Open-access Rutura Parcial de Músculo Papilar após Infarto do Miocárdio e Trombose Obstrutiva Severa Precoce de Bioprótese valvar: Uma Combinação Invulgar

Palavras-chave: Infarto do Miocárdio/complicações; Terapia trombolítica; Bloqueio Atriventricular/complicações; Marcapasso Artificial; Parada cardíaca; Ruptura Cardíaca Pós Infarto; Bioprótese

Introdução

Complicações mecânicas após infarto do miocárdio (IM) tornaram-se incomuns desde a introdução da angioplastia primária.1 Estas podem levar à deterioração rápida do quadro clínico e a um desfecho fatal, e a sobrevida do paciente depende de identificação e intervenção imediatos. Este artigo descreve um caso de duas complicações mecânicas raras: uma ruptura parcial do músculo papilar após infarto do miocárdio, seguida de uma trombose obstrutiva severa precoce de bioprótese valvar.

Relato de Caso

Paciente do sexo masculino, 70 anos, com história de dislipidemia e tabagismo, que sofreu um infarto do miocárdio com supradesnivelamento do segmento ST (IAMCSST) em região inferior. Dada a impossibilidade de uma intervenção coronária percutânea em tempo útil, foi realizada trombólise dentro de 4 horas do início dos sintomas. Logo em seguida, ocorreu bloqueio atrioventricular avançado, necessitando de marcapasso transcutâneo, seguido de parada cardiorrespiratória em fibrilação ventricular, revertida após um ciclo de suporte avançado de vida. O paciente foi transportado de avião para um centro com intervenção coronária percutânea (ICP). A angiografia coronária mostrou uma estenose de 50-60% no segmento proximal da artéria coronária direita, que foi tratada com stent metálico. O ecocardiograma mostrou disfunção sistólica moderada do ventrículo esquerdo (fração de ejeção estimada de 35%), com acinesia inferior, ínfero-lateral e ínfero-septal, e regurgitação mitral moderada. No quinto dia, o paciente foi transferido para o nosso centro, após um vôo de 10 horas. Ao dar entrada na unidade de terapia intensiva, o paciente estava em choque cardiogênico, sob inotrópicos e ventilação não invasiva. O ecocardiograma transtorácico à beira do leito revelou regurgitação mitral grave de mecanismo incerto, além de disfunção sistólica moderada do ventrículo esquerdo e comprometimento sistólico do ventrículo direito. Caracterização adicional através de ecocardiograma transesofágico revelou uma ruptura de 9 mm do músculo papilar posteromedial, consistente com uma ruptura contida, embora morfologicamente iminente. A instabilidade do aparelho subvalvar, que levou a amplo prolapso do folheto posterior, provocou grave regurgitação mitral com jato excêntrico com efeito Coanda, atingindo o teto do átrio esquerdo (Figura 1). O paciente foi submetido a substituição valvar mitral de urgência por prótese biológica (St. Jude #29), com preservação dos folhetos anterior e posterior. Teve uma recuperação pós-operatória favorável e recebeu alta hospitalar 12 dias após a cirurgia, com terapia anticoagulante por três meses, além de terapia antiplaquetária dupla. No quarto mês após a cirurgia, o paciente apresentou sintomas de insuficiência cardíaca progressiva (classe III da NYHA), sem outras queixas. Foram realizadas análises transtorácicas e transesofágicas adicionais, que revelaram uma restrição considerável da mobilidade dos folhetos protéticos mitrais devido à deposição de material trombótico, levando a obstrução grave, com um gradiente médio de 19 mmHg e uma área de orifício efetiva estimada pelo método PISA de 0,4 cm2.2 Além disso, em continuidade com a prótese, havia um grande trombo mural cobrindo a parede póstero-septal do átrio esquerdo (Figura 2). Foi realizada cirurgia de urgência 24 horas após o diagnóstico, envolvendo a substituição da bioprótese mitral por outra prótese biológica, com melhora significativa do quadro clínico. Após extensa investigação, não foram encontradas evidências de fibrilação atrial ou distúrbios trombóticos. O exame anatomopatológico do material protético ressecado confirmou trombose prostética, sem sinais de endocardite.

Figura 1
Visão de duas câmaras por ecocardiograma transesofágico mostrando ruptura de 9 mm do músculo papilar posteromedeial (apontada com uma seta), consistente com uma ruptura contida, mas morfologicamente iminente, levando a prolapso amplo do folheto posterior e regurgitação mitral grave com jato excêntrico. AE: átrio esquerdo; VE: ventrículo esquerdo.

Figura 2
Visão do eixo longo e zoom 3D na face da válvula mitral por ecocardiograma transesofágico mostrando espessamento considerável da bioprótese mitral devido à deposição de material trombótico, levando a obstrução grave da prótese valvar e a um grande trombo mural cobrindo a parede póstero-septal do átrio esquerdo (apontada com uma seta). BPVM: Bioprótese valvar Mitral; AE: átrio esquerdo; VE: ventrículo esquerdo.

Discussão

Na era atual de reperfusão mecânica precoce, a incidência de ruptura do músculo papilar (RMP) após IM diminuiu, sendo inferior a 0,5%. Embora rara, a RMP completa ou parcial é uma complicação grave que pode levar à deterioração rápida do quadro clínico e a óbito.1,2 Uma grande prudência é essencial para a identificação precoce dessa condição, especialmente em cenários incomuns, como no caso relatado. Além disso, o paciente foi submetido a terapia trombolítica e a transporte aéreo prolongado na fase aguda do infarto do miocárdio, o que poderia ter contribuído para isquemia e lesões adicionais.

A ecocardiografia transtorácica (ETT) é fundamental na avaliação de pacientes em choque cardiogênico após IM, sendo por isso a modalidade inicial de imagiologia utilizada. Sua sensibilidade para o diagnóstico de RMP é de 65 a 85%.3 No entanto, em alguns casos, o ETT é insuficiente para determinar o mecanismo causador da regurgitação mitral com precisão; por isso, torna-se crucial obter uma caracterização adicional com o ecocardiograma transesofágico (ETE) para estabelecer o diagnóstico. O ETE pode oferecer maior visibilidade e caracterização das estruturas posteriores - como o aparelho valvar mitral - com rendimento diagnóstico entre 95% e 100%.4,5 Embora a RMP parcial possa ser mais difícil de identificar do que a completa, deve sempre ser investigada cuidadosamente no contexto de um prolapso do folheto mitral.5 No caso aqui apresentado, somente a avaliação do ETE forneceu caracterização completa da estrutura da válvula mitral e identificação precisa do desarranjo do aparelho valvar mitral. Devido às complicações hemodinâmicas adversas associadas à RMP, a identificação e tratamento imediatos são essenciais para um desfecho favorável do paciente. A evolução natural do RMP pós-IM é extremamente desfavorável somente sob tratamento médico.6 A RMP parcial também é considerada uma emergência cirúrgica, pois a maioria dos casos evolui para ruptura completa.7 No caso sob estudo, a instabilidade do aparelho subvalvar foi notória, com ruptura completa potencial e iminente, como pode ser visto na Figura 1.

As válvulas bioprotéticas são vantajosas em relação às mecânicas devido à sua menor incidência de eventos tromboembólicos e à ausência da anticoagulação a longo prazo. A trombose de bioprótese valvar (TBPV) clinicamente significativa é considerada um fenômeno raro, porém acumula-se evidência que sugere ser uma complicação pouco identificada.8 Seu diagnóstico ainda é um desafio devido à falta geral de conscientização sobre essa condição. A combinação de características clínicas e ecocardiográficas é útil para seu diagnóstico. Fatores predisponentes específicos para a TBPV incluem baixo débito cardíaco, dilatação atrial esquerda, história prévia de eventos tromboembólicos, fibrilação atrial e hipercoagulabilidade. Sintomas de insuficiência cardíaca aguda de início recente, dispneia progressiva, novo evento tromboembólico e regressão dos sintomas de insuficiência cardíaca sob terapia de anticoagulação devem ser considerados como indicadores desta condição. Algumas características ecocardiográficas reforçam o diagnóstico de TBPV, como: visualização direta de trombose valvar, como no caso relatado; aumento de gradiente médio de 50% em comparação com a avaliação pós-operatória; espessura da cúspide aumentada (> 2 mm), principalmente no aspecto a jusante da BPV; mobilidade anormal dos folhetos; regressão das anormalidades do BPV com anticoagulação, geralmente dentro de um a três meses após o início ou movimentos reduzidos dos folhetos em tomografia computadorizada cardíaca.8,9 O tratamento ideal da TBPV continua a ser objeto de debate. A estratégia depende da apresentação clínica, do estado hemodinâmico do paciente, da presença de obstrução à bioprótese valvar (BPV) e da localização da válvula. As opções convencionais de tratamento incluem cirurgia, fibrinólise e anticoagulação, mas a base do tratamento continua sendo a anticoagulação associada à cirurgia.10 Embora a independência da anticoagulação de longo prazo seja uma vantagem da substituição valvar bioprotética, casos como o descrito aqui destacam a importância de se considerar essa condição mesmo em pacientes sem fatores de risco consideráveis, que apresentam sintomas de insuficiência cardíaca precocemente após a troca valvar. No pós-operatório, os pacientes devem ser categorizados de acordo com o risco, e talvez a anticoagulação a longo prazo deva ser considerada para pacientes de alto risco, bem como a avaliação ecocardiográfica periódica de próteses biológicas. Em ambas as complicações descritas neste caso, a caracterização ecocardiográfica com imagens 2D/3D foi essencial para definir um diagnóstico correto e orientar o tratamento.

Este caso ilustra duas complicações mecânicas cardíacas incomuns, sendo peculiar sua associação no mesmo paciente. Apesar das fisiopatologias distintas, ambas as condições representam emergências cardíacas que exigem alto índice de suspeita e diagnóstico preciso. A imagiologia cardiovascular é uma técnica de apoio extremamente valiosa numa situação de cuidados críticos. A identificação precisa da ruptura parcial do músculo papilar (ocasionalmente um diagnóstico despercebido) e da trombose obstrutiva precoce da bioprótese valvar permitiram uma correção cirúrgica rápida e bem-sucedida dessas condições, com impacto significativo na saúde e na recuperação do paciente.

  • Fontes de financiamento
    O presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
  • Vinculação acadêmica
    Não há vinculação deste estudo a programas de pós-graduação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    02 Dez 2017
  • Revisado
    04 Abr 2018
  • Aceito
    25 Abr 2018
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