Acessibilidade / Reportar erro

Fístulas da Artéria Coronária

Resumo

A fístula da artéria coronária é uma anormalidade anatômica rara das artérias coronárias que afeta 0,002% da população geral e representa 14% de todas as anomalias das artérias coronárias. A sua relevância clínica concentra-se principalmente no mecanismo do fenômeno do roubo coronário, que causa isquemia funcional do miocárdio, mesmo na ausência de estenose; portanto, angina e dispneia aos esforços são sintomas comuns. A abordagem diagnóstica sugerida é orientada pelos sintomas dos pacientes e consiste em uma série de exames instrumentais, como ECG, teste de esteira, ecocardiografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética cardíaca e angiografia coronária. Nos casos onde não é um achado acidental, a angiografia coronária é necessária para o planejamento terapêutico otimizado. As pequenas fístulas geralmente são assintomáticas e o prognóstico é excelente se forem tratadas medicamente com acompanhamento clínico e ecocardiografia no período de 2 a 5 anos. As fístulas grandes/gigantes e sintomáticas, ao contrário, devem ser submetidas a fechamento invasivo, por via transcateter ou ligadura cirúrgica, cujos resultados são equivalentes no acompanhamento de longo prazo. A profilaxia antibiótica para a prevenção da endocardite bacteriana é recomendada para todos os pacientes com fístulas da artéria coronária submetidos a procedimentos dentários, gastrointestinais ou urológicos. O acompanhamento ao longo da vida é sempre essencial para garantir que o paciente não sofra progressão da doença ou outras complicações cardíacas.

Isquemia Miocárdica; Fístula Arterio-Arterial/diagnóstico por imagem; Fístula Arterio-Arterial/cirurgia; Angiografia Coronária/métodos; Técnicas de Fechamento/tendências; Antibacterianos/uso terapêutico

Abstract

Coronary artery fistula is a rare anatomic abnormality of the coronary arteries that affects 0.002% of the general population and represents 14% of all anomalies of coronary arteries. Its clinical relevance focuses mainly on the mechanism of the coronary steal phenomenon, causing myocardial functional ischemia, even in the absence of stenosis; therefore, angina and effort dyspnea are common symptoms. The suggested diagnostic approach is driven by patients’ symptoms, and it consists of a number of instrumental examinations like ECG, treadmill test, echocardiography, computed tomography scan, cardiac magnetic resonance, and coronary angiography. If it is not an incidental finding, coronary angiography is required in view of optimal therapeutic planning. Small fistulae are usually asymptomatic, and prognosis is excellent if they are managed medically with clinical follow-up and echocardiography every 2 to 5 years. Large/giant, symptomatic fistulae, on the contrary, should undergo invasive closure, via either transcatheter approach or surgical ligation, whose results are equivalent at long-term follow-up. Antibiotic prophylaxis for prevention of bacterial endocarditis is recommended in all patients with coronary artery fistulae who undergo dental, gastrointestinal, or urological procedures. Life-long follow-up is always essential to ensure that the patient does not undergo progression of the disease or further cardiac complications.

Myocardial Ischemia; Arterio-arterial fistula/diagnostic imaging; Arterio-arterial fistula/surgery; Coronary Angiography/methods; Closure Techniques/trends; Anti-Bacterial Agents/therapeutic use

A fístula da artéria coronária (FAC) é uma conexão entre uma ou mais artérias coronárias e uma câmara cardíaca (fístula coronária-cameral) ou um vaso sanguíneo maior (fístula arteriovenosa) quando o leito capilar do miocárdio é desviado. Embora sejam geralmente isolados (80%), também podem estar associados a outras malformações cardíacas congênitas (20%), incluindo tetralogia de Fallot, persistência do canal arterial, e defeitos do septo atrial e do septo ventricular.1,2

A incidência exata de FAC ainda é desconhecida, pois a taxa de casos não diagnosticados permanece alta, mas estima-se que, enquanto a incidência de anomalias coronárias é de 0,2% a 1,2% na população geral, a FAC está presente em 0,002%.33. Kardos A, Babai L, Rudas L, Gaál T, Horváth T, Tálosi L, et al. Epidemiology of congenital coronary artery anomalies: a coronary arteriography study on a central European population. Cathet Cardiovasc Diagn. 1997;42(3):270-5.,44. Vavuranakis M, Bush CA, Boudoulas H. Coronary artery fistulas in adults: Incidence, angiographic characteristics, natural history. Cathet Cardiovasc Diagn. 1995;35(2):116-20. A FAC representa cerca de 0,2% a 0,4% de todas as malformações cardíacas55. Challoumas D, Pericleous A, Dimitrakaki IA, Danelatos C, Dimitrakakis G. Coronary arteriovenous fistulae: a review. Int J Angiol. 2014;23(1):1-10. e 14% de todas as anomalias coronárias.66. Qureshi SA. Coronary arterial fistulas. Orphanet J Rare Dis 2006 Dec 21;1:51. Diversos estudos indicam FAC em 0,3% dos pacientes que apresentavam cardiopatia congênita, em 0,06% das crianças submetidas à ecocardiografia e em 0,13% a 0,22% dos adultos submetidos à angiografia coronária.77. Buccheri D, Luparelli M, Chirco PR, Piraino D, Andolina G, Assennato P. A call to action for an underestimated entity: Our algorithm for diagnosis and management of coronary artery fistula. Int J Card 2016 Oct 21;221:1081-3.

Cerca de 75% de todos os casos de FAC descobertos acidentalmente são pequenos e clinicamente silenciosos.88. Mangukia CV. Coronary artery fistula. Ann Thorac Surg. 2012;93:2084-92.

Embora, no passado, a etiologia da FAC fosse predominantemente das formas congênitas, ao longo dos anos, o desenvolvimento e a disseminação de técnicas intervencionistas e cirúrgicas têm resultado em mudanças na sua etiologia, com maior prevalência das formas adquiridas,99. Buccheri D, Dendramis G, Piraino D, Chirco PR, Carità P, Paleologo C, et al. Coronary artery fistulas as a cause of angina: How to manage these patients? Cardiovasc Revasc Med 2015;16(5):306-9. que podem incluir formas secundárias a endocardite infecciosa, dissecção aórtica, cirurgia anterior, biópsia endomiocárdica, angioplastia coronária, cirurgia de revascularização, substituição valvar, transplante cardíaco, trauma, colocação de marca-passo permanente, ablação de vias acessórias com tórax fechado, neoplasias e manejo iatrogênico de doença de Kawasaki.1010. Koenig PR, Kimball TR, Schwartz DC. Coronary artery fistula complicating the evaluation of Kawasaki disease. Pediatr Cardiol 1993;14(3):179-80.

A artéria que alimenta a fístula pode drenar de uma artéria coronária ou de um de seus ramos e, geralmente após um curso dilatado e tortuoso, termina em uma das câmaras cardíacas ou em um vaso. A FAC com origem proximal é frequentemente grande; pelo contrário, se a sua origem é distal, geralmente é menor e mais tortuosa.1111. Buccheri D, Pisano C, Piraino D, Cortese B, Chirco P, Dendramis G, et al. Coronary Artery Fistulas: Symptoms may not Correlate to Size. An Emblematic Case and Literature Review. Internat Cardiovasc Forum J. 2015;4,79-81.

Pode haver múltiplas artérias alimentando um único ponto de drenagem da FAC ou podem existir múltiplos locais de drenagem. Também foram relatadas múltiplas fístulas entre as 3 principais artérias coronárias e o ventrículo esquerdo. Em alguns casos, especialmente em adultos, as fístulas podem originar-se de ambas as artérias coronárias, que drenam para o tronco pulmonar. Essas fístulas podem, frequentemente, causar angina e exigir o fechamento.1212. Latson LA. Coronary artery fistulas: how to manage them. Catheter Cardiovasc Interv 2007; 70:110-6. A FAC surge com mais frequência da artéria coronária direita (aproximadamente 50% a 60%) e drena com mais frequência no coração direito (aproximadamente 80%).

As fístulas de grande calibre podem permitir o conhecido fenômeno do roubo coronário, no qual o sangue com escoamento diastólico é direcionado para longe da circulação coronária normal e da microcirculação miocárdica. Quando o local de drenagem está localizado no átrio esquerdo ou na veia pulmonar, há efetivamente um shunt esquerdo-esquerdo que determina uma sobrecarga de volume apenas para o coração esquerdo.

Ocasionalmente, pode ser realizado um diagnóstico presuntivo ao ouvir um sopro atípico sistólico, diastólico ou contínuo, embora os sinais possam ser encontrados no ECG, na radiografia de tórax ou na ecocardiografia.

Os exames esclarecedores são a tomografia computadorizada com múltiplos detectores ou a ressonância magnética. A tomografia computadorizada é superior à ecocardiografia em pacientes com sobrepeso e permite um excelente delineamento anatômico, ao contrário da ecocardiografia. A angiografia coronária continua sendo a melhor técnica diagnóstica para a detecção de FAC com envolvimento estrutural cardíaco e para avaliação hemodinâmica; além disso, possibilita programar o fechamento intervencionista com dispositivos dedicados.1313. Said SA, Hofman MB, Beek AM, van der Werf T, van Rossum AC. Feasibility of cardiovascular magnetic resonance of angiographically diagnosed congenital solitary coronary artery fistulas in adults. J Cardiovasc Magn Reson. 2007;9(3):575-83.

As FAC de tamanho pequeno ou moderado devem ser fechadas apenas no caso em que os pacientes são sintomáticos para isquemia miocárdica, arritmias, dilatação ventricular ou disfunção de origem incerta, ou se houver complicações por endocardite. Caso contrário, os pacientes com fístulas pequenas e assintomáticas não precisam ser submetidos a fechamento, apenas a acompanhamento clínico com ecocardiografia no período de 2 a 5 anos.

Pacientes com FAC submetidos a fechamento percutâneo ou cirúrgico têm bom prognóstico, podendo variar de acordo com as possíveis complicações relacionadas às técnicas, a gravidade do shunt e a morfologia da fístula. A expectativa de vida, no entanto, é normal, com taxas de recorrência variando de 9% a 19% para o fechamento transcateter e 25% para a ligadura cirúrgica.22. Buccheri D, Chirco PR, Geraci S, Caramanno G, Cortese B. Coronary Artery Fistulae: Anatomy, Diagnosis and Management Strategies. Heart Lung Circ. 2018 Aug;27(8):940-51. doi: 10.1016/j.hlc.2017.07.014. Epub 2018 Feb 9.
https://doi.org/10.1016/j.hlc.2017.07.01...
,66. Qureshi SA. Coronary arterial fistulas. Orphanet J Rare Dis 2006 Dec 21;1:51.,1414. Dimitrakakis G1, Von Oppell U, Luckraz H, Groves P. Surgical repair of triple coronary-pulmonary artery fistulae with associated atrial septal defect and aortic valve regurgitation. Interact Cardiovasc Thorac Surg. 2008;7(5):933-4.

Mais detalhes estão agora disponíveis graças a recentes estudos interessantes.1515. Cobo DL, Batigalia F, Croti UA, Sciarra AMP, Foss MHD, Cobo,RGF, et al.Fístula da Artéria Coronária: Associação entre Padrões de Trajetos, Características Clínicas e Cardiopatias Congênitas. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(1):84-88.

Referências

  • 1
    Dodge-Khatami A, Mavroudis C, Backer CL. Congenital Heart Surgery Nomenclature and Database Project: anomalies of the coronary arteries. Ann Thorac Surg 2000;69(4 Suppl):S270-97.
  • 2
    Buccheri D, Chirco PR, Geraci S, Caramanno G, Cortese B. Coronary Artery Fistulae: Anatomy, Diagnosis and Management Strategies. Heart Lung Circ. 2018 Aug;27(8):940-51. doi: 10.1016/j.hlc.2017.07.014. Epub 2018 Feb 9.
    » https://doi.org/10.1016/j.hlc.2017.07.014
  • 3
    Kardos A, Babai L, Rudas L, Gaál T, Horváth T, Tálosi L, et al. Epidemiology of congenital coronary artery anomalies: a coronary arteriography study on a central European population. Cathet Cardiovasc Diagn. 1997;42(3):270-5.
  • 4
    Vavuranakis M, Bush CA, Boudoulas H. Coronary artery fistulas in adults: Incidence, angiographic characteristics, natural history. Cathet Cardiovasc Diagn. 1995;35(2):116-20.
  • 5
    Challoumas D, Pericleous A, Dimitrakaki IA, Danelatos C, Dimitrakakis G. Coronary arteriovenous fistulae: a review. Int J Angiol. 2014;23(1):1-10.
  • 6
    Qureshi SA. Coronary arterial fistulas. Orphanet J Rare Dis 2006 Dec 21;1:51.
  • 7
    Buccheri D, Luparelli M, Chirco PR, Piraino D, Andolina G, Assennato P. A call to action for an underestimated entity: Our algorithm for diagnosis and management of coronary artery fistula. Int J Card 2016 Oct 21;221:1081-3.
  • 8
    Mangukia CV. Coronary artery fistula. Ann Thorac Surg. 2012;93:2084-92.
  • 9
    Buccheri D, Dendramis G, Piraino D, Chirco PR, Carità P, Paleologo C, et al. Coronary artery fistulas as a cause of angina: How to manage these patients? Cardiovasc Revasc Med 2015;16(5):306-9.
  • 10
    Koenig PR, Kimball TR, Schwartz DC. Coronary artery fistula complicating the evaluation of Kawasaki disease. Pediatr Cardiol 1993;14(3):179-80.
  • 11
    Buccheri D, Pisano C, Piraino D, Cortese B, Chirco P, Dendramis G, et al. Coronary Artery Fistulas: Symptoms may not Correlate to Size. An Emblematic Case and Literature Review. Internat Cardiovasc Forum J. 2015;4,79-81.
  • 12
    Latson LA. Coronary artery fistulas: how to manage them. Catheter Cardiovasc Interv 2007; 70:110-6.
  • 13
    Said SA, Hofman MB, Beek AM, van der Werf T, van Rossum AC. Feasibility of cardiovascular magnetic resonance of angiographically diagnosed congenital solitary coronary artery fistulas in adults. J Cardiovasc Magn Reson. 2007;9(3):575-83.
  • 14
    Dimitrakakis G1, Von Oppell U, Luckraz H, Groves P. Surgical repair of triple coronary-pulmonary artery fistulae with associated atrial septal defect and aortic valve regurgitation. Interact Cardiovasc Thorac Surg. 2008;7(5):933-4.
  • 15
    Cobo DL, Batigalia F, Croti UA, Sciarra AMP, Foss MHD, Cobo,RGF, et al.Fístula da Artéria Coronária: Associação entre Padrões de Trajetos, Características Clínicas e Cardiopatias Congênitas. Arq Bras Cardiol. 2021; 117(1):84-88.
  • Minieditorial referente ao artigo: Fístula da Artéria Coronária: Associação entre Padrões de Trajetos, Características Clínicas e Cardiopatias Congênitas

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jul 2021
  • Data do Fascículo
    Jul 2021
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br