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Influência da redução da pré-carga sobre o índice de desempenho miocárdico (índice de Tei) e outros parâmetros Doppler ecocardiográficos da função ventricular esquerda

Resumos

OBJETIVO: Avaliar os efeitos da redução da pré-carga induzida por uma sessão de hemodiálise sobre o índice de desempenho miocárdico (Tei) e outros parâmetros ecocardiográficos de função cardíaca. MÉTODOS: Estimamos o índice de Tei e parâmetros de função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo (VE), antes e depois de uma sessão de hemodiálise. Incluímos no estudo indivíduos em ritmo sinusal e sem antecedentes de insuficiência coronariana ou evidências de valvopatia e derrame pericárdico. RESULTADOS: 15 pacientes (8 homens, idade 53 ± 14 anos) completaram o estudo. Após ultrafiltração de 2,2 ± 1,1 litros, a onda E diminuiu (p < 0,05) e a onda A permaneceu inalterada (p = ns), resultando em decréscimo de E/A (p < 0,01). O índice de Tei aumentou (0,57 ± 0,07 para 0,65 ± 0,09, p < 0,01) através do prolongamento do TRIV (101 ± 14 para 113 ± 17 ms, p < 0,01) e encurtamento do TEJ (271 ± 22 para 252 ± 22 ms, p < 0,05). O TCIV não variou (p = ns). Os parâmetros diastólicos ao Doppler tecidual não mudaram (p = ns), enquanto a velocidade sistólica (S) aumentou (p < 0,05). CONCLUSÃO: O índice de Tei foi afetado pela alteração da pré-carga induzida pela hemodiálise, assim como outros parâmetros derivados do Doppler transvalvar mitral. Os parâmetros diastólicos do Doppler tecidual do anel mitral foram independentes da pré-carga, enquanto a velocidade sistólica sugeriu melhora na função sistólica do VE após o procedimento.

Diálise renal; ecocardiografia; função ventricular esquerda


OBJECTIVE: To assess the influence of preload reduction by hemodialysis on Doppler Tei Index of myocardial performance and other parameters of cardiac function. METHODS: The Tei index and left ventricular (LV) systolic and diastolic function parameters were estimated, before and after a single hemodialysis session. Only subjects who were in sinus rhythm, without history of coronary artery disease, and no evidence of cardiac valve disease and pericardial effusion were included in the study. RESULTS: Fifteen patients (8 men, mean age 53 ± 14 years) completed the study. After an ultrafiltration of 2,2 ± 1,1 liters, peak mitral E velocity decreased (p< 0,05) and A velocity remained unchanged (p = ns), resulting in reduction of E/A ratio (p< 0,01). The Tei index increased (from 0,57 ± 0,07 to 0,65 ± 0,09, p< 0,01) because of significant prolongations in isovolumetric relaxation time (from 101 ± 14 to 113 ± 17 ms, p< 0,01) and ejection time (from 271 ± 22 to 252 ± 22, p< 0,05). The isovolumetric contraction time did not vary (p = ns). There was no change in diastolic tissue Doppler parameters, while systolic velocities increased (p< 0,05). CONCLUSION: The Tei index was affected by hemodialysis-induced preload alterations, as well as other mitral inflow Doppler-derived parameters. The diastolic parameters of mitral annulus Doppler tissue were independent of preload, while systolic velocities suggested improved systolic function.

Renal dialysis; echocardiography; Doppler; ventricular function; left


ARTIGOS ORIGINAIS

ECOCARDIOGRAFIA

Influência da redução da pré-carga sobre o índice de desempenho miocárdico (índice de Tei) e outros parâmetros Doppler ecocardiográficos da função ventricular esquerda

Silvio Henrique Barberato; Roberto Pecoits Filho

Centro de Ciências Biológicas e da Saúde e Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Curitiba, PR

Correspondência Correspondência: Silvio Henrique Barberato Rua Saint Hilaire, 122/203 80240-140 – Curitiba, PR E-mail: silviohb@cardiol.br

RESUMO

OBJETIVO: Avaliar os efeitos da redução da pré-carga induzida por uma sessão de hemodiálise sobre o índice de desempenho miocárdico (Tei) e outros parâmetros ecocardiográficos de função cardíaca.

MÉTODOS: Estimamos o índice de Tei e parâmetros de função sistólica e diastólica do ventrículo esquerdo (VE), antes e depois de uma sessão de hemodiálise. Incluímos no estudo indivíduos em ritmo sinusal e sem antecedentes de insuficiência coronariana ou evidências de valvopatia e derrame pericárdico.

RESULTADOS: 15 pacientes (8 homens, idade 53 ± 14 anos) completaram o estudo. Após ultrafiltração de 2,2 ± 1,1 litros, a onda E diminuiu (p < 0,05) e a onda A permaneceu inalterada (p = ns), resultando em decréscimo de E/A (p < 0,01). O índice de Tei aumentou (0,57 ± 0,07 para 0,65 ± 0,09, p < 0,01) através do prolongamento do TRIV (101 ± 14 para 113 ± 17 ms, p < 0,01) e encurtamento do TEJ (271 ± 22 para 252 ± 22 ms, p < 0,05). O TCIV não variou (p = ns). Os parâmetros diastólicos ao Doppler tecidual não mudaram (p = ns), enquanto a velocidade sistólica (S) aumentou (p < 0,05).

CONCLUSÃO: O índice de Tei foi afetado pela alteração da pré-carga induzida pela hemodiálise, assim como outros parâmetros derivados do Doppler transvalvar mitral. Os parâmetros diastólicos do Doppler tecidual do anel mitral foram independentes da pré-carga, enquanto a velocidade sistólica sugeriu melhora na função sistólica do VE após o procedimento.

Palavras-chave: Diálise renal, ecocardiografia, função ventricular esquerda.

Portadores de insuficiência renal crônica (IRC) em hemodiálise (HD) de manutenção sofrem uma série de mudanças metabólicas e hemodinâmicas que predispõe a alterações na anatomia e função do miocárdio1. Assim, a hipertrofia do ventrículo esquerdo (VE), alteração geométrica que é preditora independente de mortalidade2,3, acompanha-se habitualmente de disfunção diastólica. A disfunção sistólica do VE parece ser menos freqüente4,5, embora acrescente também valor prognóstico6.

Tei e cols. descreveram um índice Doppler ecocar-diográfico de desempenho miocárdico que engloba intervalos de tempo relacionados à função sistólica e diastólica, refletindo a função cardíaca global7. O índice de Tei é definido pela soma do tempo de contração isovolumétrico (TCIV) com o tempo de relaxamento isovolumétrico (TRIV), divididos pelo tempo de ejeção (TEJ). Numerosos estudos demonstraram seu valor clínico como sensível indicador da gravidade da disfunção miocárdica8-10 e preditor prognóstico em diversas afecções cardíacas11-14. Teoricamente, esse índice tem uma série de vantagens que podem ser bem aproveitadas na avaliação da função cardíaca de pacientes com IRC em HD. É de simples aquisição, reprodutível, independentemente da geometria da cavidade ventricular15, e não influenciado pela freqüência cardíaca e pressão arterial8. Entretanto, estudos experimentais em humanos16,17 e animais18,19 têm demonstrado a suscetibilidade do índice às manipulações de carga. Durante a sessão de HD, ocorre uma diminuição abrupta do volume plasmático secundária à ultrafiltração, constituindo um modelo clínico interessante de redução da pré-carga.

Vários estudos analisaram a influência da redução da pré-carga pela HD nos índices Doppler ecocardiográficos isolados de função sistólica ou diastólica, avaliados por diversos parâmetros, como a fração de ejeção20 e outros índices de contratilidade21, as velocidades e intervalos do fluxo transvalvar mitral ao Doppler pulsátil22-25, as velocidades do anel mitral ao Doppler tecidual26-28 e o volume de átrio esquerdo29. Entretanto, poucos dados existem a respeito da influência da pré-carga sobre o índice de Tei em situação clínica de rápida variação da volemia. O objetivo deste estudo é avaliar o efeito que a redução aguda da pré-carga mediada por uma sessão de HD causa no índice de Tei, bem como em outros índices de função sistólica e diastólica proporcionados pela Doppler ecocardiografia, testando se esses parâmetros são dependentes do volume intravascular.

MÉTODOS

Estudamos dezenove portadores de IRC encaminhados para ecocardiograma transtorácico (avaliação pré-transplante renal) que se encontravam em programa de HD de manutenção (sessões de quatro horas, três vezes por semana) durante pelo menos um mês no serviço de Nefrologia de nossa instituição. Foram incluídos no estudo pacientes clinicamente estáveis que estavam em ritmo sinusal, sem antecedentes de insuficiência coronariana (pesquisada através de revisão de prontuário médico e anamnese detalhada), sem evidências de doença valvar cardíaca significativa (qualquer grau de estenose mitral ou aórtica; grau maior que discreto de insuficiência mitral ou aórtica), e sem derrame pericárdico. O projeto foi aprovado pela comissão de ética de nossa instituição e consentimento escrito foi obtido dos pacientes.

A estimativa do "peso seco" (volume a ser retirado por ultrafiltração) foi baseada em sinais clínicos de hidratação e comportamento da pressão arterial durante a sessão, aliados à bioimpedância elétrica30. Foram usadas máquinas de diálise Altra Touch (Althin, Miami, Florida, Fl, USA) com dialisador de acetato celulose regulado com fluxo de sangue de 200 ml/minuto e fluxo do dialisato de 300 a 400 ml/minuto.

Verificamos pressão arterial sistólica e diastólica, freqüência cardíaca, altura e peso, antes e depois da HD. O ultrafiltrado foi estimado pela diferença de peso antes e depois do procedimento, assumindo 1 kg = 1 litro, como em outros estudos prévios com HD24-26. A superfície corpórea foi calculada de acordo com a equação simplificada de Mosteller (0,20247 x peso0,425 x altura0,725)31.O índice de massa corpórea foi calculado pela divisão do peso (kg) pelo quadrado da altura (m).

O ecocardiograma foi realizado imediatamente antes e aproximadamente trinta minutos após a sessão de HD. Os exames foram feitos sem conhecimento dos dados clínicos do paciente, por um único examinador, cardiologista-ecocardiografista com nível 3 de treinamento, de acordo com as diretrizes estabelecidas pela força-tarefa da "American College of Cardiology/American Heart Association"32.Todos os exames foram obtidos com os pacientes posicionados em decúbito lateral esquerdo, utilizando-se ecocardiógrafo HDI 3000 (ATL-Philips Ultrasound Systems, Bothell, Washington, EUA) equipado com transdutor de 2,5 MHz, procedendo-se aos cortes ecocardiográficos usuais para se obter um completo estudo aos modos M, bidimensional e Doppler (pulsátil, contínuo, colorido e tecidual) antes e depois da sessão. Os seguintes parâmetros foram obtidos a partir das aferições ao modo M: dimensão ântero-posterior do átrio esquerdo, espessura do septo interventricular e da parede posterior na diástole, dimensão diastólica final e sistólica final do VE. O átrio esquerdo foi considerado aumentado quando > 40 mm, e o VE foi considerado dilatado quando o diâmetro diastólico final era > 55 mm. A massa do VE foi obtida por meio da equação de Devereux, utilizando-se a convenção de Penn33 e indexada para a superfície corpórea. O diagnóstico de hipertrofia do VE foi feito quando o índice de massa do VE era maior do que 134 e 110 g/m2 de superfície corpórea para homens e mulheres, respectivamente34. Calculamos o encurtamento porcentual do VE a partir dos diâmetros derivados do modo M, bem como a fração de ejeção pelo método do cubo35. Consideramos disfunção sistólica do VE quando a fração de ejeção era < 65%. Registramos as velocidades do fluxo transvalvar mitral no corte apical de quatro câmaras com a amostra do Doppler pulsátil posicionada entre as extremidades das cúspides da valva mitral36, solicitando-se ao paciente apnéia nesse momento. Medimos as velocidades de enchimento rápido precoce (E) e de contração atrial (A), a relação E/A e o TRIV. O índice de Tei foi calculado pela equação a-b/b, onde a = intervalo intermitral (tempo entre o final de um fluxo mitral e o início do subseqüente); e b = TEJ (medida do intervalo de tempo do fluxo de ejeção aórtico, obtido em via de saída de VE)8. O TCIV foi calculado a partir da subtração: a – (TRIV + TEJ).

As velocidades do anel mitral ao Doppler tecidual foram medidas no corte apical de quatro câmaras com uma amostra de volume de 2 a 4 mm posicionada na junção com a parede lateral37 do VE. Regulamos filtro e ganho o mais baixo possível para otimizar o registro dos sinais miocárdicos de baixa velocidade e alta amplitude36. Obtivemos a velocidade diastólica precoce (E') e tardia (A') do anel, além das relações E'/A' e E/E'. Registramos também a velocidade sistólica do anel (S) para avaliação da função contrátil longitudinal. A média de três ciclos cardíacos foi calculada para todas as medidas Doppler ecocardiográficas.

A função diastólica do VE foi categorizada a partir da interpretação conjunta dos índices derivados do Doppler transvalvar mitral e Doppler tecidual em quatro padrões: normal (grau 0), alteração do relaxamento (grau 1), pseudonormal (grau 2) e restritivo (grau 3)38. Com a relação E/A < 1, foi classificado como grau 1. Com a relação E/A > 2, foi considerado grau 3. Na distinção entre o padrão normal verdadeiro e o pseudonormalizado, utilizamos a presença simultânea da relação E'/A'< 1 e relação E/E' > 10 para definir elevação das pressões de enchimento do VE37,39. A onda S foi considerada anormal quando abaixo de 9 cm/s39.

As variáveis contínuas foram testadas para o tipo de distribuição e tiveram seus resultados expressos como média e desvio-padrão (distribuição paramétrica) ou como mediana (distribuição não-paramétrica). As variáveis categóricas foram expressas em porcentagem. As comparações feitas antes e depois da HD foram realizadas pelo teste t-Student pareado. Utilizamos o programa estatístico JMP 5.0 (SAS Institute Inc, USA) para as análises, e o nível de significância estatística foi definido como p < 0,05. A variabilidade intra-observador foi calculada em sete pacientes da amostra (7,5 ± 2 dias após primeira medida) e apresentada em porcentual para os principais parâmetros (diferença absoluta entre duas medidas dividida pela média das duas observações).

RESULTADOS

Quinze pacientes completaram o estudo (dois foram excluídos por taquicardia sinusal, um por estenose aórtica, e um por refluxo mitral de grau moderado). Nenhum paciente tinha alteração da contratilidade segmentar do VE em repouso. A tabela 1 lista as características clínicas e as alterações anatômicas diagnosticadas pelo ecocardiograma nos pacientes estudados. Em condições basais (pré-HD), oito pacientes apresentavam alteração do relaxamento (disfunção diastólica grau 1), seis tinham critérios para pseudonormalização do fluxo mitral pela análise concomitante ao Doppler tecidual do anel mitral (disfunção diastólica grau 2) e um apresentava relação E/A 2,5 (disfunção diastólica grau 3). Três pacientes tinham disfunção sistólica do VE pelo cálculo fração de ejeção; e em quatro indivíduos demonstrou-se diminuição da velocidade anular sistólica ao Doppler tecidual.

Após obtermos uma perda de peso média de 2,2 ± 1,1 kg com a ultrafiltração, houve mudança expressiva na dimensão diastólica (de 5,1 ± 0,6 para 4,7 ± 0,6 cm, p < 0,001) e dimensão sistólica (de 3,4 ± 0,5 para 2,9 ± 0,4 cm, p < 0,001) do VE, apontando para uma redução da pré-carga. A freqüência cardíaca (de 83 ± 12 para 80 ± 13 batimentos/minuto, p = 0,4), a pressão arterial sistólica (de 163 ± 28 para 158 ± 24 mmHg, p = 0,3) e a pressão arterial diastólica (de 87 ± 14 para 87 ± 17 mmHg, p = 0,98) não variaram significativamente depois da diálise. Nenhum paciente apresentou hipotensão intradialítica necessitando interrupção do procedimento ou mudança na terapia.

A tabela 2 demonstra as médias dos diversos índices Doppler ecocardiográficos, incluindo o índice de Tei e seus componentes, antes e depois da sessão de HD, e as alterações porcentuais a partir das condições basais. Depois da ultrafiltração, a onda E do fluxo mitral diminuiu (de 94 ± 22 para 78 ± 26 cm/s, p < 0,05), porém a onda A permaneceu inalterada (100 ± 34 para 103 ± 30 cm/s, p = 0,6), resultando em um significante decréscimo da relação E/A (de 1,1 ± 0,5 para 0,8 ± 0,3, p < 0,01). O índice de Tei aumentou (de 0,57 ± 0,07 para 0,65 ± 0,09, p < 0,01) à custa do prolongamento do TRIV (de 101 ± 14 para 113 ± 17 ms, p < 0,01) e encurtamento do TEJ (de 271 ± 22 para 252 ± 22, p< 0,05). O TCIV não variou (53 ± 9 para 50 ± 13 ms, p = 0,3).

Os parâmetros diastólicos derivados do Doppler tecidual não mudaram significativamente depois da HD: E' (de 8,5 ± 0,9 para 8,0 ± 2 cm/s, p = 0,3), A' (de 12,4 ± 2 para 11,9 ± 2 cm/s, p = 0,5), E'/A' (de 0,73 ± 0,2 para 0,70 ± 0,2, p = 0,7) e E/E' (de 11 ± 2,6 para 10 ± 4,9, p = 0,8). Entretanto, a onda S aumentou (de 10,5 ± 2 para 11,4 ± 2 cm/s, p<0,05). Observamos também um acréscimo do encurtamento porcentual e da fração de ejeção (de 34 ± 5 para 37 ± 3%, p < 0,05; e 71 ± 7% para 75 ± 4%, p < 0,01, respectivamente). A variabilidade intra-observador, expressa em porcentual, para as principais variáveis do estudo foi: TCIV + TRIV= 0,8 ± 1,1; TEJ = 2,2 ± 2,5; índice de Tei = 8±2; E = 1,4 ± 1; A = 0,1 ± 0,8; E' = 0,4 ± 0,9; A' = 0 ± 0,4.

DISCUSSÃO

Os pacientes em terapia hemodialítica constituem um grupo interessante para a avaliação dos efeitos da diminuição da pré-carga sobre os parâmetros de função cardíaca avaliados pelo Doppler ecocardiograma. O presente estudo investigou os efeitos desencadeados pela HD na determinação do índice de Tei, representativo da função miocárdica global, e nos índices isolados de função sistólica e diastólica, em um grupo de pacientes com IRC em espera para transplante renal. A remoção de fluido resultou em redução média de peso de 2,2 kg (ou 2,2 litros de água corporal), provocando decréscimo do volume intravascular e queda da pré-carga, como se infere pela diminuição das dimensões do VE25. A modificação no volume plasmático circulante provocou mudanças no índice de Tei, demonstrando sua suscetibilidade às condições de carga.

Os índices diastólicos derivados do fluxo transvalvar mitral, incluindo onda E, relação E/A e TRIV variaram significativamente, de forma semelhante a outros estudos que utilizaram a HD como modelo clínico de redução da pré-carga24-26,29. Sabe-se que as velocidades derivadas do Doppler pulsátil mitral são extremamente volume-dependentes40, e a rápida queda das pressões de enchimento provocada pela HD é capaz de expor a pseudonormalização do fluxo mitral27,41. Observamos critérios para pseudonormalização do fluxo mitral antes da HD em seis pacientes do nosso grupo, dos quais cinco evidenciaram relaxamento alterado ao Doppler convencional após a sessão. Ratificamos, assim, que a HD não induz piora real da função diastólica ventricular esquerda, mas sim alterações dependentes da suscetibilidade dos parâmetros do Doppler mitral às variações da pré-carga, "desmascarando" a disfunção diastólica previamente existente em alguns casos.

Cumpre ressaltar o papel do Doppler tecidual do anel mitral como método de avaliação da função diastólica relativamente independente da pré-carga37, também evidenciado por nós neste estudo. Com o montante médio retirado pela ultrafiltração em nosso grupo, não observamos mudança na velocidade de E' e A', similarmente a publicações prévias27,29. Outros autores, que utilizaram HD de alto fluxo e/ou maior perda volêmica28, ou que incluíram portadores de isquemia miocárdica26, obtiveram variações das velocidades anulares após a HD. Parece razoável afirmar que E' é pouco afetado pela HD comparado à E. O efeito da HD em E' pode ser ignorado se a quantidade de fluido removido não é excessiva.

Nos índices sistólicos derivados do Doppler pulsátil mitral observamos que o TCIV ficou inalterado e o TEJ apresentou encurtamento expressivo. Em razão da combinação das alterações nos intervalos do fluxo mitral (prolongamento do TRIV e encurtamento do TEJ), houve variação significativa do índice de Tei, que aumentou com a redução da pré-carga. Uma análise alternativa poderia propor uma piora do desempenho miocárdico após a sessão de HD por deterioração da função sistólica, como se pode sugerir pelo encurtamento da ejeção ventricular.

Algumas ponderações podem ser feitas contra essa hipótese. Em primeiro lugar, procuramos excluir fatores que pudessem levar a uma piora aguda do desempenho miocárdico, como a presença de valvopatias, pericardiopatia ou isquemia miocárdica. Embora a possibilidade de insuficiência coronariana não tenha sido pesquisada com a realização de outros testes não-invasivos ou invasivos, o grau de depleção do volume plasmático durante nosso experimento esteve provavelmente dentro de certos limites "fisiológicos", uma vez que não foi seguido de alterações significativas da freqüência cardíaca e pressão arterial. A ocorrência de hipotensão arterial poderia ter levado a taquicardia reflexa, subseqüente isquemia e piora dos parâmetros de função do VE.

Em segundo lugar, à suposição de que a diminuição do TEJ pudesse indicar piora da função sistólica opõe-se o aumento observado na fração de ejeção (função contrátil radial do miocárdio) e, principalmente, na velocidade da onda S do Doppler tecidual do anel mitral (função contrátil longitudinal). O provável mecanismo de encurtamento do TEJ está relacionado à diminuição do volume sangüíneo após a HD, o que reduz o volume diastólico final e o volume sistólico ejetado pelo VE21. Sabe-se que a HD pode induzir uma dissociação entre as alterações do enchimento ventricular e do estado contrátil20. Desse modo, embora tenha ocorrido abreviação do TEJ decorrente de um reduzido enchimento ventricular esquerdo, a função contrátil aparentemente aumentou, provavelmente pela retirada das toxinas urêmicas. Esse efeito não é obtido quando se faz ultrafiltração isolada, a qual antagoniza o mecanismo de Frank-Starling e não remove as toxinas depressoras da função miocárdica20. Portanto, apesar da melhora que observamos nos índices de função contrátil, houve um paradoxal prolongamento do índice de Tei.

Tais achados vêm corroborar a conhecida suscetibilidade dos intervalos sistólicos às variações da pré-carga, incluindo o TEJ21,42. Os efeitos da HD no desempenho sistólico do VE são variáveis e parecem depender em parte dos volumes ventriculares e função contrátil prévios à diálise. Alpert e cols. sugeriram que a função sistólica do VE melhora após sessão de HD somente naqueles pacientes com disfunção sistólica prévia, não se alterando significativamente em indivíduos com função normal43. Vale ressaltar que esse estudo utilizou a velocidade média de encurtamento circunferencial das fibras (derivada do modo M) como índice de função sistólica, e não a fração de ejeção. De outro modo, um estudo pequeno (dez pacientes) que empregou o mesmo método para avaliar uma população pediátrica em HD, sugeriu um aumento real da função contrátil miocárdica nesse grupo44.

Em outro estudo mais recente, realizado em 128 renais crônicos com função sistólica basal normal, não se verificou variação do encurtamento porcentual e da fração de ejeção com a HD28, porém o objetivo primário do artigo era pesquisar a função diastólica, e a presença de insuficiência coronariana não foi critério de exclusão. Nosso grupo mostrou melhora tanto na fração de ejeção quanto na velocidade anular sistólica ao Doppler tecidual. Em relação à fração de ejeção, tal melhora poderia ser aventada pela própria influência da pré-carga sobre o índice, já anteriormente demonstrada. Alternativamente, a inclusão de três pacientes com função sistólica reduzida em condição basal, subgrupo cujo aumento porcentual médio da fração de ejeção depois da diálise foi de 17%, poderia teoricamente ter criado um viés para o resultado geral do grupo. Obtivemos, todavia, também um aumento significativo e uniforme na onda S, o que está em concordância com publicação anterior que apontou melhora das velocidades sistólicas do miocárdio de renais crônicos após HD45.

Parece razoável inferir que o aumento da onda S deva representar melhora real da contratilidade das fibras miocárdicas longitudinais, uma vez que o Doppler tecidual é um método relativamente independente da pré-carga, e o montante da variação volêmica induzida em nosso grupo não foi capaz de gerar mudança nas velocidades diastólicas do anel mitral. Com a possibilidade de se pesquisar não só a contratilidade miocárdica radial, mas também a função sistólica longitudinal mediante novas técnicas ecocardiográficas, como o Doppler tecidual e o "strain" miocárdico, um novo caminho se abre para a pesquisa e entendimento do comportamento do desempenho cardíaco em situações de variação da carga.

Estudo semelhante ao presente artigo, realizado por Koga e cols., objetivou também avaliar o impacto que as alterações da pré-carga induzidas pela HD acarretam na estimativa do índice de Tei46. Avaliando 32 pacientes com idade média de 72 ± 9 anos, tempo de HD de 40 ± 35 meses e fração de ejeção normal, encontraram significante redução da velocidade de E e relação E/A, associada a um aumento do índice de Tei (à custa do prolongamento de TRIV+TCIV e do encurtamento do TEJ). Interessante destacar que, ao avaliarem dois grupos conforme a magnitude da perda de peso, se ³1,5 kg ou <1,5 kg, encontraram mudança do índice de Tei somente no primeiro grupo. Não houve variação das dimensões e volumes do VE quando analisado o grupo geral (perda de peso 1,8 ± 0,7 kg), o que resultou em fração de ejeção inalterada após a sessão.

Nossa população foi composta em sua totalidade por portadores de hipertrofia miocárdica e disfunção diastólica, além de conter três pacientes com disfunção sistólica. Isso pode explicar as diferenças no valor basal do índice de Tei das populações avaliadas (0,57 ± 0,07 contra 0,42 ± 0,16 no estudo japonês). Em nosso grupo obtivemos uma perda de peso maior (2,2 ± 1,1 kg), permitindo redução mais expressiva do volume circulante, o que teve como conseqüência um alívio da sobrecarga de volume e diferente resposta da fração de ejeção. Portanto, o índice de Tei também se mostrou suscetível à redução da pré-carga em uma amostra mista, com portadores de disfunção sistólica e diastólica, como já havia sido demonstrado na população com função sistólica normal do estudo japonês. Esta variação parece depender da quantidade de volume retirado, qualquer que seja a função sistólica basal.

As principais limitações de nosso estudo foram o pequeno número de pacientes e o fato de que o ecocardiografista não realizou as medidas off-line e cego para o momento pré- ou pós-HD. Em relação ao tamanho da amostra, é importante notar que o pequeno "n" deveu-se, em parte, aos rigorosos critérios de seleção, e que isso não impediu a obtenção de um alto poder estatístico para a variação no índice de Tei ("power" = 0,99). Fatores logísticos inerentes à organização dos serviços impediu o estudo cego, porém essa foi uma limitação presente em outros estudos com diálise26,27. Além do mais, a presença de apenas um ecocardiografista realizando todos os exames ajudou a diminuir a variabilidade dos registros.

Nossos resultados mostraram que o índice de Tei é afetado pela diminuição do volume circulante induzida pela HD, resultando em um aumento do seu valor, o que poderia ser erroneamente interpretado como piora no desempenho miocárdico. Concluímos que, assim como outros parâmetros derivados do Doppler transvalvar mitral, esse índice pode ser afetado por alterações da pré-carga mediadas pela HD. Dentre os demais parâmetros avaliados, as velocidades diastólicas do anel mitral ao Doppler tecidual mostraram-se insensíveis à perda volêmica obtida neste estudo, e o comportamento das velocidades sistólicas sugeriu melhora da função contrátil do VE após o procedimento. Ao avaliar o valor absoluto do índice de Tei em um dado paciente sob HD de manutenção para se estimar o desempenho miocárdico global, deve-se interpretá-lo com parcimônia, correlacionando temporalmente com a sessão dialítica. Independentemente da sua suscetibilidade à pré-carga, seu valor prognóstico necessita ser testado nesse grupo de pacientes, tendo em vista a alta acurácia preditiva de mortalidade encontrada em outros cenários clínicos11-14.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Recebido em 02/07/05

Aceito em 29/08/05

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  • Correspondência:
    Silvio Henrique Barberato
    Rua Saint Hilaire, 122/203
    80240-140 – Curitiba, PR
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2006
    • Data do Fascículo
      Jun 2006

    Histórico

    • Aceito
      29 Ago 2005
    • Recebido
      02 Jul 2005
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