Acessibilidade / Reportar erro

Por Que Tratar Formas Crônicas da Doença de Chagas com Benzonidazol se as Reações Adversas são Muito Frequentes?

Doença de Chagas; Terapêutica; Toxidermias

Após o controle bem sucedido da transmissão vetorial e transfusional da doença de Chagas (DC) no Brasil e em outros países endêmicos da América Latina, os desafios atuais são o controle da transmissão congênita da doença.11. Dias JC. Elimination of Chagas Disease Transmission: Perspectives. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2009;104(Suppl 1):41-5. doi: 10.1590/s0074-02762009000900007.
https://doi.org/10.1590/s0074-0276200900...
Porém, ainda temos um grande contingente de pessoas infectadas com o Trypanosoma cruzi na forma crônica, estimados somente no Brasil em ~3,7 milhões de indivíduos, sendo ~590 mil mulheres em idade fértil.22. Laporta GZ, Lima MM, Costa VM, Lima MM Neto, Palmeira SL, Rodovalho SR, et al. Estimativa de Prevalência de Doença de Chagas Crônica nos Municípios Brasileiros. Rev Panam Salud Publica. 2024;48:e28. doi: 10.26633/RPSP.2024.28.
https://doi.org/10.26633/RPSP.2024.28...

Dois guias de tratamento para DC foram produzidos pela Organização Panamericana de Saúde e pelo Ministério da Saúde do Brasil em 2018.33. Pan American Health Organization. PAHO New Guide for Diagnosis and Treatment of Chagas Disease. Geneva: World Health Organization; 2018.,44. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Doença de Chagas, no Âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2018. Estes guias definem graus de recomendação para o tratamento tripanocida, com ênfase em recém natos, crianças e adolescentes, mulheres em idade fértil e adultos na forma clínica indeterminada até 50 anos de idade. Estudos nessas populações comprovam a eficácia do tratamento etiológico na forma crônica da DC que conduz à cura em crianças, impacta na transmissão vertical e diminui o risco de progressão da doença para a forma cardíaca.55. Moscatelli G, Moroni S, Bournissen FG, González N, Ballering G, Schijman A, et al. Longitudinal Follow up of Serological Response in Children Treated for Chagas Disease. PLoS Negl Trop Dis. 2019;13(8):e0007668. doi: 10.1371/journal.pntd.0007668.
https://doi.org/10.1371/journal.pntd.000...

6. Álvarez MG, Vigliano C, Lococo B, Bertocchi G, Viotti R. Prevention of Congenital Chagas Disease by Benznidazole Treatment in Reproductive-age Women. An Observational Study. Acta Trop. 2017;174:149-52. doi: 10.1016/j.actatropica.2017.07.004.
https://doi.org/10.1016/j.actatropica.20...
-77. Hasslocher-Moreno AM, Saraiva RM, Sangenis LHC, Xavier SS, Sousa AS, Costa AR, et al. Benznidazole Decreases the Risk of Chronic Chagas Disease Progression and Cardiovascular Events: A Long-term Follow up Study. EClinicalMedicine. 2020;31:100694. doi: 10.1016/j.eclinm.2020.100694.
https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2020.10...

Para o tratamento etiológico da DC somente duas drogas estão disponíveis: nifurtimox (NTX) e benzonidazol (BZN), ambas produzidas no final da década de 1960.88. Bosch-Nicolau P, Salvador F, Sánchez-Montalvá A, Franco-Jarava C, Arrese-Muñoz I, Sulleiro E, et al. Association of HLA-B*35 and Moderate or Severe Cutaneous Reactions Secondary to Benznidazole Treatment in Chronic Chagas Disease. Clin Microbiol Infect. 2022;28(6):881. doi: 10.1016/j.cmi.2021.11.021.
https://doi.org/10.1016/j.cmi.2021.11.02...
No Brasil, o BZN é produzido pelo Lafepe, vinculado à Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco, e é a droga de primeira escolha no tratamento da DC, Este medicamento, frequentemente, apresenta reações adversas medicamentosas (RAM), determinando a interrupção do tratamento em torno de 20% dos pacientes.99. Pérez-Molina JA, Pérez-Ayala A, Moreno S, Fernández-González MC, Zamora J, López-Velez R. Use of Benznidazole to Treat Chronic Chagas' Disease: A Systematic Review with a Meta-analysis. J Antimicrob Chemother. 2009;64(6):1139-47. doi: 10.1093/jac/dkp357.
https://doi.org/10.1093/jac/dkp357...

Para adequada abordagem das RAMs é necessário utilizar um algoritmo que avalie a causalidade e outro a intensidade da reação.1010. Naranjo CA, Busto U, Sellers EM, Sandor P, Ruiz I, Roberts EA, et al. A Method for Estimating the Probability of Adverse Drug Reactions. Clin Pharmacol Ther. 1981;30(2):239-45. doi: 10.1038/clpt.1981.154.
https://doi.org/10.1038/clpt.1981.154...
,1111. Uppsala Monitoring Centre. The WHO Adverse Reaction Terminology (WHO-ART). Geneva: World Health Organization; 2016. Sintomas inespecíficos como cefaleia, náuseas e dor abdominal podem estar frequentemente presentes, porém a manifestação clínica muito frequente (≥ 10%) decorrente da RAM ao BZN é a dermatite, responsável pela maioria das suspenções de tratamento. Outra manifestação frequente (≥ 1% e < 10%) é a neuropatia periférica.99. Pérez-Molina JA, Pérez-Ayala A, Moreno S, Fernández-González MC, Zamora J, López-Velez R. Use of Benznidazole to Treat Chronic Chagas' Disease: A Systematic Review with a Meta-analysis. J Antimicrob Chemother. 2009;64(6):1139-47. doi: 10.1093/jac/dkp357.
https://doi.org/10.1093/jac/dkp357...
As manifestações inespecíficas tendem a surgir nos primeiros dias, a dermatite a partir da segunda semana, enquanto a neuropatia a partir do segundo mês de tratamento.

Em função da alta frequência de RAMs observadas com o uso do BZN e da relevância de tratar indivíduos na forma crônica da DC, é fundamental o manejo clínico das RAMs ao longo do tratamento, garantindo a segurança do paciente e permitindo que este complete os 60 dias propostos nos guias terapêuticos.33. Pan American Health Organization. PAHO New Guide for Diagnosis and Treatment of Chagas Disease. Geneva: World Health Organization; 2018.,44. Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Doença de Chagas, no Âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2018. Para tal, um protocolo clínico de seguimento deve ser considerado ao longo do tratamento, incluindo uma avaliação laboratorial antes, durante e no final do tratamento, assim como a identificação precoce da RAM e seu manejo clínico adequado.1212. Belmino AC, Sousa EKS, Silva Filho JD, Rocha EA, Nunes FMM, Tiago Lima Sampaio, et al. Causalidade e Gravidade das Reações Adversas e Alterações Laboratoriais ao Tratamento com Benznidazol em Pacientes com Doença de Chagas Crônica. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(8):e20230787. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20230787
https://doi.org/10.36660/abc.20230787...

Outro aspecto importante para o sucesso do tratamento é a relação médico paciente que deve ser estabelecida antes de iniciar o processo terapêutico com BZN. Inicialmente, o paciente deve ser esclarecido da importância de seu tratamento, explicando os benefícios potenciais a curto (crianças), médio (mulheres em idade fértil) e longo (pacientes na forma indeterminada) prazos. Um segundo ponto é alertar o paciente da possibilidade deste apresentar RAMs ao BZN, em especial a dermatite, de forma que este esteja atento e informe qualquer sintoma novo ao serviço de saúde que o acompanha. Terceiro, reforçar que o relato da RAM deve ser feito o mais breve possível e que nesta condição o paciente será avaliado pelo seu médico assistente que poderá receitar sintomáticos ou até suspender o tratamento temporariamente ou definitivamente. Importante salientar que mesmo existindo um protocolo de manejo clínico, “cada caso é um caso” e, portanto, a conduta médica deve ser individualizada para cada paciente.

Novas abordagens já estão sendo desenvolvidas para a questão das RAMs no tratamento da DC. Uma delas é a aplicação de um escore de risco para RAM no uso de BZN.1313. Silva GMS, Mediano MF, Brasil PEAA, Chambela MC, Silva JA, Sousa AS, et al. A Clinical Adverse Drug Reaction Prediction Model for Patients with Chagas Disease Treated with Benznidazole. Antimicrob Agents Chemother. 2014;58(11):6371-7. doi: 10.1128/AAC.02842-14.
https://doi.org/10.1128/AAC.02842-14...
Este escore sinaliza que mulheres, de baixa escolaridade, brancas, entre 20 e 40 anos têm um risco maior de apresentar RAMs. Contudo este escore carece de validação externa. Outra abordagem envolve aspectos farmacogenéticos, considerando que reações de hipersensibilidade tardia estão associadas a um antígeno (HLA) classe I. No caso específico de RAMs moderadas a graves no uso de BZN, parece haver uma associação com a presença do alelo HLA-B*35 em pacientes que expressam esse polimorfismo.88. Bosch-Nicolau P, Salvador F, Sánchez-Montalvá A, Franco-Jarava C, Arrese-Muñoz I, Sulleiro E, et al. Association of HLA-B*35 and Moderate or Severe Cutaneous Reactions Secondary to Benznidazole Treatment in Chronic Chagas Disease. Clin Microbiol Infect. 2022;28(6):881. doi: 10.1016/j.cmi.2021.11.021.
https://doi.org/10.1016/j.cmi.2021.11.02...
Além disso, estudo de farmacocinética podem auxiliar a compreender questões de toxicidade do BZN que poderia justificar, em parte, as RAMs.1414. Montilla CAP, Moroni S, Moscatelli G, Rocco DM, González N, Altcheh JM, et al. Major Benznidazole Metabolites in Patients Treated for Chagas Disease: Mass Spectrometry-based Identification, Structural Analysis and Detoxification Pathways. Toxicol Lett. 2023;377(15):71-82. doi: 10.1016/j.toxlet.2023.02.001.
https://doi.org/10.1016/j.toxlet.2023.02...
Por último, o uso de medicamentos reposicionados ou combinação de medicamentos pode fornecer um tratamento tripanocida com menos RAMs, mantendo a sua eficácia.1515. Saraiva RM, Portela LF, Silveira GPED, Gomes NLS, Pinto DP, Silva ACA, et al. Disulfiram Repurposing in the Combined Chemotherapy of Chagas Disease: A Protocol for Phase I/II Clinical Trial. Med Case Rep Study Protoc. 2021;2(7):e0110. doi: 10.1097/MD9.0000000000000110.
https://doi.org/10.1097/MD9.000000000000...

Referências

  • 1
    Dias JC. Elimination of Chagas Disease Transmission: Perspectives. Mem Inst Oswaldo Cruz. 2009;104(Suppl 1):41-5. doi: 10.1590/s0074-02762009000900007.
    » https://doi.org/10.1590/s0074-02762009000900007
  • 2
    Laporta GZ, Lima MM, Costa VM, Lima MM Neto, Palmeira SL, Rodovalho SR, et al. Estimativa de Prevalência de Doença de Chagas Crônica nos Municípios Brasileiros. Rev Panam Salud Publica. 2024;48:e28. doi: 10.26633/RPSP.2024.28.
    » https://doi.org/10.26633/RPSP.2024.28
  • 3
    Pan American Health Organization. PAHO New Guide for Diagnosis and Treatment of Chagas Disease. Geneva: World Health Organization; 2018.
  • 4
    Brasil. Ministério da Saúde. Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas da Doença de Chagas, no Âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS. Brasília: Ministério da Saúde; 2018.
  • 5
    Moscatelli G, Moroni S, Bournissen FG, González N, Ballering G, Schijman A, et al. Longitudinal Follow up of Serological Response in Children Treated for Chagas Disease. PLoS Negl Trop Dis. 2019;13(8):e0007668. doi: 10.1371/journal.pntd.0007668.
    » https://doi.org/10.1371/journal.pntd.0007668
  • 6
    Álvarez MG, Vigliano C, Lococo B, Bertocchi G, Viotti R. Prevention of Congenital Chagas Disease by Benznidazole Treatment in Reproductive-age Women. An Observational Study. Acta Trop. 2017;174:149-52. doi: 10.1016/j.actatropica.2017.07.004.
    » https://doi.org/10.1016/j.actatropica.2017.07.004
  • 7
    Hasslocher-Moreno AM, Saraiva RM, Sangenis LHC, Xavier SS, Sousa AS, Costa AR, et al. Benznidazole Decreases the Risk of Chronic Chagas Disease Progression and Cardiovascular Events: A Long-term Follow up Study. EClinicalMedicine. 2020;31:100694. doi: 10.1016/j.eclinm.2020.100694.
    » https://doi.org/10.1016/j.eclinm.2020.100694
  • 8
    Bosch-Nicolau P, Salvador F, Sánchez-Montalvá A, Franco-Jarava C, Arrese-Muñoz I, Sulleiro E, et al. Association of HLA-B*35 and Moderate or Severe Cutaneous Reactions Secondary to Benznidazole Treatment in Chronic Chagas Disease. Clin Microbiol Infect. 2022;28(6):881. doi: 10.1016/j.cmi.2021.11.021.
    » https://doi.org/10.1016/j.cmi.2021.11.021
  • 9
    Pérez-Molina JA, Pérez-Ayala A, Moreno S, Fernández-González MC, Zamora J, López-Velez R. Use of Benznidazole to Treat Chronic Chagas' Disease: A Systematic Review with a Meta-analysis. J Antimicrob Chemother. 2009;64(6):1139-47. doi: 10.1093/jac/dkp357.
    » https://doi.org/10.1093/jac/dkp357
  • 10
    Naranjo CA, Busto U, Sellers EM, Sandor P, Ruiz I, Roberts EA, et al. A Method for Estimating the Probability of Adverse Drug Reactions. Clin Pharmacol Ther. 1981;30(2):239-45. doi: 10.1038/clpt.1981.154.
    » https://doi.org/10.1038/clpt.1981.154
  • 11
    Uppsala Monitoring Centre. The WHO Adverse Reaction Terminology (WHO-ART). Geneva: World Health Organization; 2016.
  • 12
    Belmino AC, Sousa EKS, Silva Filho JD, Rocha EA, Nunes FMM, Tiago Lima Sampaio, et al. Causalidade e Gravidade das Reações Adversas e Alterações Laboratoriais ao Tratamento com Benznidazol em Pacientes com Doença de Chagas Crônica. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(8):e20230787. doi: https://doi.org/10.36660/abc.20230787
    » https://doi.org/10.36660/abc.20230787
  • 13
    Silva GMS, Mediano MF, Brasil PEAA, Chambela MC, Silva JA, Sousa AS, et al. A Clinical Adverse Drug Reaction Prediction Model for Patients with Chagas Disease Treated with Benznidazole. Antimicrob Agents Chemother. 2014;58(11):6371-7. doi: 10.1128/AAC.02842-14.
    » https://doi.org/10.1128/AAC.02842-14
  • 14
    Montilla CAP, Moroni S, Moscatelli G, Rocco DM, González N, Altcheh JM, et al. Major Benznidazole Metabolites in Patients Treated for Chagas Disease: Mass Spectrometry-based Identification, Structural Analysis and Detoxification Pathways. Toxicol Lett. 2023;377(15):71-82. doi: 10.1016/j.toxlet.2023.02.001.
    » https://doi.org/10.1016/j.toxlet.2023.02.001
  • 15
    Saraiva RM, Portela LF, Silveira GPED, Gomes NLS, Pinto DP, Silva ACA, et al. Disulfiram Repurposing in the Combined Chemotherapy of Chagas Disease: A Protocol for Phase I/II Clinical Trial. Med Case Rep Study Protoc. 2021;2(7):e0110. doi: 10.1097/MD9.0000000000000110.
    » https://doi.org/10.1097/MD9.0000000000000110
  • Minieditorial referente ao artigo: Causalidade e Gravidade das Reações Adversas e Alterações Laboratoriais ao Tratamento com Benznidazol em Pacientes com Doença de Chagas Crônica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Set 2024
  • Data do Fascículo
    Ago 2024

Histórico

  • Recebido
    16 Jun 2024

  • 03 Jul 2024
  • Aceito
    03 Jul 2024
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br