Palavras-chave
Genética; Genótipo; Exercício; Hereditariedade; Medicina Esportiva; Morte Súbita Cardíaca
Introdução
A prática de atividade física regular é benéfica para pessoas de todas as idades, gêneros e etnias.11 Samitz G, Egger M, Zwahlen M. Domains of physical activity and all cause mortality: systematic review and dose-response meta-analysis of cohort studies. Int J Epidemiol. 2011;40(5):1382-400. Se, por um lado, a prática do exercício moderado é considerada uma atividade saudável e favorável ao sistema cardiovascular, por outro, o exercício de alta intensidade por longo período de tempo pode aumentar o risco de morte súbita (MS).22 Maron BJ, Haas TS, Murphy CJ, Ahluwalia A, Rutten-Ramos S, et al. Incidence and causes of sudden death in U.S. college athletes. J Am Coll Cardiol. 2014;63(16):1636-43. Mesmo considerando que um número imenso de pessoas faça exercício diariamente, a MS nesse cenário é considerada uma entidade rara. No entanto, a sua prevenção pode ser difícil e a mesma é de grande repercussão, principalmente quando incide em jovens praticantes de exercício recreativo ou em atletas. Do ponto de vista epidemiológico, a MS de origem cardíaca afeta entre 200 e 400 mil indivíduos nos Estados Unidos (EUA) anualmente.33 Mozaffarian D, Benjamin EJ, Go AS, Arnett DK, Blaha MJ, Cushman M, et al; American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart disease and stroke statistics - 2015 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2015;131(4):e29-322. No âmbito dos esportes, estima-se que em torno de 200 atletas ao ano apresentem um evento fatal.44 Maron BJ, Doerer JJ, Haas TS, Tierney DM, Mueller FO. Sudden deaths in young competitive athletes: analysis of 1866 deaths in the United States, 1980-2006. Circulation. 2009;119(8):1085-92. Na Espanha, o registro nacional de MS em atletas descreveu 180 casos de 1995 até 2007, sugerindo uma incidência de 15 a 20 casos por ano.55 Manonelles Marqueta P, Tapia BA, Boraita Pérez A, Luengo Fernández E, Beristaina CP, Suárez Mier MP. La muerte súbita en el esporte: registro en el estado espanol. Apunts Med Esport. 2007;42(153):26-35.
Em atletas, a avaliação pré-participação (APP) está indicada, podendo ser eficaz para a prevenção de MS cardíaca nesse contexto.66 Corrado D, Basso C, Pavei A, Michieli P, Schiavon M, Thiene G. Trends in sudden cardiovascular death in young competitive athletes after implementation of a preparticipation screening program. JAMA. 2006;296(13):1593-601. Contudo, esse tipo de rastreamento apresenta grande variabilidade entre diferentes países e entidades que o realizam. No tocante à avaliação genética, essa se encontra relegada somente a casos específicos no contexto dos esportes. Nessa revisão descreveremos aspectos básicos da avaliação genética, assim como as indicações da análise molecular e sua correta interpretação clínica, tanto para esportistas recreativos ou amadores, quanto para os atletas de alto rendimento.
Morte súbita no atleta: Que doenças podem estar envolvidas?
Uma das principais preocupações nas diferentes atividades esportivas é poder estabelecer o risco de MS para cada indivíduo e se essa atividade poderia incrementar o risco. É possível que exista uma relação entre o tipo de esporte praticado e a causa da MS, aspecto que deve ser levado em conta no momento do rastreamento e da prevenção. Dados recentes estimam que entre atletas jovens norte-americanos (<35 anos), a incidência de MS estaria entre 1 e 3 por 100.000.77 Harmon KG, Drezner JA, Wilson MG, Sharma S. Incidence of sudden cardiac death in athletes: a state-of-the-art review. Heart. 2014;100(16):1227-34. Já em atletas com mais de 35 anos, esse valor pode ser maior, tendo em vista que o risco de MS por cardiopatia isquêmica aumenta progressivamente com a idade.
Ainda são poucos os estudos observacionais disponíveis, a maioria realizada em países como EUA, Itália, Espanha e Dinamarca.55 Manonelles Marqueta P, Tapia BA, Boraita Pérez A, Luengo Fernández E, Beristaina CP, Suárez Mier MP. La muerte súbita en el esporte: registro en el estado espanol. Apunts Med Esport. 2007;42(153):26-35.,88 Solberg EE, Borjesson M, Sharma S, Papadakis M, Wilhelm M, Drezner JA, et al; Sport Cardiology Section of the EACPR of the ESC. Sudden cardiac arrest in sports - need for uniform registration: A Position Paper from the Sport Cardiology Section of the European Association for Cardiovascular Prevention and Rehabilitation. Eur J Prev Cardiol. 2016;23(6):657-67.,99 Risgaard B, Winkel BG, Jabbari R, Glinge C, Ingemann-Hansen O, Thomsen JL, et al. Sports-related sudden cardiac death in a competitive and a noncompetitive athlete population aged 12 to 49 years: data from an unselected nationwide study in Denmark. Heart Rhythm. 2014;11(10):1673-81. Essas investigações coincidem na identificação das diferentes causas de MS em atletas com menos e mais de 35 anos de idade. As mais frequentes nas faixas etárias mais jovens são as miocardiopatias, canalopatias e anomalias das artérias coronárias. Já no grupo de maior idade, a principal causa é a doença arterial coronária (DAC), a qual contribui para mais da metade dos casos de MS nesse cenário.1010 Corrado D, Basso C, Rizzoli G, Schiavon M, Thiene G. Does sports activity enhance the risk of sudden death in adolescents and young adults? J Am Coll Cardiol. 2003;42(11):1959-63. Na Espanha, segundo o Registro Nacional de MS em Deportistas,55 Manonelles Marqueta P, Tapia BA, Boraita Pérez A, Luengo Fernández E, Beristaina CP, Suárez Mier MP. La muerte súbita en el esporte: registro en el estado espanol. Apunts Med Esport. 2007;42(153):26-35. as principais causas seriam: não identificada (27%), miocardiopatia arritmogênica do ventrículo direito (MAVD, 14%), miocardiopatia hipertrófica (MCH, 12%), hipertrofia do ventrículo esquerdo idiopática (8%), anomalias coronárias (10%), estenose aórtica (6%) e miocardite (4%). Infelizmente, não dispomos de dados da epidemiologia da MS em atletas no Brasil.
Dessa forma, para atletas jovens, o screening deve focar em identificar doenças cardíacas herdadas como as canalopatias e as miocardiopatias. Por outro lado, nos indivíduos de maior idade, assim como na população em geral, a avaliação deve enfocar o diagnóstico de DAC.1111 Borjesson M, Urhausen A, Kouidi E, Dugmore D, Sharma S, Halle M, et al. Cardiovascular evaluation of middle-aged/ senior individuals engaged in leisure-time sport activities: position stand from the sections of exercise physiology and sports cardiology of the European Association of Cardiovascular Prevention and Rehabilitation. Eur J Cardiovasc Prev Rehabil. 2011;18(3):446-58.
Avaliação Genética Clínica no Esportista
De acordo com diferentes consensos e opiniões de especialistas, a avaliação genética não é indicada como um processo de rotina para os atletas. Se ainda estamos discutindo se o eletrocardiograma é indicado ou não como um teste de rotina na APP, é logico entender que a realização de um estudo genético deva ser sempre muito bem embasada no atleta.
Existem duas ocasiões nas quais a avaliação genética está especialmente indicada. São elas:
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frente a uma história familiar positiva de doença cardíaca hereditária (miocardiopatias, canalopatias, doenças da aorta) ou suspeita da mesma (presença de episódios de síncope, arritmias, parada cardíaca/MS). Nesses casos, é importante destacar que o estudo genético deve ser feito primeiramente no indivíduo ou em um dos familiares afetados. Uma vez detectada a mutação causal da doença, aí sim os demais membros da família, incluído o esportista, deverão ser estudados;
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quando o atleta tem um fenótipo que indica fortemente a presença de uma doença hereditária (sinais, sintomas e/ou testes sugestivos de doença específica ou compatíveis com a mesma).1212 Priori SG, Blomström-Lundqvist C, Mazzanti A, Blom N, Borggrefe M, Camm J, et al. 2015 ESC Guidelines for the management of patients with ventricular arrhythmias and the prevention of sudden cardiac death. The Task Force for the Management of Patients with Ventricular Arrhythmias and the Prevention of Sudden Cardiac Death of the European Society of Cardiology (ESC); Endorsed by: Association for European Pediatric and Congenital Cardiology (AEPC). On behalf of Authors/Task Force Members. Eur Heart J. 2015;36(41):2793-867.
A avaliação genético-clínica sempre deve ser o primeiro passo antes da realização de um estudo genético per se. Essa investigação deve incluir uma anamnese minuciosa dos antecedentes familiares, assim como um exame físico completo. A história familiar deve incluir aspectos como idade do início dos sintomas, atividades desencadeantes dos mesmos, doença diagnosticada, grau de parentesco e número de familiares afetados. Nesse particular, realizar uma árvore genealógica ou pedigree da família (Figura 1) permitirá detalhar os antecedentes familiares, sempre devendo seguir a investigação pelo lado da família afetado. No caso da ausência de suspeitas nos familiares de primeiro grau, deve-se ampliar o estudo para mais uma geração, isso se houver grande suspeita de cardiopatia herdada.
Heredograma de uma família com suspeita clínica de uma canalopatia. Quadrado - homem, círculo - mulher, barra oblíqua - falecido, seta - caso índice, círculo ou quadrado vermelho - indivíduo afetado; MS: morte súbita.
Por esse motivo, é importante que o clínico/cardiologista que realizar as avaliações deva estar consciente dos sinais e sintomas desse grupo de doenças, podendo assim referenciar oportunamente casos suspeitos aos especialistas em cardiopatias familiares e/ou genética cardiovascular. O atraso no encaminhamento diagnóstico não é desejado e o exercício físico deve ser evitado nesse período. Por último, devemos ter em mente que a avaliação não dever ser restrita somente ao indivíduo com o diagnóstico, mas a toda a sua família.
Doenças Cardiovasculares de Causa Genética
As doenças cardiovasculares hereditárias, incluindo as miocardiopatias (hipertrófica, dilatada, arritmogênica, restritiva e não compactada), as canalopatias [síndrome do QT longo (SQTL), síndrome de Brugada (SBr) e taquicardia ventricular polimórfica catecolaminérgica (TVPC)] e as doenças da aorta (síndromes de Marfan, Loeys-Dietz), são um grupo de entidades com grande heterogeneidade clínica e genética. Estudos moleculares realizados em diferentes populações demonstraram associação de cada uma dessas condições a centenas de mutações patogênicas diferentes.1212 Priori SG, Blomström-Lundqvist C, Mazzanti A, Blom N, Borggrefe M, Camm J, et al. 2015 ESC Guidelines for the management of patients with ventricular arrhythmias and the prevention of sudden cardiac death. The Task Force for the Management of Patients with Ventricular Arrhythmias and the Prevention of Sudden Cardiac Death of the European Society of Cardiology (ESC); Endorsed by: Association for European Pediatric and Congenital Cardiology (AEPC). On behalf of Authors/Task Force Members. Eur Heart J. 2015;36(41):2793-867. Nesse contexto, existem mutações em diferentes genes associadas a um mesmo fenótipo. Em alguns casos, os genes cumprem funções similares ou transcrevem proteínas que fazem parte de uma mesma estrutura ou via funcional (proteínas sarcoméricas, junções desmossomais, canais iônicos). Em outros casos, a presença de uma só mutação pode ser causa suficiente para o desenvolvimento da doença. Cabe salientar que a variabilidade clínica das doenças também pode ser explicada por fatores epigenéticos e/ou pela interação com o ambiente. Por fim, enfatizamos que, com o desenvolvimento de novas tecnologias de sequenciamento genético (NGS, next generation sequencing), permitindo a análise completa e em paralelo de diferentes genes, é possível identificar a variante ou variantes genéticas causais de uma doença de forma mais rápida e menos onerosa.1313 Monserrat L, Ortiz-Genga M, Lesende I, Garcia-Giustiniani D, Barriales-Villa R, de Una-Iglesias D, et al. Genetics of Cardiomyopathies: Novel Perspectives with Next Generation Sequencing. Curr Pharm Des. 2015;21(4):418-30.
Miocardiopatias, Genética e Esporte
A Sociedade Europeia de Cardiologia (ESC, em Inglês) define as miocardiopatias como doenças nos quais o miocárdio é estrutural e funcionalmente anormal, na ausência de coronariopatia, hipertensão, doença valvular ou congênita, que possam explicar essas alterações. Dentre essas condições estão a MCH, a miocardiopatia dilatada (MCD), a MAVD e as miocardiopatias restritiva e não compactada (MCNC). Essas doenças, exceto a MAVD, compartilham mutações genéticas sarcoméricas. Por exemplo, diferentes mutações patogênicas em genes sarcoméricos, tais como MYH7 ou MYBPC3, podem estar associadas a várias miocardiopatias (Figura 2). Além disso, uma mesma mutação pode ser expressa com um fenótipo diferente em pacientes diferentes (até mesmo na mesma família).
Correlação clínico-molecular de três mutações patológicas no gene MYBPC3. Uma mesma mutação pode estar associada a diferentes miocardiopatias. MCH: miocardiopatia hipertrófica; MCD: miocardiopatia dilatada, MCNC: miocardiopatia não compactada; MCR: miocardiopatia restritiva.
É possível que os genes não sarcoméricos também possam produzir fenocópias. Esse é o caso do gene GLA, cuja mutação é causadora da Doença de Fabry, podendo estar associado com o desenvolvimento de MCH (aproximadamente 0,5-1% de casos de MCH são explicados por mutações nesse gene).
A MCH é uma doença genética com herança autossômica dominante. É relativamente comum, com uma prevalência de 1:500 indivíduos na população geral. De acordo com dados americanos, essa doença é a causa mais frequente de MS em indivíduos jovens aparentemente saudáveis, em particular atletas.44 Maron BJ, Doerer JJ, Haas TS, Tierney DM, Mueller FO. Sudden deaths in young competitive athletes: analysis of 1866 deaths in the United States, 1980-2006. Circulation. 2009;119(8):1085-92. A MS em muitos casos pode ocorrer durante ou logo após o exercício (aproximadamente 40% dos casos). No entanto, apesar do potencial catastrófico, a taxa de mortalidade anual em todos os pacientes com MCH é inferior a 1%.1414 Maron BJ, Rowin EJ, Casey SA, Link MS, Lesser JR, Chan RH, et al. Hypertrophic cardiomyopathy in adulthood associated with low cardiovascular mortality with contemporary management strategies. J Am Coll Cardiol. 2015;65(18):1915-28. É descrito um grande número de mutações em genes diferentes associados à MCH. Até o momento, centenas de mutações em cerca de 20 genes sarcoméricos relacionadas com a doença foram identificadas (MYBPC3, MYH7, TNNC1, TNNT2 e TNNI3 estão entre os genes mais frequentes). Além disso, também foram relatadas fenocópias da MCH derivadas de patologias causadas por mutações associadas ao metabolismo do glicogênio (PRKAG2, LAMP2) em doenças de armazenamento (GAA, GLA) e em genes mitocondriais.
A MAVD caracteriza-se pela substituição do tecido do miocárdio do ventrículo por tecido fibroso e adiposo, o que tem sido associado a arritmias ventriculares. O diagnóstico clínico é muitas vezes complicado e pode exigir uma extensa pesquisa para confirmação. Do ponto de vista epidemiológico parece ser uma doença com uma prevalência de 1 em 2.000 a 1 em 5.000 indivíduos.1515 Smith W; Members of CSANZ Cardiovascular Genetics Working Group. Guidelines for the diagnosis and management of arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy. Heart Lung Circ. 2011;20(12):757-60. Apresenta um padrão de herança autossômico dominante na grande maioria dos casos. Entretanto, em alguns casos, como na doença de Naxos, que é causada por mutações patogênicas no gene da JUP (placoglobina), essa herança é autossômica recessiva. A MAVD tem sido associada com mutações em genes desmossômicos (DSC2, DSG2, DSP, JUP, PKP2) e não desmossômicos (LMNA, CNLF, TMEM43 e PLN). Nessa doença, verificou-se que o exercício regular e de alta intensidade (esporte competitivo) tem sido associado à progressão acelerada e agravamento em modelos animais e em seres humanos.1616 Cruz FM, Sanz-Rosa D, Roche-Molina M, García-Prieto J, García-Ruiz JM, Pizarro G, et al. Exercise triggers ARVC phenotype in mice expressing a disease-causing mutated version of human plakophilin-2. J Am Coll Cardiol. 2015;65(14):1438-50.,1717 James CA, Bhonsale A, Tichnell C, Murray B, Russell SD, Tandri H, et al. Exercise increases age-related penetrance and arrhythmic risk in arrhythmogenic right ventricular dysplasia/cardiomyopathy-associated desmosomal mutation carriers. J Am Coll Cardiol. 2013;62(14):1290-7. O esporte competitivo aumenta o risco de MS em cinco vezes em adolescentes e adultos jovens com essa entidade.1010 Corrado D, Basso C, Rizzoli G, Schiavon M, Thiene G. Does sports activity enhance the risk of sudden death in adolescents and young adults? J Am Coll Cardiol. 2003;42(11):1959-63.
Canalopatias, Genética e Esporte
As canalopatias são um grupo de doenças que compartilham características comuns como a heterogeneidade genética e clínica. São explicadas na sua maioria por alterações nos genes que codificam os canais iônicos miocárdicos. Entre as canalopatias, encontram-se a síndrome do QT Curto, SQTL, SBr e TVPC.
Na SQTL foram identificados três subtipos mais frequentes dentre os diversos possíveis.1818 Schwartz PJ, Priori SG, Spazzolini C, Moss AJ, Vincent GM, Napolitano C, et al. Genotype-phenotype correlation in the long-QT syndrome: gene-specific triggers for life-threatening arrhythmias. Circulation. 2001;103(1):89-95. Na SQTL tipo 1, os pacientes podem apresentar eventos cardíacos em situações adrenérgicas (em termos de esporte, a natação é o exemplo clássico). É por isso que as diretrizes europeias e norte-americanas recomendam restringir esportes competitivos na água para esses indivíduos. Mutações do gene KCNQ1 (canal de potássio retificador lento, Kv7.1) têm sido associadas com o desenvolvimento da síndrome. No subtipo 2 da SQTL, os pacientes podem apresentar eventos cardíacos devido a estímulos auditivos (rádio ou telefone tocando), e uma susceptibilidade maior em mulheres durante o período pós-parto (choro do recém-nascido). Mutações do gene KCNH2 (canal de potássio retificador rápido, Kv11.1) têm sido associadas com o desenvolvimento dessa doença. Menos prevalente do que os outros dois, a SQTL tipo 3 tem um substrato parassimpático. Nesse subtipo, os pacientes podem apresentar eventos cardíacos durante os períodos de descanso ou sono. As mutações no gene SCN5A (gene do canal de sódio, Nav1.5) têm sido associadas com o desenvolvimento dessa síndrome, assim como à SBr.
Os eventos arrítmicos associados com a SBr geralmente ocorrem durante episódios de febre, uso de alguns medicamentos, no sono ou após o exercício.1919 Sieira J, Conte G, Ciconte G, de Asmundis C, Chierchia GB, Baltogiannis G, et al. Clinical characterisation and long-term prognosis of women with Brugada syndrome. Heart. 2016;102(6):452-8. É possível que a atividade física tenha um efeito pró-arrítmico, seja associado à hipertermia ou à retirada simpática e/ou tônus vagal aumentado em atletas no período pós-esforço. No entanto, essa associação ainda é incerta e as recomendações das diretrizes americanas não mencionam restrições esportivas nesses pacientes.
Finalmente, a TVPC é uma doença associada a alterações na liberação de cálcio intracelular do retículo sarcoplasmático. Muitas vezes é expressa durante as primeiras décadas de vida, manifestando-se por síncope ou MS associada ao exercício e/ou situações de estresse. Por tal motivo, diretrizes internacionais recomendam restrições rígidas ao esporte nesses casos.2020 Ackerman MJ, Zipes DP, Kovacs RJ, Maron BJ. Eligibility and disqualification recommendations for competitive athletes with cardiovascular abnormalities: task force 10: the cardiac channelopathies. A scientific statement from the American Heart Association and American College of Cardiology. J Am Coll Cardiol. 2015;66(21):2424-8. Pacientes com TVPC podem apresentam mutações nos genes RYR2 (principal deles), CASQ2 e KCNJ2.
Doenças Hereditárias da Aorta, Genética e Esporte
Este grupo de doenças inclui um conjunto de distúrbios hereditários do tecido conjuntivo que predispõe a dilatações e aneurismas da aorta (AA) e/ou dissecção (DA), com risco aumentado de MS durante a atividade física. Entre essas doenças estão síndromes genéticas raras (Marfan, Loeys-Dietz e Ehlers-Danlos tipo vascular) e apresentações não sindrômicas, como a doença aneurismática da aorta torácica familiar.
Ao se realizar a APP em pacientes com doenças da aorta classificadas como sindrômicas, deve-se estar atento à variabilidade ou à sobreposição fenotípica dessas doenças. A identificação de sinais clínicos em um indivíduo que a princípio teria um fenótipo normal pode contribuir para o diagnóstico diferencial,2121 Hoffjan S. Genetic dissection of Marfan syndrome and related connective tissue disorders: an update 2012. Mol Syndromol. 2012;3(2):47-58. dentre os quais destacamos: habitus marfanoide, cifose/escoliose, alterações na elasticidade da pele e/ou articulações, ectopia lentis e dismorfismos crânio-faciais. Em um relato de caso, a detecção de AA abdominal em um atleta de elite do basquetebol americano foi realizada após diagnóstico tardio de Marfan.2222 Lopes R, Berg-McGraw J. Marfan syndrome in a female collegiate basketball player: a case report. J Athl Train. 2000;35(1):91-5. Em outro caso, a MS por DA incidiu em um halterofilista diagnosticado apenas após autópsia, tendo sido sugerido diagnóstico de uma "fibrilinopatia não-marfan". A saber, seu ecocardiograma era normal, mas sua mãe havia falecido em idade jovem, também por DA.2323 Hogan, CJ. An aortic dissection in a young weightlifter with non-Marfan fibrillinopathy. Emerg Med J. 2005;22(4):304-5. Outros autores2424 Türk UO, Alioğlu E, Nalbantgil S, Nart D.. Catastrophic cardiovascular consequences of weight lifting in a family with Marfan syndrome. Arch Turk Soc Cardiol. 2008;36(1):32-4. relataram uma família com três gerações afetadas (Marfan). O diagnóstico foi realizado somente após quadro de DA em um halterofilista de 30 anos. Nesse caso, tanto o pai quanto o irmão haviam falecido a caminho do hospital após perderem subitamente a consciência durante treinamento com peso (em diferentes ocasiões).
A sobreposição fenotípica pode ocorrer nessas doenças, como se observa entre as síndromes de Loeys-Dietz e a de Marfan. A diferenciação é importante para estabelecer o prognóstico e a regularidade do seguimento clínico-cardiológico. Em pacientes com Marfan, é essencial proceder a uma vigilância do diâmetro da aorta em relação à superfície corporal,2525 Cassidy SB, Allanson JE. Management of genetic syndromes. 3rd ed. Oxford (UK): Wiley-Blackwell; 2010. p. 495-516. da rigidez arterial, assim como da função ventricular.2626 Kasikcioglu E. Aortic elastic properties in athletes with Marfanoid habitus: the need for early and accurate diagnostic methods. Eur Heart J. 2005;26(1):100. Por sua vez, em afetados com Loeys-Dietz, uma avaliação sistemática de aneurismas em múltiplas artérias se faz necessária. Referenciar ao especialista em genética médica ou a um centro especializado colabora no manejo desses pacientes.2525 Cassidy SB, Allanson JE. Management of genetic syndromes. 3rd ed. Oxford (UK): Wiley-Blackwell; 2010. p. 495-516. O exame genético tem valor na definição de casos borderline ou duvidosos (que não cumprem critérios para diagnóstico clínico dessa síndrome), além de auxiliar no diagnóstico diferencial entre as aortopatias.2727 Robinson PN, Arteaga-Solis E, Baldock C, Collod-Béroud G, Booms P, De Paepe A, et al. The molecular genetics of Marfan syndrome and related disorders. J Med Genet. 2006;43(10):769-87.
A DA ou ruptura aneurismática na síndrome de Marfan ou em outras aortopatias pode ser causa de MS no atleta. O aumento na pressão sanguínea aórtica e do estresse durante o exercício, no contexto de uma predisposição genética, pode acelerar a formação do aneurisma e servir como um gatilho para uma dissecção/ruptura da aorta ou de outras artérias. Com base em uma coorte de indivíduos admitidos com DA em unidade de emergência, foi evidenciado que os sindrômicos apresentam maior risco de recorrência e de morte em relação àqueles não sindrômicos.2828 Tsai SH, Lin YY, Hsu CW, Chen YL, Liao MT, Chu SJ. The characteristics of acute aortic dissection among young Chinese patients: a comparison between Marfan syndrome and non-Marfan syndrome patients. Yonsei Med J. 2009;50(2):239-44. As diretrizes recomendam que os atletas em geral que apresentem aumento no diâmetro da aorta (> 40 mm em adultos) podem participar somente de esportes de baixa intensidade dinâmica e estática (classe IA).2929 Braverman AC, Harris KM, Kovacs RJ, Maron BJ; American Heart Association Electrocardiography and Arrhythmias Committee of Council on Clinical Cardiology, Council on Cardiovascular Disease in Young, Council on Cardiovascular and Stroke Nursing, Council on Functional Genomics and Translational Biology, and American College of Cardiology. Eligibility and Disqualification Recommendations for Competitive Athletes With Cardiovascular Abnormalities: Task Force 7: Aortic Diseases, Including Marfan Syndrome: A Scientific Statement From the American Heart Association and American College of Cardiology. Circulation. 2015;132(22):e303-9. Um estudo acompanhou uma coorte de 732 indivíduos com Marfan, todos em tratamento farmacológico, por 6 anos. O risco de eventos aórticos e de MS permaneceu baixo naqueles pacientes com diâmetro da aorta entre 35 e 49 mm. No entanto, um diâmetro de 50 mm foi descrito como ponto de corte para indicação de cirurgia profilática.3030 Jondeau G, Detaint D, Tubach F, Arnoult F, Milleron O, Raoux F, et al. Aortic event rate in the Marfan population: a cohort study. Circulation. 2012;125(2):226-32. Por fim, condutas baseadas no diâmetro da aorta têm sido propostas, não apenas na síndrome de Marfan, mas também em outras aortopatias, como a doença aneurismática da aorta torácica familiar e a síndrome de Ehlers-Danlos.3131 Pyeritz RE; American College of Medical Genetics and Genomics. Evaluation of the adolescent or adult with some features of Marfan syndrome. Genet Med. 2012;14(1):171-7.
Utilidade e Limitações do Estudo Genético nas Cardiopatias Hereditárias
Atualmente, com o advento das técnicas de sequenciamento de nova geração, doenças com uma elevada heterogeneidade clínica e genética podem ser estudadas com maior rapidez e precisão. Tal tecnologia oferece a possibilidade de projetar painéis que captam os genes envolvidos com cada grupo dessas doenças (painéis genéticos específicos para miocardiopatias, canalopatias ou doenças da aorta). Além disso, painéis ampliados voltados para o estudo de MS com doença cardíaca estrutural ou não estrutural, entre outros, também são de utilidade nesse contexto.1313 Monserrat L, Ortiz-Genga M, Lesende I, Garcia-Giustiniani D, Barriales-Villa R, de Una-Iglesias D, et al. Genetics of Cardiomyopathies: Novel Perspectives with Next Generation Sequencing. Curr Pharm Des. 2015;21(4):418-30.
Em geral, quando se tem um quadro clínico evidente que gere a suspeita de uma doença em particular, o estudo genético diagnóstico terá maior probabilidade de confirmá-lo (alta probabilidade pré-teste). Em relação ao desempenho dos testes genéticos nas miocardiopatias primárias, utilizando-se um painel bem desenhado, é factível se identificar mutações em até 70% dos casos de MCH, por exemplo. Demais genes associados e a probabilidade pré-teste de sua identificação nas miocardiopatias, canalopatias e doenças da aorta estão descritos nas Tabelas 1, 2 e 3.
Genes frequentemente associados com o desenvolvimento das diferentes doenças da aorta de causa genética
A interpretação clínica dos resultados dos estudos genéticos
A interpretação adequada dos resultados de um estudo genético é essencial não só para se fazer um diagnóstico correto, mas também para uma recomendação apropriada ao atleta e sua família. A esse respeito, avaliação cuidadosa da patogenicidade de uma variante (Tabela 4)3232 Richards S, Aziz N, Bale S, Bick D, Das S, Gastier-Foster J, et al; ACMG Laboratory Quality Assurance Committee. Standards and guidelines for the interpretation of sequence variants: a joint consensus recommendation of the American College of Medical Genetics and Genomics and the Association for Molecular Pathology. Genet Med. 2015;17(5):405-24. é um aspecto chave. Não só devem ser levadas em conta as informações existentes disponíveis até a data nas principais bases de dados e publicações, mas também a análise da informação por uma equipe proficiente, garantindo um resultado confiável.
Significância clínica da variante de acordo com a informação disponível (Modificado de Standards and guidelines for the interpretation of sequence variants: a joint consensus recommendation of the American College of Medical Genetics and Genomics and the Association for Molecular Pathology)3232 Richards S, Aziz N, Bale S, Bick D, Das S, Gastier-Foster J, et al; ACMG Laboratory Quality Assurance Committee. Standards and guidelines for the interpretation of sequence variants: a joint consensus recommendation of the American College of Medical Genetics and Genomics and the Association for Molecular Pathology. Genet Med. 2015;17(5):405-24.
Por consenso, em caso de dúvida na patogenicidade da mutação (significância clínica incerta), sua utilização não é recomendada para o diagnóstico da doença e não deve ser utilizada para o rastreio da família (sem valor clínico preditivo). Há também casos difíceis de resolver, mesmo tendo-se identificado claramente variantes patogênicas. Quando um atleta se encontra clinicamente saudável ou não está afetado (fenótipo negativo), mas é portador de uma variante patogênica (genótipo positivo), as diretrizes internacionais são discordantes. Nesse caso, ante um diagnóstico precoce em atletas (genótipo positivo, fenótipo negativo), as diretrizes norte-americanas são muito mais liberais, muitas vezes não desqualificando o atleta para o esporte competitivo. Por outro lado, a diretriz da ESC é bem mais restritiva.3333 Pelliccia A, Zipes DP, Maron BJ. Bethesda Conference #36 and the European Society of Cardiology Consensus Recommendations RevisitedA Comparison of U.S. and European Criteria for Eligibility and Disqualification of Competitive Athletes With Cardiovascular Abnormalities. J Am Coll Cardiol. 2008;52(24):1990-6.
O que fazer se o estudo genético é positivo no atleta?
A presença de uma mutação genética em um atleta não significa que esse irá desenvolver a doença, mas representa um aumento da susceptibilidade para desenvolvê-la ou sofrer da mesma. Há casos em que nem todos os portadores de uma mutação desenvolvem a doença (penetrância incompleta). Algumas mutações necessitam de fatores ambientais (esporte, hipertensão) ou genéticos adicionais (presença de outras mutações nos mesmos ou em outros genes). Quando o teste genético é positivo no atleta, podemos encontrar várias situações:
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- O atleta tem claramente uma doença cardíaca familiar (miocardiopatia, canalopatia ou doença aórtica). A presença de um estudo genético positivo vai permitir confirmar o diagnóstico e ajudar no rastreamento do restante de sua família.
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- Há uma suspeita diagnóstica prévia de que o atleta tenha uma doença cardíaca familiar. Um estudo genético positivo pode ajudar a fazer um diagnóstico definitivo e identificar se a mutação é patológica, provavelmente patológica ou possivelmente patológica.
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- Não há manifestações clínicas da doença no atleta, mas há uma história de um familiar de primeiro ou segundo grau afetado. A presença de um teste genético positivo no caso-índice de sua família permitirá confirmar ou descartar essa variante nesse atleta.
O que fazer se o estudo genético é negativo no atleta?
A ausência de uma variante genética não significa que o atleta não tenha a doença. Quando o teste genético é negativo no atleta, podemos encontrar várias situações:
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- O atleta tem claramente uma cardiopatia familiar. Ante um estudo genético negativo, é provável que outros genes envolvidos ainda não tenham sido descritos. Nesse caso, devemos ter em mente qual é a porcentagem de positividade (rendimento) de estudos genéticos que podem ser feitos atualmente (na presença da doença), que variam de acordo com as diferentes patologias (Tabelas 1, 2 e 3).
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- Há uma suspeita diagnóstica prévia de que o atleta tenha uma cardiopatia familiar. Um estudo genético negativo corrobora, nesse caso, a ausência de doença nesse indivíduo, muito embora seja aconselhável realizar seguimento, ao menos anualmente, se há alguma alteração limítrofe em exames diagnósticos anteriores.
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- Não há manifestações clínicas da doença no atleta, mas há uma história de um familiar de primeiro ou segundo grau afetado. A presença de um teste genético negativo no caso-índice não permitirá a triagem familiar adequada. Logo, não é possível confirmar ou descartar a predisposição para o desenvolvimento da doença. Nesse caso é aconselhável acompanhamento pelo menos anual, especialmente se houver qualquer alteração limítrofe em testes diagnósticos anteriores.
Conclusão
A implementação de estudos genéticos tornou-se um instrumento de ajuda na confirmação do diagnóstico das diferentes cardiopatias hereditárias. No entanto, os profissionais médicos, incluindo os da medicina esportiva e do exercício, devem ter claras as suas indicações e limitações na prática clínica. Na APP, a anamnese completa (pessoal e familiar) e um exame físico detalhado, além de estudos complementares, devem sempre preceder a aplicação das análises genéticas (Figura 3). Por consenso, o estudo genético não está indicado ao menos como um processo de rotina em atletas. Seu uso está claramente indicado apenas em dois casos particulares: a) naqueles atletas com diagnóstico suspeito ou definitivo de uma doença familiar; b) naqueles que se encontram saudáveis ou não-afetados, mas com uma história familiar positiva de uma doença herdada, como parte do rastreamento familiar.
No contexto esportivo, é essencial ter em mente que a correta interpretação dos resultados genéticos irá reduzir os falsos positivos e os falsos negativos. Isso pode evitar interpretações e recomendações incorretas, desqualificações inadequadas ou eventos indesejáveis (MS, por exemplo). Esperamos que, no futuro, quando houver mais conhecimento epidemiológico e molecular dessas doenças, uma melhor correlação genótipo/fenótipo através de estudos genéticos esteja disponível. Nesse sentido, é necessário criar e fomentar equipes multidisciplinares dedicadas à gestão e análise de informações, a fim de elaborar programas de prevenção de MS eficazes, tanto em pessoas que praticam o exercício de forma recreativa quanto em atletas amadores e profissionais.
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Fontes de FinanciamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
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Vinculação AcadêmicaEste artigo é parte de tese de Doutorado de Anderson Donelli da Silveira pela PPG Cardiologia e Ciências Cardiovasculares da UFRGS.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
06 Mar 2017 -
Data do Fascículo
Mar 2017
Histórico
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Recebido
06 Nov 2016 -
Revisado
17 Nov 2016 -
Aceito
17 Nov 2016