Resumos
A epilepsia é uma das causas mais freqüentes de distúrbios neurológicos em adultos jovens. Relatamos um caso em que uma paciente conviveu durante doze anos com o diagnóstico de epilepsia resistente ao tratamento, quando, na verdade, a causa de seus sintomas pôde ser encontrada com a realização do teste de inclinação (tilt teste). O cardiologista deve estar alerta para o possível diagnóstico de síncope neurocardiogênica em pacientes previamente diagnosticados como portadores de epilepsia, especialmente naqueles com difícil controle terapêutico.
Síncope; epilepsia; tilt teste; diagnóstico diferencial; crise convulsiva
Epilepsy is one of the most frequent causes of neurological disorders in young adults. We report the case of a patient who lived with the diagnosis of refractory epilepsy for twelve years, when actually the cause of the symptoms could be found with the performance of a tilt table test. Cardiologists should be aware of the possible diagnosis of neurocardiogenic syncope in patients previously diagnosed with epilepsy, especially in those with difficult therapeutic control.
RELATO DE CASO
Tilt teste no diagnóstico diferencial da "epilepsia" resistente ao tratamento
Renata Rodrigues Teixeira de Castro; Antonio Claudio Lucas da Nóbrega
Hospital Pró-Cardíaco e Universidade Federal Fluminense , Rio de Janeiro, RJ
Correspondência Correspondência: Renata Rodrigues Teixeira de Castro Rua Carlos Chambelland, 226/405 Vila da Penha 21910-090 Rio de Janeiro, RJ E-mail: castrorrt@terra.com.br
RESUMO
A epilepsia é uma das causas mais freqüentes de distúrbios neurológicos em adultos jovens. Relatamos um caso em que uma paciente conviveu durante doze anos com o diagnóstico de epilepsia resistente ao tratamento, quando, na verdade, a causa de seus sintomas pôde ser encontrada com a realização do teste de inclinação (tilt teste). O cardiologista deve estar alerta para o possível diagnóstico de síncope neurocardiogênica em pacientes previamente diagnosticados como portadores de epilepsia, especialmente naqueles com difícil controle terapêutico.
Palavras-chave: Síncope, epilepsia, tilt teste, diagnóstico diferencial, crise convulsiva.
Epilepsia é um termo que engloba um grupo de condições crônicas cuja principal manifestação clínica é a ocorrência de convulsões epiléticas episódios súbitos e em geral espontâneos de alteração da consciência e movimentos involuntários1. A epilepsia é uma das causas mais freqüentes de distúrbios neurológicos em adultos jovens, acometendo cerca de cinqüenta milhões de pessoas em todo o mundo2,3. A prevalência da epilepsia na Europa varia de 4,5 a sete casos a cada mil habitantes, dependendo da faixa etária considerada, sendo diagnosticados 311 mil novos casos a cada ano4. O conhecimento por parte dos médicos, da alta prevalência da epilepsia, especialmente em crianças, pode fazer com que esse diagnóstico seja estabelecido sem que se considere a possibilidade de outros diagnósticos diferenciais.
Relatamos um caso em que uma paciente conviveu durante doze anos com o diagnóstico de epilepsia resistente ao tratamento, quando, na verdade, a causa de seus sintomas pôde ser encontrada com a realização do teste de inclinação (tilt teste).
Relato do caso
Paciente do sexo feminino, vinte anos de idade, com história de cinco episódios de perda fugaz do tônus postural, sem perda da consciência (relatava que mantinha a audição durante tais episódios) desde os oito anos de idade. Todos os episódios de pré-síncope eram precedidos por mal-estar mal-definido, cansaço, turvação visual, calor e visualização de escotomas cintilantes. A paciente relatava que em nenhum dos episódios houve liberação esfincteriana, abalos musculares, mordedura de língua ou outros sinais que pudessem ser interpretados como crise convulsiva do tipo grande mal. Além disso, não havia sintomas posteriores que pudessem indicar estado de confusão pós-ictal.
Consulta neurológica após o primeiro episódio concluiu que a paciente sofria de epilepsia do tipo ausência (epilepsia do tipo pequeno mal), apesar de eletroencefalograma com resultado normal, sendo prescrita carbamazepina. Apesar do uso regular desse medicamento por período de doze anos e mantendo sempre níveis séricos terapêuticos dessa substância, a paciente apresentou quatro episódios semelhantes desde o início do tratamento. Dois deles ocorreram em posição ortostática e dois em posição sentada. Não foi possível identificar situações desencadeadoras de tais episódios, como calor, ortostatismo prolongado, estresse emocional, visibilização de sangue, dor, entre outras.
Além disso, a paciente relatava diversos episódios em que sentia todos os pródromos previamente relatados, porém sem evolução para pré-síncope e com melhora após assumir o decúbito dorsal.
Diante do diagnóstico de epilepsia resistente ao tratamento, a paciente foi submetida a nova investigação clínica. Não havia nenhuma alteração ao exame físico. Foram realizados hemograma, bioquímica, eletrocardiograma, holter de 24 horas e eletroencefalograma, sem alterações.
Procedeu-se a investigação por meio de tilt teste. O tilt teste foi realizado em ambiente silencioso, com temperatura de 26°C e umidade relativa do ar de 54%, com monitorização eletrocardiografia contínua (ECG 98®, HW, Brasil) e monitorização intermitente da pressão arterial (PA) por esfigmomanômetro digital (Vital Lite®, Indumed, Brasil). Após dez minutos de decúbito dorsal, foi realizada mudança passiva para posição ortostática a 70°, sendo essa mantida por vinte minutos. Em seguida, administraram-se 400 mcg de gliceril-trinitrato (Nitrolingual Pumpspray®, G. Pohl-Boskamp GmbH & Co, Alemanha) por via sublingual. No 40º minuto de ortostatismo, a paciente iniciou queixa de mal-estar mal-definido, cansaço, turvação visual, calor e visualização de escotomas cintilantes. Houve intensificação dos sintomas, palidez e pré-síncope. Melhora do quadro clínico após retorno ao decúbito dorsal.
A completa reprodução dos sintomas que levaram à investigação, associada à queda abrupta dos valores de PA (queda de PA sistólica = 40 mmHg e de PA diastólica = 40 mmHg, PA mínima = 77 x 32 mmHg) e da freqüência cardíaca (FC mínima = 63 bpm) permitiram o diagnóstico de pré-síncope neurocardiogênica do tipo mista em resposta ao tilt test (fig. 1). Esse padrão de resposta ao tilt teste caracteriza-se pela queda abrupta dos valores de PA e FC, desde que o menor valor de FC seja menor que 90% de seu valor máximo atingido no teste (nesse caso, FC máxima = 107 bpm; 90% da FC máxima = 96 bpm) e maior que 40 bpm.
Após o exame, foi suspensa a administração de carbamazepina e a paciente iniciou tratamento com fludrocortisona sendo orientada quanto às medidas comportamentais a serem tomadas para prevenção dos episódios, como uso de meia elástica de alta compressão, treinamento aeróbico e aumento da ingesta de sal e água5.
Discussão
A síncope representa um sintoma freqüente, sendo a causa de 3% a 5% dos atendimentos de emergência e 1% a 3% das internações hospitalares6,7. Sua prevalência varia de acordo com a faixa etária estudada, variando de 15% em crianças até os dezoito anos de idade8, até 23% em idosos com mais de setenta anos de idade9.
A maior prevalência de síncope em populações adultas e a grande incidência de epilepsia em crianças muitas vezes induzem à aceitação diagnóstica de epilepsia em crianças com sintomas neurológicos (perda de consciência), sem que se prossiga em investigação mais aprofundada.
Além disso, o diagnóstico de epilepsia do tipo pequeno mal muitas vezes é clínico. Apesar de existir um padrão eletroencefalográfico típico desse modo de epilepsia, a inexistência de alterações eletroencefalógraficas em paciente com forte suspeita clínica não exclui tal diagnóstico10. As alterações eletroencefalógraficas podem, eventualmente, ser registradas apenas durante os breves momentos de perda da consciência.
O caso aqui descrito continha dados que apontavam para a possibilidade diagnóstica de síncope neurocardiogênica, como os pródromos descritos, a recuperação rápida e ausência de confusão pós-ictal. Entretanto, apesar de esses dados auxiliarem na diferenciação da epilepsia clássica, do tipo grande mal, apresentam menor valor no diagnóstico da epilepsia do tipo pequeno mal, pois essa, em geral, não é seguida por estado confusional pós-ictal.
Vale ressaltar que a presença de abalos musculares não exclui o diagnóstico de síncope. Pacientes com síncope neurocardiogênica de padrão cardioinibitório podem apresentar longos períodos de assistolia, com importante prejuízo à perfusão cerebral11. Nesses casos, o paciente pode apresentar movimentos tônicos ou tônico-clônicos, assimétricos ou generalizados. Usualmente essas "convulsões" desaparecem após o paciente ser colocado em posições que facilitem a perfusão cerebral (decúbito dorsal ou posição de Tredelemburg). Apesar de tais movimentos serem muito semelhantes às convulsões características da epilepsia, essas podem ser diferenciadas pela presença de estado confusional pós-ictal12.
O aparecimento de movimentos similares às convulsões parece ser mais freqüente em crianças. Fernandez Sanmartin e cols.13 publicaram uma casuística em que 11,6% de 216 pacientes com idade entre cinco e dezoito anos apresentaram "convulsões" durante tilt teste positivo para síncope neurocardiogênica.
Casos em que a síncope neurocardiogênica é interpretada como epilepsia tornaram-se mais comuns com a popularização do tilt teste. Em 2000, Zaidi e cols.14 avaliaram 74 pacientes com diagnóstico de epilepsia resistente ao tratamento. Quarenta e um por cento desses pacientes apresentaram tilt teste positivo. Grande parte desses pacientes apresentava diagnóstico de síncope neurocardiogênica e não de epilepsia.
Conclusão
Dados epidemiológicos, como prevalência de doenças, devem ser utilizados para nortear a investigação clínica baseada em três pilares: anamnese, exame físico e exames complementares. O cardiologista deve estar alerta para o possível diagnóstico de síncope neurocardiogênica em pacientes previamente diagnosticados como portadores de epilepsia, principalmente naqueles com difícil controle terapêutico. O tilt teste é uma ferramenta simples e não-invasiva que pode ser útil na identificação de diagnósticos diferenciais nestes casos.
Recebido em 24/09/05; revisado recebido em 08/12/05; aceito 08/12/05.
Referências bibliográficas
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Mar 2007 -
Data do Fascículo
Nov 2006
Histórico
-
Aceito
08 Dez 2005 -
Revisado
08 Dez 2005 -
Recebido
24 Set 2005