Acessibilidade / Reportar erro

Reativação da Doença de Chagas após Transplante Cardíaco: Importância de Novos Preditores

Palavras-chave: Doença de Chagas; Infecção Latente; Fatores de Risco

A doença de Chagas (DC) crônica afeta cerca de 3,7 milhões de brasileiros segundo estimativa mais recente.11. Laporta GZ, Lima MM, Costa VM, Lima Neto MM, Palmeira SL, Rodovalho SR, et al. Estimativa de prevalência de doença de Chagas crônica nos municípios brasileiros. Rev Panam Salud Publica. 2024;48:e28. doi: 10.26633/RPSP.2024.28.
https://doi.org/10.26633/RPSP.2024.28...
Como cerca de 30-40% desta população apresenta a forma cardíaca, não surpreende que a DC seja a terceira etiologia mais frequente entre os pacientes submetidos a transplante cardíaco no Brasil.22. Fiorelli AI, Santos RH, Oliveira JL Jr, Lourenço-Filho DD, Dias RR, Oliveira AS, et al. Heart Transplantation in 107 Cases of Chagas' Disease. Transplant Proc. 2011;43(1):220-4. doi: 10.1016/j.transproceed.2010.12.046.
https://doi.org/10.1016/j.transproceed.2...
Como a terapia imunossupressora de indução e/ou manutenção acarreta risco de reativação da DC (RDC),33. Marin-Neto JA, Rassi A Jr, Oliveira GMM, Correia LCL, Ramos AN Jr, Luquetti AO, et al. SBC Guideline on the Diagnosis and Treatment of Patients with Cardiomyopathy of Chagas Disease - 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(6):e20230269. doi: 10.36660/abc.20230269.
https://doi.org/10.36660/abc.20230269...
a segurança do transplante cardíaco pode ser questionada na DC. Entretanto, a experiência no Brasil estabeleceu o transplante cardíaco como a principal alternativa de tratamento para pacientes com DC e insuficiência cardíaca terminal.22. Fiorelli AI, Santos RH, Oliveira JL Jr, Lourenço-Filho DD, Dias RR, Oliveira AS, et al. Heart Transplantation in 107 Cases of Chagas' Disease. Transplant Proc. 2011;43(1):220-4. doi: 10.1016/j.transproceed.2010.12.046.
https://doi.org/10.1016/j.transproceed.2...
Na verdade, a sobrevida pós-transplante de pacientes com DC no Brasil é de 76%, 71% e 46% após 6 meses, cinco e 10 anos, respectivamente, e melhor do que a sobrevida de receptores de transplante cardíaco com doença isquêmica ou cardiomiopatias idiopáticas.44. Bocchi EA, Fiorelli A. The Brazilian Experience with Heart Transplantation: A Multicenter Report. J Heart Lung Transplant. 2001;20(6):637-45. doi: 10.1016/s1053-2498(00)00235-7.
https://doi.org/10.1016/s1053-2498(00)00...
,55. Bestetti RB, Theodoropoulos TA. A Systematic Review of Studies on Heart Transplantation for Patients with End-stage Chagas' Heart Disease. J Card Fail. 2009;15(3):249-55. doi: 10.1016/j.cardfail.2008.10.023.

A incidência de RDC após transplante cardíaco varia de 19,6% a 90%.33. Marin-Neto JA, Rassi A Jr, Oliveira GMM, Correia LCL, Ramos AN Jr, Luquetti AO, et al. SBC Guideline on the Diagnosis and Treatment of Patients with Cardiomyopathy of Chagas Disease - 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(6):e20230269. doi: 10.36660/abc.20230269.
https://doi.org/10.36660/abc.20230269...
A RDC pode induzir sintomas de DC aguda (febre, anemia, icterícia), miocardite, paniculite, meningoencefalite e abscesso cerebral. A miocardite é a complicação mais frequente e pode apresentar sintomas graves compatíveis com insuficiência cardíaca, arritmia cardíaca e até choque cardiogênico.66. Moreira MDCV, Cunha-Melo JR. Chagas Disease Infection Reactivation After Heart Transplant. Trop Med Infect Dis. 2020;5(3):106. doi: 10.3390/tropicalmed5030106. Felizmente, a RDC adequadamente diagnosticada e tratada resulta em mortalidade inferior a 1%.66. Moreira MDCV, Cunha-Melo JR. Chagas Disease Infection Reactivation After Heart Transplant. Trop Med Infect Dis. 2020;5(3):106. doi: 10.3390/tropicalmed5030106.

No entanto, os episódios de rejeição também podem apresentar resultados semelhantes e um diagnóstico equívoco de rejeição em vez de RDC pode levar a consequências nefastas se for seguida uma intensificação do regime imunossupressor.66. Moreira MDCV, Cunha-Melo JR. Chagas Disease Infection Reactivation After Heart Transplant. Trop Med Infect Dis. 2020;5(3):106. doi: 10.3390/tropicalmed5030106. O diagnóstico de RDC é classicamente baseado na presença de achados clínicos sugestivos e evidências do parasita no sangue, líquor, medula óssea ou tecidos.33. Marin-Neto JA, Rassi A Jr, Oliveira GMM, Correia LCL, Ramos AN Jr, Luquetti AO, et al. SBC Guideline on the Diagnosis and Treatment of Patients with Cardiomyopathy of Chagas Disease - 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(6):e20230269. doi: 10.36660/abc.20230269.
https://doi.org/10.36660/abc.20230269...
,44. Bocchi EA, Fiorelli A. The Brazilian Experience with Heart Transplantation: A Multicenter Report. J Heart Lung Transplant. 2001;20(6):637-45. doi: 10.1016/s1053-2498(00)00235-7.
https://doi.org/10.1016/s1053-2498(00)00...
Portanto, protocolos para monitoramento de RDC foram desenvolvidos e hoje incluem PCR para T. cruzi em sangue e biópsias endomiocárdicas, que são mais sensíveis que os métodos parasitológicos padrão, como a observação direta do parasita em um esfregaço de sangue ou numa biópsia endomiocárdica ou uma hemocultura positiva. O objetivo é o diagnóstico precoce da RDC, iniciando o tratamento tripanocida antes do aparecimento de sintomas graves e danos ao coração transplantado. É importante ressaltar que uma PCR sanguínea positiva para T. cruzi precede o aparecimento de sinais clínicos de RDC com considerável sensibilidade e especificidade.77. Costa PA, Segatto M, Durso DF, Moreira WJC, Junqueira LL, Castilho FM, et al. Early Polymerase Chain Reaction Detection of Chagas Disease Reactivation in Heart Transplant Patients. J Heart Lung Transplant. 2017;36(7):797-805. doi: 10.1016/j.healun.2017.02.018.
https://doi.org/10.1016/j.healun.2017.02...
Além disso, uma PCR sanguínea negativa para T. cruzi exclui a RDC.88. Benvenuti LA, Freitas VLT, Roggério A, Nishiya AS, Mangini S, Strabelli TMV. Usefulness of PCR for Trypanosoma cruzi DNA in Blood and Endomyocardial Biopsies for Detection of Chagas Disease Reactivation After Heart Transplantation: A Comparative Study. Transpl Infect Dis. 2021;23(4):e13567. doi: 10.1111/tid.13567. Os resultados da PCR são fundamentais para orientar decisões terapêuticas entre medicamentos tripanocidas ou alterações nos regimes de imunossupressão.88. Benvenuti LA, Freitas VLT, Roggério A, Nishiya AS, Mangini S, Strabelli TMV. Usefulness of PCR for Trypanosoma cruzi DNA in Blood and Endomyocardial Biopsies for Detection of Chagas Disease Reactivation After Heart Transplantation: A Comparative Study. Transpl Infect Dis. 2021;23(4):e13567. doi: 10.1111/tid.13567.,99. Diez M, Favaloro L, Bertolotti A, Burgos JM, Vigliano C, Lastra MP, et al. Usefulness of PCR Strategies for Early Diagnosis of Chagas' Disease Reactivation and Treatment Follow-up in Heart Transplantation. Am J Transplant. 2007;7(6):1633-40. doi: 10.1111/j.1600-6143.2007.01820.x. Alguns autores consideram que o diagnóstico de RDC deve ser redefinido como presente mesmo na ausência de sintomas clínicos evidentes, desde que um aumento na parasitemia possa ser detectado por técnicas parasitológicas diretas ou por PCR.66. Moreira MDCV, Cunha-Melo JR. Chagas Disease Infection Reactivation After Heart Transplant. Trop Med Infect Dis. 2020;5(3):106. doi: 10.3390/tropicalmed5030106.

Além de um diagnóstico correto de RDC, o reconhecimento dos fatores de risco para tal evento é importante. Eles incluem, o número de episódios de rejeição, presença de malignidade, grau de imunossupressão, doenças autoimunes, infecção por HIV e outros estados de imunossupressão.1010. Campos SV, Strabelli TM, Amato Neto V, Silva CP, Bacal F, Bocchi EA, Stolf NA. Risk Factors for Chagas' Disease Reactivation After Heart Transplantation. J Heart Lung Transplant. 2008;27(6):597-602. doi: 10.1016/j.healun.2008.02.017. Portanto, as estratégias para prevenir a reativação induzida pela rejeição geralmente incluem o uso das doses mais baixas de terapia imunossupressora de vários medicamentos.44. Bocchi EA, Fiorelli A. The Brazilian Experience with Heart Transplantation: A Multicenter Report. J Heart Lung Transplant. 2001;20(6):637-45. doi: 10.1016/s1053-2498(00)00235-7.
https://doi.org/10.1016/s1053-2498(00)00...
,66. Moreira MDCV, Cunha-Melo JR. Chagas Disease Infection Reactivation After Heart Transplant. Trop Med Infect Dis. 2020;5(3):106. doi: 10.3390/tropicalmed5030106.

Devido à importância da RDC, a identificação de fatores de risco que permitam diagnóstico e tratamento precoces é fundamental. Nesta edição dos Arquivos Brasileiros de Cardiologia, Wolf et al.1111. Wolf PJW, Finger MA, Rossi Neto JM, Santos CC, Mattos VBM, Rossi R, et al. Contagem Absoluta de Linfócitos: um Preditor de PCR Sérica Positiva para o Trypanosoma cruzi em Pacientes com Chagas Submetidos ao Transplante Cardíaco. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20240588. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20230588
https://doi.org/10.36660/abc.20230588...
descreveram que a contagem absoluta de linfócitos abaixo de 550/mm3 durante as primeiras 2 semanas após o transplante cardíaco foi um preditor de uma subsequente PCR sanguínea positiva para T. cruzi.1111. Wolf PJW, Finger MA, Rossi Neto JM, Santos CC, Mattos VBM, Rossi R, et al. Contagem Absoluta de Linfócitos: um Preditor de PCR Sérica Positiva para o Trypanosoma cruzi em Pacientes com Chagas Submetidos ao Transplante Cardíaco. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20240588. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20230588
https://doi.org/10.36660/abc.20230588...
Na verdade, como a terapia imunossupressora de indução induz linfodepleção e a resposta imune de células T CD4+ e CD8+ contra T. cruzi, é relevante tanto para o controle do parasita quanto para a patogênese da doença,1212. Ferragut F, Acevedo GR, Gómez KA. T Cell Specificity: A Great Challenge in Chagas Disease. Front Immunol. 2021;12:674078. doi: 10.3389/fimmu.2021.674078.
https://doi.org/10.3389/fimmu.2021.67407...
uma baixa contagem de linfócitos pode ocorrer antes da RDC. Este fator de risco precoce e prontamente disponível para uma PCR sanguíneo positiva para T. cruzi pode se tornar muito útil no acompanhamento após transplante cardíaco em receptores com DC. Uma contagem baixa de linfócitos pode levar a uma avaliação PCR mais precoce ou a uma mudança no tratamento imunossupressor. Além disso, uma contagem elevada de linfócitos poderia adiar uma avaliação de PCR, o que pode ser útil para serviços com acesso mais difícil às técnicas de PCR. Outra possibilidade é o tratamento tripanocida preventivo baseado na baixa contagem de linfócitos. Todas estas possíveis aplicações clínicas para a contagem de linfócitos durante as primeiras duas semanas após um transplante cardíaco devem ser confirmadas por ensaios clínicos devidamente concebidos.

Referências

  • 1
    Laporta GZ, Lima MM, Costa VM, Lima Neto MM, Palmeira SL, Rodovalho SR, et al. Estimativa de prevalência de doença de Chagas crônica nos municípios brasileiros. Rev Panam Salud Publica. 2024;48:e28. doi: 10.26633/RPSP.2024.28.
    » https://doi.org/10.26633/RPSP.2024.28
  • 2
    Fiorelli AI, Santos RH, Oliveira JL Jr, Lourenço-Filho DD, Dias RR, Oliveira AS, et al. Heart Transplantation in 107 Cases of Chagas' Disease. Transplant Proc. 2011;43(1):220-4. doi: 10.1016/j.transproceed.2010.12.046.
    » https://doi.org/10.1016/j.transproceed.2010.12.046
  • 3
    Marin-Neto JA, Rassi A Jr, Oliveira GMM, Correia LCL, Ramos AN Jr, Luquetti AO, et al. SBC Guideline on the Diagnosis and Treatment of Patients with Cardiomyopathy of Chagas Disease - 2023. Arq Bras Cardiol. 2023;120(6):e20230269. doi: 10.36660/abc.20230269.
    » https://doi.org/10.36660/abc.20230269
  • 4
    Bocchi EA, Fiorelli A. The Brazilian Experience with Heart Transplantation: A Multicenter Report. J Heart Lung Transplant. 2001;20(6):637-45. doi: 10.1016/s1053-2498(00)00235-7.
    » https://doi.org/10.1016/s1053-2498(00)00235-7
  • 5
    Bestetti RB, Theodoropoulos TA. A Systematic Review of Studies on Heart Transplantation for Patients with End-stage Chagas' Heart Disease. J Card Fail. 2009;15(3):249-55. doi: 10.1016/j.cardfail.2008.10.023.
  • 6
    Moreira MDCV, Cunha-Melo JR. Chagas Disease Infection Reactivation After Heart Transplant. Trop Med Infect Dis. 2020;5(3):106. doi: 10.3390/tropicalmed5030106.
  • 7
    Costa PA, Segatto M, Durso DF, Moreira WJC, Junqueira LL, Castilho FM, et al. Early Polymerase Chain Reaction Detection of Chagas Disease Reactivation in Heart Transplant Patients. J Heart Lung Transplant. 2017;36(7):797-805. doi: 10.1016/j.healun.2017.02.018.
    » https://doi.org/10.1016/j.healun.2017.02.018
  • 8
    Benvenuti LA, Freitas VLT, Roggério A, Nishiya AS, Mangini S, Strabelli TMV. Usefulness of PCR for Trypanosoma cruzi DNA in Blood and Endomyocardial Biopsies for Detection of Chagas Disease Reactivation After Heart Transplantation: A Comparative Study. Transpl Infect Dis. 2021;23(4):e13567. doi: 10.1111/tid.13567.
  • 9
    Diez M, Favaloro L, Bertolotti A, Burgos JM, Vigliano C, Lastra MP, et al. Usefulness of PCR Strategies for Early Diagnosis of Chagas' Disease Reactivation and Treatment Follow-up in Heart Transplantation. Am J Transplant. 2007;7(6):1633-40. doi: 10.1111/j.1600-6143.2007.01820.x.
  • 10
    Campos SV, Strabelli TM, Amato Neto V, Silva CP, Bacal F, Bocchi EA, Stolf NA. Risk Factors for Chagas' Disease Reactivation After Heart Transplantation. J Heart Lung Transplant. 2008;27(6):597-602. doi: 10.1016/j.healun.2008.02.017.
  • 11
    Wolf PJW, Finger MA, Rossi Neto JM, Santos CC, Mattos VBM, Rossi R, et al. Contagem Absoluta de Linfócitos: um Preditor de PCR Sérica Positiva para o Trypanosoma cruzi em Pacientes com Chagas Submetidos ao Transplante Cardíaco. Arq Bras Cardiol. 2024; 121(6):e20240588. DOI: https://doi.org/10.36660/abc.20230588
    » https://doi.org/10.36660/abc.20230588
  • 12
    Ferragut F, Acevedo GR, Gómez KA. T Cell Specificity: A Great Challenge in Chagas Disease. Front Immunol. 2021;12:674078. doi: 10.3389/fimmu.2021.674078.
    » https://doi.org/10.3389/fimmu.2021.674078

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Jun 2024

Histórico

  • Recebido
    28 Abr 2024
  • Revisado
    08 Maio 2024
  • Aceito
    08 Maio 2024
Sociedade Brasileira de Cardiologia - SBC Avenida Marechal Câmara, 160, sala: 330, Centro, CEP: 20020-907, (21) 3478-2700 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil, Fax: +55 21 3478-2770 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revista@cardiol.br