EDITORIAL
Impacto da pesquisa básica nos avanços da cardiologia
Leonardo A. M. Zornoff
Departamento de Clínica Médica, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - UNESP, Botucatu, SP - Brasil
Correspondência Correspondência: Leonardo A. M. Zornoff Faculdade de Medicina de Botucatu, Rubião Júnior CEP 18618-000, Botucatu, SP - Brasil E-mail: l zornoff@fmb.unesp.br
Palavras-chave: Publicações de divulgação científica; pesquisa básica; cardiologia / instrumentação; cardiologia / tendências.
O impacto da pesquisa básica nos avanços da cardiologia é inquestionável. De forma apenas didática e simplista, podemos identificar quatro diferentes níveis de atuação. Em primeiro lugar, ela possibilita a elaboração de novos tratamentos relacionados à cardiologia; adicionalmente, a pesquisa básica fornece ferramentas para o estudo de diversos aspectos da doença cardiovascular; em terceiro, novos conceitos podem ser criados sobre temas já estudados, e, finalmente, podemos utilizar a pesquisa básica no estudo dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos em diferentes patologias.
No Brasil, os Arquivos Brasileiros de Cardiologia (ABC) desempenham papel de destaque em relação às publicações envolvendo pesquisa básica na área de cardiologia. De forma importante, como veremos a seguir, a revista vem contribuindo com conhecimentos que abrangem os quatro níveis de atuação citados anteriormente.
Levando em consideração a elaboração de novos tratamentos, diversas publicações recentes abordaram esse tema. Curiosamente, podemos identificar diferentes linhas de pesquisa enfatizando novos tratamentos para a doença cardiovascular. Por exemplo, a manipulação dietética foi uma das áreas de destaque dentro da revista. Assim, um estudo com animais submetidos à dieta hipercalórica mostrou que a obesidade induziu diminuição da reatividade vascular, associado com alterações da via do L-arginina/óxido nítrico1. Em sentido oposto, foi mostrado que a restrição calórica discreta foi acompanhada por alterações na expressão gênica de diferentes proteínas relacionadas ao trânsito de cálcio. Especificamente, os autores encontraram aumento do RNA mensageiro da Serca2a, do fosfolambam e do trocador Na/Ca, sugerindo adaptações benéficas com a restrição alimentar2. Um grupo distinto de pesquisadores mostrou que a suplementação de vitamina C, na dose de 500 mg ao dia, induziu menores valores da pressão arterial e restabeleceu a resposta vasodilatadora periférica em crianças obesas3. Outro exemplo de manipulação dietética pode ser visto no estudo de Soares Filho e cols.4, em que ratos espontaneamente hipertensos submetidos a exercício físico e suplementação com vinho tinto apresentaram redução nos valores da pressão arterial e aumento do HDL, em relação aos animais-controle ou aqueles submetidos aos tratamentos individuais. Esses exemplos mostram que as áreas de cardiologia e nutrição apresentam importante interação na revista, a exemplo do que vem ocorrendo em periódicos de alto impacto em todo o mundo5,6.
Devemos ressaltar, no entanto, que o estudo de novas opções de tratamento não ficou restrito à área de nutrição. Assim, outra linha de pesquisa na área básica com número significante de publicações nos ABC nos últimos anos foi o exercício físico. Por exemplo, os efeitos de diferentes intervalos de recuperação entre séries de exercício resistido na pressão arterial pós-exercício foram estudados em homens jovens sedentários e não hipertensos. O intervalo de recuperação não influenciou a redução da pressão sistólica, mas houve queda na pressão diastólica com duração de até 30 minutos7. Também durante exercício resistido foi investigada a influência do número de repetições máximas e dos intervalos de recuperação entre séries em vinte sujeitos saudáveis. As respostas cardiovasculares foram afetadas pela carga e pelo intervalo entre séries8. Outro estudo mostrou que programa de treinamento com natação atenuou a disfunção contrátil de cardiomiócitos de ratos diabéticos9. Em modelo de insuficiência cardíaca induzida por hiperatividade simpática, foram estudados os efeitos conjuntos de duas intervenções comumente usadas no tratamento da disfunção ventricular, o exercício físico e o uso de betabloqueadores. A associação dessas duas intervenções resultou em melhora funcional e atenuação da remodelação cardíaca10. Devemos considerar que o fato da linha do exercício ser bastante atuante na revista está em concordância com o que ocorre em outras publicações, ao mesmo tempo em que enfatiza a relevância do tema11,12.
Como comentado anteriormente, outro importante nível de atuação refere-se ao fato de que pesquisa básica oferece novos conceitos sobre temas exaustivamente estudados. Nesse sentido, os ABC vêm desempenhando o seu papel, com destaque para duas diferentes linhas de pesquisa.
A primeira linha refere-se aos efeitos do tabagismo diretamente sobre o coração. Assim, apesar de o efeito do tabagismo sobre os vasos ser universalmente aceito13, até recentemente, pouco se conhecia sobre as alterações morfológicas e funcionais cardíacas induzidas pela exposição à fumaça do cigarro. Assim, Castardeli e cols.14 estudaram os efeitos do tabagismo em diversas variáveis cardíacas. Após quatro meses de exposição, os animais fumantes apresentaram aumento do índice de massa e dos diâmetros sistólico e diastólico final do ventrículo esquerdo, associado com piora da porcentagem de encurtamento e da fração de ejeção. Esses resultados ocorreram adicionalmente aos bem conhecidos efeitos do tabagismo no sistema vascular14. Importante ressaltar que esse trabalho tornou-se artigo de referência sobre o tema, ao mesmo tempo em que introduziu nova linha de pesquisa na revista. Por exemplo, posteriormente, foi mostrado que o propranolol atenuou o processo de remodelação induzido pelo tabagismo, sugerindo a participação do sistema simpático nesse processo15. Em outro experimento, verificou-se que os animais fumantes apresentaram quatro diferentes padrões de geometria, levando-se em consideração o índice de massa do ventrículo esquerdo e a espessura relativa da parede: normal (51%), hipertrofia excêntrica (32%), hipertrofia concêntrica (13%) e remodelação concêntrica (4%). Esses achados evidenciam que animais com as mesmas características respondem de forma diferente quando submetidos ao mesmo agente agressor16. Recentemente, a exposição à fumaça do cigarro por três semanas não modificou a sensibilidade barorreflexa em ratos normotensos17.
A segunda linha bastante presente na revista está relacionada aos novos conceitos proporcionados com o uso do ecocardiograma. Esse equipamento é um dos métodos de escolha para análise morfológica e funcional em ratos, em virtude da confiabilidade, praticidade e caráter não invasivo, o que permite análises temporais18,19. De forma consistente, esse instrumento também vem sendo utilizado nos ABC para o acompanhamento do processo de remodelação cardíaca secundário a diversos estímulos, particularmente após o infarto agudo do miocárdio experimental20,21. Inicialmente, o ecocardiograma com Doppler apresentou alta sensibilidade e especificidade para a detecção de grandes infartos na fase crônica e identificou sinais de aumento da cavidade ventricular e da pressão da artéria pulmonar22. Posteriormente, foi mostrado que animais submetidos ao infarto apresentaram dois padrões de geometria ventricular esquerda que não foram fatores de predição de disfunção ventricular23. Na mesma linha, o índice de esfericidade foi associado, mas não foi fator preditor de disfunção ventricular em ratos infartados24. Adicionalmente, verificou-se que o índice de estresse parietal ventricular esquerdo foi preditor independente de remodelação após três meses do infarto e poderia ser incorporado na estratificação clínica após a oclusão coronariana25. Em outro modelo, o ecocardiograma foi utilizado na caracterização temporal das alterações morfológicas e funcionais cardíacas associadas com estenose aórtica supravalvar26. Desse modo, fica caracterizada sólida linha de pesquisa na área da ecocardiografia em roedores, com relevantes contribuições dos ABC.
Em relação à capacidade da pesquisa básica fornecer ferramentas para o estudo da doença cardiovascular, esse aspecto também foi abordado pela revista. De forma clara, a principal ferramenta abordada nas publicações dos Arquivos foi a biologia molecular, particularmente para o estudo das mutações e polimorfismos. Desse modo, em duas famílias com Síndrome do QT longo, foi desenvolvida estratégia para identificação de variantes dos genes KCNQ1, KCNH2 e SCN5A, relacionados aos canais iônicos27. Avaliando-se a influência dos polimorfismos no metabolismo lipídico, variações dos genes APOA1, SCARB1 e CETB influenciaram os níveis de HDL em população do Sul do Brasil28. Analisando-se a relevância de variações genéticas e resistência insulínica em pacientes com diabetes, não foi encontrada associação entre o polimorfismo K121Q do gene ENPP1 e a presença de cardiopatia isquêmica29. Em relação à cardiopatia isquêmica, a ausência do alelo *235T do angiotensinogênio diminuiu o risco de disfunção cardíaca após síndromes coronarianas agudas30. Finalmente, em pacientes do Espírito Santo com cardiopatia hipertrófica, a relevância de mutações relacionadas à musculatura foi evidenciada pela associação da mutação p.E441K no exon 16 do gene MYBPC3 com fenótipo menos grave. Por outro lado, a mutação p.R92W no exon 9 do gene TNNT2 foi associada com formas de hipertrofia mais graves31.
Finalmente, outra área em que a pesquisa básica tem se destacado na revista é no estudo dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos em diversas patologias. Podemos citar três exemplos dessa área. Tema que vem sendo bastante estudado nos últimos anos está relacionado com os efeitos da obesidade em variáveis funcionais e morfológicas cardíacas32. Nesse sentido, o mecanismo de disfunção cardíaca foi estudado na obesidade. Verificou-se que a piora funcional em pesquisas em ratos obesos foi associada com alterações na ativação da Serca2a, via ativação da calmodulina quinase33. Em outra linha, na avaliação dos efeitos hemodinâmicos da sobrecarga ventricular direita promovida pela obstrução seletiva da vasculatura pulmonar em porcos, os autores encontraram que, apesar da intensa sobrecarga ventricular direita promovida pela obstrução de 82,0% da vasculatura pulmonar e pelo aumento significativo da pressão arterial pulmonar, não houve disfunção cardiovascular severa e/ou choque circulatório no período estudado34. Finalmente, foram estudados efeitos da angiotensina-I e isquemia na recuperação funcional em corações isolados. Os dados sugeriram que a angiotensina-II participa direta ou indiretamente no dano pós-isquêmico e que a capacidade de um inibidor da enzima conversora da angiotensina atenuar esse dano depende do tempo de isquemia35.
Pelo exposto, a análise de alguns dos mais recentes trabalhados da área básica/experimental nos ABC permite três conclusões. Em primeiro lugar, fica evidenciado que existe forte associação entre a pesquisa básica e a clínica, sendo que essa interação ocorre nos dois sentidos, pois, em algumas situações, observações da clínica levam ao estudo dos mecanismos envolvidos por meio da pesquisa básica. Adicionalmente, fica evidente que existem linhas de pesquisa preferenciais que estão sendo publicados na revista, destacando-se a nutrição, estudo dos polimorfismos, efeitos do tabagismo no processo de remodelação cardíaca, ecocardiograma em roedores e o estudo dos mecanismos fisiopatológicos envolvidos em diversas patologias. Finalmente, observamos com satisfação que, nos quatro níveis potenciais de atuação da pesquisa básica, a alta qualidade das publicações resultou em contribuições importantes da revista nessa área do conhecimento.
Artigo recebido em 21/09/12; revisado em 21/09/12; aceito em 21/09/12.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Out 2012 -
Data do Fascículo
Out 2012