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Miocardite Aguda como Apresentação Inicial da Mutação da Desmoplaquina – Ampliando o Diagnóstico Diferencial

Miocárdio; Cardiomiopatia Dilatada; Gadolínio

Introdução

A cardiomiopatia genética relacionada à mutação da desmoplaquina (DSP) pode iniciar sua manifestação clínica com sintomas de dor torácica, juntamente com elevação transitória da troponina, configurando a primeira manifestação como miocardite aguda, às vezes em padrão recidivante.11. McNally EM, Selgrade DF. Genetic Testing for Myocarditis. JACC Heart Fail. 2022;10(10):728-30. doi: 10.1016/j.jchf.2022.07.003.
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Está claro que os critérios revisados da Força-Tarefa para cardiomiopatia genética deixarão de lado muitos casos, particularmente aqueles com dominância do lado esquerdo. Este relato de caso destaca a compreensão de que a cardiomiopatia genética, particularmente com mutação DSP, pode se apresentar com miocardite aguda e a compreensão de que a ressonância magnética cardiovascular (RMC) poderia aumentar a possibilidade de cardiomiopatia arritmogênica e prever taquiarritmias ventriculares apesar da FEVE preservada.

Relato de Caso

Uma mulher de 20 anos, previamente saudável, deu entrada no pronto-socorro com dor torácica com duração de uma semana. Ela tinha histórico familiar de miocardite em sua irmã gêmea. Seus sinais vitais eram normais, exceto taquicardia, e não havia achados notáveis em seu exame físico.

O eletrocardiograma mostrou taquicardia sinusal sem alterações isquêmicas (ritmo sinusal, frequência cardíaca 114 bpm). O peptídeo natriurético cerebral e o dímero D estavam dentro dos limites normais. Troponina I marcadamente elevada (TnI 9,7 ng/ml, normal < 0,034 ng/ml) motivou um ecocardiograma transtorácico, que mostrou tamanho do ventrículo esquerdo (VE) e função sistólica normais (FEVE=60%), e sem derrame pericárdico. A ressonância magnética cardiovascular (RMC) foi realizada no Siemens Aera 1,5T usando um protocolo clínico incluindo mapeamento T1 e T2 pré-contraste, imagem de cine, realce tardio com gadolínio (RTG) e mapeamento do volume extracelular (VEC). O estudo de RMC revelou tamanho normal do VE e função preservada (FEVE = 54%), sem anormalidades da contratilidade segmentar regional e tamanho e função normais do ventrículo direito (FEVD = 61%). A elevação pré-contraste do T1 miocárdico nativo (Figura 1-A, T1>1050 mseg) sugeriu edema e/ou aumento do espaço intersticial (fibrose prévia), enquanto a elevação do T2 miocárdico (Figura 1-B, T2>55 mseg) foi consistente com edema envolvendo predominantemente o septo médio. A imagem do RTG mostrou um padrão não isquêmico em forma de anel envolvendo o subepicárdio e o miocárdio médio nos segmentos médio e apical anterior, septo e inferior (Figura 1-C). O volume extracelular miocárdico estava notavelmente elevado (46%, Figura 1-D). Não houve derrame pericárdico nem realce pericárdico. Os achados gerais foram consistentes com lesão miocárdica aguda não isquêmica, conforme descrito nos critérios atualizados de miocardite de Lake-Louise.22. Ferreira VM, Schulz-Menger J, Holmvang G, Kramer CM, Carbone I, Sechtem U, et al. Cardiovascular Magnetic Resonance in Nonischemic Myocardial Inflammation: Expert Recommendations. J Am Coll Cardiol. 2018;72(24):3158-76. doi: 10.1016/j.jacc.2018.09.072.
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Os exames do painel viral, incluindo COVID-19, foram negativos.

Figura 1
– Imagem miocárdica por RMC. Cada imagem mostra mapeamento T1 (1-A), mapeamento T2 (1-B), imagem de realce tardio com gadolínio (1-C) e mapa de volume extracelular (VEC) (1-D). A Figura 1-E mostra alterações seriadas na RMC ao longo de um ano, que demonstram a transição da necrose miocárdica + edema na apresentação inicial para a resolução do edema miocárdico com o passar do tempo e a transição para a fibrose miocárdica de substituição.

Contrações ventriculares prematuras (CVPs) e taquicardia ventricular não sustentada (TVNS) foram observadas em um monitor cardíaco, para o qual um betabloqueador foi iniciado e titulado. A ressonância magnética de acompanhamento, 3 e 12 meses após a apresentação inicial, revelou resolução do edema miocárdico, mas persistência da fibrose miocárdica (Figura 1-E). Devido ao histórico familiar de miocardite, foi obtido aconselhamento genético. Sua irmã também apresentou dor torácica e elevação de troponina I (4,16 ng/ml) e foi diagnosticada com miocardite aguda como possível fenótipo dessa variante. Embora a função do VE fosse normal (FEVE 56%, VCE 26%), o RTG foi identificado no septo médio-inferior e na parede inferior. Um painel de testes genéticos identificou uma mutação missense que leva a uma variante de significado desconhecido no gene DSP, que está associada à cardiomiopatia dilatada e à cardiomiopatia arritmogênica do ventrículo direito. A presença da mesma variante DSP (c.860A> G [p.Asn287Ser]) na irmã do paciente, que já havia apresentado miocardite, aumentou substancialmente nossa suspeita de que a variante era bastante patológica (Figura 2).

Figura 2
– Linhagem Familiar da Mutação da Desmoplaquina. A caixa preta e o círculo mostram os membros da família sem mutação. Vermelho indica indivíduos com genes mutados e vermelho mais (+) indica indivíduos com sintomas clínicos. Embora o teste do painel genético tenha revelado a variante de significado incerto (VUS) no gene DSP (c.860A>G [p.Asn287Ser]), a mesma mutação foi encontrada em sua mãe e irmã.

O paciente recebeu alta hospitalar e acompanhamento ambulatorial no ambulatório de eletrofisiologia com posterior monitorização arrítmica por meio de eletrocardiograma Holter estendido. Ela descreveu melhora significativa em seus sintomas após a alta. Durante o seguimento (3 anos), o Holter estendido revelou um episódio de TVNS (6 batimentos) e carga de 1,1% de CVPs sob betabloqueador (carvedilol 6,25 mg duas vezes ao dia). Porém, recentemente, voltou a apresentar pressão torácica, pré-síncope e elevação de troponina, porém com ritmo sinusal no eletrocardiograma. A implantação de um cardioversor desfibrilador implantável (CDI) foi realizada para prevenção secundária, devido à TVNS, aos sintomas pré-sincopais e à alta probabilidade de TV recorrente.

Discussão

A maioria dos casos de miocardite aguda é causada por um gatilho viral ou por uma etiologia autoimune. No entanto, uma predisposição genética também foi relatada.11. McNally EM, Selgrade DF. Genetic Testing for Myocarditis. JACC Heart Fail. 2022;10(10):728-30. doi: 10.1016/j.jchf.2022.07.003.
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Nesses pacientes, uma história familiar positiva de miocardite ou morte cardíaca súbita pode levar a testes genéticos. Um estudo recente demonstrou que a distribuição do RTG na RMC identificou os pacientes de maior risco entre aqueles com FEVE preservada.33. Chen W, Qian W, Zhang X, Li D, Qian Z, Xu H, et al. Ring-Like Late Gadolinium Enhancement for Predicting Ventricular Tachyarrhythmias in Non-Ischaemic Dilated Cardiomyopathy. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2021;22(10):1130-8. doi: 10.1093/ehjci/jeab117.
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Este caso destaca a manifestação inicial da cardiomiopatia DSP como uma causa incomum de miocardite aguda. Embora o tratamento da miocardite secundária à cardiomiopatia DSP não esteja totalmente acordado, os sintomas de dor torácica, juntamente com a elevação da troponina e o extenso padrão de fibrose não isquêmica na RMC, devem levar à consideração desta entidade.44. Smith ED, Lakdawala NK, Papoutsidakis N, Aubert G, Mazzanti A, McCanta AC, et al. Desmoplakin Cardiomyopathy, a Fibrotic and Inflammatory Form of Cardiomyopathy Distinct from Typical Dilated or Arrhythmogenic Right Ventricular Cardiomyopathy. Circulation. 2020;141(23):1872-84. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.119.044934.
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,55. Reichl K, Kreykes SE, Martin CM, Shenoy C. Desmoplakin Variant-Associated Arrhythmogenic Cardiomyopathy Presenting as Acute Myocarditis. Circ Genom Precis Med. 2018;11(12):e002373. doi: 10.1161/CIRCGEN.118.002373.
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Particularmente, o padrão de RTG não isquêmico subepicárdico e de parede média em forma de anel está associado à possibilidade de cardiomiopatia arritmogênica e taquiarritmias ventriculares, mesmo com FEVE preservada.33. Chen W, Qian W, Zhang X, Li D, Qian Z, Xu H, et al. Ring-Like Late Gadolinium Enhancement for Predicting Ventricular Tachyarrhythmias in Non-Ischaemic Dilated Cardiomyopathy. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2021;22(10):1130-8. doi: 10.1093/ehjci/jeab117.
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,66. Ammirati E, Raimondi F, Piriou N, Infirri LS, Mohiddin SA, Mazzanti A, et al. Acute Myocarditis Associated with Desmosomal Gene Variants. JACC Heart Fail. 2022;10(10):714-27. doi: 10.1016/j.jchf.2022.06.013.
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Esses achados devem levar à consideração da implantação de um desfibrilador intracardíaco ou cardioversor desfibrilador implantável subcutâneo para terapia de prevenção primária. Finalmente, neste caso, o acompanhamento e monitoramento em longo prazo revelaram a necessidade de implantação de CDI para prevenção secundária. O acompanhamento ambulatorial longitudinal e a repetição de imagens de RMC podem fornecer informações valiosas sobre a progressão da doença e orientar futuras intervenções terapêuticas.

Limitações

A variante genética identificada no gene DSP é atualmente classificada como variante de significado incerto (VUS), indicando evidências insuficientes para o papel da mutação. Na verdade, esta mutação foi detectada na paciente, na sua irmã e na sua mãe. Porém, manifestações clínicas foram observadas apenas na paciente e em sua irmã. Um número insuficiente de portadores e fenótipos dentro da família impede uma ligação conclusiva entre este VUS e o fenótipo clínico observado. Dada esta limitação, é necessária uma investigação mais ampla da co-segregação na família no futuro para fornecer evidências mais fortes que apoiem a patogenicidade da variante.

Conclusão

Neste caso, o protocolo de imagem de RMC utilizando mapas miocárdicos e RTG foi crucial não só para o diagnóstico de miocardite, mas também para o acompanhamento. Além disso, a mesma mutação genética foi detectada na mãe e na irmã, enfatizando a importância da informação da história familiar em pacientes que apresentam miocardite, dada a potencial base genética, particularmente para a mutação DSP.

Referências

  • 1
    McNally EM, Selgrade DF. Genetic Testing for Myocarditis. JACC Heart Fail. 2022;10(10):728-30. doi: 10.1016/j.jchf.2022.07.003.
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  • 2
    Ferreira VM, Schulz-Menger J, Holmvang G, Kramer CM, Carbone I, Sechtem U, et al. Cardiovascular Magnetic Resonance in Nonischemic Myocardial Inflammation: Expert Recommendations. J Am Coll Cardiol. 2018;72(24):3158-76. doi: 10.1016/j.jacc.2018.09.072.
    » https://doi.org/10.1016/j.jacc.2018.09.072
  • 3
    Chen W, Qian W, Zhang X, Li D, Qian Z, Xu H, et al. Ring-Like Late Gadolinium Enhancement for Predicting Ventricular Tachyarrhythmias in Non-Ischaemic Dilated Cardiomyopathy. Eur Heart J Cardiovasc Imaging. 2021;22(10):1130-8. doi: 10.1093/ehjci/jeab117.
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  • 4
    Smith ED, Lakdawala NK, Papoutsidakis N, Aubert G, Mazzanti A, McCanta AC, et al. Desmoplakin Cardiomyopathy, a Fibrotic and Inflammatory Form of Cardiomyopathy Distinct from Typical Dilated or Arrhythmogenic Right Ventricular Cardiomyopathy. Circulation. 2020;141(23):1872-84. doi: 10.1161/CIRCULATIONAHA.119.044934.
    » https://doi.org/10.1161/CIRCULATIONAHA.119.044934
  • 5
    Reichl K, Kreykes SE, Martin CM, Shenoy C. Desmoplakin Variant-Associated Arrhythmogenic Cardiomyopathy Presenting as Acute Myocarditis. Circ Genom Precis Med. 2018;11(12):e002373. doi: 10.1161/CIRCGEN.118.002373.
    » https://doi.org/10.1161/CIRCGEN.118.002373
  • 6
    Ammirati E, Raimondi F, Piriou N, Infirri LS, Mohiddin SA, Mazzanti A, et al. Acute Myocarditis Associated with Desmosomal Gene Variants. JACC Heart Fail. 2022;10(10):714-27. doi: 10.1016/j.jchf.2022.06.013.
    » https://doi.org/10.1016/j.jchf.2022.06.013
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.
  • Aprovação ética e consentimento informado
    Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética do Allina Institutional Review Board. Todos os procedimentos envolvidos nesse estudo estão de acordo com a Declaração de Helsinki de 1975, atualizada em 2013. O consentimento informado foi obtido de todos os participantes incluídos no estudo.
  • Fontes de financiamento: O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.

Editado por

Editor responsável pela revisão: Gláucia Maria Moraes de Oliveira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2024

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2023
  • Revisado
    01 Nov 2023
  • Aceito
    13 Dez 2023
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