EDITORIAL
Uma década de terapia com células-tronco de medula óssea: o que falta?
Hans Fernando Rocha Dohmann
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ - Brasil
Correspondência Correspondência: Hans Fernando Rocha Dohmann Av. Nossa Senhora de Copacabana, 2/602 - Leme 22010-120 - Rio de Janeiro, RJ - Brasil E-mail: hdohmann@cardiol.br, hans.dohmann@globo.com
Palavras-chave: Células-tronco, terapêutica/tendências, medula óssea.
O uso de células autólogas de medula óssea em seres humanos está completando dez anos, numa área em que a cardiologia brasileira tem reconhecimento internacional por conta de seu pioneirismo1. Há uma década foram tratados os primeiros casos de pacientes com cardiopatias isquêmicas crônicas terminais, cuja publicação ocorreu dois anos depois2. O artigo de Vilas Boas e cols.3, publicado neste número dos Arquivos, representam outra ação pioneira da cardiologia brasileira nesse campo: a aplicação na Doença de Chagas (DC). Nesta edição os autores apresentam uma série de casos de 28 pacientes com IC em razão de DC com classe funcional NYHA III e IV que foram submetidos a transplante de células mononucleares derivadas da medula óssea (TCMMO) através de injeção coronariana.
Assim como toda evidência científica, os artigos de terapia celular devem sofrer processo de avaliação crítica. Para esse fim, além dos critérios gerais para um artigo de terapia4, aprendemos nesses dez anos que algumas considerações específicas devem ser feitas sobre artigos de TCMMO.
O primeiro ponto é demonstrar quais células foram injetadas (e seus subtipos), sua viabilidade e grau de funcionalidade. Especialmente quando um estudo é negativo5. Em 2006, um mesmo número do NEJM foi apresentado em dois estudos, com metodologias similares no cenário do IAM: um estudo sugeria benefício e outro não, gerando muita controvérsia na época6,7. Os autores se dedicaram a entender o porquê da diferença e hoje sabemos que o estudo negativo havia utilizado células com capacidade funcional deprimida. Dessa forma, as principais perguntas a serem feitas são: quais células foram injetadas? Quais testes de viabilidade e funcionalidade foram feitos e qual a experiência do grupo que os realizou?
Outro ponto fundamental referente ao estudo de TCMMO diz respeito aos eventos adversos. Habitualmente estamos sempre interessados na relação risco-benefício de uma nova terapia. No caso da terapia celular, não há, até o momento, eventos adversos importantes estabelecidos8. Se esse fato se comprovar, o critério para tomada de decisão clínica muda, na medida em que a relação risco-benefício se torna favorável.
No estudo de Vilas Boas e cols.3, um total de 240 milhões de células foi injetado via intracoronariana, e apesar de não haver ensaio funcional ou tipagem celular, a viabilidade foi alta (96%), e o centro de manipulação tem enorme experiência na área. Não houve eventos adversos relacionados à coleta de células ou ao seu implante. No seguimento de seis meses, quatro mortes foram reportadas, havendo melhora de parâmetros clínicos (NYHA, qualidade de vida, teste de caminhada de 6 minutos) e ecocardiográficos (FEVE).
Quando consideramos as evidências disponíveis, uma revisão sistemática do TCMMO no cenário da doença isquêmica crônica demonstra benefícios na FE nesses pacientes8. Curiosamente, há uma desproporção entre a melhora da FE e a melhora clínica acentuada. Dados de cinco anos do nosso grupo demonstram uma sobrevida acima da esperada e avaliação de qualidade de vida pelo SF-36 e Minnesota, em relação à população geral na mesma faixa etária9. Poder-se-ia argumentar que os dados de qualidade de vida são subjetivos e refletem uma influência psicológica positiva. Descaracteriza esse fato o desempenho dos pacientes no teste ergométrico, também desproporcionalmente melhores que os ganhos de FE e sustentáveis no longo prazo (influências psicológicas não costumam ter efeitos de cinco anos). Quanto mais graves o estado dos pacientes, mais esses se beneficiaram no desempenho do TE9.
Uma possível explicação seria um complexo mecanismo de ação, multidimensional, diferente dos agentes químicos (que atuam em um ponto específico da cascata fisiopatológica). As CMMO, embora tenham sua capacidade de transdiferenciação em cardiomiócito discutidos até o dia de hoje, tem demonstrado capacidade angiogênica, de restauração do sistema nervoso intrínseco do coração e do tecido de sustentação do órgão reorganizando o esqueleto colágeno cardíaco e modulador da inflamação10.
Após dez anos, por que ainda não temos uma evidência definitiva na terapia celular? Simplesmente porque as CMMO não são patenteáveis, não geram interesse para fomento. Isso demonstra quão importante é o papel da indústria no desenvolvimento de novas tecnologias cardiovasculares. No caso da DC, uma evidência mais robusta patrocinada pelo Ministério da Saúde não demonstrou benefícios para os pacientes11. Infelizmente, o estudo não disponibiliza dados sobre a funcionalidade das células administradas, o que nos manterá sempre a dúvida: a terapia com CMMO não beneficia a DC, ou as células injetadas não estavam adequadas?
Artigo recebido em 07/06/11; revisado recebido em 08/06/11; aceito em 08/06/11.
"Editorial sob responsabilidade do Cardiosource em Português. http://cientifico.cardiol.br/cardiosource2/default.asp"
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Correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Ago 2011 -
Data do Fascículo
Jul 2011