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Reflexões sobre a dermatologia atual no Brasil

EDITORIAL

Reflexões sobre a dermatologia atual no Brasil

A Dermatologia, acompanhando o progresso geral da Medicina, teve, nas últimas décadas, grande crescimento, não somente quantitativo como qualitativo. O conhecimento dos mecanismos patogênicos das dermatoses foi muito ampliado, bem como se incorporaram novas terapêuticas que têm beneficiado de maneira crescente os portadores de dermatoses.

A Dermatologia não somente cresceu mas transformou- se e, de especialidade puramente clínica, tornou- se especialidade médico-cirúrgica. Além disso, em seu bojo, surgiu e cresceu rapidamente nova área de atuação, a Dermatologia Cosmética, que desperta enorme interesse da coletividade e da mídia à luz dos padrões culturais atuais de grande valorização da juventude e da aparência física.

A expansão da especialidade, como todos os crescimentos, trouxe inúmeros fatores positivos e, paralelamente, alguns problemas pré-existentes ampliaram-se e novos problemas surgiram.

Analisemos inicialmente as conseqüências do crescimento da especialidade no exercício profissional. Com a ampliação do campo de atuação do dermatologista, um número crescente de jovens médicos vêm sendo atraídos pela especialidade, fenômeno de ordem mundial, que vem sendo nitidamente observado entre nós. Como o número de vagas em serviços capacitados a formar verdadeiros especialistas é relativamente limitado, resulta um significativo contingente de médicos que pretendem tornar-se dermatologistas mas não conseguem vagas nestes serviços. Esta demanda crescente levou ao surgimento de cursos de especialização e pós-graduações senso lato sem as reais condições necessárias à formação de dermatologistas, mas que passam a ser a única saída para este contingente de profissionais. Isso resulta na incorporação ao mercado de trabalho de profissionais sem a obrigatória formação, que irão competir com os profissionais realmente preparados, havendo nivelamento para baixo das condições de trabalho do dermatologista. Cabe, como aliás vem sendo feito, às nossas entidades, trabalhar junto às autoridades competentes alertando para as conseqüências do problema, inclusive para a coletividade, que poderá estar sendo atendida por profissionais sem a necessária competência.

Por outro lado, o aumento de vagas nos serviços credenciados exige condições nem sempre possíveis, pois a maioria das instituições luta com problemas econômicos para a manutenção de seu nível de qualidade e, além disso, a ampliação desmedida de vagas certamente prejudicaria a formação dos especializandos. Já é palpável, dentro das perenes e habituais distorções da distribuição de médicos no país, a saturação do mercado de trabalho para os dermatologistas. Em grandes centros, já se verifica que as empresas de saúde complementar não mais estão credenciando novos dermatologistas que têm como opção trabalhar para colegas credenciados ou mesmo para colegas que dão caráter empresarial à sua atividade profissional, condições que nem sempre caminham dentro dos desejáveis princípios éticos de relacionamento entre colegas.

O problema é extremamente complexo, mas tornam-se necessários estudos visando adequar a quantidade de especialistas às reais necessidades do mercado pois o número de colegas que recebem o título de especialista através do exame realizado pela nossa Sociedade cresce continuamente e a colocação dos profissionais recém habilitados está progressivamente mais difícil.

Os problemas do mercado de trabalho dos médicos, em nosso país, são grandes. Os custos da Medicina, considerando-se os avanços tecnológicos, multiplicaram-se ao longo dos últimos anos e, mesmo nos países desenvolvidos, o custeio da saúde é problemático, fato que se agrava sobremodo nos países subdesenvolvidos como o nosso. As remunerações praticadas pelo SUS são absolutamente insuficientes e o sistema de saúde complementar torna-se cada dia mais importante pelo contingente de brasileiros que cobre e, obrigatoriamente, é gerido como qualquer negócio que somente será viável se houver lucro. Parte deste lucro, obviamente, origina-se da remuneração, em geral péssima e injusta para o médico. Esta situação faz com que os médicos busquem soluções alternativas para melhorar seus ganhos pois hoje, segundo os estudos existentes, a maioria dos médicos trabalha em empregos públicos ou privados, em geral mal remunerados ou atende doentes das empresas de saúde em seus consultórios, também a preços absolutamente inadequados, sendo obrigados a atender um número muito grande de doentes, com prejuízo da qualidade do atendimento, para conseguir seu sustento. A clínica privada decresce progressivamente e é quase inacessível aos colegas jovens.

Neste contexto, assumiu grande importância, no âmbito da Dermatologia, a Dermatologia Cosmética, pois a cultura do momento e a mídia têm valorizado extremamente esta área de atuação e esta atividade não é coberta pelos planos de saúde permitindo melhor remuneração ao médico. Isto explica a grande atração que este setor da dermatologia, paralelamente à cirurgia dermatológica, também melhor remunerada, vem exercendo sobre o dermatologista jovem.

Realmente, a Dermatologia Cosmética é mais um instrumento para o dermatologista no seu exercício profissional e seu ensino deve ser encorajado mas, dentro das limitações do que representa no conjunto da especialidade e em bases científicas rigorosas, o que, de início, implica em conhecimento sólido da biologia, fisiologia e patologia cutâneas. As técnicas de Dermatologia Cosmética podem ser aprendidas em tempos variáveis, de semanas a meses, e não somente pelo dermatologista mas por outros médicos. Porém, a verdadeira formação dermatológica demanda anos e o domínio das bases clínicas da dermatologia é que diferenciará o dermatologista nas indicações e utilização dos procedimentos cosméti-cos. É preocupante como surgem ofertas de ensino destes procedimentos fora dos hospitais com residência credenciada e mesmo a busca por estes cursos nos congressos da especialidade. Somente o real domínio da Dermatologia Clínica permitirá que enfrentemos a concorrência de outros especialistas que, da mesma forma, lutando por melhores ganhos, já estão invadindo esta área de atuação do dermatologista.

É, portanto, essencial, a conscientização dos jovens especializandos em dermatologia de que a Dermatologia Cosmética é apenas a ponta do "iceberg" que representa a especialidade. Assim como, em relação à Cirurgia Dermatológica, não é suficiente apenas o domínio da técnica, pois outros especialistas podem competir conosco, mas nunca o poderão no conhecimento completo da especialidade, que é o único elemento no qual não temos competidores desde que adequadamente formados. No caso da Cirurgia Dermatológica, que tem amplas fronteiras com a cirurgia plástica, ainda que respeitando-se as habilidades individuais, a formação cirúrgica do plástico é muito mais extensa, envolvendo inclusive anos de cirurgia geral. Poderemos pois, na melhor das hipóteses, dispor de condições técnicas semelhantes às do cirurgião plástico, mas o conhecimento das doenças da pele passíveis de tratamento cirúrgico sem dúvida nos diferenciará, possibilitando melhores indicações, condutas e resultados para estas afecções, por vezes até permitindo outras opiniões sobre tratamentos cirúrgicos que não a cirurgia clássica. Portanto, para que sejamos bons cirurgiões dermatológicos precisamos, antes de tudo, sermos bons dermatologistas.

Considerando-se que é essencial a formação do dermatologista como um todo, avulta a necessidade do conhecimento básico de clínica dermatológica irradiado para as outras áreas de atuação, como os procedimentos cosméticos e a cirurgia dermatológica e sempre complementado pela histopatologia e até mesmo pelas bases científicas da pesquisa. A verdadeira formação do dermatologista deve ser feita nos hospitais credenciados, dentro de um conjunto planificado que equacione racionalmente e hierarquicamente as áreas de atuação da especialidade, inclusive considerando-se os procedimentos cosméticos básicos que devem ser do domínio do especialista. Pela própria evolução da Dermatologia, é evidente que se necessita de uma avaliação contínua dos programas de residência para que se ajustem as necessidades de formação de profissional habilitado a atender os problemas dermatológicos da coletividade.

A propósito, parece-nos evidente que, com todo o crescimento da Dermatologia em suas áreas de atuação e sem entrar na discussão do ano obrigatório de Clínica Médica, os dois anos atuais de Residência em Dermatologia são insuficientes para que se adquiram as habilidades exigidas do dermatologista. Acreditamos que, em futuro próximo, a SBD deva realizar gestões junto a Comissão Nacional de Residência Médica para que se acrescente um ano mais à residência em Dermatologia.

É essencial que a coletividade dermatológica defina muito precisamente quais as habilidades que hoje deve possuir o dermatologista para que os programas formadores estejam capacitados a esta preparação. Por exemplo, particularmente não considero do âmbito da dermatologia a blefaroplastia, mas, se for entendimento da coletividade dermatológica que este procedimento seja de nossa alçada, nossos programas credenciados devem ter condições de ensino de modo a permitir que o residente aprenda tal procedimento. Todos os programas de residência devem propiciar, obrigatoriamente, o aprendizado de tudo que a coletividade dermatológica considere do âmbito da especialidade.

Saindo de considerações puramente profissionais, analisemos também alguns problemas da esfera acadêmica que a nossa dermatologia enfrenta hoje. A pesquisa científica em Dermatologia no Brasil cresce, mas com enormes limitações de ordem econômica quanto a equipamentos, insumos e pessoal. As nossas maiores possibilidades de produção são na área clínica, particularmente epidemiologia clínica, envolvendo cortes significativas de casos estudados, especialmente de doenças de importância em nosso meio, em que a experiência dos dermatologistas brasileiros é extremamente importante. A comunidade científica está cada vez mais rigorosa nas exigências para aceitação de publicações. Dá-se grande ênfase e prioridade para os trabalhos científicos que utilizam ciências básicas aplicadas à especialidade, como genética e biologia molecular. É obvio que os recursos econômicos exigidos pela pesquisa são cada vez maiores e que, com exceções, enfrentamos dificuldades tanto em recursos materiais como em recursos humanos. Devemos contornar estas dificuldades através de trabalho conjunto com maximização de recursos através de programas de pesquisa interdepartamentais, interinstitucionais e inclusive com instituições do exterior. Nossa vocação até então predominantemente clínica necessita tornar-se progressivamente abrangente; isto é, envolvendo clínica e pesquisa básica para que sejamos reconhecidos pela comunidade científica internacional.

A propósito destas questões, a dermatologia exige maior representação nas instituições avaliadoras, pois temos enfrentado grandes problemas nas avaliações de nossos cursos de pós-graduação, que, nem sempre, refletem nossa realidade.

É imprescindível que consigamos manter os cursos de pós-graduação senso estrito para o crescimento científico da especialidade, e esta sobrevivência está diretamente ligada ao nosso desempenho, que deve melhorar, e também aos critérios de avaliação, que devem atentar para as nossas especificidades.

Outro ponto acadêmico fundamental, pelo qual é necessário lutar em todas as Escolas Médicas, é a existência de Departamentos de Dermatologia e não somente Disciplinas inseridas nos Departamentos de Clínica Médica. A existência de Departamentos de Dermatologia favorece o crescimento da especialidade pela autonomia que representa nos aspectos curriculares, abertura de concursos para docentes e representatividade nos órgãos e Comissões das Faculdades e Universidades.

Outra questão importante é a necessidade de participação cada vez maior de dermatologistas representativos de nossa sociedade nas esferas de Associações Médicas e Órgãos Governamentais relacionados à Medicina, particularmente na Saúde Pública, pois existe um grande contingente de problemas sanitários envolvendo a medicina cutânea.

Em síntese, é preciso que solidifiquemos, cada vez mais, as bases da dermatologia no âmbito das medicina geral, no âmbito da formação do dermatologista, reconhecendo e investindo na essência da especialidade, aprimorando a Residência Médica, reivindicando nossa maior participação nas estruturas avaliadoras da graduação e da pós-graduação e nas estruturas ligadas ao exercício profissional e à saúde pública. Paralelamente, não podemos nos esquecer que só haverá sucesso para o dermatologista e para a comunidade por ele assistida se trabalharmos com dermatologistas tecnicamente bem formados e eticamente irrepreensíveis.

Evandro Rivitti

Professor Titular de Dermatologia da USP

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2006
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