002.
    » https://doi.org/10.1016/j.brs.2011.03.002
  • 9 Schestatsky P, Simis M, Freeman R, Pascual-Leone A, Fregni F. Non-Invasive Brain Stimulation and the Autonomic Nervous System. Clin Neurophysiol. 2013;124(9):1716-28. doi: 10.1016/j.clinph.2013.03.020.
  • 10 Priori A, Berardelli A, Rona S, Accornero N, Manfredi M. Polarization of the Human Motor Cortex Through the Scalp. Neuroreport. 1998;9(10):2257-60. doi: 10.1097/00001756-199807130-00020.
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  • 12 Arêas FZDS, Arêas GPT. Why not Think about Non-Invasive Brain Stimulation to Control Blood Pressure? Arq Bras Cardiol. 2021;116(2):349-350. doi: 10.36660/abc.20200639.
  • 13 Rodrigues B, Barboza CA, Moura EG, Ministro G, Ferreira-Melo SE, Castaño JB, et al. Transcranial Direct Current Stimulation Modulates Autonomic Nervous System and Reduces Ambulatory Blood Pressure in Hypertensives. Clin Exp Hypertens. 2021;43(4):320-7. doi: 10.1080/10641963.2021.1871916.
  • 14 Silva-Filho E, Albuquerque J, Bikson M, Pegado R, Santos AC, Brasileiro-Santos MS. Effects of Transcranial Direct Current Stimulation Associated with an Aerobic Exercise Bout on Blood Pressure and Autonomic Modulation of Hypertensive Patients: A Pilot Randomized Clinical Trial. Auton Neurosci. 2021;235:102866. doi: 10.1016/j.autneu.2021.102866.
  • 15 Rodrigues B, Barboza CA, Moura EG, Ministro G, Ferreira-Melo SE, Castaño JB, et al. Acute and Short-Term Autonomic and Hemodynamic Responses to Transcranial Direct Current Stimulation in Patients with Resistant Hypertension. Front Cardiovasc Med. 2022;9:853427. doi: 10.3389/fcvm.2022.853427.
  • 16 Frazier CJ, Harden SW, Alleyne AR, Mohammed M, Sheng W, Smith JA, et al. An Angiotensin-Responsive Connection from the Lamina Terminalis to the Paraventricular Nucleus of the Hypothalamus Evokes Vasopressin Secretion to Increase Blood Pressure in Mice. J Neurosci. 2021;41(7):1429-42. doi: 10.1523/JNEUROSCI.1600-20.2020.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado
    Este artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores.
  • Fontes de financiamento: O presente estudo foi financiado por Fundação de Amparo de Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2023
  • Revisado
    19 Jun 2023
  • Aceito
    17 Jul 2023
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