Ecocardiografia Fetal. Apresentando o Método
Solange Bernardes Tatani
São Paulo, SP
O estudo do desenvolvimento do feto pela ultra-sonografia, há vários anos vem sendo feito extensivamente, e tem sido de considerável ajuda na avaliação dos padrões de crescimento fetal e no diagnóstico de malformações congênitas. Entretanto, inicialmente, menor destaque foi dado à possibilidade de diagnosticar alterações na estrutura e função do sistema cardiovascular fetal.
Até há poucos anos, o único aspecto da fisiologia cardiovascular fetal, que podia ser rotineiramente monitorizado, era a freqüência cardíaca. Com a introdução da ecocardiografia (ECO) modo-M, bidimensional e as técnicas do Doppler (especialmente o mapeamento de fluxo a cores) no estudo do feto, foram permitidas a descrição acurada da anatomia intracardíaca, a análise seqüencial das câmaras e, finalmente, o reconhecimento de malformações, de distúrbios da função e do ritmo cardíacos no período pré-natal.
Os batimentos cardíacos fetais podem ser visibilizados pela ECO bidimensional, já na 6a semana de gestação, mas uma análise estrutural adequada geralmente só é factível a partir da 16a semana. Nesta idade gestacional, o coração fetal é ainda muito pequeno e, muitas vezes, não é possível um estudo completo 1. A época ideal para a visibilização do coração fetal estende-se da 18a à 24a semana gestacional, quando o concepto está envolto por grande volume de líquido amniótico. Já no 3º trimestre, a coluna vertebral fetal é freqüentemente anterior e as costelas são mais calcificadas, "sombreando" a área cardíaca e podendo dificultar a adequada avaliação do coração fetal nesta fase gestacional.
O exame cardíaco fetal consiste de um estudo sistemático e cuidadoso do situs atrial e das conexões veno-atrial, atrioventricular e ventrículo-arterial. Envolve, igualmente, avaliação adequada das paredes miocárdicas, septos atrial e ventricular, além dos arcos aórtico e ductal 2.
O exame inicia-se pela determinação da posição do coração e do situs atrial. A posição do coração no tórax fetal é determinada pela identificação de três pontos de referência: cabeça, coluna vertebral e fígado. Para a identificação do situs atrial é imprescindível determinar-se a posição da veia cava inferior (VCI) e aorta em relação à coluna vertebral 3. No situs solitus a aorta estará localizada à esquerda e a VCI à direita em relação aos corpos vertebrais. No situs inversus ocorre o oposto, ou seja, a VCI estará à esquerda da coluna vertebral. No isomerismo direito, a aorta e VCI estão do mesmo lado da coluna, com a veia cava geralmente anterior à aorta. No isomerismo esquerdo, a aorta está usualmente em cima da coluna, estando ausente a VCI.
Para se determinar a anatomia e conexões cardíacas são necessários, de maneira geral, quatro cortes do coração: quatro câmaras, longitudinal do ventrículo esquerdo (VE), arco do canal arterial ou ductal e arco aórtico.
O corte mais facilmente obtido é o quatro câmaras (fig. 1). Nesta projeção, o coração ocupa cerca de um terço do tórax fetal. A aorta descendente (Ao) encontra-se entre a coluna vertebral e o átrio esquerdo (AE). As cavidades atriais têm dimensões semelhantes e pode-se visibilizar a membrana do forame oval, movimentando-se em direção ao AE e a valva de Eustáquio no interior do átrio direito (AD). Pode-se também avaliar a morfologia e dinâmica das valvas atrioventriculares, assim como a conexão atrioventricular. Os dois ventrículos apresentam dimensões semelhantes, mas a geometria contrátil mostra uma dominância do ventrículo direito (VD) 4. A diferenciação entre os ventrículos pode ser feita pela trabeculação (mais grosseira no VD), pela presença da banda moderadora no VD, pela inserção mais distal da valva tricúspide e pelo aspecto bem definido dos músculos papilares no VE. As espessuras das paredes são semelhantes.
No corte longitudinal (fig. 2) pode-se identificar as conexões esquerdas do coração fetal. O AE comunica-se através da valva mitral ao VE, de onde emerge a aorta ascendente com a valva aórtica. Pode-se verificar as continuidades mitro-aórtica e aorto-septal.
Na visão do arco do canal arterial (fig. 3) identificam-se as conexões direitas. A VCI desemboca no AD, que se conecta ao VD através da valva tricúspide. O tronco pulmonar origina-se no infundíbulo direito, podendo-se identificar sua bifurcação e a comunicação da artéria pulmonar esquerda com a Ao, através do canal arterial, formando o arco ductal. A valva pulmonar está situada anteriormente à valva aórtica, sendo possível a avaliação da morfologia e dinâmica de suas válvulas. Nesta projeção é possível também a visibilização da entrada das veias cavas no AD (fig. 4).
Com a colocação do feixe ultra-sônico no plano coronal do feto, obtém-se a imagem do arco aórtico (fig. 5), que normalmente forma um gancho no centro do tórax. É necessário demonstrarem-se os ramos aórticos, originando-se do arco, para diferenciar o arco aórtico do ductal.
A qualidade do exame pode ser limitada pela motilidade fetal (tanto a hipo quanto a hipermobilidade) e pela posição do concepto. A posição occipito-anterior e a localização anterior da placenta são obstáculos por ficarem interpostas entre o transdutor e o coração fetal, dificultando assim, a passagem do feixe ultra-sônico. Outros fatores podem interferir na qualidade das imagens, como a obesidade materna, edema fetal importante e polidrâmnio.
A realização da ECO modo-M de maneira padronizada e reprodutível sucede o reconhecimento e a definição da anatomia cardíaca através da ECO bidimensional. O modo-M é mais utilizado para a mensuração das cavidades cardíacas pois permite melhor definição da superfície endocárdica, possibilitando assim uma documentação do crescimento destas cavidades durante a gestação.
Vários estudos ecocardiográficos foram feitos visando estabelecer as dimensões das cavidades cardíacas no feto normal em diferentes idades gestacionais e diâmetros biparietais 5-15. Os valores normais encontrados variam discretamente, dependendo do método empregado (modo-M ou bidimensional), do corte utilizado (quatro câmaras ou transversal) e da fase do ciclo cardíaco em que foram feitas as medidas (sístole ou diástole). Entretanto, uma verificação comum a esses trabalhos é que as cavidades cardíacas aumentam três a quatro vezes de tamanho da 17a semanaao término da gestação 9 (tab. I), mostrando um padrão linear de crescimento em relação à idade gestacional (fig. 6) e ao diâmetro biparietal 5,7,9,11-15 (fig. 7).
Na avaliação dos ventrículos ao modo-M, pode-se observar as suas dimensões e a movimentação de suas paredes. O septo interventricular movimenta-se em direção à parede do VE na sístole, mas pode-se detectar movimentação anômala do septo em até 50% dos fetos normais. A relação entre as dimensões dos VE e VD é próxima da unidade (variando entre 0,96 e 1,18) e mostra-se constante durante a gestação 5-7,9,12,13. As dimensões semelhantes dos ventrículos não implicam em volumes ventriculares similares, uma vez que as geometrias ventriculares direita e esquerda são diferentes, assim com a morfologia do trabeculado e das vias de saída ventriculares.
A partir das dimensões do VE pode-se obter a fração de encurtamento que reflete a função sistólica ventricular fetal e que, em condições normais, mostra-se inalterada com o evoluir da gestação (de 36±6% na 20a semana para 32±5% ao término) 5,7.
As dimensões da aorta e tronco pulmonar também têm sido determinadas. O diâmetro pulmonar excede (em cerca de 12%) o da aorta, consistentemente, durante a gestação 14,15. O maior calibre da pulmonar pode ser conseqüência do maior volume sangüíneo ejetado pelo VD 6,15.
Os padrões de fluxo no coração fetal podem ser determinados pelo Doppler pulsátil em conjunto com a imagem bidimensional e o mapeamento de fluxo a cores. A velocidade, direção e volume do fluxo sangüíneo podem ser estabelecidos e vão ajudar a determinar a presença de regurgitação, estenose e shunts.
As velocidades dos fluxos mitral e tricúspide não variam significantemente com o evoluir da gestação. A velocidade máxima tricuspídea é discretamente maior que a mitral (0,51m/s vs 0,47m/s), não havendo diferença quanto à velocidade média (11,8m/s vs 11,2m/s) 16.
O espectro do fluxo atrioventricular mostra ondas E e A bem definidas, sendo a onda E a velocidade-pico durante o enchimento ventricular rápido e a onda A, a velocidade-pico durante a sístole atrial. A velocidade do fluxo atrioventricular durante a sístole atrial é maior do que a observada durante o enchimento ventricular rápido 17, ao contrário do que ocorre na fase pós-natal. Tem se postulado que esta dominância da onda A no feto, reflete um comprometimento do relaxamento ventricular, sugerindo maior importância do componente da sístole atrial no enchimento ventricular. A relação entre as ondas E/A para a tricúspide, aumenta de 0,52 na 20a semana para 0,84 ao término da gestação, enquanto que para a mitral a variação é de 0,63 para 0,83 18. Esta relação, que pode ser usada como um índice de função diastólica ventricular, mostra que as propriedades diastólicas dos VE e VD são semelhantes no feto e tendem a mudar durante a gestação.
As velocidades máxima e média do fluxo sangüíneo nas grandes artérias aumentam durante a gestação, sendo a velocidade aórtica discretamente maior que a pulmonar 19,20 (tab. II) . O formato da curva dos fluxos aórtico e pulmonar é similar, porém o tempo de aceleração da pulmonar é mais curto do que o da aorta, não se alterando este padrão com o avançar da idade gestacional 21.
A velocidade do fluxo no canal arterial é a mais alta do coração fetal, sendo superior à da aorta e artéria pulmonar, variando de 0,6 a 1,2m/s e aumentando durante a gestação. Fluxos diastólicos retrógrados na Ao com velocidade de 0,1 a 0,2m/s são característicos de fluxo ductal.
O cálculo do débito cardíaco do coração fetal é factível, aliando-se o Doppler à ECO bidimensional e modo-M, utilizando-se a velocidade máxima do fluxo aórtico ou pulmonar e a área seccional da valva aórtica ou pulmonar, respectivamente. Os estudos realizados mostram que o débito cardíaco de cada ventrículo aumenta exponencialmente durante a gestação (tab. III), com o volume direito excedendo o esquerdo em cerca de 28% 13,18.
Em resumo, o uso das técnicas ecocardiográficas no coração fetal nos proporciona a oportunidade de correlacionar os dados anatômicos e hemodinâmicos, possibilitando o estudo da fisiologia cardíaca no período pré-natal. O VD é o dominante, ejetando a maior proporção de sangue para a Ao, enquanto que o VE supre a cabeça e membros superiores. Provavelmente, decorrente do número reduzido de elementos contráteis, o miocárdio fetal apresenta comprometimento de sua capacidade de relaxamento 17, resultando em menor habilidade em responder a aumentos da freqüência cardíaca e justificando a insuficiência cardíaca precoce nas taquiarritmias fetais.
Finalmente devemos lembrar que o coração fetal deve ser encarado não estaticamente, mas como uma "estrutura em evolução". A fase de embriogênese cardíaca termina na 7a - 8a semana gestacional, mas a morfogênese desenvolve-se a partir da 15a semana até o término da gestação, com o coração fetal apresentando mudanças progressivas na sua forma, função e tamanho neste período. Como resultado, lesões que estão presentes no início da gestação podem se alterar com o crescimento das cavidades e grandes artérias fetais (por exemplo: um feto com anomalia de Ebstein pode desenvolver atresia pulmonar). Assim, o ecocardiograma fetal deve ser realizado de maneira evolutiva e seriada para possibilitar um diagnóstico preciso e um melhor esclarecimento da fisiopatologia das malformações cardíacas fetais.
Centro de Cardiologia Não Invasiva - São Paulo
Correspondência: Solange Bernardes Tatani - Centro de Cardiologia Não Invasiva - Rua Cubatão, 726 - 04013-002 - São Paulo, SP
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Fev 2001 -
Data do Fascículo
Set 1997