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Apresentação Semelhante a um Infarto de Miocardite Fulminante Fatal Biventricular em um Paciente com Timoma

Miocardite; Timoma; Infarto do Miocárdio

Introdução

Timomas são tumores epiteliais raros do mediastino frequentemente associados a doenças paraneoplásicas,11. Evoli A, Minicuci GM, Vitaliani R, Battaglia A, Della Marca G, Lauriola L, et al. Paraneoplastic Diseases Associated with Thymoma. J Neurol. 2007;254(6):756-62. doi: 10.1007/s00415-006-0429-z.
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a miocardite é uma complicação rara em pacientes afetados por timoma.22. Sasaki H, Yano M, Kawano O, Hikosaka Y, Fujii Y. Thymoma Associated with Fatal Myocarditis and Polymyositis in a 58-Year-old Man Following Treatment with Carboplatin and Paclitaxel: A Case Report. Oncol Lett. 2012;3(2):300-2. doi: 10.3892/ol.2011.501.
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Polimiosite e miocardite associadas ao timoma são condições excepcionalmente raras e geralmente acompanhadas de miastenia gravis (MG).33. Furuta C, Yano M, Numanami H, Yamaji M, Taguchi R, Haniuda M. A Case of Thymoma-associated Multiorgan Autoimmunity Including Polymyositis and Myocarditis. Surg Case Rep. 2021;7(1):226. doi: 10.1186/s40792-021-01309-1.
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A miocardite, uma doença inflamatória do músculo cardíaco, pode resultar de uma ampla variedade de causas infecciosas, tóxicas e autoimunes. Embora o curso da doença seja geralmente autolimitado, a miocardite aguda e não fulminante pode evoluir para miocardite fulminante. A miocardite não fulminante tem apresentação tipicamente insidiosa e pode passar inadvertida à medida que progride para a fase crônica da doença. A definição de miocardite fulminante evoluiu desde sua descrição original em 1991.44. Lieberman EB, Hutchins GM, Herskowitz A, Rose NR, Baughman KL. Clinicopathologic Description of Myocarditis. J Am Coll Cardiol. 1991;18(7):1617-26. doi: 10.1016/0735-1097(91)90493-s.
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Na sua forma fulminante, a miocardite é uma doença com distúrbios hemodinâmicos e arritmias ventriculares devido a um processo inflamatório grave que requer suporte da função da bomba cardíaca e/ou tratamento urgente de arritmias graves.55. Montera MW, Marcondes-Braga FG, Simões MV, Moura LAZ, Fernandes F, Mangine S, et al. Brazilian Society of Cardiology Guideline on Myocarditis - 2022. Arq Bras Cardiol. 2022;119(1):143-211. doi: 10.36660/abc.20220412.
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O reconhecimento precoce e o manejo agressivo são essenciais para um resultado favorável.66. Sharma AN, Stultz JR, Bellamkonda N, Amsterdam EA. Fulminant Myocarditis: Epidemiology, Pathogenesis, Diagnosis, and Management. Am J Cardiol. 2019;124(12):1954-60. doi: 10.1016/j.amjcard.2019.09.017.
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A miocardite aguda pode ocasionalmente ter uma apresentação semelhante a um infarto, com dor torácica, elevação do segmento ST no eletrocardiograma e níveis elevados de troponina.77. Nucifora G, Miani D, Di Chiara A, Piccoli G, Artico J, Puppato M, et al. Infarct-like Acute Myocarditis: Relation between Electrocardiographic Findings and Myocardial Damage as Assessed by Cardiac Magnetic Resonance Imaging. Clin Cardiol. 2013;36(3):146-52. doi: 10.1002/clc.22088.
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Descrevemos um caso singular de miocardite fulminante fatal biventricular com apresentação semelhante a um infarto, ocorrendo em um paciente com timoma.

Descrição do caso

Em 20 de fevereiro um paciente de 52 anos deu entrada em nosso Instituto com dor torácica atípica nas últimas duas semanas.

O paciente era fumante (15 cigarros por dia há cerca de 30 anos) e bebedor de vinho (2 a 3 taças de vinho por dia). Nefrolitíase prévia à direita. O paciente relatava história familiar de infarto agudo do miocárdio; na sua história clínica estavam ausentes doenças relevantes.

A RX do tórax e a tomografia computadorizada torácica (TC) revelaram uma massa mediastinal anterior de 11 cm de diâmetro.

Na admissão o paciente apresentava boa compensação cardioculatória, pressão arterial normal (110/70 mmHg), frequência cardíaca de 53 batimentos/minuto; o eletrocardiograma (ECG) e o ecocardiograma foram normais (Figuras 1 e 2), principalmente a espessura do septo interventricular era normal e não havia evidência de espessamento da parede do ventrículo direito.

Figura 1
– ECG da admissão: Bradicardia sinusal, frequência cardíaca 53 batimentos/minuto; eletrocardiograma normal.

Figura 2
– Ecocardiograma na admissão: a espessura do septo interventricular era normal e não havia evidência de espessamento da parede do ventrículo direito.

Foram realizadas mediastinotomia anterior direita, pleurotomia e biópsia mediastinal.

O diagnóstico da biópsia foi timoma, provavelmente B2 (de acordo com a classificação da OMS 2004). Foi encontrada uma mistura de células epiteliais e de linfócitos (Figura 3).

Figura 3
– Coloração hematoxilina-eosina (20x) da biópsia do tumor mediastinal: redes e grupos de células epiteliais (setas pretas) são vistos entre infiltração de células linfoides T.

Duas populações de células T foram encontradas por imunocitofluorimetria no sangue periférico e no aspirado de medula óssea: no entanto, a imunofenotipagem mostrou uma linfocitose policlonal reativa de células T. A consulta hematológica, portanto, excluiu uma doença linfoproliferativa clonal de células T.

O 14 de março de 20 paciente foi submetido a quimioterapia neoadjuvante para timoma invasivo: Adriblastina 110 mg e Cisplatina 140 mg. 21 dias após a quimioterapia, a tomografia computadorizada de tórax mostrou redução da massa mediastinal.

O 19 maio de 20 surgimento de dores nas pernas, diminuindo com o movimento, agravamento da dor no peito e aumento das transaminases. O eletrocardiograma apresentava ritmo sinusal, frequência cardíaca de 89 batimentos/minuto, bloqueio de ramo direito e bloqueio fascicular anterior esquerdo.

Dois dias depois, devido à dor torácica persistente e ao aparecimento de sinais e sintomas de insuficiência cardíaca, foi realizada avaliação cardiológica de urgência: a pressão arterial era indetectável, o pulso carotídeo detectável e o eletrocardiograma mostrava taquicardia de complexo QRS largo, frequência cardíaca de 133 batimentos/minuto, bloqueio completo de ramo direito, supradesnivelamento do segmento ST em V1-V3 simulando infarto agudo do miocárdio (Figura 4).

Figura 4
– ECG 21 maio 20: taquicardia com complexo QRS largo, frequência cardíaca de 133 batimentos/minuto, bloqueio completo de ramo direito, supradesnivelamento do segmento ST em V1-V3 simulando infarto agudo do miocárdio; ECG anormal.

O ecocardiograma mostrou redução moderada da fração de ejeção do ventrículo esquerdo (40%), redução (qualitativa) da fração de ejeção do ventrículo direito, discinesia do septo interventricular, aumento da espessura da parede do ventrículo direito e esquerdo e aumento da espessura do septo interventricular (14 mm) (Figura 5).

Figura 5
– Ecocardiograma 21 maio 20**: aumento da espessura da parede ventricular direita e esquerda e aumento da espessura do septo interventricular.

Os marcadores bioquímicos de lesão miocárdica estavam aumentados: troponina T de alta sensibilidade (hs-cTnT) > 10.000 mg/L e massa MB de creatinoquinase > 600 mg/ml. Foram administrados ácido acetilsalicílico, clopidogrel, morfina, oxigênio, corticoide, infusão líquida e heparina de baixo peso molecular.

Resultado

Apesar da terapia administrada, a insuficiência cardíaca piorou rapidamente e o paciente morreu após algumas horas.

Discussão

Na autópsia foi encontrado amplo timoma necrótico residual, infiltrando o pulmão direito. A autópsia mostrou miocardite biventricular resultando em dano isquêmico, mais evidente no ventrículo direito, com dano miocárdico secundário à infiltração linfoide T histiocítica e policlonal reativa (Figura 6).

Figura 6
– Miocárdio na autópsia: infiltração linfo-histiocítica (setas pretas) destruindo fibras musculares cardíacas (Hematoxilina-Eosina, 10x).

O mesmo tipo de infiltração linfo-histiocítica foi encontrado entre as fibras musculares da parede torácica peristernal (Figura 7).

Figura 7
– Músculos intercostais (parede torácica anterior) na autópsia: infiltração linfo-histiocítica destruindo fibras musculares esqueléticas (seta preta) (Hematoxilina-Eosina, 20x)

Houve hipertrofia biventricular reativa secundária, dano isquêmico miocárdico e muscular esquelético; o dano isquêmico miocárdico, detectado na autópsia, poderia ser responsável pela apresentação eletrocardiográfica com elevação do segmento ST (apresentação semelhante a infarto de miocardite).

A avaliação molecular realizada na biópsia e no material autóptico foi negativa para identificação de rearranjos clonais do gene da cadeia gama receptora de células T.

A miocardite pode estar relacionada com vários agentes/mecanismos88. Cooper LT Jr. Myocarditis. N Engl J Med. 2009;360(15):1526-38. doi: 10.1056/NEJMra0800028.
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e, de entre estes, tanto com fenómenos auto-imunes como com lesões provocadas por fármacos, também por antraciclinas.

A apresentação clínica com sintomas de miocardite e miosite nos permitiu excluir a miocardite induzida por antraciclinas; de fato, a miosite não está descrita como uma complicação da terapêutica com antraciclinas. Além disso, os sinais morfológicos de lesão miocárdica induzida por antraciclinas são alterações degenerativas e necróticas nos miócitos, vacuolização, lesão mitocondrial e infiltrado inflamatório focal limitado.9 Em vez disso, no nosso caso, foi encontrado um infiltrado inflamatório grave e difuso nas células musculares estriadas do coração e dos músculos esqueléticos.

Diagnóstico final

Miocardite difusa resultando em dano isquêmico e miosite difusa (com infiltração de células T policlonais) em paciente com timoma invasivo em tratamento. Edema pulmonar e choque cardiogênico.

Conclusão

Dor torácica e dispneia são sintomas frequentes em pacientes com timoma, mas podem ocorrer também na miocardite.88. Cooper LT Jr. Myocarditis. N Engl J Med. 2009;360(15):1526-38. doi: 10.1056/NEJMra0800028.
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A polimiosite e a miocardite associadas ao timoma são condições excepcionalmente raras e geralmente acompanhadas de MG.

Portanto, em pacientes com timoma, é sempre necessário considerar a ocorrência de miocardite para estabelecer terapia precoce, adequada e agressiva: na verdade, a inflamação do miocárdio também pode se desenvolver de forma repentina e grave, resultando em necrose de miócitos, edema e choque cardiogênico, específico sinais e sintomas de miocardite fulminante.

Além disso, o paciente com miocardite aguda pode apresentar dor torácica, elevação do segmento ST no eletrocardiograma e níveis elevados de troponina. Portanto, deve ser feito um diagnóstico diferencial com infarto agudo do miocárdio.

Referências

  • 1
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  • Vinculação acadêmica

    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado

    Este artigo não contém estudos com humanos ou animais realizados por nenhum dos autores.
  • Fontes de financiamento

    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Editado por

Editor responsável pela revisão:

Nuno Bettencourt

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2023
  • Revisado
    11 Abr 2024
  • Aceito
    15 Maio 2024
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