Insuficiência da Valva Mitral; Ecocardiografia; Ecocardiografia Tridimensional; Cardiopatias Congênitas
Introdução
A fenda isolada no folheto anterior da valva mitral (não associada ao defeito septal atrioventricular) é uma causa rara de insuficiência mitral congênita. Sempre que possível, a reparação da valva mitral (sutura direta da fenda com ou sem inserção de anel protético) é preferível à troca valvar. Apresentamos um caso que descreve a utilidade da ecocardiografia transtorácica (ETT) tridimensional (3D) no diagnóstico e na avaliação morfológica do defeito valvar, auxiliando o planejamento do procedimento cirúrgico.
Relato do Caso
Homem assintomático de 18 anos de idade, com com relato de sopro desde a infância, foi submetido a uma avaliação cardiológica, que confirmou um sopro holossistólico apical com irradiação para a axila. O eletrocardiograma de repouso de 12 derivações mostrou-se normal. O exame 2D-ETT mostrou a presença de um jato regurgitante mitral excêntrico de grande dimensão direcionado à parede lateral do átrio esquerdo dilatado (Figura 1 -A e B e Vídeo 1). O tamanho do anel mitral era normal. O ventrículo esquerdo apresentava tamanho e função normais. Nenhuma outra alteração cardíaca foi detectada pelo 2D-ETT. Um exame 3D-ETT foi realizado para melhor definir a anatomia da valva mitral. Imagens en face da valva mitral foram obtidas através do recorte dos volumes 3D adquiridos através das janelas apicais e para esternais. Um defeito foi visualizado no folheto anterior da válvula mitral na região A3 (Figura 1 - D a I, e Vídeo 2). No meio da sístole ventricular, as dimensões da fenda eram de 0,8 cm de largura e 1,2 cm de profundidade, com área regurgitante de 0,7 cm2 através de planimetria, e orifício regurgitante efetivo de 0,61 cm2.
1) Imagem longitudinal paraesternal 2D-ETT utilizando Doppler ecocardiografia em cores demonstrando o fluxo regurgitante excêntrico através do folheto mitral anterior direcionado à parede lateral do átrio esquerdo; 2) Imagem por 3D-ECTen face da valva mitral ventricular, aonde pode-se visualizar que as duas partes do folheto anterior excursionam juntas durante a sístole, enquanto que durante a diástole, as bordas da fenda se separaram amplamente; 3) Imagem por 3D-ETT da valva mitral ventricular, aonde pode-se visualizar que as duas partes do folheto anterior excursionam juntas durante a sístole, ao passo que durante a diástole, as bordas da fenda se separaram amplamente; 4) Imagem por 3D-ETT mostrando uma área eco-livre facilmente visualizada e que representa a região de separação dos folhetos.
A) Vista apical bidimensional das duas câmaras mostrando uma fenda no folheto anterior, onde o trajeto do fluxo regurgitante excêntrico foi identificado pela Doppler ecocardiografia em cores; B) Vista bidimensional de eixo curto logo abaixo da raiz da aorta, ao nível da continuidade fibrosa da valva aórtica para a mitral; C) rastreamento contínuo do fluxo regurgitante por Doppler, mostrando um espectro denso sugestivo de insuficiência grave; D e E) Imagem 3D ventricular e atrial en face, respectivamente, da valva mitral a meio caminho da sístole ventricular, mostrando o orifício anatômico com área planimétrica tridimensional e medições de diâmetros; F) Imagem 3D atrial en face da válvula mitral na diástole monstrando a fenda na região A3; G) Imagem por 3D-ETT monstrando o defeito no folheto anterior eco-localizado na região A3 (note a divisão do folheto anterior indicado pela seta); H) Imagem 3D en face da válvula mitral com Doppler ecocardiografia em cores, demonstrando a porção A3 medido pelo método PISA; I) Área planimétrica 3D efetiva do orifício regurgitante.
Possíveis causas adquiridas para este achado morfológico, tais como trauma torácico, cirurgia, ou endocardite infecciosa, também foram excluídas, e o diagnóstico final foi fenda isolada no folheto anterior da válvula mitral (FAVM). Considerando a grande dimensão da fenda, a gravidade da regurgitação, e sua localização perto da comissura póstero-medial, a sutura direta ou enxerto autólogo de pericárdio não foram considerados opções cirúrgicas viáveis (Vídeo 3 e 4).
A avaliação intra-operatória confirmou os resultados obtidos a partir do exame 3D-ETT. Uma fenda foi identificada no terço medial do folheto anterior da valva mitral. Nenhuma outra anormalidade do aparato mitral foi observada. Uma prótese aórtica St. Jude de 31 mm (St. Jude Medical Biocor®) foi implantada com sucesso, de acordo com a escolha do paciente. O pós-operatório transcorreu sem intercorrências e após 6 meses de acompanhamento, o paciente manteve-se assintomático com uma prótese mitral funcionando normalmente.
Discussão
FAVM é uma doença cardíaca congênita rara, definida como uma fenda no folheto anterior da valva mitral não associada a um defeito septal atrial ostium primum ou a outras características associadas ao defeito septal atrioventricular11 Van Praagh S, Porras D, Oppido G, Geva T, Van Praagh R. Cleft mitral valve without ostium primum defect: Anatomic data and surgical considerations based on 41 cases. Ann Thorac Surg. 2003;75(6):1752-62.,22 Sulafa AK, Tamimi O, Najm HK, Godman MJ. Echocardiographic differentiation of atrioventricular septal defects from inlet ventricular septal defects and mitral valve clefts. Am J Cardiol. 2005;95(5):607-10.. Acredita-se que a FAVM seja o resultado de uma expressão incompleta de um defeito do coxim endocárdico33 Zegdi R, Amahzoune B, Ladjali M, Sleilaty G, Jouan J, Latremouille C, et al. Congenital mitral valve regurgitation in adult patients. A rare, often misdiagnosed but repairable, valve disease. Eur J Cardiothorac Surg. 2008;34(4):751-4.. FAVM geralmente envolve o folheto anterior, dividindo-o na sua totalidade, e é direcionada à via de saída do ventriculo esquerdo, que não apresenta defeito do coxim endocárdico11 Van Praagh S, Porras D, Oppido G, Geva T, Van Praagh R. Cleft mitral valve without ostium primum defect: Anatomic data and surgical considerations based on 41 cases. Ann Thorac Surg. 2003;75(6):1752-62.. Geralmente, o anel mitral encontra-se numa posição normal.
FAVM pode causar regurgitação mitral de gravidade variável. Dados da literatura
sugerem que o tratamento cirúrgico é indicado quando ocorre regurgitação mitral
considerável, mesmo em pacientes assintomáticos44 Abadir S, Fouilloux V, Metras D, Ghez O, Kreitmann B, Fraisse A.
Isolated cleft of the mitral valve: Distinctive features and surgical management. Ann
Thorac Surg. 2009;88(3):839-43.. Sempre que possível, a reparação cirúrgica é a intervenção de escolha e
consiste na sutura direta da fenda ou inserção de um enxerto pericárdico autólogo
(quando a fenda é muito ampla devido à retração da borda da fenda), com ou sem
inserção de anel protético44 Abadir S, Fouilloux V, Metras D, Ghez O, Kreitmann B, Fraisse A.
Isolated cleft of the mitral valve: Distinctive features and surgical management. Ann
Thorac Surg. 2009;88(3):839-43.,55 Perier P, Clausnizer B. Isolated cleft mitral valve: Valve
reconstruction techniques. Ann Thorac Surg. 1995;59(1):56-9.. O ecocardiograma é a técnica de escolha para
avaliar anomalias suspeitas e conhecidas da valva mitral, e fornece informações
importantes sobre a topografia e morfologia do defeito, bem como o mecanismo e a
gravidade da regurgitação. No entanto, devido à sua natureza tomográfica, a
Miglioranza e cols. Ecocardiografia 3D: fenda isolada no folheto anterior da valva
mitral ecocardiografia bidimensional, tanto ETT como a transesofágica (ETE), tem
capacidade limitada para definir em três dimensões as características anatômicas
complexas da fenda, tais como a sua posição, tamanho e morfologia. As vantagens da
ecocardiografia tridimensional para avaliar a morfologia e função da válvula mitral
têm sido amplamente documentadas nos trabalhos sobre a doença da valva mitral
adquirida66 Muraru D, Cattarina M, Boccalini F, Dal Lin C, Peluso D, Zoppellaro G,
et al. Mitral valve anatomy and function: New insights from three-dimensional
echocardiography. J Cardiovasc Med (Hagerstown). 2013;14(2):91-9.. A ecocardiografia
tridimensional permite visualizar a geometria não-planar dos folhetos e anel
valvares, o complexo aparato subvalvar e suas relações espaciais com as estruturas
circundantes. Além disso, com a ecocardiografia tridimensional, não há necessidade de
reconstrução mental a partir de imagens tomográficas distintas da valva mitral, visto
que imagens anatômicas realistas da valva mitral semelhantes à observação cirúrgica
são obtidas durante o batimento cardíaco. Devido à resolução superior de imagem,
3D-ETE foi utilizada para a avaliação de FAVM em vários trabalhos77 Townsley MM, Chen EP, Sniecinski RM. Cleft posterior mitral valve
leaflet: Identification using three-dimensional transesophageal echocardiography.
Anesth Analg. 2010;111(6):1366-8.
8 Looi JL, Lee AP, Wan S, Wong RH, Underwood MJ, Lam YY, et al. Diagnosis
of cleft mitral valve using real-time 3-dimensional transesophageal echocardiography.
Int J Cardiol. 2013;168(2):1629-30.
9 Furtado M, Andrade J, Atik E, Kalil-Filho R. Pre and post operative 3d
echocardiographic [corrected] appearance of isolated cleft of the anterior mitral
valve leaflet. Pediatr Cardiol. 2010;31(5):741-3. Erratum in: Pediatr Cardiol.
2010;31(5):744
10 Seguela PE, Brosset P, Acar P. Isolated cleft of the posterior mitral
valve leaflet assessed by real-time 3d echocardiography. Arch Cardiovasc Dis.
2011;104(5):365-6.
11 Jung HJ, Yu GY, Seok JH, Oh C, Kim SH, Yoon TG, et al. Usefulness of
intraoperative real-time three-dimensional transesophageal echocardiography for
pre-procedural evaluation of mitral valve cleft: a case report. Korean J Anesthesiol.
2014;66(1):75-9.-1212 Biaggi P, Greutmann M, Crean A. Utility of three-dimensional
transesophageal echocardiography: anatomy, mechanism, and severity of regurgitation
in a patient with an isolated cleft posterior mitral valve. J Am Soc Echocardiogr.
2010;23(10):1114. e1-4.. Em nosso paciente, 3D-ETT foi capaz de visualizar a FAVM do ponto de
vista cirúrgico, definindo sua posição exata, morfologia e tamanho, permitindo um
planejamento cirúrgico confiável e discussão sobre a escolha da prótese com o
paciente sem a necessidade de procedimentos semi-invasivos como o ETE. Além disso,
nossos resultados sugerem que, em pacientes com janela acústica adequada, os dados
fornecidos pelo 3D-ECT permitem que os cirurgiões planejem o procedimento cirúrgico
antes de entrar na sala de cirurgia. A 3D-ETT pode ser realizada após a indução da
anestesia, na sala de cirurgia, para a obtenção de mais detalhes anatômicos antes da
cirurgia. Esta estratégia visa reduzir o desconforto do paciente e os custos de
propedêutica do paciente.
Consentimento
O paciente assinou um consentimento informado para a publicação deste relato de caso e as imagens que o acompanham.
Agradecimentos
Marcelo Miglioranza recebeu uma bolsa de estudos de pós-graduação da CAPES, uma agência governamental brasileira de apoio à pós-graduação.
Sorina Mihaila é beneficiária de uma bolsa de estudos da European Association of Cardiovascular Imaging.
Denisa Muraru e Luigi P. Badano receberam doações de equipamentos da GE Vingmed (Horten, N), e atuaram como palestrantes pela empresa.
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Fontes de financiamentoO presente estudo não teve fontes de financiamento externas.
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Vinculação acadêmicaNão há vinculação deste estudo a programas de pós‑graduação.
Referências
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1Van Praagh S, Porras D, Oppido G, Geva T, Van Praagh R. Cleft mitral valve without ostium primum defect: Anatomic data and surgical considerations based on 41 cases. Ann Thorac Surg. 2003;75(6):1752-62.
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2Sulafa AK, Tamimi O, Najm HK, Godman MJ. Echocardiographic differentiation of atrioventricular septal defects from inlet ventricular septal defects and mitral valve clefts. Am J Cardiol. 2005;95(5):607-10.
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3Zegdi R, Amahzoune B, Ladjali M, Sleilaty G, Jouan J, Latremouille C, et al. Congenital mitral valve regurgitation in adult patients. A rare, often misdiagnosed but repairable, valve disease. Eur J Cardiothorac Surg. 2008;34(4):751-4.
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4Abadir S, Fouilloux V, Metras D, Ghez O, Kreitmann B, Fraisse A. Isolated cleft of the mitral valve: Distinctive features and surgical management. Ann Thorac Surg. 2009;88(3):839-43.
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5Perier P, Clausnizer B. Isolated cleft mitral valve: Valve reconstruction techniques. Ann Thorac Surg. 1995;59(1):56-9.
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6Muraru D, Cattarina M, Boccalini F, Dal Lin C, Peluso D, Zoppellaro G, et al. Mitral valve anatomy and function: New insights from three-dimensional echocardiography. J Cardiovasc Med (Hagerstown). 2013;14(2):91-9.
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7Townsley MM, Chen EP, Sniecinski RM. Cleft posterior mitral valve leaflet: Identification using three-dimensional transesophageal echocardiography. Anesth Analg. 2010;111(6):1366-8.
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8Looi JL, Lee AP, Wan S, Wong RH, Underwood MJ, Lam YY, et al. Diagnosis of cleft mitral valve using real-time 3-dimensional transesophageal echocardiography. Int J Cardiol. 2013;168(2):1629-30.
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9Furtado M, Andrade J, Atik E, Kalil-Filho R. Pre and post operative 3d echocardiographic [corrected] appearance of isolated cleft of the anterior mitral valve leaflet. Pediatr Cardiol. 2010;31(5):741-3. Erratum in: Pediatr Cardiol. 2010;31(5):744
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10Seguela PE, Brosset P, Acar P. Isolated cleft of the posterior mitral valve leaflet assessed by real-time 3d echocardiography. Arch Cardiovasc Dis. 2011;104(5):365-6.
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11Jung HJ, Yu GY, Seok JH, Oh C, Kim SH, Yoon TG, et al. Usefulness of intraoperative real-time three-dimensional transesophageal echocardiography for pre-procedural evaluation of mitral valve cleft: a case report. Korean J Anesthesiol. 2014;66(1):75-9.
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12Biaggi P, Greutmann M, Crean A. Utility of three-dimensional transesophageal echocardiography: anatomy, mechanism, and severity of regurgitation in a patient with an isolated cleft posterior mitral valve. J Am Soc Echocardiogr. 2010;23(10):1114. e1-4.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Maio 2015
Histórico
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Recebido
07 Abr 2014 -
Revisado
16 Jul 2014 -
Aceito
22 Jul 2014