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Minieditorial: Características Clínicas da Hipertensão Arterial Resistente versus Refratária em uma População de Hipertensos Afrodescendentes

Hipertensão/complicações; Grupo com Ancestrais do Continente Africano/genética; Estudo Comparativo; Epidemiologia; Infarto do Miocárdio; Acidente Vascular Cerebral

As diferenças do comportamento clínico da hipertensão arterial (HA) nas diversas etnias são, há muito tempo, objetos de intensa investigação científica. As estatísticas da American Heart Association de 2015 verificaram que os afrodescendentes americanos têm a maior prevalência de hipertensão do mundo. Em homens e mulheres negros, não hispânicos, a prevalência ocorreu em 44,9% e 46,1%, respectivamente. 11. Mozaffarian D, Benjamin EJ, Go AS, Arnett DK, Blaha MJ, et al. American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart disease and stroke statistics: 2015 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2015; 131(4):e29-e322. Embora tais números não sejam universais para todas as populações negras, existem grupos em que os níveis pressóricos são muito mais elevados, como os negros sul-africanos, nos quais a pressão arterial sistólica é 9,7 mmHg mais elevada em comparação aos afro-americanos. 22. Cooper RS, Forrester TE, Plange-Rhule J, Bovet P, Lambert EV, Dugas LR, et al. Elevated hypertension risk for African-origin populations in biracial societies: modeling the Epidemiologic Transition Study. J Hypertens. 2015 ; 33(3):473-81. , 33. Howard G, Prineas R, Moy C, Kellllum M, Tempple E, Grahamm A, Kellum M, Temple E, Graham A, et al. Racial and geographic differences in awareness, treatment, and control of hypertension: the REasons for Geographic And Racial Differences in Stroke study. Stroke. 2006 ; 37(5):1171-8.

As lesões a órgãos-alvo e as complicações são mais prevalentes nos negros em comparação aos brancos ou hispânicos para os mesmos níveis de pressão, além de apresentarem maior resistência ao tratamento. 44. Rayner BL and Spenceb JD. Hypertension in blacks: insights from Africa. J Hypertens 2017 ;35(2):234-9. , 55. Musemwa N, Gadegbeuku CA. Hypertension in African Americans. Curr Cardiol Rep. 2017 ;19:129-40.

A hipertensão resistente (HR) e a refratária (HRf) acometem uma proporção não desprezível dos pacientes hipertensos. No Brasil, de acordo com o estudo ReHOT, a prevalência é de 11,7% dos hipertensos. 66. Krieger EM, Drager LF, Giorgi DMA, Pereira AC, Barretto Filho JAS, Nogueira AS, et al. for ReHOT Investigators. Spironolactone Versus Clonidine as a Fourth-Drug Therapy for Resistant Hypertension The ReHOT Randomized Study (Resistant Hypertension Optimal Treatment). Hypertension. 2018 ;71(4):681-90.

Ainda se discute muito se a HR e a HRf são fenótipos ou gradações diferentes de uma mesma doença. De modo similar a simples HA que podemos controlar com até três fármacos, a etiopatogenia é multifatorial, e têm importância os fatores genéticos e ambientais. Entre os fatores ambientais, a ingesta de sal e/ou a não excreção salina adequada pelos rins são elementos preponderantes do não controle pressórico. Isso é corroborado no elegante estudo PATWAY-2, que avaliou o quarto fármaco no fluxograma da terapêutica anti-hipertensiva e discriminou a espironolactona como um dos fármacos mais importantes nesse estágio do tratamento. 77. Williams B, MacDonald BTM, Morant S, Webb DJ, Sever P, McInnes G, et al., for The British Hypertension Society’s PATHWAY Studies Group. Spironolactone versus placebo, bisoprolol, and doxazosin to determine the optimal treatment for drug-resistant hypertension (PATHWAY-2): a randomised, double-blind, crossover trial. Lancet. 2015 ; 386(10008):2059-68. Na sequência, o estudo PATWAY-2 Mechanistic encontrou efeitos similares com o cloridrato de amilorida, ambos diuréticos. 88. Williams B, MacDonald TM, Morant SV, Webb D, Sever P, Mackenzie G, et al., for The British Hypertension Society Programme of Prevention And Treatment of Hypertension With Algorithm based Therapy (PATHWAY) Study Group. Endocrine and haemodynamic changes in resistant hypertension, and blood pressure responses to spironolactone or amiloride: the PATHWAY-2 mechanisms substudies. Lancet Diabetes Endocrinol. 2018 ;6(6):464-75.

Em vista deste aspecto multifatorial da HA, envolvendo causas genéticas e ambientais, evidenciam-se algumas particularidades, principalmente com relação à gravidade em determinados grupos étnicos. Os indivíduos afrodescendentes, além de terem maior prevalência de HA e consequências mais graves da doença, apresentam maiores lesões a órgãos-alvo e maior morbimortalidade de causa cardiovascular. 99. Cooper RS, Forrester TE, Plange-Rhule J, Bovet P. Lambert EV, Dugas LR, et al. Elevated hypertension risk for African-origin populations in biracial societies: modeling the Epidemiologic Transition Study. J Hypertens. 2015 ; 33(3):473-81. Isso é bem evidente nos afrodescendentes americanos; contudo, em nossa miscigenada população, não temos estudos robustos para averiguar tais diferenças.

Neste trabalho de Macedo et al., 1010. Macedo C, Aras Junior R, Macedo IS. Características da Hipertensão Arterial Resistente vs. Refratária em uma População de Hipertensos Afrodescendentes. Arq Bras Cardiol. 2020 ; 115(1):31-39. Características Clínicas da Hipertensão Arterial Resistente versus Refratária em uma População de Hipertensos Afrodescendentes, verificou-se nessa população que a HRf é comum, tendo maior prevalência de dislipidemia, história de acidente vascular cerebral (AVC) e maior lesões a órgão-alvo. 1010. Macedo C, Aras Junior R, Macedo IS. Características da Hipertensão Arterial Resistente vs. Refratária em uma População de Hipertensos Afrodescendentes. Arq Bras Cardiol. 2020 ; 115(1):31-39. Os achados parecem redundantes e muito similares aos de afrodescendentes americanos, mas refere-se a um achado com muito significado epidemiológico que pode levantar hipóteses para outros estudos que possam decifrar o grande enigma das diferenças da hipertensão em diversos grupos étnicos.

Acredita-se que os afrodescendentes brasileiros sejam diferentes dos americanos e muito parecidos com os negros nativos da África, com exceção da África do Sul. 22. Cooper RS, Forrester TE, Plange-Rhule J, Bovet P, Lambert EV, Dugas LR, et al. Elevated hypertension risk for African-origin populations in biracial societies: modeling the Epidemiologic Transition Study. J Hypertens. 2015 ; 33(3):473-81. Provavelmente, isso tem muito a ver com o tráfico de escravos da África para a América. Sabemos que alguns negros têm, geneticamente, algumas particularidades no sistema renina-angiotensina-aldosterona, com pouca atividade de renina e com uma massa de néfrons menor, e, com isso, menos sódio excretado. Sem conhecer qualquer aspecto fisiopatológico, os escravagistas ingleses lambiam o suor do negro para ver se era salgado ou não, e assim escolher indivíduos preferenciais para o transporte nos porões das naus, sem condições de alimentação e hidratação. 1111. Tu W, Eckert GJ, Hannon TS, Lliu H, Pratt LM, Wagner MA, et al. Racial differences in sensitivity of blood pressure to aldosterone. Hypertension. 2014 ; 63(6):1212-8.

12. Brown MJ. Hypertension and ethnic group. BMJ. 2006 ;332(7545):833-6.
- 1313. Wilson TW, Grim CE. Biohistory of slavery and blood pressure differences in blacks today. A hypothesis. Hypertension. 1991 ; 17(Suppl I):I122-8. Aqueles que conseguiam sobreviver à travessia do Atlântico eram justamente os que apresentavam um sistema de retenção de sódio e água mais eficiente. Assim, no Novo Mundo, com excesso de sal na alimentação, diferentemente da terra natal, evoluíam para uma hipertensão mais grave. Esse caminho do tráfico de pessoas da África para a América do Norte é quase o dobro da distância para o Brasil e, por isso, a seleção dos africanos no Brasil não foi tão acentuada como a americana. No entanto, não existem estudos bem desenhados que possam responder corretamente a tais dúvidas epidemiológicas.

Estima-se que a hereditariedade contribua de 40% a 50% da patogênese da hipertensão, mas pouco se sabe de sua arquitetura genética na identificação de loci de genes responsáveis pela elevação pressórica. Os afrodescendentes americanos apresentam índice de renina e aldosterona mais baixo que os brancos para o mesmo nível de ingesta de sódio. 1414. Weinberger MH. Hypertension in African Americans: the role of sodium chloride and extracellular fluid volume. Semin Nephrol. 1996 ;1116(2):110-6. A sensibilidade ao sal é um fenótipo mais comum em negros, e muito relacionada a resposta pressórica com a variação da ingesta de sódio, mesmo naqueles com baixo índice de renina e aldosterona. 1515. Weinberger MH. Sodium sensitivity of blood pressure. Curr Opin Nephrol Hypertens. 1993 ;2(6):935-9.

Desse modo, este trabalho de Macedo et al. 1010. Macedo C, Aras Junior R, Macedo IS. Características da Hipertensão Arterial Resistente vs. Refratária em uma População de Hipertensos Afrodescendentes. Arq Bras Cardiol. 2020 ; 115(1):31-39. tem importância na avalição das características próprias das diversas etnias que compõem a população brasileira. O trabalho foi realizado na cidade de Salvador, na Bahia, onde a população de afrodescendentes representa boa parcela dos habitantes. O conhecimento mais profundo de características pressóricas, risco cardiovascular, medicamentos mais efetivos, lesões preferenciais a órgãos-alvo etc. pode levar a planos mais acurados de controle, prevenção e terapêutica. Este estudo de desenho transversal, com avaliação clínica e laboratorial precisa – inclusive com realização de monitoramento ambulatorial da pressão arterial (MAPA) para afastar o efeito do avental branco, situação bastante comum – permitiu conclusões de importância epidemiológica em nossa população afrodescendente.

Será necessário percorrer ainda muitos caminhos para desvendar e encaixar todas as peças do polígono multifatorial de todos os fenótipos da hipertensão, principalmente a HR e a HRf. Ainda não sabemos profundamente qual o papel preciso do sal, do sistema nervoso simpático, do endotélio e de todos os outros fatores relacionados com esta complexa doença chamada hipertensão arterial.

Referências

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    Mozaffarian D, Benjamin EJ, Go AS, Arnett DK, Blaha MJ, et al. American Heart Association Statistics Committee and Stroke Statistics Subcommittee. Heart disease and stroke statistics: 2015 update: a report from the American Heart Association. Circulation. 2015; 131(4):e29-e322.
  • 2
    Cooper RS, Forrester TE, Plange-Rhule J, Bovet P, Lambert EV, Dugas LR, et al. Elevated hypertension risk for African-origin populations in biracial societies: modeling the Epidemiologic Transition Study. J Hypertens. 2015 ; 33(3):473-81.
  • 3
    Howard G, Prineas R, Moy C, Kellllum M, Tempple E, Grahamm A, Kellum M, Temple E, Graham A, et al. Racial and geographic differences in awareness, treatment, and control of hypertension: the REasons for Geographic And Racial Differences in Stroke study. Stroke. 2006 ; 37(5):1171-8.
  • 4
    Rayner BL and Spenceb JD. Hypertension in blacks: insights from Africa. J Hypertens 2017 ;35(2):234-9.
  • 5
    Musemwa N, Gadegbeuku CA. Hypertension in African Americans. Curr Cardiol Rep. 2017 ;19:129-40.
  • 6
    Krieger EM, Drager LF, Giorgi DMA, Pereira AC, Barretto Filho JAS, Nogueira AS, et al. for ReHOT Investigators. Spironolactone Versus Clonidine as a Fourth-Drug Therapy for Resistant Hypertension The ReHOT Randomized Study (Resistant Hypertension Optimal Treatment). Hypertension. 2018 ;71(4):681-90.
  • 7
    Williams B, MacDonald BTM, Morant S, Webb DJ, Sever P, McInnes G, et al., for The British Hypertension Society’s PATHWAY Studies Group. Spironolactone versus placebo, bisoprolol, and doxazosin to determine the optimal treatment for drug-resistant hypertension (PATHWAY-2): a randomised, double-blind, crossover trial. Lancet. 2015 ; 386(10008):2059-68.
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    Williams B, MacDonald TM, Morant SV, Webb D, Sever P, Mackenzie G, et al., for The British Hypertension Society Programme of Prevention And Treatment of Hypertension With Algorithm based Therapy (PATHWAY) Study Group. Endocrine and haemodynamic changes in resistant hypertension, and blood pressure responses to spironolactone or amiloride: the PATHWAY-2 mechanisms substudies. Lancet Diabetes Endocrinol. 2018 ;6(6):464-75.
  • 9
    Cooper RS, Forrester TE, Plange-Rhule J, Bovet P. Lambert EV, Dugas LR, et al. Elevated hypertension risk for African-origin populations in biracial societies: modeling the Epidemiologic Transition Study. J Hypertens. 2015 ; 33(3):473-81.
  • 10
    Macedo C, Aras Junior R, Macedo IS. Características da Hipertensão Arterial Resistente vs. Refratária em uma População de Hipertensos Afrodescendentes. Arq Bras Cardiol. 2020 ; 115(1):31-39.
  • 11
    Tu W, Eckert GJ, Hannon TS, Lliu H, Pratt LM, Wagner MA, et al. Racial differences in sensitivity of blood pressure to aldosterone. Hypertension. 2014 ; 63(6):1212-8.
  • 12
    Brown MJ. Hypertension and ethnic group. BMJ. 2006 ;332(7545):833-6.
  • 13
    Wilson TW, Grim CE. Biohistory of slavery and blood pressure differences in blacks today. A hypothesis. Hypertension. 1991 ; 17(Suppl I):I122-8.
  • 14
    Weinberger MH. Hypertension in African Americans: the role of sodium chloride and extracellular fluid volume. Semin Nephrol. 1996 ;1116(2):110-6.
  • 15
    Weinberger MH. Sodium sensitivity of blood pressure. Curr Opin Nephrol Hypertens. 1993 ;2(6):935-9.
  • Minieditorial referente ao artigo: Características Clínicas da Hipertensão Arterial Resistente vs. Refratária em uma População de Hipertensos Afrodescendentes

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    Jul 2020
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