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Acesso trans-hepático para atriosseptostomia em neonato

Resumos

Relatamos um caso de um neonato portador de transposição completa das grandes artérias que foi submetido a atrioseptostomia de Rashkind por acesso trans-hepático por interrupção congênita da veia cava inferior. Os aspectos técnicos do procedimento são discutidos.

Acesso trans-hepático; atriosseptostomia; transposição das grandes artérias


We report a case in which a neonate with complete transposition of the great arteries was submitted to an atrial septostomy through transhepatic access due to congenital interruption of the inferior vena cava. The technical aspects of the procedure are discussed.

Transhepatic access; atrioseptostomy; transposition of the great arteries


RELATO DE CASO

Acesso trans-hepático para atriosseptostomia em neonato

Juliana Rodrigues Neves; Carlos R. Ferreiro; Valmir F. Fontes; Carlos A. C. Pedra

Hospital do Coração da Associação Sanatório Sírio - São Paulo, SP

Correspondência Correspondência: Carlos A. C. Pedra Rua Dom Paulo Pedrosa 673/62A 05687-001 – São Paulo, SP E-mail: cacpedra@uol.com.br / ju_neves@uol.com.br

RESUMO

Relatamos um caso de um neonato portador de transposição completa das grandes artérias que foi submetido a atrioseptostomia de Rashkind por acesso trans-hepático por interrupção congênita da veia cava inferior. Os aspectos técnicos do procedimento são discutidos.

Palavras-chave: Acesso trans-hepático, atriosseptostomia, transposição das grandes artérias.

Introdução

A mortalidade pré-operatória em recém-nascidos com transposição completa das grandes artérias (TGA) se deve principalmente a comunicações interatriais (CIA) ausentes ou restritivas. No manuseio desses neonatos se destacam a utilização de prostaglandina para promover a patência do canal arterial e a realização de atriosseptostomia por cateter-balão (procedimento de Rashkind)1. A atriosseptostomia permite a sobrevida de vários pacientes com cardiopatias congênitas complexas constituindo-se em uma das poucas indicações de cateterismo de emergência em neonatos2.

Para a realização desse procedimento, no entanto, os acessos venosos percutâneos tradicionais podem não estar disponíveis, principalmente em razão do uso anterior na UTI, por cateterismos cardíacos sucessivos e/ou cirurgias prévias ou, ainda, por interrupção congênita da veia cava inferior (VCI). A necessidade de novos cateterismos diagnósticos e intervenções nesses pacientes levou ao desenvolvimento de novas vias de acesso ao coração direito, como o acesso trans-hepático. Como há poucos registros na literatura sobre o uso dessa técnica em recém-nascidos3, neste artigo relatamos o caso de um neonato com TGA e interrupção da VCI, no qual o acesso trans-hepático foi empregado para viabilizar a atriosseptostomia.

Relato do Caso

Neonato do sexo masculino, no sexto dia de vida, com diagnóstico ecocardiográfico de TGA com pequena CIA (4 mm) e septo interventricular íntegro. Encaminhado ao nosso serviço sob ventilação mecânica e infusão de prostaglandina E1 (Prostin®) 0,02 µg/kg/min, evoluiu com quadro infeccioso vindo a necessitar de antibioticoterapia de amplo espectro e suporte inotrópico. Na evolução, mantinha-se com baixa saturação arterial sistêmica (abaixo de 65%) e em novo ecocardiograma foi caracterizado padrão de fluxo restritivo através da CIA, sendo solicitada a atriosseptostomia.

No laboratório de hemodinâmica e sob anestesia geral, realizou-se punção de veia femoral introduzindo-se bainha pediátrica 6F. Identificou-se então ausência do segmento hepático da VCI com continuação da veia ázigos para a veia cava superior. Não havia possibilidade de acesso por veia umbilical, já que essa via fora utilizada para inserção de cateter venoso central nos primeiros dias de internação. Como se tratava de neonato criticamente enfermo, com baixa saturação arterial sistêmica, sem condições clínicas de procedimento cirúrgico naquele momento, optou-se pela tentativa de punção trans-hepática da veia supra-hepática.

Após assepsia da região do hipocôndrio direito, realizou-se punção com agulha de raquianestesia 22 Gauge com mandril. Utilizaram-se como pontos de referência: a porção média do fígado de acordo com fluoroscopia, a linha axilar média e angiografia realizada em átrio direito (AD) para visualização das principais veias supra-hepáticas. A agulha foi dirigida de forma posterior e superior em direção à coluna, a poucos centímetros de sua borda direita. Depois de retirado o estilete da agulha, essa foi recuada lentamente sob aspiração contínua. Ocasionalmente foram realizadas pequenas injeções de contraste não-iônico (Hexabrix®). Seis tentativas de punção foram feitas direcionando a agulha anteriormente até que se observasse fluxo rápido de contraste em direção superior ao átrio direito. Foi introduzido então guia de angioplastia coronária (0,014") e sobre ele foi posicionada bainha 6F, após dilatação progressiva utilizando a técnica de Seldinger. Posteriormente, essa bainha foi trocado por outra de 7F para passagem dos cateteres-balão, com sua extremidade distal mantida na porção mais baixa do AD (fig. 1). A partir desse momento, o procedimento foi guiado pela ecocardiografia transtorácica. Posicionou-se guia rígido 0,035" em veia pulmonar inferior esquerda e introduziram-se balões Power-flex (Cordis) 7x20 mm, 9x20 mm e 12x20 mm para atriosseptostomias estáticas sucessivas (fig. 2), realizadas sem intercorrências. Para finalizar, foi realizada a atriosseptostomia com balão de Rashkind 6F seguindo a técnica convencional. Ao término do procedimento, não havia gradiente de pressão interatrial e a saturação arterial sistêmica mantinha-se em torno de 80%. A ecocardiografia mostrou aumento da CIA de 3,5 para 6,5 mm, com fluxo bidirecional não-restritivo.



Os cateteres-balão foram retirados, sendo introduzido um cateter Judkins de coronária direita 5F. Esse foi recuado junto com introdutor até estar localizado no parênquima hepático, posição confirmada por pequena injeção de contraste. Nesse local, foram introduzidas duas molas de Gianturco (38x5x5 e 38x4x3) para hemostasia hepática. Um curativo oclusivo no local foi mantido por 24 horas.

Após o procedimento, o neonato evoluiu estável na UTI, mantendo saturação arterial satisfatória e aguardando o término da antibioticoterapia para realização da cirurgia corretiva. A ultra-sonografia de abdome realizada no dia seguinte não evidenciou sinais de hematoma hepático intraparenquimatoso, trombose venosa ou de hemorragia intracavitária. A radiografia de tórax pós-procedimento não evidenciou derrame pleural ou pneumotórax. As enzimas hepáticas e a hematimetria colhidas após o procedimento e no dia seguinte também se encontravam nos limites da normalidade.

Discussão

A CIA restritiva constitui-se numa das maiores causas de mortalidade nos neonatos com TGA1-2. A atriosseptostomia com cateter-balão é um procedimento seguro e eficaz nesses pacientes. É geralmente realizada em regime de emergência, podendo ser monitorada pela fluoroscopia ou pela ecocardiografia transtorácica à beira do leito4. As vias de acesso mais comumente utilizadas para esse procedimento são as veias femoral e umbilical. As principais técnicas para sua realização são: a atriosseptostomia por cateter-balão, a com lâmina de Park e a que envolve a dilatação estática da CIA usando cateteres-balão para angioplastia2.

A maior vantagem do acesso umbilical em neonatos é que esse procedimento poupa outros vasos para procedimentos futuros. A veia umbilical permanece pérvia nas primeiras 24 horas de vida, mas raramente após três a quatro dias. No paciente relatado, seu uso encontrava-se impossibilitado por cateterização prévia para administração de medicações. Apesar de a veia jugular interna poder ser utilizada para cateterismos em lactentes, não há relatos do uso desse acesso para atriosseptostomias, provavelmente pela dificuldade em cruzar a CIA por essa via com um balão de Rashkind convencional sem furo terminal, valendo o mesmo argumento para a veia subclávia.

Recentemente, tanto cateterismos diagnósticos quanto terapêuticos vêm sendo realizados por punção trans-hepática em crianças com impossibilidade de acesso venoso por vias convencionais3,5-8. Entretanto, há poucos relatos da realização de tais procedimentos em neonatos com ausência congênita da parte hepática da VCI. Shim e cols.7 demonstraram que a via trans-hepática é segura e eficaz para realização de cateterismo em crianças, inclusive em dois neonatos com estenose pulmonar crítica, em que o acesso trans-hepático promoveu melhor posicionamento do cateter na via de saída do ventrículo direito. O mesmo autor especula ainda que essa via promova melhor acesso para o fechamento percutâneo de CIA tipo fossa oval pelo posicionamento mais perpendicular da bainha em relação ao septo interatrial. A propósito, uma das vantagens descritas desse acesso é possibilitar o uso de bainhas de alto perfil mesmo em crianças pequenas, sem dano vascular.

Para realização do procedimento, foi utilizada agulha de Chiba de 22-Gauge na maioria dos relatos. Recentemente, demonstrou-se que é possível a realização da punção de forma simples, utilizando a técnica de Seldinger e equipamento normalmente empregado no laboratório de cateterismo, como agulha de punção 20-Gauge (Cook Inc., Bloomigham, Indiana)5. O local ideal de punção pode ser identificado pela fluoroscopia3,7 ou com auxílio da ultra-sonografia abdominal5. O ponto de referência mais freqüentemente utilizado é a linha axilar média na porção hepática média entre o diafragma e a borda inferior do fígado pela fluoroscopia. Angiografias anteriores também podem ser utilizadas como referência. A técnica descrita é semelhante à utilizada nesse caso3,7-8. McLeod e cols.5 afirmam que o uso de ultra-sonografia é útil e promove orientação satisfatória para canulação de veias hepáticas, reduzindo o tempo de fluoroscopia e exposição à radiação, mas especulam que a necessidade de auxílio ultra-sonográfico diminui à medida que aumenta a experiência do operador. A taxa de sucesso da punção hepática varia de 93% a 100% nas séries consultadas3,5,7.

As complicações são infreqüentes, ocorrendo em menos de 5% nos procedimentos trans-hepáticos mais tradicionais, tais como colangiografia trans-hepática percutânea e acesso ao sistema venoso portal. Em 1998, Erenberg e cols.9 relataram dois casos de hemorragia intraperitoneal significativa, determinando taxa de complicação de 4,6% para o cateterismo cardíaco. As principais complicações da técnica são: hemotórax ou pneumotórax, hemoperitôneo, embolia pulmonar e peritonite. Outras complicações potenciais incluem: perfuração intestinal ou de vesícula biliar, trombose de veias hepáticas ou do sistema porta, hemobilia e alterações da função hepática. Portanto, após o procedimento, faz-se necessária a monitoração cuidadosa dos sinais vitais e marcadores laboratoriais aliados à ultra-sonografia abdominal10.

Para hemostasia hepática após o término do cateterismo preconiza-se geralmente ocluir o trajeto intra-hepático com molas ou gelfoam. Kaye e cols.10 advogam o uso desses dispositivos em todo o trajeto para prevenir sangramento intraperitoneal. Outra precaução a ser tomada é evitar a embolização de veias hepáticas, garantindo que o cateter esteja no parênquima hepático por pequenas injeções de contraste. A hemostasia também pode ser garantida sem uso de dispositivos, por meio de compressão manual do hipocôndrio direito, não havendo relato de sangramento significativo após intervenções com esse método5.

Concluindo, no caso relatado, a punção trans-hepática viabilizou a realização da atriosseptostomia em um neonato com TGA e a interrupção da VCI. Essa via mostrou-se segura e eficaz para tal finalidade.

Potencial Conflito de Interesses

Declaro não haver conflitos de interesses pertinentes.

Artigo recebido em 10/04/06; revisado recebido em 01/06/06; aceito em 27/08/06.

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  • Correspondência:
    Carlos A. C. Pedra
    Rua Dom Paulo Pedrosa 673/62A
    05687-001 – São Paulo, SP
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      24 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Mar 2007

    Histórico

    • Recebido
      10 Maio 2006
    • Revisado
      01 Jun 2006
    • Aceito
      06 Ago 2007
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