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Terminologia Como Assunto; Nomenclatura Sistematizada de Medicina; Cardiologia/classificação

Na prática clínica diária e durante a elaboração de um artigo científico, é importante a adoção de nomenclatura adequada para melhor compreensão das descrições efetuadas. O emprego correto da terminologia anatômica é a base para a comunicação médica universal e fundamenta‑se na nomenclatura em latim publicada inicialmente em 1895 (Nomina Anatômica da Basileia). Permite ainda a padronização dos laudos, artigos e comunicações científicas entre as diferentes especialidades e métodos de imagem.

A 1ª edição brasileira da Terminologia Anatômica foi publicada em 2001 e utilizada como referência para este texto. Essa publicação resulta da criação conjunta da Comissão Federativa de Terminologia Anatômica (CFTA, ou FCAT, da sigla em inglês) e de 56 associações compostas por membros da Federação Internacional de Associações de Anatomistas (FIAA ou IFAA, da sigla em inglês). A edição brasileira foi traduzida pela Comissão de Terminologia Anatômica da Sociedade Brasileira de Anatomia1Sociedade Brasileira de Anatomia. Terminologia anatômica. São Paulo: Ed. Manole Ltda.; 2001..

No que diz respeito à nomenclatura cardíaca, alguns termos sugeridos pela CFTA não são os mais utilizados e, assim, termos consagrados pelo uso podem ser utilizados com maior frequência, mas não necessariamente representam a forma correta de denominação das estruturas anatômicas. Particularmente, alguns termos merecem atenção especial em razão da frequência com que são empregados. Já outros termos presentes na Nômina têm sido questionados por não representarem a descrição adequada quanto à posição ou mesmo à forma da estrutura2Cosío FG, Anderson RH, Kuck KH, Becker A, Borggrefe M, Campbell RW, et al. Living anatomy of the atrioventricular junctions. A guide to electrophysiologic mapping. A Consensus Statement from the Cardiac Nomenclature Study Group, Working Group of Arrhythmias, European Society of Cardiology, and the Task Force on Cardiac Nomenclature from NASPE. Circulation. 1999;100(5):e31-7.

Selvester RH. Nomina anatomica contradicta revisited: especially as it relates to cardiac imaging and electrocardiology. J Electrocardiol. 2008; 41(5):421-2.
-4Message MA, Anderson RH. Towards a new terminology for clinical anatomy, with special reference to the heart. Clin Anat. 1996;9(5):317-29..

Um termo que usualmente é utilizado em Cardiologia de forma errônea refere-se às VALVAS cardíacas: mitral, tricúspide, aórtica e pulmonar, frequentemente referidas como “válvulas”. São os componentes ou unidades funcionais das valvas cardíacas que a Comissão de Terminologia denomina VÁLVULAS, cuja definição é pequena valva. Essa mesma comissão tem tentado há muito tempo modificar o termo cúspide – que tem por definição: ápice; extremidade aguda; cume, vértice – por outro, considerado mais apropriado – válvulas ou folhetos, as subdivisões das valvas atrioventriculares. Anatomicamente, a CFTA considera que a descrição do formato em vértice ou cume não é adequada para as unidades funcionais (ou válvulas) das valvas atrioventriculares1Sociedade Brasileira de Anatomia. Terminologia anatômica. São Paulo: Ed. Manole Ltda.; 2001..

Além do emprego de termos inapropriados no que se refere à forma das estruturas cardíacas, outro ponto de relevância consiste na falha de descrição da sua localização em relação à posição anatômica convencional.

Em 2002, Cerqueira e cols5Cerqueira MD, Weissman NJ, Dilsizian V, Jacobs AK, Kaul S, Laskey WK, et al. Standardized myocardial segmentation and nomenclature for tomographic imaging of the heart. A statement for healthcare professionals from the Cardiac Imaging Committee of the Council on Clinical Cardiology of the American Heart Association. Circulation. 2002;105(4):539-42.. publicaram recomendações do Comitê de Imagem Cardíaca da American Heart Association em uma tentativa de padronizar a nomenclatura cardíaca para as diferentes modalidades de imagem, incluindo os métodos de medicina nuclear, ressonância magnética, tomografia computadorizada, ecocardiografia e angiografia coronariana5Cerqueira MD, Weissman NJ, Dilsizian V, Jacobs AK, Kaul S, Laskey WK, et al. Standardized myocardial segmentation and nomenclature for tomographic imaging of the heart. A statement for healthcare professionals from the Cardiac Imaging Committee of the Council on Clinical Cardiology of the American Heart Association. Circulation. 2002;105(4):539-42.. A despeito das diferenças técnicas entre os métodos de imagem, todos têm como objetivo a descrição cardíaca e das estruturas adjacentes do modo mais representativo da anatomia real. Contudo, cada uma dessas técnicas evoluiu de maneira independente no que diz respeito à descrição da orientação cardíaca, do número e nomenclatura dos segmentos miocárdicos, da distribuição do território arterial coronariano, levando-se em consideração potenciais inerentes e limitações de cada método. Assim, para facilitar a comunicação e a correlação entre os métodos de imagem cardíaca, naquele documento, os autores sugerem que todas as modalidades de imagem orientem e apresentem o coração ao longo de seu eixo longitudinal, sendo os demais planos orientados ortogonalmente em relação ao eixo longitudinal cardíaco.

Uma procura simples (outubro de 2014) pelas ferramentas de busca da internet mostra que tal artigo já foi citado na literatura mais de duas mil vezes, tendo se tornado, portanto, uma referência de peso em nomenclatura cardiovascular. Na publicação, os autores, participantes de um Comitê da American Heart Association reunido especialmente para o propósito de discutir nomenclatura, corrigiram uma falha clara na denominação da parede inferior do coração, anteriormente denominada de forma incorreta como “posterior”. Todavia, persistiram denominando como “anterior” a parede oposta à inferior ou diafragmática. A simples observação da figura 1, que mostra o coração em um exame de tomografia computadorizada, não deixa dúvidas de que a parede oposta à inferior está localizada superiormente. Ainda na figura 1, verifica-se que a porção mais anterior da parede ventricular esquerda é de fato o septo ventricular. Essa inconsistência deve ser levada em consideração por aqueles que analisam o coração em sua posição dentro do tórax.

Figura 1
À esquerda, representação esquemática da localização cardíaca em relação à posição anatômica no interior do tórax, demonstrando o eixo longitudinal cardíaco (acima). Posição cardíaca quando o eixo longitudinal cardíaco é posicionado com o coração na posição anatômica (ao meio) e de acordo com a orientação vertical utilizada na nomenclatura convencional empregada atualmente (abaixo), considerando-se o coração retirado do tórax e apoiado sobre o seu ápice. À direita (acima), Imagens de tomografia computadorizada demonstrando a posição do coração em relação à coluna e ao esterno (A). Em B, Imagem de tomografia computadorizada em eixo curto (transversal) da massa ventricular, ao nível dos músculos papilares, demonstra a localização mais anterior do grupo muscular “posteromedial” (seta laranja) em relação ao grupo muscular papilar “anterolateral”. É evidenciada a localização das paredes miocárdicas em relação à posição anatômica (correlacionar com tabela 1). A, anterior; H (head), cranial ou superior; F (foot), caudal ou inferior; VE, ventrículo esquerdo; VD, ventrículo direito.

Um corolário da observação acima é a denominação vigente dos músculos papilares do ventrículo esquerdo. O grupo conhecido como “anterolateral” apresenta-se na realidade mais posterior em relação ao grupo chamado usualmente de “posteromedial” (Figura 1).

Além disso, na posição anatômica, as cavidades cardíacas ditas “direitas” na verdade localizam-se ântero‑superiormente às cavidades referidas como “esquerdas” (Figura 1). Essa nomenclatura convencional facilita a descrição de shunts direita-esquerda, ou vice‑versa, porém não reflete a posição anatômica verdadeira. Em outro exemplo, a artéria coronária chamada descendente posterior localiza-se na superfície diafragmática cardíaca e tem trajeto interventricular e inferior (e não descendente e posterior)6Anderson RH, Loukas M. The importance of attitudinally appropriate description of cardiac anatomy. Clin Anat. 2009; 22(1):47-51.,7Cook AC, Anderson RH. Attitudinally correct nomenclature. Heart. 2002; 87(6):503-6.. Sua oclusão leva ao infarto denominado pelos cardiologistas como “infarto de parede inferior”, apesar do nome da coronária culpada.

A questão do emprego da nomenclatura levando‑se em consideração a posição anatômica do coração tem sido tratada com muita atenção e cuidado por eletrofisiologistas para facilitar o ensino e o entendimento da cateterização diagnóstica e intervencionista dos médicos em treinamento2Cosío FG, Anderson RH, Kuck KH, Becker A, Borggrefe M, Campbell RW, et al. Living anatomy of the atrioventricular junctions. A guide to electrophysiologic mapping. A Consensus Statement from the Cardiac Nomenclature Study Group, Working Group of Arrhythmias, European Society of Cardiology, and the Task Force on Cardiac Nomenclature from NASPE. Circulation. 1999;100(5):e31-7.. Durante a inserção de um cateter na veia cava inferior em direção ao vértice do triângulo de Koch, onde se situa o nó atrioventricular, a direção do movimento era, em passado não muito distante, descrita como “anterior”, tendo em vista o hábito errado de se descrever o coração fora do tórax e apoiado verticalmente sobre o seu ápice. Sabemos, no entanto, que o vértice desse triângulo situa-se superiormente em relação ao orifício da veia cava inferior, quando se leva em conta a posição anatômica do coração. Esses vícios de nomenclatura podem levar a erros no aprendizado e até a iatrogenias.

Cosio e cols.2Cosío FG, Anderson RH, Kuck KH, Becker A, Borggrefe M, Campbell RW, et al. Living anatomy of the atrioventricular junctions. A guide to electrophysiologic mapping. A Consensus Statement from the Cardiac Nomenclature Study Group, Working Group of Arrhythmias, European Society of Cardiology, and the Task Force on Cardiac Nomenclature from NASPE. Circulation. 1999;100(5):e31-7. sugeriram uma nomenclatura das paredes cardíacas levando-se em consideração a orientação anatômica correta do coração (Tabela 1).

Tabela 1
Nomenclatura convencionalmente utilizada e terminologia considerando-se a posição anatômica

Comentários finais

O intuito deste texto não é, de nenhuma maneira, esgotar o assunto e nem recomendar uma mudança imediata da nomenclatura vigente, mas apenas alertar e conscientizar o leitor para a utilização frequente de termos não completamente adequados na descrição da morfologia cardíaca em diferentes métodos de imagem. A nomenclatura baseada na orientação anatômica correta facilita sobremaneira a localização espacial das estruturas cardíacas e da relação do coração com os demais órgãos. Permite, ainda, o intercâmbio e a comparação de informações entre diferentes exames de imagem, além de orientar procedimentos diagnósticos e terapêuticos, por exemplo, em eletrofisiologia, ou nas modernas salas híbridas que integram exames multimodalidades.

A adoção de modificações em nomenclatura já consagrada pelo uso irá, todavia, requerer uma ampla conscientização dos usuários, além de reflexões no sentido de reconhecer a necessidade de mudanças e a realização de esforços para a implementação e aceitação dessas.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós‑graduação.

Agradecimentos

Agradecemos ao Dr. José Rodrigues Parga Filho pelas imagens de tomografia computadorizada cardíaca cedidas para utilização neste artigo.

References

  • 1
    Sociedade Brasileira de Anatomia. Terminologia anatômica. São Paulo: Ed. Manole Ltda.; 2001.
  • 2
    Cosío FG, Anderson RH, Kuck KH, Becker A, Borggrefe M, Campbell RW, et al. Living anatomy of the atrioventricular junctions. A guide to electrophysiologic mapping. A Consensus Statement from the Cardiac Nomenclature Study Group, Working Group of Arrhythmias, European Society of Cardiology, and the Task Force on Cardiac Nomenclature from NASPE. Circulation. 1999;100(5):e31-7.
  • 3
    Selvester RH. Nomina anatomica contradicta revisited: especially as it relates to cardiac imaging and electrocardiology. J Electrocardiol. 2008; 41(5):421-2.
  • 4
    Message MA, Anderson RH. Towards a new terminology for clinical anatomy, with special reference to the heart. Clin Anat. 1996;9(5):317-29.
  • 5
    Cerqueira MD, Weissman NJ, Dilsizian V, Jacobs AK, Kaul S, Laskey WK, et al. Standardized myocardial segmentation and nomenclature for tomographic imaging of the heart. A statement for healthcare professionals from the Cardiac Imaging Committee of the Council on Clinical Cardiology of the American Heart Association. Circulation. 2002;105(4):539-42.
  • 6
    Anderson RH, Loukas M. The importance of attitudinally appropriate description of cardiac anatomy. Clin Anat. 2009; 22(1):47-51.
  • 7
    Cook AC, Anderson RH. Attitudinally correct nomenclature. Heart. 2002; 87(6):503-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2015

Histórico

  • Recebido
    27 Ago 2014
  • Revisado
    10 Jan 2015
  • Aceito
    12 Jan 2015
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