Palavras-chave Doenças Cardiovasculares; Insuficiência Cardíaca; Mortalidade; Fatores de Risco; Classe Social; Desenvolvimento Humano
As doenças cardiovasculares (DCV) continuam sendo a principal causa de morte, sendo responsável por aproximadamente um terço dos óbitos no mundo. Em junho de 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) reforçou sua preocupação com o impacto causado pelas DCV nos países de baixa ou média renda, onde ocorrem mais de três quartos de seus óbitos.1 Via final comum das cardiopatias, a insuficiência cardíaca (IC) se apresenta como pandemia global fora de controle, com prevalência em crescimento, como consequência de fatores como o envelhecimento da população, maior presença de fatores de risco cardiovasculares, como obesidade, sedentarismo ou diabetes mellitus, mesmo com avanços terapêuticos que reduzem a mortalidade.2
A relação entre piores condições socioeconômicas e maior mortalidade por IC parece ter sido bem estabelecida nos últimos anos em diferentes populações,3–5 justificada em parte pelo pior acesso a métodos diagnósticos e tratamento farmacológico. Entretanto, esta relação é mais confusa em países de baixa e média renda, onde as variáveis clínicas, demográficas e socioeconômicas explicam pouco sobre a variabilidade entre as taxas de mortalidade em um ano por IC entre regiões da África, Índia, Sudeste Asiático, Oriente Médio, América do Sul e China, conforme observado no INTER-CHF Prospective Cohort Study.6
Nas últimas décadas, o Brasil apresentou uma queda gradual da desigualdade, medida pelo coeficiente de Gini – principalmente a partir de meados dos anos 90 e atingindo seu mínimo em 20107 –, assim como uma melhora progressiva Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e seu equivalente regionalizado por município (IDHM), cujos valores retratam três dimensões básicas do desenvolvimento humano: longevidade, educação e renda.8 Na mesma linha, a publicação de Malta et al.,9 trouxe dados recentes que confirmam que a taxa de mortalidade cardiovascular ajustada também apresentou queda no Brasil nos últimos anos, embora já chamasse atenção uma heterogeneidade entre as Unidades da Federação (UF). Eis que o estudo dessa edição do ABC10 se propõe a analisar a relação entre a evolução temporal do desenvolvimento humano e as taxas de mortalidade por insuficiência cardíaca nas diferentes regiões geográficas do Brasil, trazendo importantes luzes ao assunto.
De acordo com esse artigo,10 a redução da mortalidade por IC de fato ocorreu em todas as UF. Porém, embora a redução da mortalidade nos estados onde houve menor incremento do IDHM (RJ, DF, SP, RS, SC e ES) tenha sido maior, todos esses estados já apresentavam alto IDMH (> 0,7). Por outro lado, os autores observam que o IDMH também melhorou em todas as UFs. E os estados que apresentaram os maiores incrementos do IDMH (TO, MA, PI, PB, AL e BA), porém permanecendo com índices inferiores a 0,7, tiveram menores reduções de mortalidade por IC. Esses dados sugerem fortemente, portanto, que para alcançar grandes reduções na taxa de mortalidade por IC, “mais importante que o grau de incremento do IDHM é o nível final que ele alcança” – conforme dito pelos autores.
A mortalidade de uma doença crônica não contagiosa como a insuficiência cardíaca e indicadores socioeconômicos, ao que parece, não são parâmetros tão dissonantes assim. Ao contrário, pode ser que essas duas linhas se encontrem com o passar do tempo, caso haja uma redução das desigualdades e todas as regiões alcancem bons índices de desenvolvimento (IDHM >0,7). Ou até mesmo essas linhas se afastem ainda mais, caso persista a piora dos indicadores em saúde no país que temos observado nos últimos anos, com aumento da pobreza, cortes em políticas sociais e congelamento dos recursos da saúde produzidos pela Emenda Constitucional no. 95, já citados recentemente.9,11 E embora o IDH represente apenas uma visão parcial do status socioeconômico de uma população, não se podendo avaliar diretamente sobre a relação de desigualdade e mortalidade por IC, destacamos que é razoável inferir que variações importantes de IDH entre as regiões permitem conhecer focos de desigualdade no território nacional. Um IDH baixo reflete, na esmagadora maioria das vezes, uma população pobre e com déficit educacional importante, o que leva a maiores dificuldades de se entender, adquirir e aderir a um tratamento médico complexo como o da IC.
O artigo reforça a impressão de que boas condições de vida (socioeconômicas e educacionais) parecem estar intrinsecamente ligadas a melhores desfechos cardiovasculares. Sendo o Brasil um país de dimensões continentais e elevados níveis de desigualdade, reconhecer a importância dos mecanismos de avaliação epidemiológica disponíveis no Sistema Único de Saúde (DATASUS, SIM etc.), Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (censo, intercenso e projeções), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (IDH, IDHM etc.), entre outros, passa a ser fundamental para assim poder direcionar políticas socio-sanitárias que orientem a aplicação de evidência científica robusta disponível e atualizada recentemente para diagnóstico, tratamento e prevenção da insuficiência cardíaca e da saúde cardiovascular em geral.11,12
Referências
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1 World Health Organization.(WHO)_. Fact Sheets. Cardiovascular Disease. 2021. [Cited in 2021 Sep 18] Available from: https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/cardiovascular-diseases-(cvds)
» https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/cardiovascular-diseases-(cvds) - 2 Conrad N, Judge A, Canoy D, Tran J, Pinho-Gomes AC, Millett ERC, et al. Temporal Trends and Patterns in Mortality After Incident Heart Failure. A Longitudinal Analysis of 86 000 Individuals. JAMA Cardiol. 2019 Nov; 4(11):1102-11.
- 3 Andersen J, Gerds TA, Gislason G, Schou M, Torp-Pedersen C, Hlatky MA, et al. Socioeconomic position and one-year mortality risk among patients with heart failure: A nationwide register-based cohort study. Eur J Prev Cardiol. 2020 Jan;27(1):79-88.
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» http://hdr.undp.org/sites/default/files/hdr2019.pdf - 9 Malta DC, Teixeira R, Oliveira GMM, Ribeiro AL. Mortalidade por Doenças Cardiovasculares Segundo o Sistema de Informação sobre Mortalidade e as Estimativas do Estudo Carga Global de Doenças no Brasil, 2000-2017. Arq Bras Cardiol. 2020; 115(2):152-60.
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- 11 Malta DC, Duncan BB, Barros MBA, Katikireddi SV, Souza FM, Silva AG, et al. Medidas de austeridade fiscal comprometem metas de controle de doenças não transmissíveis no Brasil. Ciênc. saúde colet. 2018; 23(10):3115-22.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Nov 2021 -
Data do Fascículo
Nov 2021