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Entendendo as razões para a recusa da colecistectomia em indivíduos com colelitíase: como ajudá-los em sua decisão?

Resumos

RACIONAL:

A colelitíase é doença de resolução cirúrgica com cerca de 60.000 internações por ano no Sistema Único de Saúde. Muitas vezes é assintomática ou oligossintomática e as principais complicações advêm da migração dos cálculos para as vias biliares baixas. Apesar das complicações serem graves, com risco de morte, alguns pacientes recusam o tratamento cirúrgico.

OBJETIVO:

Entender as razões pelas quais alguns indivíduos com colelitíase recusam a colecistectomia antes que ocorram complicações próprias da doença.

MÉTODOS:

Foram realizadas entrevistas individuais segundo um roteiro de perguntas pré-determinadas. Nestas entrevistas procurou-se avaliar o conhecimento dos indivíduos sobre a doença e suas complicações e as razões para a recusa do tratamento cirúrgico. Foram incluídos 20 indivíduos portadores de colelitíase que se recusavam ou adiavam o tratamento cirúrgico sem justificativa plausível. Às entrevistas aplicou-se a técnica da análise temática (Minayo, 2006).

RESULTADOS:

A maioria dos entrevistados tem bom conhecimento de sua doença, das possíveis complicações, foram bem orientados e tiveram a indicação cirúrgica pelos seus médicos assistentes. A recusa para a operação foi justificada por experiências negativas próprias ou de familiares com ato cirúrgico, incluindo a anestesia e medo de sentir dor ou perder a autonomia durante o ato cirúrgico e período pós-operatório, preferindo correr o risco e esperar pelas complicações para depois resolvê-las.

CONCLUSÃO:

As razões para a recusa à resolução cirúrgica da colelitíase são diversas, mas estão intimamente ligadas às experiências cirúrgicas negativas pessoais ou de pessoas relacionadas ou a complexos problemas de natureza psicológica que devem ser adequadamente abordados pelo cirurgião e por outros profissionais habilitados.

Colelitíase; Consentimento livre e esclarecido; Ética médica; Psicologia em saúde


BACKGROUND:

Cholelithiasis is prevalent surgical disease, with approximately 60,000 admissions per year in the Unified Health System in Brazil. Is often asymptomatic or oligosymptomatic and major complications arise from the migration of calculi to low biliary tract. Despite these complications are severe and life threatening, some patients refuse surgical treatment.

AIM:

To understand why individuals with cholelithiasis refuse cholecystectomy before complications inherent to the presence of gallstones in the bile duct and pancreatitis occur.

METHODS:

To investigate the universe of the justifications for refusing to submit to surgery it was performed individual interviews according to a predetermined script. In these interviews, was evaluate the knowledge of individuals about cholelithiasis and its complications and the reasons for the refusal of surgical treatment. Were interviewed 20 individuals with cholelithiasis who refused or postponed surgical treatment without a plausible reason. To these interviews, was applied the technique of thematic analysis (Minayo, 2006).

RESULTS:

The majority of respondents had good knowledge of their disease and its possible complications, were well oriented and had surgical indications by their physicians. The refusal for surgery was justified primarily on negative experiences of themselves or family members with surgery, including anesthesia; fear of pain or losing their autonomy during surgery and postoperative period, preferring to take the risk and wait for complications to then solve them compulsorily.

CONCLUSION:

The reasons for the refusal to surgical resolution of cholelithiasis were diverse, but closely related to personal (or related persons) negative surgical experiences or complex psychological problems that must be adequately addressed by the surgeon and other qualified professionals.

Cholelithiasis; Medical ethics; Informed consent; Behavioral medicine


INTRODUÇÃO

A colelitíase ocorre em 3-20% da população mundial2020. Tang B, Cuschieri A. Conversions during laparoscopic cholecystectomy: risk factors and effects on patient outcome. J Gastrointest Surg. 2005;10(7):1081-91.. No idoso, é a causa mais comum de indicação de operação abdominal, com prevalência de 21,4% na faixa etária de 60-69 anos e 27,5% nos indivíduos acima de 70 anos1417. Santos JS, Sankarankutty A, Salgado Júnior W, Kemp R, Modena J, Elias Júnior J, et al. Colecistectomia: aspectos técnicos e indicaçõespara o tratamento da litíase biliar e das neoplasias. Medicina (Ribeirão Preto). 2008;41(4):449-64.. Podem evoluir sem sintomas em mais da metade dos casos1313. Picci R, Perri SG, Dalla Torre A, Pietrasanta D, Castaldo P, Nicita A, et al. [Therapy of asymptomatic gallstones: indications and limits]. Chir Ital. 2005;57(1):35-45. , 1515. Sakorafas GH, Milingos D, Peros G. Asymptomatic cholelithiasis: is cholecystectomy really needed? A critical reappraisal 15 years after the introduction of laparoscopic cholecystectomy. Dig Dis Sci. 2007;52(5):1313-25.. No ano de 2000 estimou-se que ela tenha acometido cerca de 20 milhões de americanos, com custo direto ou indireto de seis bilhões de dólares1616. Sandler RS, Everhart JE, Donowitz M, Adams E, Cronin K, Goodman C, et al. The burden of selected digestive diseases in the United States. Gastroenterology. 2002;122(5):1500-11. , 1919. Silva R, Silva A, Cioff i A, Ferreira L, Bez L. Alterações histológicas da vesícula biliar litiásica: influência no diagnóstico e tratamento por videolaparoscopia. Rev Col Bras Cir. 2000;27(1):1-5..

A migração dos cálculos frequentemente causa sintomas e pode evoluir como quadro agudo, muitas vezes grave quando não operado. Além destas complicações inflamatórias locoregionais, a colelitíase pode predispor à neoplasia de vesícula1717. Santos JS, Sankarankutty A, Salgado Júnior W, Kemp R, Modena J, Elias Júnior J, et al. Colecistectomia: aspectos técnicos e indicaçõespara o tratamento da litíase biliar e das neoplasias. Medicina (Ribeirão Preto). 2008;41(4):449-64..

Em autópsias de pessoas com idade superior a 75 anos, os cálculos biliares chegam a ser encontrados em até 50% dos casos1717. Santos JS, Sankarankutty A, Salgado Júnior W, Kemp R, Modena J, Elias Júnior J, et al. Colecistectomia: aspectos técnicos e indicaçõespara o tratamento da litíase biliar e das neoplasias. Medicina (Ribeirão Preto). 2008;41(4):449-64.. Em um estudo brasileiro, em 4.482 autópsias realizadas em homens e mulheres encontrou-se 94 casos de neoplasia de vesícula (2,1%), mais comumente associadas aos casos com colelitíase diagnosticada anteriormente e com maior tempo de doença77. Kimura W, Nagai H, Kuroda A, Morioka Y. Clinicopathologic study of asymptomatic gallbladder carcinoma found at autopsy. Cancer. 1989;64(1):98-103..

A litogênese é influenciada por múltiplos fatores. A vesícula biliar armazena bile do refluxo advindo do fechamento da ampola hepatobiliar e nela se concentra. A chegada do alimento no intestino desencadeia o reflexo neural que se soma à ação da colecistocinina levando à contração da vesícula, que esvazia seu conteúdo em 75%. Quando esse mecanismo não acontece, há estase da bile, distensão da vesícula e isquemia. Ocorre ainda a secreção de fosfolipase que ativa a lecitina, promovendo processo inflamatório, por liberação de mediadores pró-inflamatórios11. Browning JD, Horton JD. Gallstone disease and its complications. Semin Gastrointest Dis. 2003;14(4):165-77.. Soma-se também a translocação bacteriana (E. coli, Salmonela sp) e a diminuição da quantidade de líquidos, aumentando a concentração da bile e favorecendo a formação dos cálculos11. Browning JD, Horton JD. Gallstone disease and its complications. Semin Gastrointest Dis. 2003;14(4):165-77..

Uma extensa revisão da literatura analisou os possíveis tratamentos não cirúrgicos disponíveis à época para colelitíase, como o uso de ácidos queno e ursodeoxicólicos22. Conte VP. Tratamento näo cirúrgico da litíase biliar. Rev Hosp Clin Fac Med Sao Paulo. 1989;44(5):249-52. e a litotripsia extracorpórea por ondas de choque44. Heberer G, Paumgartner G, Sauerbruch T, Sackmann M, Krämling HJ, Delius M, et al. A retrospective analysis of 3 year's experience of an interdisciplinary approach to gallstone disease including shock-waves. Ann Surg. 1988;208(3):274-8.. Nenhum deles foi considerado efetivo a longo prazo, confirmando que a colecistectomia é o único tratamento comprovadamente eficaz para resolução da colelitíase33. Goffi F. Técnica cirúrgica: bases anatômicas, fisiopatológicas e técnicas da cirurgia. Rio de Janeiro: Atheneu; 2006. p. 112-23..

Nos casos em que a colelitíase complica-se com colecistite, não há dificuldades para a indicação cirúrgica pelo médico assistente, pois o quadro é muito agudo, sintomático e progressivo, levando o paciente a não discutir a indicação cirúrgica. Entretanto, nos casos assintomáticos, oligossintomáticos e sem complicações, há mais dificuldades na indicação, já que alguns indivíduos que não apresentam dores não sentem necessidade da intervenção, a menos que entrem em fase aguda de colecistite, pancreatite ou colangite1717. Santos JS, Sankarankutty A, Salgado Júnior W, Kemp R, Modena J, Elias Júnior J, et al. Colecistectomia: aspectos técnicos e indicaçõespara o tratamento da litíase biliar e das neoplasias. Medicina (Ribeirão Preto). 2008;41(4):449-64..

No Brasil, a primeira operação laparoscópica foi realizada por Thomas Szeco, em 1993 55. Henriques A, Pezzolo S, Gomes M, Godinho C, Bagarollo C. Colecistectomia videolaparoscópica ambulatorial. Rev Col Bras Cir. 2001;28(1):27-9.. A partir daí foi indicada com frequência crescente por maior número de cirurgiões. A introdução deste método permitiu que ela fosse feita mesmo em indivíduos com colelitíase pouco sintomáticas com mortalidade inferior a 1%33. Goffi F. Técnica cirúrgica: bases anatômicas, fisiopatológicas e técnicas da cirurgia. Rio de Janeiro: Atheneu; 2006. p. 112-23.. Entretanto, mesmo com todo o conhecimento acumulado na área, as indicações médicas precisas e o reconhecimento pelos pacientes de que a operação é tratamento de escolha para a doença, alguns indivíduos portadores de colelitíase não a aceitam.

É natural que se tenha medo e expectativa diante do inesperado de uma operação, mesmo que não seja emergencial e que nos possibilite planejamento. Neste momento de conflito, nossos medos e dúvidas estão aflorados2121. Zen OP, Brutscher SM. Humanização: enfermeira de centro cirúrgico e o paciente cirúrgico. Enfoque. 1986;14(1):4-6.. Assim, é esperado que alguns indivíduos recusem ou adiem o tratamento cirúrgico até o momento em que isso não seja mais possível ou esteja além de sua vontade1818. Silva ML , Gracia E, Farias F. A doença, aspectos psicossociais e culturais manifestações e significado para a equipe de saúde. Enfoque. 1990;18(2):31-3..

A experiência ocasional em casos desta natureza e a reflexão sobre a intrigante decisão de pacientes que recusam a operação motivou a realizar este estudo. que teve como objetivo avaliar o grau de conhecimento que os indivíduos portadores de colelitíase, que recusam a operação têm sobre sua doença e suas complicações e entender as razões pelas quais se recusam ou adiam o tratamento cirúrgico e também propor um termo de consentimento em linguagem para leigos para ajudá-los no entendimento da doença, diminuindo suas preocupações e facilitando sua decisão terapêutica.

MÉTODOS

O projeto de pesquisa e o termo de consentimento foram aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Os participantes não foram identificados em qualquer momento da pesquisa.

Trata-se de pesquisa qualitativa e quantitativa, baseada em 20 entrevistas realizadas com paciente que sofrem de colelitíase que, apesar de terem indicação médica para realizar a colecistectomia, não a aceitavam mesmo diante da orientação do profissional ou optavam por adiá-la. No processo de análise, foram identificadas algumas categorias de razões para adiar ou rejeitar a operação. Essas categorias estão apresentadas na Figura 1 2121. Zen OP, Brutscher SM. Humanização: enfermeira de centro cirúrgico e o paciente cirúrgico. Enfoque. 1986;14(1):4-6..

Figura 1
Categorias das justificativas para recusar ou adiar a colecistectomia eletiva

Essas categorias não esgotam as possibilidades de entendimento sobre as dificuldades das pessoas tomarem decisão sobre o processo cirúrgico sem estarem sobre pressão e urgência do tempo, mas foram essas as escolhidas pelos pesquisadores diante do seu impacto emocional.

A pesquisa foi realizada com 20 participantes de ambos os sexos, com idades de 19-70 anos e com diagnóstico de colelitíase confirmados pela ultrassonografia abdominal ou outro método diagnóstico de imagem, com os sintomas clássicos da doença, com poucos sintomas ou "assintomáticos". Os critérios de inclusão no estudo foram: 1) presença de cálculo no interior da vesícula biliar (diagnosticado por método de imagem); 2) negativa do indivíduo de realizar a colecistectomia de forma eletiva ou o adiamento sucessivo da operação por motivos pouco justificáveis; e 3) terem aceitado participar do estudo assinando o termo de consentimento livre e esclarecido. O número de participantes foi definido pelo "critério de saturação" proposto por Muchielli1212. Muchielli A . Les méthodes qualitatives. Coleção Que sais-je? Paris: Presses Universitairies de France; 1990..

Para melhor investigar e entender as razões da negativa em aceitar o tratamento cirúrgico, foram realizadas entrevistas com todos os participantes feitas de forma individual através de perguntas abertas, segundo um roteiro pré-estabelecido utilizando um gravador para registrar as narrativas. O roteiro foi: 1) Quais eram os seus sintomas no momento do diagnóstico e os sintomas atuais? 2) Qual(is) foi(ram) o(s) exame(s) realizado(s) para o diagnóstico da colelitíase? 3. Quem indicou o tratamento cirúrgico? 4) O que você sabe da sua doença? 5) O que você espera acontecer para operar? 6) Quais são seus motivos para não realizar o tratamento cirúrgico?

Na análise qualitativa das entrevistas buscou-se privilegiar as falas, conceitos e reflexões com o intuito de estabelecer trocas mais detalhadas e aprofundadas sobre o tema em questão, suas causas e consequências da decisão negativa de realizar a operação.

A análise quantitativa foi feita de forma descritiva objetivando informar a frequência com que apareciam as ideias e representações nos discursos. A evolução dentro do período de acompanhamento também foram analisadas de forma descritiva e quantitativa.

As entrevistas foram transcritas e inicialmente analisadas individualmente. A partir da análise do discurso, segundo Badin e Minayo1111. Minayo M. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo; Rio de Janeiro: Hucitec; ABRASCO; 2010. p. 303-84. foram identificadas as ideias expostas pelos participantes que representassem pontos relevantes nos discursos, influenciando a sua decisão frente à indicação médica da operação. Após a análise individual, foi feita, também, análise do conjunto das informações e representações fornecidas pelos participantes, identificando fatores comuns ou correlatos nesses discursos.

A construção do material educativo

Partindo do termo de consentimento esclarecido e informado já disponibilizado pelo Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva - CBCD optou-se por trabalhar com este material adaptando-o à realidade cultural dos participantes dessa pesquisa e incluindo informações que julgou-se serem importantes para ajudar os pacientes na decisão terapêutica. Ressalta-se que para esse fim foi obtida a anuência do CBCD para utilização e adaptação do seu instrumento.

RESULTADOS

Os resultados obtidos no estudo serão apresentados em forma de tabelas e divididos segundo seu conteúdo.

A Tabela 1 apresenta a caracterização dos participantes do estudo. Pode-se notar que a porcentagem de mulheres (80%) superou a de homens (20%) e que a faixa etária predominante se encontra entre 36 a 60 anos (80%). O tempo de diagnóstico mais prevalente foi entre três meses a um ano (75%). A maior parte dos participantes apresentava sintomas leves (n=18, 90%) e 30% apresentavam alguma alteração metabólica.

Tabela 1
Caracterização dos participantes

Para entender melhor essa decisão de recusa do tratamento cirúrgico, buscou-se a técnica das entrevistas individuais, proporcionando um ambiente adequado e livre para que o participante tivesse plena oportunidade de expressão, evitando-se também interferir em sua reflexão.

A Tabela 2 apresenta sumário das respostas à pergunta: "quais eram os seus sintomas no momento do diagnóstico e os sintomas atuais?".

Tabela 2
Sintomas mais comuns apresentados pelos participantes

As queixas relacionas à distensão abdominal, náuseas, vômitos, dispepsias, intolerância alimentar, dores em epigástrio e intestinais compuseram o universo de sintomas que, muitas vezes, levavam o indivíduo a procurar especialistas em gastroenterologia relatando queixas vagas que, muitas vezes, não permitiam o diagnóstico correto de colelitíase ou, nos exames só eram encontrados distúrbios funcionais, "gastrite" ou "colite" e a ultrassonografia era sempre normal.

A pergunta seguinte inqueria: "qual(is) foi(ram) o(s) exame(s) realizado(s) para o diagnóstico da colelitíase?" A ultrassonografia foi o exame mais utilizado no diagnóstico (90% dos casos) seguido pela tomografia de abdome em 10% e nestes casos indicada por haver suspeita de complicações, como pancreatite e dilatação das vias biliares.

"Quem indicou o tratamento cirúrgico para a colelitíase?" Médicos de serviços de emergência indicaram-na em 25% dos casos, e os outros 75% os médicos assistentes. A indicação correta do tratamento foi feita na totalidade dos casos, mas os pacientes procuraram outros profissionais na esperança de diagnóstico ou proposta de tratamento diferente.

A pergunta seguinte "O que você sabe sobre a sua doença?" evidenciou que 55% expressam grande conhecimento a ponto de descrevê-la com detalhes, incluindo as complicações como pancreatite, cálculo em região de colédoco, perfurações de vesícula e outras complicações, mas mesmo assim não queriam operar. Os outros 45% tinham pouco ou nenhum conhecimento sobre sua doença.

Com relação à pergunta "O que você espera acontecer para operar?", a maioria respondeu que esperava chegar ao quadro de urgência (90%). Esperavam decisão "alheia da medicina" ou "imposição do destino", resultando nas complicações próprias da doença que os "obrigaria" a serem submetidos ao tratamento cirúrgico. Mesmo sabendo do maior risco, preferiram-nas à decisão imposta.

"Quais são seus motivos para não realizar o tratamento cirúrgico?" A maioria (65%) relatava ter medo da anestesia ou de suas complicações e 35% justificam sua decisão por histórico de experiências traumáticas, sejam pessoais ou com pessoas de sua convivência. Alguns também já tiveram contato com a morte ou sofrimento de um ente querido, demonstrando não somente medo, mas também raiva e pouca esperança. A análise das entrevistas também revelou existirem algumas preocupações justificadas e que deveriam ser esclarecidas em um documento escrito, auxiliando-os na decisão terapêutica. Dentre estas destacam-se: 1) a volta ao trabalho sem restrições; 2) retorno à atividade sexual; 3) alimentação; 4) doenças comumente associadas, tais como diabete melito, hipertensão arterial, hipotireoidismo que exigem o uso contínuo de medicamentos também constituem preocupação frequente.

O Termo de Consentimento Esclarecido e Informado

O documento do CBCD traz informações esclarecedoras sobre o procedimento cirúrgico; mas, notou-se que muitas das questões levantadas nas entrevistas deste trabalho ainda ficaram em aberto. Assim, a partir do original, que a pedido do CBCD não pôde ser copiado em sua íntegra, resultou o modelo da Figura 2 como proposta para ser utilizado pelos pacientes com colelitíase.

Figura 2
Termo Consentimento Esclarecido Informado adaptado para este estudo a partir do divulgado pelo CBCD

Evolução clínica dos participantes do estudo

Embora todos os participantes, em princípio, se recusassem a realizar a operação, mais da metade já foi operada. A maioria ocorreu por complicações agudas da doença (n=8, 40%) e os demais decidiram operar eletivamente (n=5, 25%).

DISCUSSÃO

Apesar do termo de consentimento esclarecido e informado ser o mais informativo e completo possível, ele não é definitivo e nem desobriga o médico de uma participação efetiva, esclarecendo eventuais dúvidas dos pacientes, revendo e discutindo pontos nos quais os pacientes tenham dificuldades, dando tempo para que pensem, remarcando novas consultas para que retomem o assunto, enfim, participando efetivamente do processo e não apenas assinando-o. Nesse sentido, a relação médico paciente é de grande importância, porque ela nos fortalece e nos aproxima de nossos pacientes, deixando-os menos ansiosos quanto aos riscos da operação e auxiliando-os em seu enfrentamento perante a situação nova que a procedimento cirúrgico traz.

Este estudo utilizou uma amostra de pacientes que se assemelha à população geral dos portadores de colelitíase33. Goffi F. Técnica cirúrgica: bases anatômicas, fisiopatológicas e técnicas da cirurgia. Rio de Janeiro: Atheneu; 2006. p. 112-23. , 99. Loureiro ER, Klein SC, Pavan CC, Almeida LD, Silva FH, Paulo DN. Laparoscopic cholecystectomy in 960 elderly patients. Rev Col Bras Cir. 2011;38(3):155-60. , 1010. Meirelles-Costa AL, Bresciani CJ, Perez RO, Bresciani BH, Siqueira SA, Cecconello I. Are histological alterations observed in the gallbladder precancerous lesions? Clinics. 2010;65(2):143-50. , 1717. Santos JS, Sankarankutty A, Salgado Júnior W, Kemp R, Modena J, Elias Júnior J, et al. Colecistectomia: aspectos técnicos e indicaçõespara o tratamento da litíase biliar e das neoplasias. Medicina (Ribeirão Preto). 2008;41(4):449-64.. O modelo de estudo qualitativo, baseado na análise de entrevista com roteiro pré-estabelecido permitiu explorar as causas que levaram alguns os pacientes a recusar ou adiar sem justificativa a operação. Os dados obtidos mostraram que a maioria dos participantes tinha bom conhecimento da doença e de suas complicações. Eles relataram também que foram bem esclarecidos pelos seus médicos no processo do diagnóstico e de acompanhamento, porém optaram por protelar a cirurgia, justificando esta decisão principalmente pelo medo da anestesia, do ato cirúrgico e do pós-operatório. Entretanto, outras preocupações contribuem para que tenham este comportamento, entre elas a preocupação antecipada em sentir dor e ter outros sintomas que possam afetar seus hábitos de vida, deixando, muitas vezes, o procedimento para uma situação de emergência inadiável, o que pode prejudicar a resolução da sua doença.

Durante o processo de análise deste estudo entendeu-se que os pacientes que irão se submeter a um procedimento cirúrgico, de forma geral e em particular os que têm dificuldade em decidir-se pelo tratamento cirúrgico, necessitam ser completamente instruídos, sobretudo quanto ao que cerca o procedimento, ou seja, as informações das causas da doença, de suas possibilidades terapêuticas, dos riscos e benefícios do tratamento proposto e das mudanças da rotina do indivíduo no pré e pós-operatório.

Embora o medo - principal motivo para recusa ao tratamento cirúrgico - não seja sentimento racional, entende-se que oportunizar aos pacientes material de esclarecimento detalhado com explicações técnicas em linguagem dirigida ao leigo, pode ser parte de um processo de esclarecimento e desmistificação de tudo aquilo que cerca o procedimento, ajudando-os a aceitar a operação. Este estudo traz proposta de um termo de consentimento esclarecido e informado com todas as informações sobre a operação, seus riscos, pré e pós-operatório, assim como figuras em formato amigável que pretendem ajudar o paciente na sua decisão. Recentemente, associações e serviços de especialistas começaram a utilizar o Termo de Consentimento Esclarecido e Informado que instrui e informa o paciente e familiares sobre o procedimento a ser realizado, mas seu objetivo principal é salvaguardar os profissionais envolvidos no procedimento de futuras demandas por eventuais complicações inerentes ao procedimento e mesmo por erro médico.

Apesar do termo de consentimento esclarecido e informado ser o mais informativo e completo possível, ele não é definitivo e nem desobriga o médico de participação efetiva, esclarecendo eventuais dúvidas, revendo e discutindo pontos nos quais os pacientes tenham dificuldades, dando tempo para que pensem, remarcando novas consultas para que retomem o assunto, enfim, participando efetivamente do processo e não apenas assinando-o. Kubler-Ross88. Kubler-Ross E. On death and dying: what the dying have to teach doctors, nurses, clergy, and their own families. New York: Scribner; 1997. introduziu o conceito de que ao lidar-se com situações estressantes tais como perdas, luto, tragédias ou doenças incuráveis passamos por diferentes estágios até chegarmos à aceitação, estágio mais avançado. Esta pesquisadora definiu os cinco estágios mais comuns deste processo que são a "negação", "raiva", "barganha", "depressão" e "aceitação"88. Kubler-Ross E. On death and dying: what the dying have to teach doctors, nurses, clergy, and their own families. New York: Scribner; 1997.. A autora sustenta que todas as pessoas submetidas à estas situações apresentam pelo menos duas destas fases, que nem sempre ocorrem nesta ordem, podendo também haver avanços e retrocessos2121. Zen OP, Brutscher SM. Humanização: enfermeira de centro cirúrgico e o paciente cirúrgico. Enfoque. 1986;14(1):4-6.. Nesse sentido, a relação médico-paciente é de grande importância, porque ela fortalece e aproxima dos pacientes, deixando-os menos ansiosos quanto aos riscos da operação e auxiliando-os em seu enfrentamento perante a situação nova que ela traz. Na experiência com este pequeno grupo de pacientes, que no início não aceitaram o tratamento cirúrgico, uma parte deles (25%) acabou submetendo-se à operação eletivamente, ou seja, alcançaram com a ajuda do médico a decisão mais acertada.

Evidentemente tal instrumento não deve ser a única forma de auxílio ao paciente. Neste sentido, estabelecer uma boa relação de confiança médico-paciente e o auxílio de profissionais capacitados a trabalhar estes traumas anteriores são fundamentais para dar segurança ao paciente neste momento.

CONCLUSÕES

Todos os pacientes que recusaram ou adiaram a operação manifestaram medos diversos - inclusive o de morrer - e sentimento de perda do autocontrole. Esses sentimentos não ocorreram por falta de informação. Foi possível identificar também que outros fatores pessoais contribuíram para aumentar a insegurança e que contribuíram para a tomada de decisão de submeter-se ou não ao tratamento cirúrgico. A proposta apresentada de utilizar-se termo de consentimento esclarecido e informado, incorporando nele todas as informações e preocupações próprias do leigo, pode ajudar na tomada de decisão. Além disso, a boa e duradoura relação médico-paciente e a disponibilidade de tempo maior para a tomada de decisão foram fatores importantes para que boa parte dos participantes tivesse aceito realizar a operação de forma eletiva, ulteriormente ao aconselhamento informado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2013
  • Aceito
    16 Jan 2014
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