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Projeto Corações do Brasil

PONTO DE VISTA

Projeto Corações do Brasil

Raimundo Marques do Nascimento Neto; José Eduardo Krieger; George L. Machado-Coelho; Alexandre da Costa Pereira

pelos Investigadores do Projeto Corações do Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Raimundo Marques Nascimento Neto Av. do Contorno, 3915 30320-450 Belo Horizonte, MG E-mail: rmnn@terra.com.br

O entendimento sobre as doenças cardiovasculares aumentou exponencialmente nas últimas décadas graças a um intenso programa de pesquisa multidisciplinar empreendido pela comunidade científica mundial. Aspectos relevantes da fisiopatologia da aterosclerose e da oclusão vascular aguda foram fornecidos pela pesquisa básica. A pesquisa epidemiológica, por sua vez, identificou a importância de fatores de risco específicos e melhorou sobremaneira nossas ferramentas para identificar indivíduos com risco aumentado de doença e/ou eventos cardiovasculares. Finalmente, ensaios clínicos mostraram, de maneira conclusiva, quais os tratamentos que funcionam, quais não1.

Uma das maiores críticas existentes é o pouco conhecimento de médicos e planejadores de saúde em nosso país quanto aos dados demográficos representativos do atual estado de diversas doenças da população brasileira. A despeito da existência de uma série de ferramentas que disponibilizam dados nacionais relativos à situação de diversas doenças em nossa população, entre elas as cardiovasculares, a maioria dos artigos nacionais, tanto originais quanto de revisão bibliográfica, não descreve a realidade no país, ou se utiliza das estatísticas de outros países e realidades culturais para fazê-lo2.

É fato que uma série de fontes valiosas encontra-se disponível para consulta, dentre as quais destacam-se dados provenientes dos censos nacionais disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)3, dados do Ministério da Saúde, disponibilizados através do sistema de informação do Sistema Unificado de Saúde (Datasus)4 ou dados provenientes da Fundação Seade5. No entanto, a despeito da relativa grande quantidade de dados demográficos e nosológicos disponíveis para nossa população, dados específicos referentes a distribuição e prevalência de doenças e fatores de risco cardiovasculares para nossa população são relativamente raros ou disponíveis apenas para grupos ou populações específicas, nos quais estudos epidemiológicos de determinação de prevalência de doenças cardiovasculares foram realizados.

São exemplos de estudos de grande sucesso em nosso meio os realizados na população da cidade de Vitória, ES6, o estudo Bambuí, realizado na cidade de mesmo nome7, o estudo transversal realizado na população da cidade de Salvador, BA8, o estudo transversal realizado na cidade de Porto Alegre, RS9, entre outros. Ainda assim, dados que possam ser utilizados por outras regiões do país ou que apresentem, em âmbito nacional, a real dimensão de interações existentes para fatores de risco cardiovascular em nossa população ainda não são amplamente disponíveis.

Nesse cenário insere-se o Projeto Corações do Brasil, que tem por objetivo traçar um perfil da distribuição de fatores de risco cardiovascular na população brasileira. Com os dados obtidos através do projeto espera-se que médicos e planejadores de políticas públicas na área da saúde possam decidir por ações mais adequadas e efetivas em relação à população brasileira em suas diversas regiões. Um objetivo secundário do projeto é a criação de um banco de dados de fatores de risco cardiovascular que possa ser utilizado de maneira aberta por pesquisadores interessados em estudar aspectos ainda desconhecidos da epidemiologia de fatores de risco cardiovascular na população brasileira.

Desenho do estudo

O projeto foi desenvolvido por meio de um projeto piloto aplicado na cidade de Ouro Preto, MG, o projeto Corações de Ouro Preto. Nesse piloto, a estruturação de questionários e a logística de campo foram aplicadas e testadas. Aprendeu-se também ali como realizar a captação de recursos financeiros. O Projeto Corações do Brasil é financiado por diversas instituições, representadas pela indústria farmacêutica (Astra Zeneca, Biossintética, Biolab, Libbs, Novartis e Sanofi), pela indústria de equipamentos (Omron, Roche diagnóstico), pela Agência Nacional de Saúde (ANS), pelo Ministério da Saúde, pelo Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems) e pela Central elétrica de Furnas. Todo o processo logístico e os resultados já alcançados têm aproximado do projeto outras possíveis parcerias. Todos esses recursos e experiências foram repassados para a SBC/Funcor. A estrutura administrativa e a capilaridade da representação do Funcor foram fundamentais no sucesso do projeto.

Realização do estudo

O estudo utilizou uma metodologia de baixo custo operacional e financeiro e foi dividido em duas fases distintas.

Na primeira fase, por meio de questionários estruturados, foram obtidas informações socioeconômicas, de serviços e de infra-estrutura, caracterização familiar, estado nutricional, uso de medicamentos, hábitos comportamentais, história de fatores de risco cardiovascular e/ou doença cardiovascular em aproximadamente 2.500 indivíduos escolhidos aleatoriamente em 72 cidades brasileiras.

A amostragem dessa primeira fase foi realizada pelo Instituto de Pesquisa Vox Populi, e teve como principal objetivo garantir que a amostra obtida fosse representativa da população brasileira, distribuída conforme sexo, idade e classe socioeconômica. Foram escolhidas 72 cidades nas cinco regiões do país (fig. 1) e o número de indivíduos amostrados em cada cidade foi proporcional à população residente no município em questão. Esse número variou de no mínimo quinze indivíduos para as menores cidades, até quatrocentos indivíduos para a cidade de São Paulo.


O projeto foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), e a primeira fase teve início em julho de 2004, tendo sido realizada mediante entrevista domiciliar efetuada por profissionais do Instituto Vox Populi. A escolha do indivíduo se deva com base em três estágios diferentes. Na cidade em estudo eram escolhidos, a partir de dados fornecidos pelo IBGE, os setores censitários a serem amostrados. Nesses setores elegia-se uma rua para o início da pesquisa. Nessa rua, a partir de regras simples de aleatorização, escolhia-se o domicílio a ser amostrado. Dentro desse domicílio escolhia-se, com base em critérios predefinidos e respeitando estratificação por sexo e faixa etária, o indivíduo a ser amostrado. Na hipótese de o indivíduo não estar presente no momento do primeiro contato do entrevistador, esse poderia ainda ser amostrado em mais duas visitas subseqüentes, realizadas em outro dia e/ou horário pelo mesmo entrevistador. Critérios rígidos de amostragem garantiram ao projeto que a amostra estudada fosse representativa da população brasileira.

A segunda etapa do projeto consistiu no convite feito aos indivíduos entrevistados na primeira etapa para comparecerem a uma consulta médica em sua cidade. Nessa fase, o projeto contou com a participação de inúmeros sócios da SBC, bem como enfermeiras, estudantes de medicina e enfermagem, técnicos de enfermagem e técnicos de laboratório, que se prontificaram a receber esses indivíduos e realizar uma consulta médica padronizada com o objetivo de adquirir dados provenientes de questionários médicos (não aplicáveis por não-médicos), medidas clínicas como pressão arterial, antropometria, índice tornozelo-braquial e coleta de material biológico para avaliação de fatores de risco cardiovascular bioquímicos. Sem a valiosa participação de membros da Sociedade que voluntariamente participaram da realização dessa segunda fase o projeto Corações do Brasil teria sido apenas mais uma recapitulação de dados obtidos em diversos outros levantamentos epidemiológicos na população brasileira.

Visando garantir a uniformidade dos dados obtidos nas 72 cidades onde o projeto foi realizado, material padronizado para a realização das medidas de pressão arterial, antropometria e coleta de material biológico foi cuidadosamente fornecido para todos os centros participantes. Ainda, reuniões de treinamento com a presença de pesquisadores de todos os centros foram realizadas para que fossem padronizadas todas as etapas dessa segunda fase do projeto.

Nessa fase foram obtidos dados de 1.500 indivíduos, distribuídos de maneira representativa quanto a sexo, idade e classe socioeconômica. A diferença no número de indivíduos entrevistados na primeira fase em relação à segunda não constitui viés significativo e já era esperada, considerando-se que a primeira fase já havia sido dimensionada levando em conta as possíveis perdas para a segunda fase. Isso não significou, no entanto, perda da representatividade populacional com relação às variáveis sexo e faixa etária, uma vez que a organização do projeto teve uma conduta pró-ativa na convocação de indivíduos de estratos inicialmente pouco representados na segunda fase.

Indivíduos participantes foram avaliados nessa segunda fase com relação às variáveis de medidas clínicas como peso, altura, circunferência abdominal etc. Um dos dados mais interessantes obtidos nessa segunda fase foi a determinação do índice tornozelo-braquial, um indicador de doença arterial periférica e fator de risco para eventos coronários ainda não estudado com relação à sua distribuição na população brasileira. Dados provenientes dessa etapa serão utilizados na caracterização de nossa população, bem como no estudo de novas interações entre fatores de risco, provavelmente específicas para a população brasileira.

Finalmente, nessa fase foram ainda obtidas amostras de sangue e urina para determinação de fatores de risco cardiovascular bioquímicos, como glicemia de jejum, colesterol total e frações, triglicérides, dados de função renal e microalbuminúria. Por meio do projeto Corações do Brasil constituiu-se um banco de amostras de DNA dos indivíduos participantes, que será utilizado para identificação e caracterização de novos fatores de risco, genéticos que possam explicar parte da variabilidade de doença cardiovascular na população brasileira.

A utilização dos dados do Projeto Corações do Brasil

Talvez o maior impacto do projeto, e também seu maior desafio, não seja obtido pelas informações diretas que ele proporciona sobre a distribuição de fatores de risco cardiovascular, mas sim o melhor entendimento de como esses fatores interagem determinando o risco de doença de nossa população. Esse conhecimento, no entanto, não virá por meio da simples descrição dos dados obtidos com questionários e consulta médica. Virá de uma análise cuidadosa e baseada em hipóteses científicas que deve ser realizada utilizando todas as variáveis obtidas com o projeto. Esse é o maior desafio do projeto a partir desse momento.

Dessa maneira, por intermédio dos diversos pesquisadores que participaram das fases de desenho do estudo e obtenção dos dados, bem como por meio de debates com representantes dos diversos departamentos da Sociedade Brasileira de Cardiologia, optou-se pela disponibilização de dados provenientes do projeto a todos os interessados em desenvolver projetos de pesquisa e que desejem utilizar dados do "Corações do Brasil" para seu projeto. À semelhança de outros estudos epidemiológicos, como o MONICA da Organização Mundial de Saúde ou o NHANES americano, pesquisadores interessados na epidemiologia de fatores de risco cardiovascular no Brasil poderão solicitar a liberação desses dados ao Comitê Gestor do Projeto Corações do Brasil, mediante a apresentação de projeto de pesquisa. As instruções para esse exercício encontram-se disponíveis no site do projeto na homepage da SBC. Espera-se, com isso, que a utilização desses dados seja a mais ampla possível e não restrita apenas a um pequeno número de investigadores. Acreditamos que é somente através do uso amplo e estimulado dos dados do Projeto que sua real contribuição e abrangência poderá ser contemplada.

Conclusões

Pode parecer, numa primeira impressão, que os dados do Projeto Corações do Brasil não fornecem novas informações importantes sobre o problema das doenças cardiovasculares no Brasil. Continuamos a necessitar de investimentos em pesquisa básica, ensaios clínicos e, principalmente, devemos ter uma grande coorte prospectiva de doença cardiovascular, ainda inexistente em nosso país. No entanto, por seu caráter e abrangência nacional, o Projeto Corações do Brasil tem um papel fundamental na definição do molde sobre o qual devemos trabalhar esse problema. È responsabilidade da SBC zelar para que esses dados sejam utilizados de forma democrática e abrangente e possam acrescentar, de fato, informações valiosas sobre determinantes de doença cardiovascular em nossa população.

REFERÊNCIAS

1. Grover AS. Role of WHO-MONICA Project in unravelling of the cardiovascular puzzle. Lancet 2000;355:668-9.

2. Lotufo PA. Medicine based in brazilians. Arq Bras Cardiol 2001;76:419-20.

3. www.ibge.gov.br

4. www.datasus.gov.br

5. www.seade.gov.br

6. Bisi Molina M del C, Cunha R de S, Herkenhoff LF, Mill JG. Hypertension and salt intake in an urban population. Rev Saúde Pública 2003;37:743-50.

7. Barreto SM, Passos VM, Firmo JO, Guerra HL, Vidigal PG, Lima-Costa MF. Hypertension and clustering of cardiovascular risk factors in a community in Southeast Brazil – The Bambui Health and Ageing Study. Arq Bras Cardiol 2001;77:576-81.

8. Lessa I, Araújo MJ, Magalhães L, Almeida Filho N, Aquino E, Costa MC. Clustering of modifiable cardiovascular risk factors in adults living in Salvador (BA), Brazil. Rev Panam Salud Publica 2004;16:131-7.

9. Fuchs FD, Moreira LB, Moraes RS, Bredemeier M, Cardozo SC. Prevalence of systemic arterial hypertension and associated risk factors in the Porto Alegre metropolitan area. Population-based study. Arq Bras Cardiol 1994;63:473-9.

  • Endereço para correspondência

    Raimundo Marques Nascimento Neto
    Av. do Contorno, 3915
    30320-450
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    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Out 2005
    • Data do Fascículo
      Set 2005
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