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Tratamento cirúrgico sem circulação extracorpórea de arteriopatia relacionada com arterite de Takayasu envolvendo aorta e vasos da base

Resumos

Relatamos o caso de duas pacientes portadoras de arterite de Takayasu, encaminhadas ao nosso serviço onde as lesões acometiam a aorta torácica descendente e os vasos da base e, em uma delas, lesão obstrutiva crítica do óstio da coronária esquerda. Ambas as pacientes foram operadas sem circulação extracorpórea, com heparinização plena e auxílio de autotransfusão.


We report the cases of 2 female patients with Takayasu's arteritis referred to our service with lesions affecting the descending thoracic aorta and great vessels. One of the patients had a critical obstructive lesion in the left coronary ostium. Both patients underwent surgery without extracorporeal circulation, with full heparinization and autotransfusion.


RELATO DE CASO

Tratamento cirúrgico sem circulação extracorpórea de arteriopatia relacionada com arterite de Takayasu envolvendo aorta e vasos da base

Surgical treatment without extracorporeal circulation of artery disease related to Takayasu's arteritis involving the aorta and great vessels

Rodrigo Milani; Paulo Brofman; Tayse Sandri; Alexandre Varela; José Augusto Souza; Luiz Gustavo Emed; Stefan da Silveira; Marcelo Dantas; Maximiliano Guimarães; Rafael Pontarolli; Francisco Maia

Santa Casa de Misericórdia - PUC - Curitiba, PR

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Rodrigo Mussi Milani Rua Sergio Pereira da Silva, 74 - Casa 2 82100-210 - Curitiba, PR E-mail: grmilani@cardiol.br

RESUMO

Relatamos o caso de duas pacientes portadoras de arterite de Takayasu, encaminhadas ao nosso serviço onde as lesões acometiam a aorta torácica descendente e os vasos da base e, em uma delas, lesão obstrutiva crítica do óstio da coronária esquerda. Ambas as pacientes foram operadas sem circulação extracorpórea, com heparinização plena e auxílio de autotransfusão.

ABSTRACT

We report the cases of 2 female patients with Takayasu's arteritis referred to our service with lesions affecting the descending thoracic aorta and great vessels. One of the patients had a critical obstructive lesion in the left coronary ostium. Both patients underwent surgery without extracorporeal circulation, with full heparinization and autotransfusion.

A arterite de Takayasu é uma vasculite crônica de etiologia desconhecida, com o primeiro relato de caso datando de 19081. Mulheres são afetadas em 80 a 90% dos casos, comprometendo pacientes com idades entre 10 e 40 anos2,3. A arterite de Takayasu, primariamente, afeta a aorta e seus ramos primários4. A inflamação pode estar restrita à aorta torácica e/ou abdominal, além de seus ramos, sendo que em alguns casos as manifestações são relacionadas ao comprometimento dos óstios coronarianos. Na progressão da doença, é comum o aparecimento de lesões em todos os vasos da base, variando desde lesões localizadas até estenoses segmentares extensas. A aorta abdominal e artérias pulmonares são envolvidas em cerca de 50% dos pacientes. O grau de atividade da doença varia com o tempo, com aparentes exacerbações e reduções ou remissões na intensidade do processo inflamatório.

A indicação para tratamento cirúrgico da doença é relacionada, freqüentemente, a graves complicações circulatórias, incluindo hipertensão intratável e insuficiência cardíaca descompensada, além de sinais de isquemia miocárdica nos casos de lesão envolvendo óstio coronariano.

A técnica operatória empregada varia de caso a caso devido ao grande número de vasos afetados e à extensão do comprometimento das lesões, fazendo com que a equipe envolvida na correção necessite do emprego de todo arsenal cirúrgico desenvolvido para as operações cardíacas.

Relato dos Casos

Caso 1 - Mulher de 32 anos, de cor branca, deu entrada em nosso serviço por quadro de hipertensão arterial de difícil controle, cefaléia e claudicação de membro inferior esquerdo, relatando que, aproximadamente, há oito meses começou a ter quadro de cefaléia intensa, quando foi encaminhada ao cardiologista que detectou presença de hipertensão grave, iniciando tratamento clínico, com leve melhora da sintomatologia. Quarenta e cinco dias antes da internação iniciou com dor em membros inferiores, especialmente à esquerda, desencadeada pela atividade física e na evolução com dor ao repouso. Ao exame físico apresentava, na internação, hipertensão arterial e diminuição importante dos pulsos em membros inferiores. Ecocardiograma transtorácico evidenciou hipertrofia miocárdica importante. A tomografia toracoabdominal mostrava estenose segmentar extensa da aorta descendente, com ponto crítico, 95%, ao nível da transição toracoabdominal (fig. 1). Submetida a angiografia de aorta ascendente, arco aórtico, aorta descendente e abdominal, confirmaram-se os achados da tomografia, além de se detectar lesão obstrutiva crítica de tronco celíaco e lesão segmentar extensa de carótida esquerda. Não foi evidenciado comprometimento de artéria pulmonar ou seus ramos.


As provas de atividade inflamatória encontravam-se dentro dos limites da normalidade. Apenas o VHS apresentava-se levemente alterado. Afastada a possibilidade de episódio ativo da doença, foi indicada cirurgia, com objetivo de se restabelecer o fluxo entre a aorta descendente e abdominal e corrigir a lesão na carótida esquerda.

O acesso utilizado foi a toracolaparotomia mediana, com a incisão estendendo-se desde a fúrcula esternal até a sínfise púbica. Após a exposição da aorta abdominal abaixo da artéria mesentérica inferior, ao nível da bifurcação das artérias ilíacas, a paciente recebeu uma dose de 4 mg/kg de heparina. Com uma pressão sistólica estabilizada em 100 mmHg, foi aplicado pinçamento parcial da aorta ascendente acima da origem dos óstios coronarianos e, a seguir, realizada uma aortotomia em forma de elipse na face lateral da aorta e um tubo de dacron de 22 mm de diâmetro foi anastomosado com sutura continua de prolene 4-0. Este tubo, após ter sua porção proximal conectada a aorta ascendente (fig. 2), foi trazido para o abdôme passando ao lado do átrio direito, em cima da veia cava inferior, por uma abertura realizada no diafragma, ao lado do fígado e por baixo do estomago, atingindo retroperitônio onde foi anastomosado à aorta abdominal próximo à sua bifurcação com sutura continua de prolene 4-0 (fig. 3). Em seguida, a artéria carótida esquerda foi exposta em seu terço médio, antes de sua bifurcação, e um tubo de dacron com 6 mm de diâmetro foi anastomosado (fig. 4). A porção proximal deste tubo foi levada, através da região cervical, passando por baixo da musculatura, até o tubo maior, saindo da aorta ascendente. Neste ponto foi realizada a anastomose entre os dois tubos. Ao término desta anastomose, a heparina foi revertida em 75% de sua dose inicial. Todo este procedimento foi realizado sem auxílio de circulação extracorpórea. Não houveram intercorrências pós-operatórias, com a paciente recebendo alta da unidade de terapia intensiva no 2° pós-operatório e alta hospitalar no 7° dia de pós-operatório.




Caso 2 - Mulher de 25 anos, de origem asiática, relatava dor precordial aos esforços, de início há aproximadamente 120 dias, irradiada para membro superior esquerdo, acompanhada de sudorese, com importante piora do quadro 15 dias antes da internação, evoluindo com dor ao repouso. Aos 17 anos de idade foi submetida à operação para revascularização do miocárdio, realizada ponte com artéria torácica interna esquerda para ramo descendente anterior e ponte com artéria torácica interna direita para ramo marginal da artéria circunflexa. Na admissão hospitalar, eletrocardiograma apresentava isquemia extensa de toda parede anterior e o teste de esforço, 30 dias antes da internação, era positivo para isquemia. O ecocardiograma transtorácico mostrou hipocontratilidade moderada da parede ântero-septal, com função ventricular preservada. Tomografia de tórax e abdôme apresentava lesão segmentar extensa na aorta descendente com gradiente de pressão entre a aorta ascendente e aorta abdominal de 80 mmHg. Realizado em seguida cateterismo cardíaco e angiografia de aorta ascendente, arco, descendente e abdominal. A coronariografia mostrava lesão obstrutiva crítica do óstio da coronária esquerda, com oclusão total de ambas as artérias torácicas. Na angiografia, evidenciou-se oclusão total da carótida esquerda, com enchimento por circulação colateral através das artérias vertebrais e oclusão total da artéria subclávia esquerda. A angiografia confirmou ainda, o achado tomográfico, com presença de lesão segmentar extensa na aorta descendente. As provas de atividade inflamatória encontravam-se normais, excluindo-se assim evento agudo da doença. Com base nos achados, foi indicada nova operação, com objetivo de corrigir as lesões coronarianas e melhorar o fluxo sangüíneo entre a aorta ascendente e abdominal.

A via de acesso, como na primeira paciente, foi a esternotomia associada à laparotomia mediana, estendendo-se da fúrcula esternal até a sínfise púbica. Devido ao processo inflamatório, o coração encontrava-se extremamente aderido e a liberação das aderências bastante trabalhosa. Ao contrário do primeiro caso onde a aorta ascendente encontrava-se livre de processo inflamatório, este caso apresentava um espessamento severo das paredes deste segmento, dificultando a confecção da anastomose. Igualmente, como na primeira paciente, foi administrada dose de 4 mg/kg de heparina e feito pinçamento parcial da aorta ascendente, com aortotomia em forma de elipse na face lateral e anastomose de tubo de dacron com 20 mm de diâmetro com sutura continua de prolene 4-0. A parte distal do tubo foi levada ao abdôme como já descrito no primeiro caso, sendo a anastomose feita junto à bifurcação com sutura continua de prolene 4-0. Terminada a correção da aorta, a paciente foi colocada em posição de Trendelemburg e a mesa operatória girada para o lado direito. Nesta posição e com auxílio de estabilizador de tecidos por sucção (Octopuss – Medtronic), procedeu-se a revascularização do miocárdio com ponte de veia safena para ramo marginal da artéria circunflexa e ponte de safena para ramo descendente anterior. Devido a grande espessura da aorta as anastomoses proximais foram feitas no tubo de dacron em sua origem na aorta ascendente. Não houve intercorrências pós–operatórias permanecendo a paciente dois dias na UTI e mais oito dias de internação hospitalar. O eletrocardiograma na alta apresentava melhora da isquemia em relação ao pré-operatório. Como a primeira paciente, esta operação também foi realizada sem auxílio de circulação extracorpórea. Ambas as pacientes foram anticoaguladas antes da alta hospitalar.

Discussão

Nas doenças inflamatórias da aorta, o bypass aórtico com emprego de prótese tubular, é normalmente o método selecionado para tratamento de estenoses segmentares, evitando-se assim a manipulação dos segmentos mais doentes da aorta5. O acometimento dos vasos da base é relativamente comum e, apesar da revascularização desses vasos ser o ideal, nem sempre é possível devido à extensão da lesão envolvendo às vezes segmento intracraniano da carótida e fibrose extensa desses vasos. As lesões coronarianas, quando localizadas, podem ser tratadas através de angioplastia6 e na maioria dos casos por meio de revascularização cirúrgica do miocárdio7. Quando a lesão coronariana é limitada aos óstios, alguns autores defendem a correção através de ostioplastia8.

No caso 1, a doença limitava-se a aorta descendente, artéria carótida esquerda com uma lesão localizada e tronco celíaco. A realização do bypass aórtico, trabalhando-se em área livre de inflamação, mostrou-se uma operação relativamente simples, devendo-se ter alguns cuidados técnicos na transição toracoabdominal através do diafragma, evitando-se a formação de hérnias bem como a erosão de órgãos abdominais pela presença do tubo. A presença de uma artéria mesentérica inferior livre de doença garante boa circulação colateral para região do tronco celíaco, exigindo muita atenção devido a sua proximidade com a bifurcação aórtica na confecção da anastomose abdominal. Este tipo de operação mostrou-se bastante eficiente em aliviar os sintomas da paciente, hipertensão e claudicação de membros inferiores. A lesão de carótida, limitada a um segmento proximal, também pode ser tratada através de implante de prótese, com bons resultados em curto prazo.

No caso 2, o comprometimento dos vasos da base era mais importante, levando à oclusão total da carótida e subclávia esquerdas, com seus territórios irrigados por meio de circulação colateral, que se mostrava eficiente. Os vasos ocluidos apresentavam-se com importante fibrose sendo difícil a sua revascularização. Além disto, a paciente já havia sido operada devido ao acometimento de óstio da coronária esquerda 7 anos antes, demonstrando o caráter evolutivo da doença. Um dos prováveis fatores responsável pela oclusão da artéria torácica interna esquerda pode ter sido a obstrução total da artéria subclávia esquerda, levando a uma interrogação quanto à utilização deste tipo de enxerto neste subgrupo especial de pacientes. Uma alternativa à revascularização tradicional é a ostioplastia, procedimento que apresenta bons resultados em pacientes sem acometimento pela doença da aorta ascendente9, o que não ocorria neste caso, onde este segmento da aorta era extremamente espesso, impossibilitando sua realização e optando-se pela operação tradicional para revascularização do miocárdio.

Ambas as pacientes evoluíram de modo bastante satisfatório, demonstrando grande benefício para este grupo de pacientes, a realização de operações complexas sem auxílio da circulação extracorpórea. Como a quantidade de material protético utilizada nos dois casos foi grande, optou-se por anticoagulação plena e devido ao caráter evolutivo da doença, o uso de corticoterapia em doses baixas a fim de prevenir novos surtos da doença. Nos casos de exacerbação, a pulsoterapia se faz necessária.

Em conclusão, doenças inflamatórias da aorta, como a arterite de Takayasu, apresentam uma série de variações do ponto de vista anatômico quanto à presença de estenoses, sendo as operações reservadas para os casos onde o acometimento de artérias importantes ocorreu sem que houvesse a presença de uma circulação colateral satisfatória, ocasionando sintomas de isquemia. Assim, o planejamento cirúrgico deve levar em conta o objetivo da operação neste tipo de doença, que é a melhora dos sintomas, como nos casos relatados, onde no caso 1 melhorou-se a circulação na aorta toracoabdominal, diminuindo assim a isquemia de membros inferiores e simultaneamente tentando-se corrigir a hipertensão e, no caso 2, onde além destes dois sintomas corrigiu-se a isquemia miocárdica.

Enviado em 30/03/2004

Aceito em 23/11/2004

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  • Endereço para correspondência

    Rodrigo Mussi Milani
    Rua Sergio Pereira da Silva, 74 - Casa 2
    82100-210 - Curitiba, PR
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Aceito
      23 Nov 2004
    • Recebido
      30 Mar 2004
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