Acessibilidade / Reportar erro

Relação entre depressão, nível de BNP e comprometimento ventricular na insuficiência cardíaca

Resumos

FUNDAMENTO: A depressão é uma comorbidade frequente na insuficiência cardíaca (IC), mas os mecanismos relacionados a pior evolução de pacientes deprimidos com IC ainda não estão esclarecidos. OBJETIVO: Avaliar o papel da depressão grave na evolução dos pacientes com IC descompensada. MÉTODOS: Estudamos consecutivamente 43 pacientes com IC avançada e FE < 40,0%, hospitalizados para compensação cardíaca. Os pacientes, após história e exame físico, foram submetidos a exames laboratoriais, incluindo a dosagem de BNP. Após o diagnóstico de depressão, aplicou-se a escala de Hamilton-D. Depressão grave foi definida por escore igual ou maior que 18. As variáveis clínico-laboratoriais, segundo a presença ou não de depressão grave, foram analisadas pela regressão logística. A curva ROC definiu o ponto de corte para o BNP. RESULTADOS: Depressão grave ou muito grave foi identificada em 24 (55,8%) pacientes. Os pacientes deprimidos graves não diferiram dos não deprimidos quanto à idade, sexo e função renal, mas apresentaram menor comprometimento cardíaco (FE 23,4 ± 7,2% vs 19,5 ± 5,2%; p = 0,046) e valores mais elevados do BNP (2.582,8 ± 1.596,6 pg/ml vs 1.206,6 ± 587,0 pg/ml; p < 0,001). Entretanto, os pacientes com BNP maior que 1.100 pg/ml tiveram 12,0 (odds ratio [IC 95%] = 2,61 - 55,26) vezes mais chance de desenvolverem quadros de depressão grave. CONCLUSÃO: Os pacientes com depressão grave apresentaram maior grau de estimulação neuro-hormonal, apesar do grau de disfunção ventricular ser menor. As alterações fisiopatológicas relacionadas à depressão, aumentando a estimulação neuro-hormonal e as citocinas, provavelmente contribuíram para essa maior manifestação clínica, mesmo em presença de menor dano cardíaco.

Depressão; comorbidade; insuficiência cardíaca; peptídeos natriuréticos


BACKGROUND: Depression is a common comorbidity in heart failure (HF); however, the mechanisms related to a poorer outcome of depressed patients with HF remain unclear. OBJECTIVE: To evaluate the role of severe depression in the outcome of patients with decompensated HF. METHODS: A total of 43 patients with advanced HF, EF < 40.0%, and hospitalized for cardiac compensation were consecutively studied. After history taking and physical examination, the patients underwent laboratory tests including BNP determination. After the diagnosis of depression was made, the Hamilton-D scale was applied. Severe depression was defined by a score equal to or greater than 18. The clinical and laboratory variables according to the presence or absence of severe depression were analyzed using logistic regression. The ROC curve defined the cut-off point for BNP. RESULTS: Severe or very severe depression was identified in 24 (55.8%) patients. Severely depressed patients did not differ from non-depressed patients as regards age, gender and renal function, but showed less cardiac impairment (EF 23.4 ± 7.2% vs 19.5 ± 5.2%; p = 0.046) and higher BNP levels (2,582.8 ± 1,596.6 pg/ml vs 1,206.6 ± 587.0 pg/ml; p < 0.001). However, patients with BNP levels higher than 1,100 pg/ml had a 12.0-fold higher chance (odds ratio [95% CI] = 2.61 - 55.26) of developing severe depression. CONCLUSION: Patients with severe depression showed a higher degree of neurohormonal stimulation despite their lower degree of ventricular dysfunction. The pathophysiological changes related to depression, leading to increased neurohormonal stimulation and cytokines, probably contributed to this more intense clinical manifestation even in the presence of less cardiac damage.

Depression; comorbidity; heart failure; natriuretic peptides


FUNDAMENTO: La depresión es una comorbilidad frecuente en la insuficiencia cardíaca (IC), pero los mecanismos relacionados a peor evolución de pacientes deprimidos con IC aun no están aclarados. OBJETIVO: Evaluar el papel de la depresión grave en la evolución de los pacientes con IC descompensada. MÉTODOS: Estudiamos consecutivamente 43 pacientes con IC avanzada y FE < 40,0%, hospitalizados para compensación cardíaca. Los pacientes, después de historia y examen físico, fueron sometidos a exámenes de laboratorio, incluyendo el dosaje de BNP. Después del diagnóstico de depresión, se aplicó la escala de Hamilton-D. Depresión grave fue definida por escore igual o mayor que 18. Las variables clínicas-de laboratorio, según la presencia o no de depresión grave, fueron analizadas por la regresión logística. La curva ROC definió el punto de corte para el BNP. RESULTADOS: Depresión grave o muy grave fue identificada en 24 (55,8%) pacientes. Los pacientes deprimidos graves no difirieron de los no deprimidos en cuanto a la edad, sexo y función renal, pero presentaron menor compromiso cardíaco (FE 23,4 ± 7,2% vs. 19,5 ± 5,2%; p = 0,046) y valores más elevados del BNP (2.582,8 ± 1.596,6 pg/ml vs. 1.206,6 ± 587,0 pg/ml; p < 0,001). Mientras tanto, los pacientes con BNP mayor que 1.100 pg/ml tuvieron 12,0 (odds ratio [IC 95%] = 2,61 - 55,26) veces más chance de desarrollar cuadros de depresión grave. CONCLUSÍON: Los pacientes con depresión grave presentaron mayor grado de estimulación neurohormonal, a pesar del grado de disfunción ventricular ser menor. Las alteraciones fisiopatológicas relacionadas a la depresión, aumentando la estimulación neurohormonal y las citocinas, probablemente contribuyeron a esa mayor manifestación clínica, aun en presencia de menor daño cardíaco.

Depresión; comorbilidad; insuficiencia cardíaca; péptidos natriuréticos


ARTIGO ORIGINAL

Relação entre depressão, nível de BNP e comprometimento ventricular na insuficiência cardíaca

Vera Barretto Aguiar; Marcelo Eidi Ochiai; Juliano Novais Cardoso; Carlos H Del Carlo; Paulo Cesar Morgado; Robinson Tadeu Munhoz; Antonio Carlos Pereira-Barretto

Hospital Auxiliar de Cotoxó - Instituto do Coração - HC FMUSP, São Paulo, SP - Brasil

Correspondência Correspondência: Antônio Carlos Pereira Barretto Rua Piave, 103, Morumbi 05620-010, São Paulo, SP - Brasil E-mail: pbarreto@cardiol.br, pereira.barretto@incor.usp.br

RESUMO

FUNDAMENTO: A depressão é uma comorbidade frequente na insuficiência cardíaca (IC), mas os mecanismos relacionados a pior evolução de pacientes deprimidos com IC ainda não estão esclarecidos.

OBJETIVO: Avaliar o papel da depressão grave na evolução dos pacientes com IC descompensada.

MÉTODOS: Estudamos consecutivamente 43 pacientes com IC avançada e FE < 40,0%, hospitalizados para compensação cardíaca. Os pacientes, após história e exame físico, foram submetidos a exames laboratoriais, incluindo a dosagem de BNP. Após o diagnóstico de depressão, aplicou-se a escala de Hamilton-D. Depressão grave foi definida por escore igual ou maior que 18. As variáveis clínico-laboratoriais, segundo a presença ou não de depressão grave, foram analisadas pela regressão logística. A curva ROC definiu o ponto de corte para o BNP.

RESULTADOS: Depressão grave ou muito grave foi identificada em 24 (55,8%) pacientes. Os pacientes deprimidos graves não diferiram dos não deprimidos quanto à idade, sexo e função renal, mas apresentaram menor comprometimento cardíaco (FE 23,4 ± 7,2% vs 19,5 ± 5,2%; p = 0,046) e valores mais elevados do BNP (2.582,8 ± 1.596,6 pg/ml vs 1.206,6 ± 587,0 pg/ml; p < 0,001). Entretanto, os pacientes com BNP maior que 1.100 pg/ml tiveram 12,0 (odds ratio [IC 95%] = 2,61 - 55,26) vezes mais chance de desenvolverem quadros de depressão grave.

CONCLUSÃO: Os pacientes com depressão grave apresentaram maior grau de estimulação neuro-hormonal, apesar do grau de disfunção ventricular ser menor. As alterações fisiopatológicas relacionadas à depressão, aumentando a estimulação neuro-hormonal e as citocinas, provavelmente contribuíram para essa maior manifestação clínica, mesmo em presença de menor dano cardíaco.

Palavras-chave: Depressão, comorbidade, insuficiência cardíaca, peptídeos natriuréticos/análise.

Introdução

A insuficiência cardíaca (IC) é reconhecida como uma síndrome que cursa com alta morbidade e mortalidade1-3. Tanto a morbidade como a mortalidade sofrem a influência das comorbidades que os pacientes apresentam e pacientes com comorbidades, entre elas a depressão, evoluem pior1,3.

Na população em geral, de 5,0% a 10,0% dos indivíduos apresentam critérios para o diagnóstico de depressão. Em portadores de insuficiência cardíaca atendidos em ambulatórios, essa prevalência fica entre 11,0% a 25,0%, e em pacientes com IC hospitalizados, aumenta para a faixa de 35,0% a 70,0%4. A ampla variação na incidência decorre das diferentes técnicas empregadas para o diagnóstico, bem como das características das populações estudadas, considerando-se a idade, sexo e a intensidade da IC5. De qualquer maneira, observa-se uma forte associação entre a IC e depressão6-13.

A IC e a depressão têm aspectos fisiopatológicos comuns, ambas aumentando a estimulação do eixo hipotálamo - hipófise adrenal e a atividade simpática, bem como aumentando as citocinas inflamatórias circulantes14-17. A depressão pode contribuir para o desenvolvimento da IC em população susceptível, como também agravar quadros de IC naqueles com a doença já instalada, sendo um preditor de re-hospitalizações e de mortalidade6,7,10,11.

A alta morbimortalidade pode estar relacionada à ação sinérgica entre a IC e a depressão na ativação neuro-hormonal, a fatores inflamatórios e à hipercoagulabilidade5,14,15. A depressão ainda influencia negativamente a evolução da IC por estar associada à não aderência dos pacientes às recomendações médicas, em especial à tomada das medicações15-17. Os pacientes com IC deprimidos são mais sintomáticos, apresentando-se em classe funcional mais elevada e, com frequência, têm pior qualidade de vida.

Frente a estes achados, procuramos verificar o papel da depressão grave no quadro clínico dos pacientes com IC avançada internados, em um hospital terciário, para compensação cardíaca.

Métodos

Em um grande hospital terciário da cidade de São Paulo, realizamos um estudo transversal que incluiu consecutivamente 43 pacientes hospitalizados para compensação de insuficiência cardíaca, para os quais foi solicitada avaliação psiquiátrica pelo clínico. A avaliação psiquiátrica é realizada a critério do clínico do paciente, não sendo realização de rotina para todos os pacientes.

Na chegada ao hospital, todos os pacientes foram avaliados clinicamente e submetidos à avaliação laboratorial, que incluía um hemograma, hematócrito, dosagem sérica de ureia, creatinina, sódio, potássio e dosagem do peptídeo natriurético do tipo B (BNP).

Foram incluídos no estudo pacientes com fração de ejeção do ventrículo esquerdo < 0,40, para os quais foi solicitada avaliação psiquiátrica pelo clínico. Foram critérios de exclusão: delirium, demência, psicose, transtornos afetivos bipolares, sepsis, neoplasias e creatinina basal > 3,0 mg/dl.

A fração de ejeção do ventrículo esquerdo (FEVE) foi calculada através de estudo ecocardiográfico, empregando-se o método de Teichholz ou Simpson, realizados pelo menos nos 6 meses prévios à internação. A dosagem de BNP foi realizada pelo método imunoensaio por quimioluminescência, sistema ADVIA Centaur® (Roche Inc.), expressa em pg/ml.

Os pacientes que apresentavam os critérios de inclusão e não apresentavam os critérios de exclusão foram submetidos à avaliação da depressão através da escala de avaliação de depressão de Hamilton - D, versão 17 itens. Nessa escala, os pacientes são considerados da seguinte forma:

- de 0 a 7 pontos, normais;

- de 8 a 13 pontos, portadores de depressão leve;

- de 14 a 18 pontos, com depressão moderada;

- de 19 a 22 pontos, com depressão grave; e

- 23 ou mais pontos, com depressão muito grave.

De acordo com o resultado da avaliação da presença de depressão, os pacientes foram divididos em dois grupos: grupo 1 - constituído pelos pacientes com menos de 18 na escala do teste de Hamilton (eutímicos ou depressão leve e moderada) e grupo 2 - constituído pelos pacientes com escore maior de 18 (depressão grave ou muito grave).

Análise estatística

As variáveis categóricas foram expressas com proporção e porcentagem e as variáveis contínuas foram expressas com média e desvio-padrão.

As comparações entre as variáveis contínuas foram analisadas pelo teste t de Student. O teste do qui-quadrado ou o teste Exato de Fisher foram utilizados para avaliar as variáveis categóricas. Construiu-se a curva ROC para análise do melhor ponto de corte entre os níveis de BNP e a avaliação da intensidade da depressão. A análise de regressão logística univariada e múltipla foi utilizada para determinação dos preditores de depressão. As variáveis com p < 0,200 na análise univariada foram incluídas na análise multivariada. O modelo final foi construído com o procedimento stepwise forward. No modelo final, permaneceram as variáveis com p < 0,05.

Nas comparações, as diferenças com valor de p < 0,05 foram consideradas como significante.

Resultados

Na Tabela 1, apresentamos as principais características clínicas dos pacientes.

A idade média dos pacientes foi de 54,3 ± 15,9 anos.

Nessa população, todos se encontravam em classe funcional IV (NYHA), a FEVE média foi de 21,6 ± 6,6 e a dosagem de BNP de 1.974 ± 1.421,9 pg/ml. Tais achados caracterizam os pacientes como portadores de IC avançada.

Constatou-se também que a maioria dos pacientes com IC e disfunção ventricular sistólica internados para compensação apresentava quadro de depressão grave ou muito grave (24 pacientes - 55,8%).

Na Tabela 2, apresentamos os resultados das variáveis conforme a presença ou não de depressão grave ou muito grave.

Os pacientes com depressão grave ou muito grave não diferiram dos sem depressão ou com depressão leve e moderada quanto à idade, sexo e função renal, mas apresentaram menor comprometimento cardíaco (FEVE 23,4 ± 7,2% vs 19,5 ± 5,2%; p = 0,046) e valores mais elevados do BNP (2.582,8 ± 1.596,6 pg/ml vs 1.206,6 ± 587,0 pg/ml; p < 0,001).

Frente à diferença nos valores de BNP entre os pacientes com depressão grave ou muito grave e os outros, construiu-se a curva ROC que identificou, como o melhor nível de corte, o valor de BNP de 1.100 pg/ml (Área sob a curva = 0,79), com sensibilidade = 87,5% e especificidade = 63,2%.

Na análise de regressão logística, o BNP foi a única variável independente relacionada com o aumento de risco de depressão grave, sendo que os pacientes com BNP > 1.100 pg/ml apresentaram chance 12,0 vezes maior de desenvolverem depressão grave (Tabela 3).

Nessa população estudada, 12/43 (27,9%) pacientes morreram durante a hospitalização, sendo 3/19 (15,7%) do grupo com depressão leve a moderada e 9/24 (37,5%) no grupo com depressão grave ou muito grave (p = 0,115). No seguimento de 90 dias após a internação, ocorreram mais três mortes, uma no grupo com depressão leve a moderada e duas no grupo com depressão mais intensa. No total, ao final de 90 dias, 15/43 (34,8%) pacientes faleceram, sendo 4/19 (21,0%) no grupo com depressão leve e moderada e 11/24 (45,8%) no grupo com depressão grave ou muito grave (p = 0,090).

Discussão

A IC é uma doença que, nas formas avançadas, evolui com alta morbimortalidade1-3. A presença de comorbidades pode piorar a evolução dos pacientes, aumentando ainda mais a já elevada morbimortalidade3.

São reconhecidos como fatores associados ao pior prognóstico a presença de anemia, de fibrilação atrial, disfunção tireoidiana, de doença pulmonar obstrutiva crônica e de depressão3.

A depressão é doença de muitos aspectos. Havranek e cols18 identificou 4 fatores independentes relacionados ao desenvolvimento de depressão: viver sozinho, abuso de álcool, perda financeira e piora da IC18. A perda de suporte social é identificada como um dos mais importantes fatores para a depressão, aumentando o risco em 3,2 vezes nos homens e 8 vezes nas mulheres18.

A depressão não tem sido analisada sistematicamente nos pacientes com IC, mas, quando pesquisada, constata-se que é relativamente frequente entre eles6-13. Em pacientes sem IC, quadros de depressão maior são descritos entre 14,0%-26,0% dos indivíduos, mas, nos portadores de IC, a incidência aumenta para a faixa de 24,0%-85,0% dos pacientes4. A sua prevalência aumenta com a idade, mas nitidamente é agravada pela presença de IC. A incidência de depressão não só aumenta com a presença de IC como guarda relação com a sua gravidade, sendo tanto mais frequente quanto mais sintomática é a IC11,12,19. Dessa forma, a frequência de quadros depressivos é maior nas coortes de pacientes hospitalizados do que entre os pacientes ambulatoriais, provavelmente reflexo da maior gravidade da IC dos pacientes internados6-13,19. Constata-se que a depressão leve pode ser encontrada na maioria dos pacientes hospitalizados por descompensação cardíaca, atingindo 85,0% dos pacientes. A depressão grave é menos frequente12.

A depressão não só é frequente na IC, como os pacientes com IC e depressão têm um risco de morrer de duas a três vezes maior. Os pacientes deprimidos são também hospitalizados em cerca de três vezes mais e a depressão não regride em 1/3 dos pacientes no primeiro ano de seguimento. A depressão aumenta os custos do tratamento em 25,0%-40,0%, bem como a taxa de hospitalização, além de piorar a classe funcional e prejudicar as atividades diárias12.

Neste estudo, procuramos avaliar a relação entre a IC e a depressão em pacientes com IC avançada. O diagnóstico de depressão é realizado através de uma avaliação psiquiátrica e o teste de Hamilton-D auxilia na sua graduação, transformando a avaliação em números, o que é útil em pesquisa científica6,8,10,12,14,15. Com esse teste, gradua-se a intensidade da depressão, sendo que, quanto maior o escore, maior a intensidade da doença. Neste trabalho, empregamos o teste de Hamilton-D, pela sua acurácia no diagnóstico da depressão, pela praticidade em graduá-la e por ter demonstrado (em vários estudos) que avalia o grau de gravidade da depressão.

Nossa casuística foi composta por pacientes com IC avançada. No Hospital Auxiliar de Cotoxó, há um viés de gravidade, pois só são internados pacientes que não compensaram ou não melhoraram com o atendimento no Pronto-Socorro2. Nesta população, 55,8% dos pacientes apresentavam sinais de depressão grave ou muito grave, identificados por, no teste de Hamilton-D, apresentarem escore superior a 18.

Quando comparamos nossos dados aos da literatura, constatamos que a incidência de depressão grave entre nossos pacientes foi mais alta do que a descrita nos estudos publicados com pacientes com IC8,12,15. As características de nossa população, constituída por pacientes com IC bastante acentuada, podem ser uma explicação para tal achado, em decorrência da forte relação que há entre a intensidade da IC e a frequência e intensidade da depressão. A fisiopatologia, com aspectos comuns entre a IC e a depressão, pode explicar essa ocorrência, uma vez que tanto a IC quanto a depressão promovem elevação dos níveis dos neuro-hormônios e das citocinas, de tal forma que, atuando juntas, acentuam as alterações fisiopatológicas que, por sua vez, acentuam as manifestações clínicas e a morbimortalidade13-17,19.

Entretanto, foi interessante observar que, em nosso estudo, quando comparamos pacientes com depressão grave (escore de Hamilton-D > 18) com os sem depressão ou depressão leve a moderada, aqueles com depressão grave ou muito grave apresentavam valores mais elevados de BNP (2.582,8 ± 1.596,6 pg/ml vs 1.206,6 ± 587,0 pg/ml; p < 0,001), indicando uma maior intensidade de manifestações de congestão, em contraste aos valores da fração de ejeção mais elevados (33,4 ± 7,2% vs 19,5 ± 5,2%; p = 0,046), o que indica menor comprometimento ventricular12,13,17-19. Tais dados podem ser considerados como uma documentação da referida sinergia entre a IC e a depressão na gênese das manifestações clínicas dos pacientes com a doença.

É importante ressaltar que não houve diferenças entre os dois grupos quanto ao sexo, idade, anemia e função renal, fatores estes que, reconhecidamente, poderiam influenciar nas manifestações clínicas e nos níveis de BNP.

Estes resultados diferem em alguns aspectos aos descritos na literatura. No estudo HF-ACTION, observou-se relação entre as manifestações clínicas (mais acentuadas) nos pacientes com depressão em relação aos não deprimidos, mas não se observou correlação entre medidas objetivas da função cardíaca e a presença de depressão16. No entanto, em nosso estudo, constatamos uma nítida relação entre a presença de depressão grave e sinais objetivos de maior intensidade de congestão (níveis elevados de BNP). É possível que a atuação sinérgica entre a IC e a depressão, assim como a presença de um maior número de casos com depressão grave, tenha acentuado as manifestações clínicas a ponto de torná-las diferentes estatisticamente.

De certo modo, esse menor comprometimento miocárdico e a documentação de maior congestão (BNP mais elevado) sinalizam a importância que tem a depressão na acentuação das manifestações clínicas dos pacientes deprimidos, uma vez que, mesmo com menor comprometimento cardíaco, apresentam mais manifestações clínicas. São dados que explicam porque pacientes deprimidos hospitalizam-se mais do que os não deprimidos.

A postura dos pacientes em relação à doença também contribui para a gênese das manifestações. Os pacientes deprimidos aderem menos às orientações não farmacológicas (sal e restrição hídrica) como também à obediência ao tratamento medicamentoso15,16. A não aderência ao tratamento é um fator descrito cada vez mais como associado à pior evolução20-23.

O conjunto de dados indica fortemente que a IC acentua ou provoca a depressão, mas o inverso também é verdadeiro. May e cols.9; estudando 13.708 pacientes com doença coronariana sem IC ou depressão, puderam observar no seguimento que a IC surgiu em 3,6% dos pacientes sem depressão e em 16,4% dos deprimidos9. A depressão foi associada com risco 1,5 vezes maior do paciente vir a apresentar IC em relação ao não deprimido9.

Em nosso estudo, pudemos também documentar a IC como causa de depressão. Quando analisamos os valores de BNP e sua relação com a incidência de depressão grave, pudemos constatar uma forte relação entre os níveis mais elevados do BNP com uma maior incidência de quadros de depressão grave ou muito grave. Através da curva ROC, identificamos valores acima de 1.100 pg/ml do BNP como o relacionado à maior prevalência de quadros depressivos, com 12,0 vezes mais chance desses pacientes com IC desenvolverem depressão grave do que aqueles com níveis mais baixos de BNP (Figura 1).


Considerando-se que a depressão acentua as manifestações clínicas e piora a evolução dos pacientes com IC, devemos os clínicos dar mais atenção a ela, não deixando de verificar se o portador de IC a apresenta. A importância de tal conduta vem crescendo, uma vez que há estudos documentando que, tratando-se a depressão, promove-se uma melhora nos sintomas e na qualidade de vida dos pacientes. Alguns estudos também documentaram que tratar a depressão com antidepressivos pode reduzir a morbimortalidade dos portadores de IC21,24.

A possibilidade de modificar a história natural da doença com o tratamento da depressão merece atenção. Nesta casuística de pacientes com IC avançada, a mortalidade hospitalar foi alta (27,9%), sendo que, nos pacientes com depressão grave ou muito grave, ela foi 2,38 vezes maior do que nos com depressão leve ou moderada (37,5% vs 15,7%; p = 0,115). Apesar da diferença de mortalidade, ela não foi significante. Esses resultados devem ser valorizados com cuidado em decorrência do tamanho da casuística, mas são concordantes com o que a literatura descreve quanto a pior evolução dos pacientes com depressão25.

Os resultados de nosso estudo demonstraram que os quadros depressivos graves são frequentes entre os pacientes com IC avançada e que sua presença acentua as manifestações da descompensação cardíaca e sua gravidade. O estudo mostrou uma relação da depressão com maior estimulação neuro-hormonal na IC avaliada pelo BNP, com a depressão acentuando a estimulação neuro-hormonal e a IC agravando a depressão.

Concluímos que, na IC avançada, a prevalência de depressão é alta, que os pacientes com depressão apresentam níveis mais elevados de BNP do que os não deprimidos, e que, quanto mais descompensado o paciente, maior a chance de vir a apresentar depressão grave ou muito grave. Esses resultados frente à pequena casuística estudada devem ser considerados como preliminares.

A pesquisa da presença de depressão vem sendo negligenciada entre os pacientes com IC, atitude que precisa ser modificada, pois a identificação e o tratamento da depressão pode melhorar a qualidade de vida e a evolução dos portadores de IC.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflito de interesses pertinentes.

Fontes de Financiamento

O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Vinculação Acadêmica

Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

Artigo recebido em 26/10/09; revisado recebido em 09/04/10; aceito em 24/05/10.

  • 1. McMurray JJV, Stewart S. The burden of heart failure. Eur Heart J. 2002; 4 (Suppl D): 50-8.
  • 2. Pereira-Barretto AC, Del Carlo CH, Cardoso JN, Novaes J, Morgado PC, Munhoz R, et al. Re-hospitalizações e morte por insuficiência cardíaca. Índices ainda alarmantes. Arq Bras Cardiol. 2008; 91 (5): 335-41.
  • 3. Bocchi EA, Braga FGM, Ferreira SMA, Rohde LEP, Oliveira WA, Almeida DR, et al/Sociedade Brasileira de Cardiologia. III Diretriz de insuficiência cardíaca crônica. Arq Bras Cardiol. 2009; 93 (supl 1): 1-71.
  • 4. Joynt KE, Whellan DJ, O'Connor CM . Why is depression bad for the failing heart? A review of the mechanistic relationship between depression and heart failure. J Card Fail. 2004; 10 (3): 258-71.
  • 5. Faris R, Purcel H, Henein MY, Coats AJS. Clinical depression is common and significantly associated with reduced survival and patients with non-ischaemic heart failure. Eur J Heart Fail. 2002; 4 (4): 541-51.
  • 6. Frasure-Smith N, Lesperance F, Habra M, Talajic M, Khairy P, Dorian P, et al. Elevated depression symptoms predict long-term cardiovascular mortality in patients with atrial fibrillation and heart failure. Circulation. 2009; 120 (2): 134-40.
  • 7. Junger J, Schellberg D, Muller-Tasch T, Raupp G, Zugck C, Haunstetter A, et al. Depression increasingly predicts mortality in the course of congestive heart failure. Eur J Heart Fail. 2005; 7 (2): 261-7.
  • 8. Jiang W, Kuchibhatla M, Clary GL, Cuffe MS, Christopher EJ, Alexander JD, et al. Relationship between depressive symptoms and long-term mortality in patients with heart failure. Am Heart J. 2007; 154 (1): 102-8.
  • 9. May HT, Horne BD, Carlquest JF Sheng X, Joy E, Catinella AP. Depression after coronary artery disease is associated with heart failure. J Am Coll Cardiol. 2009; 53 (16): 1440-7.
  • 10. Albert NM, Fonarow GC, Abraham WT, Gheorghiade M, Greenberg BH, Nunez E, et al. Depression and clinical outcomes in heart failure: An OPTIMIZE-HF analysis. Am J Med. 2009; 122 (4): 366-73.
  • 11. Vaccarino V, Karl SV, Abramson J, Krunholz HM. Depressive symptoms and risk of functional decline and death in patients with heart failure. J Am Coll Cardiol. 2001; 38 (1): 199-205.
  • 12. Norra C, Skobel EC, Arndt M, Schauerte P. High impact of depression in heart failure: early diagnosis and treatment options. Int J Cardiol. 2008; 125 (2): 220-31.
  • 13. Runsfeld JS, Havranek E, Masoudi FA, Peterson ED, Jones P, Tooley JF, et al. Depressive symptoms are the strongest predictors of short-term declines in health status in patient with heart failure. J Am Coll Cardiol. 2003; 42 (10): 1811-7.
  • 14. Ferketich AK, Fergusson JP, Binkley PF . Depressive symptoms and inflammation among heart failure patients. Am Heart J. 2005; 150 (1): 132-6.
  • 15. Morgan AL, Masoudi FA, Havranek EP, Jones PG, Peterson PN, Krumholz HM, et al. Difficulty taking medications, depression, and health datus in heart failure patients. J Card Fail. 2006; 12 (1): 54-60.
  • 16. Gottlieb SS, Kop WJ, Ellis SL, Binkley P, Howlett J, O'Connor C, et al. Relation of depression to severity of illness in heart failure (HF-ACTION). Am J Cardiol. 2009; 103 (9): 1285-9.
  • 17. Sullivan M, Lery WC, Russo JE, Spertus JA. Depression and health status in patients with advanced heart failure: a prospective study in tertiary care. J Card Fail. 2004; 10 (5): 390-6.
  • 18. Havranek EP, Ware MG, Lowes BD. Prevalence of depression in congestive heart failure. Am J Cardiol. 1999; 84 (3): 348-50.
  • 19. Rutledge T, Reis VA, Linke SE, Greenberg BH, Mills PJ. Depression in heart failure: a meta-analytic review of prevalence, intervention effects, and association with clinical outcomes. J Am Coll Cardiol. 2006; 48 (8): 1527-37.
  • 20. Wu JR, Moser DK, Jong MJ, Rayens MK, Chung ML, Riegel B, et al. Defining an evidence-based cutpoint for medication adherence in heart failure. Am Heart J. 2009; 157 (2): 285-91.
  • 21. Stork S, Hense HW, Zentgraf C, Uebelacker I, Jahns R, Ertl G, et al. Pharmacotherapy according to treatment guidelines is associated with lower mortality in a community-based sample of patients with chronic heart failure: a prospective cohort study. Eur J Heart Fail. 2008; 10 (12): 1236-45.
  • 22. Gislason GH, Rasmussen JN, Abildstrom SR, Schramm TK, Hansen ML, Buch P, et al. Persistent use of evidence based pharmacotherapy in heart failure is associated with improved outcomes. Circulation. 2007; 116 (7): 737-44.
  • 23. Parissis JT, Nikolaou M, Farmakis D, Bistola V, Paraskevaidis IA, Adamopoulos S, et al. Clinical and prognostic implications of self-rating depression scales and plasma B-type natriuretic peptide in hospitalized patients with chronic heart failure. Heart. 2008; 94 (5): 585-9.
  • 24. Gottlieb SS, Kop WJ, Thomas SA, Katzen S, Vesely MR, Greenberg N, et al. A double blind placebo controlled pilot study of controlled-release paroxetine on depression and quality of life in chronic heart failure. Am Heart J. 2007; 153 (5): 868-73.
  • 25. Muller-Tasch T, Petters-Klimm F, Schellberg D, Holzapfel N, Barth A, Jünger J, et al. Depression is a major determinant of quality of life in patients with chronic heart failure in general practice. J Cardiac Fail. 2007; 13 (10): 818-24.
  • Correspondência:
    Antônio Carlos Pereira Barretto
    Rua Piave, 103, Morumbi
    05620-010, São Paulo, SP - Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Revisado
      09 Abr 2010
    • Recebido
      26 Out 2009
    • Aceito
      24 Maio 2010
    Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: revista@cardiol.br