Resumos
Os hormônios tireoideanos (HTs) são necessários para a diferenciação, crescimento e metabolismo de diversos tecidos de vertebrados. Seus efeitos são mediados pelos receptores do hormônio tireoideano (TRs), membros da superfamília dos receptores nucleares. Estes receptores são fatores de transcrição modulares que se ligam em seqüências específicas do DNA denominadas elementos responsivos ao TR, que são encontrados nos promotores dos genes regulados pelo HT. Os TRs são codificados por dois genes distintos, alfae beta, localizados nos cromossomos 17 e 3, respectivamente. Estas isoformas apresentam diferentes funções e sua expressão é específica para cada tecido. O TR se liga ao DNA como monômero, homodímero ou heterodímero com o receptor de retinóide X (RXR). Além disso, o TR modula a atividade transcricional (repressão ou ativação) através da interação com correpressores e co-ativadores, na ausência e na presença do T3, respectivamente. A compreensão do mecanismo molecular da ação do receptor do hormônio tireoideano e a definição de sua estrutura cristalográfica contribuirão para a aquisição de novos conceitos envolvidos na transcrição e nos distúrbios hormonais presentes nas doenças endócrinas, assim como facilitará o desenho de novas drogas, agonistas ou antagonistas, com grande valor terapêutico.
Receptores nucleares; Receptor do hormônio tireoideano; Co-reguladores; Dimerização; Região de dobradiça; Síndrome de resistência ao hormônio tireoideano
Thyroid hormones (TH) are involved in normal differentiation, growth, and metabolism in several tissues of all vertebrates. Their actions are mediated by the TH receptors (TRs), members of the nuclear hormone receptor superfamily. These receptors are transcription factors that bind to DNA on specific sequences, the TR response element (TREs), in promoters of target genes. Two genes encode TRs, alpha e beta, located in chromosomes 17 and 3, respectively. These isoforms show different functions and exhibit a tissue specific expression. TRs function as monomers, homodimers or heterodimers with retinoid X receptor (RXR) and modulate transcription activity (repression or activation) by interacting with co-repressor and co-activators, which associate with TR in the absence or presence of T3, respectively. Understanding the molecular mechanism of TR action and the definition of its crystallographic structure will provide new insights into transcription mechanisms and will facilitate the design of new drugs with greater therapeutic value.
Nuclear receptor; Thyroid hormone receptor; Co-regulators; Dimerization; Hinge region; Thyroid hormone resistance
REVISÃO
Mecanismo molecular da ação do hormônio tireoideano
Molecular mechanism of thyroid hormone action
Gustavo B. Barra; Lara F.R. Velasco; Rutnéia P. Pessanha; Alessandra M. Campos; Fanny N. Moura; Sandra M.G. Dias; Igor Polikarpov; Ralff C.J. Ribeiro; Luiz Alberto Simeoni; Francisco A.R. Neves
Laboratório de Farmacologia Molecular, Departamento de Ciências Farmacêuticas, Faculdade de Ciências da Saúde, Universidade de Brasília, Brasília, DF; Instituto de Física de São Carlos (IP), Universidade de São Paulo, São Carlos, SP; e Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, Campinas, SP
Endereço para correspondência Endereço para correspondência Francisco de Assis Rocha Neves Laboratório de Farmacologia Molecular Universidade de Brasília Caixa Postal 4473 70919-970 Brasília, DF Fax: (61) 347-4622 e.mail: chico@unb.br
RESUMO
Os hormônios tireoideanos (HTs) são necessários para a diferenciação, crescimento e metabolismo de diversos tecidos de vertebrados. Seus efeitos são mediados pelos receptores do hormônio tireoideano (TRs), membros da superfamília dos receptores nucleares. Estes receptores são fatores de transcrição modulares que se ligam em seqüências específicas do DNA denominadas elementos responsivos ao TR, que são encontrados nos promotores dos genes regulados pelo HT. Os TRs são codificados por dois genes distintos, a e b, localizados nos cromossomos 17 e 3, respectivamente. Estas isoformas apresentam diferentes funções e sua expressão é específica para cada tecido. O TR se liga ao DNA como monômero, homodímero ou heterodímero com o receptor de retinóide X (RXR). Além disso, o TR modula a atividade transcricional (repressão ou ativação) através da interação com correpressores e co-ativadores, na ausência e na presença do T3, respectivamente. A compreensão do mecanismo molecular da ação do receptor do hormônio tireoideano e a definição de sua estrutura cristalográfica contribuirão para a aquisição de novos conceitos envolvidos na transcrição e nos distúrbios hormonais presentes nas doenças endócrinas, assim como facilitará o desenho de novas drogas, agonistas ou antagonistas, com grande valor terapêutico.
Descritores: Receptores nucleares; Receptor do hormônio tireoideano; Co-reguladores; Dimerização; Região de dobradiça; Síndrome de resistência ao hormônio tireoideano
ABSTRACT
Thyroid hormones (TH) are involved in normal differentiation, growth, and metabolism in several tissues of all vertebrates. Their actions are mediated by the TH receptors (TRs), members of the nuclear hormone receptor superfamily. These receptors are transcription factors that bind to DNA on specific sequences, the TR response element (TREs), in promoters of target genes. Two genes encode TRs, a e b, located in chromosomes 17 and 3, respectively. These isoforms show different functions and exhibit a tissue specific expression. TRs function as monomers, homodimers or heterodimers with retinoid X receptor (RXR) and modulate transcription activity (repression or activation) by interacting with co-repressor and co-activators, which associate with TR in the absence or presence of T3, respectively. Understanding the molecular mechanism of TR action and the definition of its crystallographic structure will provide new insights into transcription mechanisms and will facilitate the design of new drugs with greater therapeutic value.
Keywords: Nuclear receptor; Thyroid hormone receptor; Co-regulators; Dimerization; Hinge region; Thyroid hormone resistance
A IMPORTÂNCIA DOS HORMÔNIOS tireoideanos (HTs) no desenvolvimento, homeostase, proliferação e diferenciação celular tem sido bem documentada. Sabe-se que, nos mamíferos, os HTs atuam em todos os órgãos e vias metabólicas e seus principais efeitos incluem o desenvolvimento de vários tecidos, como o do sistema nervoso central, consumo de oxigênio, regulação da temperatura corporal, freqüência cardíaca e também o metabolismo de carboidratos, proteínas e gorduras. Além disso, participam da síntese e a degradação de muitos outros fatores de crescimento e hormônios, o que resulta em outros efeitos secundários (1,2).
A principal forma do hormônio tireoideano secretada pela glândula tireóide é a 3,5,3',5'-tetraiodo-L-tironina (tiroxina ou T4) e uma menor quantidade é secretada como 3,5,3'-triiodotironina (T3), a forma ativa do hormônio. O total plasmático de T4 é cerca de 45 vezes maior que o de T3 (90nM versus 2nM) (3) e a principal fonte de produção de T3 ocorre através da conversão de T4 em T3 por meio da 5' desiodação de T4 nos tecidos periféricos promovida pelas desiodases (1,3).
Uma vez secretados, os hormônios tireoideanos circulam comumente ligados às proteínas plasmáticas, e somente 0,03% de T4 e 0,3% de T3 estão livres. A ligação destes hormônios às proteínas plasmáticas aumenta suas meias-vidas e assegura uma distribuição regular do hormônio nos tecidos alvos. A entrada e a saída do hormônio nas células ocorre, em uma menor parcela, por difusão passiva, e outra principal através de transportadores específicos que regulam a captação e o efluxo dos hormônios tireoideanos (4,5). No interior da célula, o T3 liga-se a receptores específicos localizados no núcleo, os receptores do hormônio tireoideano (TRs). Os TRs medeiam a ação do hormônio ligando-se diretamente na região promotora dos genes alvos, regulando a transcrição em todos os tecidos de mamíferos (5).
Superfamília dos Receptores Nucleares
Os TRs pertencem à superfamília de receptores nucleares que compreende 49 genes que codificam 75 proteínas diferentes, que estão envolvidas na transdução de sinais hormonais extracelulares em respostas transcricionais (6). A identificação de receptores em insetos como membros da superfamília sugere uma origem comum destes receptores e, claramente, demonstra que a sua evolução antecede a divergência de vertebrados e invertebrados (7).
Os membros da superfamília de receptores nucleares são fatores de transcrição dependentes do ligante e atuam por ligarem-se a seqüências específicas no DNA, denominadas elementos responsivos ao hormônio (HRE). Os HREs geralmente estão localizados na região promotora dos genes alvos, são específicos para cada receptor e possuem duas cópias imperfeitas de um hexanucleotídeo, que podem estar arranjadas em diferentes orientações, com espaçamento e seqüências flanqueadoras diferentes. Os receptores nucleares ligam-se aos HREs de diversas formas, podendo atuar como monômeros, homodímeros ou heterodímeros (5,8,9).
A superfamília dos receptores nucleares incluem os receptores para esteróides, vitamina D, retinóides, hormônios tireoideanos e prostaglandinas, além de outros receptores órfãos, em maior número, que não possuem ligantes conhecidos no momento de sua identificação (10). Para alguns destes receptores, os ligantes têm sido identificados, por exemplo, como o ácido 9-cis-retinóico para o receptor do retinóide X (RXR), oxiesteróis para os receptores hepáticos X (LXR), ácidos biliares para os receptores de farnesóides X (FXR), ácidos graxos para os receptores de proliferadores peroxissomais (PPAR), pregnanos para os receptores de pregnanos X (PXR) e androstanos para os receptores constitutivos de androstanos (CAR) (11,12).
Os receptores para os hormônios esteróides formam uma subclasse da superfamília de receptores nucleares (9). Na ausência do ligante, os receptores dos esteróides glicocorticóides (GRs), mineralocorticóides (MRs), androgênios (ARs), estrogênio (ER) e progesterona (PR) estão associados em um complexo com proteínas de choque térmico (HSPs) no citoplasma e, em alguns casos, no núcleo da célula. A ligação do hormônio dissocia os receptores deste complexo e induz a formação de homodímeros que se dirigem ao núcleo onde se ligam aos seus respectivos HREs, regulando a transcrição (5,13).
Outra subclasse da superfamília de receptores nucleares é representada pelos receptores dos hormônios tireoideanos (TRs), do ácido retinóico (RAR), da vitamina D (VDR) e dos proliferadores peroxissomais (PPAR), que formam heterodímeros com o RXR (9). Esses receptores, na ausência do hormônio, estão localizados predominantemente no núcleo, em solução ou ligados ao DNA. Quando associados ao DNA, estão predominantemente ligados a seqüências de repetições diretas (DRs) do hexâmero AGGTCA (AGGTCA N AGGTCA), onde 'N' é o número de bases que separa cada hexâmero (5). A capacidade de cada receptor reconhecer os HREs constituídos por DRs é chamada de regra 1 a 5 (figura 1). Dessa forma, o PPAR e o RXR se ligam a uma DR espaçada por uma base (DR-1), o RAR se liga a DRs espaçadas por duas ou cinco bases (DR-2 e DR-5), o VDR a uma DR espaçada por três bases (DR-3) e o TR a uma DR espaçada por quatro bases (DR-4) (5,10,14). O RAR também pode se ligar a uma DR-1 heterodimerizado com o RXR (15). Além das DRs, os elementos responsivos aos hormônios podem estar na forma de palíndromos e palíndromos invertidos (5). Chama a atenção que alguns receptores órfãos podem se ligar, como monômeros, a uma única seqüência de hexanucleotídeos (12).
Na ausência do ligante, os membros da subclasse dos receptores dos hormônios tireoideanos ligam-se ao DNA na forma de homo ou heterodímeros. Esses dímeros, por sua vez, se associam a outras proteínas conhecidas como correpressores, pois atuam reprimindo a transcrição gênica. Com a ligação do hormônio ao receptor, observa-se formação predominante de heterodímeros com o RXR, seguida de dissociação das proteínas correpressoras e a associação com proteínas co-ativadoras que passam agora a estimular a transcrição dos genes alvos (3,5).
Domínios Funcionais dos Receptores do Hormônio Tireoideano
A análise estrutural e funcional do TR e de outros receptores nucleares demonstram que esta superfamília exibe uma estrutura modular com domínios funcionais distintos. Os três principais domínios são: o amino-terminal, o de ligação ao DNA (DBD) e o de ligação ao ligante (LBD). Existe, também, uma pequena região que conecta o DBD ao LBD, que é conhecida como dobradiça hinge (figura 2) (5).
O domínio amino-terminal é extremamente variável entre os membros da superfamília dos receptores nucleares, tanto no tamanho quanto na seqüência de aminoácidos, e exibe uma função de ativação transcricional independente do ligante, denominada função de ativação 1 (AF-1) (16). Para o TR, sua importância ainda não é totalmente conhecida, pois alguns estudos mostraram que a deleção do domínio amino-terminal tem pouco efeito sobre a resposta transcricional positiva ao T3 (5,17).
O DBD é o domínio mais bem conservado entre todos os receptores nucleares e tem como função principal a ligação ao DNA. Este domínio situa-se na porção central dos receptores e é organizado por dois segmentos estruturais conhecidos como dedos de zinco. Nestes segmentos, quatro resíduos de cisteína de cada dedo formam complexos coordenados por íons de zinco, formando duas estruturas independentes em forma de alça (10). Os dois dedos de zinco são separados por uma seqüência de 15 a 17 aminoácidos. Três aminoácidos da base do primeiro dedo representam a região chamada de caixa P (P-box). Estes aminoácidos são responsáveis pelo reconhecimento do elemento responsivo específico para cada receptor (18), ao passo que uma seqüência de cinco aminoácidos, localizada entre a primeira e a segunda cisteína na base do segundo dedo, é denominada de caixa D (D-box), uma região importante para a dimerização do receptor (5,18). Os termos P-box e D-box estão relacionados com a posição proximal e distal dessas regiões, respectivamente (figura 3) (8).
O domínio de ligação do hormônio ou ligante é menos conservado que o DBD, refletindo a variedade de ligantes que atuam nestes receptores. Este domínio localiza-se na região carboxi-terminal e possui várias funções, como a homo e heterodimerização do receptor, localização nuclear, dissociação das HSPs (7) e interação com proteínas correpressoras e co-ativadoras (19,20). Além dessas funções, o LBD contém uma superfície que é fundamental para a ativação transcricional, que se forma com a ligação do hormônio ao receptor. Após a ligação do hormônio, essa região, denominada função de ativação 2 (AF-2), passa a se interagir com os co-ativadores, que permitirão a formação do complexo protéico envolvido na ativação da transcrição (17).
A região que conecta o DBD ao LBD, e que age como uma dobradiça, é extremamente variável entre os diferentes receptores (3). No caso específico do TR, a principal função desta região seria promover o movimento de rotação do DBD em relação ao LBD, possibilitando que o TR se ligue nos TREs com diferentes orientações (5,8,10,21).
A identificação desses domínios funcionais dentre os membros da superfamília de receptores nucleares foi baseada na comparação das seqüências dos receptores, análises mutacionais (18) e, mais recentemente, na determinação da estrutura cristalográfica do DBD (associado ao DBD do RXR em DR-4) e do LBD do TR ligado ao hormônio (22-24).
Receptores dos Hormônios Tireoideanos
Após a identificação dos cDNAs codificando os receptores de glicocorticóide (GRs) e estrógeno (ER) em 1985, estudos de homologia demonstraram que os TRs, clonados em 1986 a partir de bibliotecas de embriões de galinha e placenta humana, eram homólogos celulares do oncogene viral v-erbA (vírus da eritroblastose aviária) (5).
Existem dois genes distintos que codificam os TRa e TRb, que, nos humanos, localizam-se nos cromossomos 17 e 3, respectivamente. Cada um destes genes codificam várias proteínas (a1, a2, Da1, Da2, b1, b2, b3 e Db3), que são o resultado do processamento alternativo do RNA mensageiro (splicing alternativo) ou da utilização de promotores alternativos (figura 4) (25). Dessa forma, as diferentes isoformas do TR são a1, a2, b1, b2 e ß3, sendo que somente a1, b1, b2 e b3 se ligam ao hormônio. As isoformas a1 e a2 diferem somente em sua região carboxi-terminal e, por esse motivo, a isoforma a2 não se liga ao hormônio, enquanto que as isoformas b1, b2, b3 diferem em sua região amino-terminal (26). A isoforma TRb3 foi recentemente descrita em ratos (27) e, a partir da comparação das seqüências genômicas destes animais com os humanos, pode-se prever que esta isoforma está conservada entre as duas espécies (25). A isoforma TRa2, por não se ligar ao T3 pode inibir a transcrição mediada por TRb1 ou TRa1, provavelmente por competir com a ligação aos TREs e com a formação de heterodímeros com RXR (5).
A expressão dos mRNAs dos TRs varia com o desenvolvimento e com a diferenciação celular (26). Os mRNAs do TRa1, TRa2 e TRß1 são expressos em quase todos os tecidos, ainda que em níveis diferentes. Assim, o TRa1 é abundante nos músculos esqueléticos, gordura marrom e no coração, o TRa2 é particularmente abundante no cérebro e o TRb1 é expresso em grande quantidade no fígado, rim e cérebro. Já o TRb2 é expresso principalmente na glândula pituitária e em outras áreas do cérebro (26,28). O TRDa1 e TRDa2 são encontrados principalmente no epitélio do intestino delgado, pulmão e durante os estágios precoces do desenvolvimento (25). Em ratos, o TRb3 é expresso no fígado, rim e pulmão, enquanto que o TRDb3 no músculo esquelético, coração, baço e cérebro (27). Essa expressão variada dos TRs pode constituir um mecanismo usado pelo T3 para a regulação da transcrição de forma seletiva para alguns tecidos (3).
Os TRa1, TRß1, e TRb2 possuem papéis funcionais distintos na fisiologia hormonal tireoideana. Por exemplo, a síndrome de resistência ao hormônio tireoideano é causada por mutações no LBDs do TRb(29). Por razões ainda desconhecidas, nenhum paciente com mutações no TRa foi descrito. Acredita-se que estas mutações, quando ocorrem nas células germinativas, não são detectadas por serem letais, inconseqüentes, ou por não estarem associadas a nenhuma anormalidade encontradas na síndrome de resistência ao hormônio tireoideano. Porém, em algumas neoplasias, como carcinoma hepatocelular, foram encontrados TRa mutantes capazes de exercerem ação dominante negativa (30). Além disto, camundongos com deleção do TRb apresentam sinais semelhantes à resistência ao hormônio tireoideano, como, por exemplo, elevação dos níveis séricos de T3, T4 e TSH. Entretanto, camundongos com deleção do TRa1 possuem níveis baixos de T4 e TSH circulante (31). Possivelmente, as mutações em TRa que poderiam exercer o efeito dominante negativo não seriam visualizadas, porque o controle dos níveis de TSH é dependente do TRb e não do TRa. Como podemos perceber, a importância das isoformas TRa e TRb foram evidenciadas nos modelos de animais com deleção dos genes induzida pela recombinação homóloga. Assim, o fenótipo do camundongo com deleção do TRb (TRb1 e TRb2) é caracterizado por, além dos altos níveis séricos de TSH, T4 e T3, hiperplasia da glândula tireóide, freqüência cardíaca basal elevada, má formação da cóclea (defeitos auditivos graves) e da retina. Desta forma, refletindo a ausência do TRb e os altos níveis séricos dos hormônio tireoideano, estes animais apresentam hipotireoidismo nos órgãos que predominantemente expressam o TRb (fígado e hipófise) e hipertireoidismo nos que expressam TRa (coração). Quando somente o TRß2 foi deletado, os animais apresentaram níveis elevados de T4, T3 e TSH e ausência de defeitos na audição, sugerindo que o TRb2 seja a principal isoforma reguladora dos níveis de TSH. Os camundongos com deleção do TRa1 apresentam diminuição da temperatura corporal e da freqüência cardíaca, e o TSH é normal. Já os animais com deleção de TRa, incluindo o TRa1 e a2, apresentam hipotireoidismo, má formação intestinal, retardo do crescimento e morrem logo após o nascimento, sugerindo um papel importante do TRa2, que não se liga ao T3, na modulação da transcrição. Entretanto, a deleção isolada do TRa2 não diminui a sobrevida dos animais (3,25).
Considerando que as deleções isoladas de TRb1 e TRa1 não provocaram grandes distúrbios, é possível que cada isoforma possa compensar, de certa forma, a ausência da outra. Este fato foi comprovado em camundongos com deleção do TRß, no qual foi acrescentado um TRb dominante negativo (D337T), cuja expressão foi restrita à hipófise. Estes animais, quando comparados aos portadores de deleção do TRb1 isolada, apresentaram níveis significativamente maiores do TSH, cuja regulação não era suprimida por T3 (32). Estes resultados sugerem que o TRb dominante negativo inibiu o TRa remanescente na deleção isolada do TRb.
A combinação da deleção de TRb e TRa1 gerou animais com retardo do crescimento, diminuição da fertilidade, redução do conteúdo mineral e do desenvolvimento dos ossos, bradicardia e incapacidade da regulação da temperatura corpórea. Já a deleção de TRb, TRa1 e TRa2 produziu animais com um fenótipo semelhante à deleção do TRa1e TRa2, só que com alterações mais severas, incluindo a dificuldade de supressão do TSH. Estes resultados sugerem que a regulação da transcrição pelos TRs depende de todas as isoformas, mesmo daquelas que não se ligam ao T3. A explicação para todos estes achados não é clara, mas demonstra que a ausência do TR é menos prejudicial que a falta dos hormônios tireoideanos e aponta para a importância do papel da repressão na ausência do ligante (3,25).
A complexidade da importância das isoformas, e também do mecanismo de ação do TR, foi demonstrada mais recentemente com a utilização da técnica de mutação dirigida em camundongos. Shibusawa e cols. geraram animais com uma mutação específica na região do DBD (P-box), que, in vitro, elimina completamente a ligação do TRb1 ao DNA. Estes animais, de forma semelhante à deleção completa do TRb1, apresentaram distúrbio na regulação do eixo hipotálamo hipofisário caracterizada pelo aumento do TSH e hiperplasia da tireóide. Contudo, ao contrário da deleção completa do TRb1, o camundongo mutante apresentou uma audição muito próxima ao normal, pelo menos para algumas freqüências, indicando que o mecanismo de ação do TR no ouvido interno deve ser diferente dos outros tecidos (33).
Transporte dos Hormônios Tireoideanos
Para exercer seu efeito, os HTs necessitam entrar nas células. Por esse motivo, a magnitude das respostas celulares é totalmente dependente da concentração intracelular dos hormônios tireoideanos, que, por sua vez, está relacionada ao transporte de T3 e T4 na membrana plasmática das células. O controle da entrada e/ou saída de HT pode alterar sua concentração no interior da célula e, assim, ser um ponto regulador para sua ação final (34,35).
A importância do transporte e da concentração intracelular do HT como fator regulador de sua ação foi demonstrada em células derivadas de hepatoma de rato que apresentavam resistência à ação de T3 por não o acumularem em seu interior. A diminuição da concentração de T3 intracelular nestas células foi devida ao aumento do seu efluxo pela membrana plasmática (35). Experimentos posteriores em células de tireóide de ratos (FRTL-5), fibroblastos de camundongos (NIH-3T3) e em células primárias de átrio, ventrículo, rim e placenta mostraram que, tanto o influxo quanto o efluxo de HT, variam consideravelmente entre os diversos tecidos (35-37). Além disso, o transporte de HTs pode compensar a diminuição de seus níveis plasmáticos observada, por exemplo, em pacientes com insuficiência renal crônica. Assim, hemácias de pacientes urêmicos apresentam aumento do influxo e diminuição do efluxo de T3, favorecendo, ao final, o acúmulo do hormônio em seu interior (dados não publicados).
Recentemente, foi demonstrado que a hiperexpressão de proteínas transportadoras do sistema L, que estão envolvidas no influxo de T3, aumentam seu influxo para o interior da célula e, conseqüentemente, sua resposta transcricional. No sentido oposto, o bloqueio deste sistema, com inibidores específicos, reduz a concentração intracelular de T3, assim como sua ação farmacológica sobre TR (34).
Em resumo, estes resultados demonstram nitidamente a importância do influxo e do efluxo na regulação da concentração intracelular de HTs e, conseqüentemente, na modulação de sua atividade transcricional.
Mecanismo de Ação dos Receptores dos Hormônios Tireoideanos
Conforme mencionado anteriormente, os efeitos do TR na regulação da expressão gênica são inicialmente obtidos com a ligação do receptor a seqüências de DNA específicas, presentes na região regulatória dos genes alvo. Essas regiões são compostas pela seqüência hexanucleotídica "AGGTCA" (17,38,39), e podem estar organizadas em três orientações diferentes: na forma de repetição direta espaçada por 4 nucleotídeos quaisquer (DR-4), ou na forma de palíndromo invertido espaçada por seis nucleotídeos quaisquer (F2), ou, ainda, na forma de palíndromo sem nenhum espaçamento (TREpal) (figura 5) (5). Aproximadamente 30 TREs naturais já foram identificados, sendo que a maioria é DR-4, seguido pelo F2 e mais raramente o TREpal (3).
Na ausência do hormônio, os TRs se ligam ao DNA na forma de monômeros, homodímeros e, preferencialmente, como heterodímeros com o receptor RXR. A importância fisiológica da ligação de TR como homodímero ainda não está clara, principalmente na ativação da transcricão, pois, em ensaios de interação proteína DNA realizados in vitro (gel shift), foi demonstrado que a adição de T3 promove a dissociação de homodímeros de TR favorecendo, subseqüentemente, a formação de heterodímeros com o RXR (5). Este efeito ocorre com muita nitidez no elemento responsivo DR-4 (principal TRE encontrado nos genes alvo), e em menor intensidade no palíndromo invertido. Em contraste, o T3 não altera a ligação de homodímeros de TR no palíndromo (TREpal) (40). Dessa forma, o T3 em concentrações fisiológicas modifica o equilíbrio entre os TRs que se ligam ao DNA como homodímeros e heterodímeros (5). A relevância destes achados na modulação da transcrição pelo T3 ainda não está clara. Entretanto, é possível que novos estudos sobre a importância da dimerização e a melhor compreensão sobre a região de dobradiça possam contribuir para a elucidação destes achados.
Com a ligação do hormônio ao receptor, observa-se a dissociação das proteínas correpressoras e a associação com os co-ativadores que medeiam a estimulação de genes alvos (figura 6) (41,3).
Co-reguladores: Correpressores e Co-ativadores
Vários estudos têm demonstrado que TR, na sua forma de aporeceptor (não ligado ao T3), é capaz de interagir com fatores de transcrição como o TFIIB e TFIID, que são componentes chaves da maquinaria de transcrição basal (31), podendo inibir a montagem do complexo de pré-iniciação da transcrição no promotor. Desta forma, a interação do TR com os componentes da maquinaria de transcrição basal seria uma forma que o TR utilizaria para mediar a repressão basal independente de ligante (42). Por outro lado, o TR não exerce esta função isoladamente, e vários estudos sugerem que sua associação com proteínas correpressoras solúveis é critica e fundamental para o TR reprimir a transcrição basal (3). Dois dos principais correpressores para o TR são o NcoR (Nuclear Receptor Correpressor), proteína de 270kDa (43), e o SMRT (silencing mediator of retinoic acid and thyroid hormone receptor) (44). Tanto o NcoR quanto o SMRT são capazes de interagir com o TR na ausência de T3, tanto em solução como quando o TR está ligado aos seus elementos responsivos. A interação do correpressor com TR ocorre por meio de uma a-hélice do correpressor que contém a seqüência de consenso LXXXIXXX(I/L) (onde L corresponde ao aminoácido leucina, I ao aminoácido Isoleucina e X a qualquer outro aminoácido) (45,46). O SMRT possui duas destas seqüências, já o NcoR possui 3, duas delas homólogas às do SMRT e uma terceira recentemente descoberta específica para o TR, justificando a maior afinidade do TR pelo NcoR (47). Os correpressores NCoR e SMRT, por sua vez, são capazes de interagir com outros repressores como as histonas des-acetilases (HDACs), formando um complexo de correpressores (3,19,31). Cada componente deste complexo é importante para a repressão gênica, pois a utilização de anticorpos direcionados para cada um dos seus componentes NCoR-Sin3-HDAC provoca a perda da repressão da transcrição (figura 7) (31).
A presença das HDACs no complexo correpressor sugere que a repressão seja mediada pela des-acetilação das histonas presentes na região promotora, possivelmente porque a histona acetilada torna a cromatina mais condensada, restringindo o acesso das fatores de transcrição basal ao DNA (3).
A importância da repressão que ocorre na ausência do ligante é mais clara quando observamos os resultados reportados em camundongos com deleção da PAX8, uma proteína responsável pelo desenvolvimento da tireóide. Estes animais morrem logo após o nascimento por hipotireoidismo severo. No entanto, a adição da deleção do TRa aos animais com deleção da PAX8 promove um aumento significativo da sobrevida, demonstrando que o TRa, sem estar ligado ao T3, é um repressor da transcrição e esta repressão tem significado biológico (25).
A ligação do T3 ao TR provoca mudanças conformacionais na estrutura do receptor, favorecendo a dissociação do TR com os correpressores (48), seguida da interação com proteínas co-ativadores (49). O TR se interage com os co-ativadores da família p160 (proteínas cujo peso molecular é da ordem de 160kD). Estes co-ativadores não são específicos, associam-se com vários outros membros da superfamília dos receptores nucleares e exercem seu efeito ativando a transcrição na presença do ligante. Esta associação é feita pela interação de um segmento de a-hélice de seqüência LXXLL (onde L corresponde a leucina e X a qualquer aminoácido) presente na região central do co-ativador, com a superfície AF-2 dos receptores nucleares (3,50,51). Cada co-ativador possui 3 cópias desta seqüência LXXLL e existem evidências de que diferentes receptores nucleares interagem com LXXLL distintos (3,19,20).
Os principais componentes da família p160 são o Co-ativador de Receptores Esteróides 1 (SRC-1/NCoA1) (52), o Fator Transcricional Intermediário 2 (TIF2/GRIP1/SRC-2/NCoA2) (53), e o ativador dos receptores de hormônio tireoideanos e do ácido retinóico (ACTR/pCIP/AIB1/RAC3/TRAM-1/ SRC-3/NCoA3) (54). Como a nomenclatura destas proteínas é complexa e várias delas contém mais de um nome, as diversas denominações encontradas na literatura foram incluídas e separadas por uma barra. Desta forma, SRC-1/NcoA1 representam a mesma proteína (SRC-1 ou NcoA1).
A existência de múltiplas proteínas co-ativadoras p160 sugere uma redundância funcional ou indica que cada um dos co-ativadores poderia apresentar uma função específica. Na realidade, as duas situações parecem existir. Camundongos com deleção do gene de SRC-1 apresentam resistência parcial aos hormônios esteróides (55) e ao T3 (56). Por outro lado, associado à deleção de SRC-1, foi observado um aumento compensatório da expressão de TIF-2, sugerindo um redundância parcial entre as proteínas da família dos co-ativadores (55). No entanto, é interessante observar que recentemente foi descoberto um novo co-ativador específico para o TR e RXR, o NRIF3 (nuclear receptor-interacting factor 3), que não é capaz de interagir com nenhum outro receptor nuclear e não possui nenhuma homologia com os outros co-ativadores já descritos (57). A importância deste co-ativador na modulação específica do hormônio tireoideano ainda não está totalmente definida.
Os co-ativadores, por possuírem atividade histona acetil transferase (HAT), estimulam a transcrição ao acetilarem as histonas (3,19,20). A hiperacetilação das histonas relaxa a cromatina e facilita o acesso dos fatores de transcrição basal ao promotor do gene alvo, estimulando a atividade transcricional. Ademais, co-ativadores são capazes de acetilar outras proteínas além das histonas, como o fator de transcrição p53 e fatores de transcrição basal como TFIIE-TFIIF que poderiam contribuir para o aumento da atividade transcricional (figura 8) (31).
Dimerização do Receptor do Hormônio Tireoideano
Já está bem documentado que a formação de heterodímeros entre TR e RXR aumenta a ligação do receptor ao DNA, tanto in vitro como in vivo, e estimula a transcrição gênica. Geralmente, quando o RXR está dimerizado com VDR, TR ou RAR em DRs, o complexo formado não responde ao ligante do RXR, e é por esta razão que o RXR é considerado um parceiro silencioso. Isso ocorre porque o TR induz uma alteração alostérica no LBD do RXR, que o impede de se ligar ao ácido 9-cis-retinóico (3,5,10).
Os receptores nucleares contêm duas regiões independentes para a dimerização, uma no LBD e outra no DBD. Acredita-se que a dimerização ocorra em dois estágios, um entre os LBDs, ainda quando os TRs estão em solução e o segundo entre os DBDs, após a ligação dos TRs ao DNA (10,58-60). Na associação entre os heterodímeros TR/RXR em DR-4, os aminoácidos do segundo dedo de zinco do RXR associam-se com os aminoácidos do primeiro dedo de zinco do TR, adotando uma conformação onde o RXR se liga no hexâmero AGGTCA situado na região 5' e o TR se liga no hexâmero AGGTCA situado na região 3' (22,61).
Recentemente, utilizando mutações nos aminoácidos na superfície do LBD do TR, Ribeiro e cols. identificaram um núcleo de aminoácidos hidrofóbicos nas hélices 10 e 11 do receptor que está envolvido na dimerização do TR. Os resultados mostraram que uma mesma superfície no LBD é empregada para a dimerização do TR em DR-4 e F2, indicando que a homodimerização ou heterodimerização nestes TREs independe da orientação e espaçamento dos hexâmeros AGGTCA. Entretanto, no palíndromo TREpal, nenhuma mutação foi capaz de impedir a homodimerização do TR, sugerindo que, neste elemento, a banda composta por supostos "homodímeros" é, na verdade, constituída por dois monômeros. Além disso, este estudo mostrou que, dos aminoácidos hidrofóbicos envolvidos, a leucina 422 (L422) do LBD do TRß1 é o resíduo que cumpre um papel crítico tanto para a homo como para a heterodimerização do TR (62). Mais recentemente, observamos em células U937 que a mutação da leucina 422 por arginina (L422R) diminui em aproximadamente 50% a atividade transcricional do TR no elemento responsivo DR-4, e praticamente extingue a transcrição no elemento responsivo de palíndromo invertido. Já no elemento responsivo TRE-pal, esta mutação aumenta a atividade transcricional do TR (dados não publicados). Estes resultados sugerem que é possível que os homodímeros exerçam um papel na atividade transcricional induzida pelo T3 (dados não publicados).
Em solução, o TR parece utilizar outras superfícies para se homodimerizar, pois já foi observada a presença de tetrâmeros de TR em solução. Alem disso, a adição de T3 promove a dissociação dos tetrâmeros e aumenta a formação de dímeros (dados não publicados). É possível que esses tetrâmeros de TR apresentem uma organização semelhante à do RXR que, em solução, pode-se organizar como dímeros, sob a forma de um U onde os DBD estão orientados de frente um para o outro, formando um ângulo de 10° associados com uma extensa área de interface dos LBDs, ou ainda podem estar agrupados como de tetrâmeros, sob a forma de X (63).
A Região de Dobradiça
Considerando que o modelo atual de dimerização sugere que resíduos idênticos no LBD-TR estão envolvidos na homodimerização ou heterodimerização do TR com o RXR (62), e que tanto o homo quanto o heterodímero ligam-se aos diferentes elementos responsivos (DR-4, F2 e TREpal) independentemente da orientação das bases AGGTCA, é necessário que os DBDs girem em até 180 graus em relação aos LBDs. Para isto, a região que conecta o DBD ao LBD deve atuar como uma dobradiça, permitindo a realização deste movimento de rotação (figura 9) (8,10,21,41,64).
Esta hipótese, apesar de amplamente aceita por vários grupos de pesquisadores, não foi ainda confirmada, assim como não se conhecem ao certo que aminoácidos compõem a região de dobradiça. Com a determinação da primeira estrutura cristalográfica do LBD do TRa1 de rato (23) e, mais recentemente, do LBD do TRb1 humano (24), foi sugerido que a região de dobradiça seria correspondente à alça composta de 6 aminoácidos (209 a 214 - GHKPEP) que separa a a-hélice carboxi-terminal do DBD da a-hélice amino-terminal do LBD (24). No entanto, estudos com TRs mutantes realizados em nosso laboratório não confirmaram esta região como sendo a de dobradiça, visto que a deleção deste segmento ou a substituição destes aminoácidos por prolina, que a torna rígida, não modificou a capacidade do TRb1 em se ligar aos diferentes elementos responsivos, assim como não alterou sua capacidade de ativar a transcrição em DR-4, F2 ou TREpal (dados não publicados).
Estrutura Cristalográfica do LBD e sua Função na Ação do TR
Até o momento, a estrutura cristalográfica dos receptores nucleares foi determinada para o domínio do LBD e para o DBD separadamente. A estrutura completa de qualquer receptor nuclear ainda não foi definida, em virtude das dificuldades técnicas de se expressar e cristalizar todos os domínios simultaneamente. Em relação ao TR, o LBD é funcionalmente complexo, executando várias atividades, incluindo a ligação ao hormônio, dimerização do receptor e interação com correpressores e co-ativadores, ou seja, repressão da transcrição no estado de apo-receptor e ativação induzida pelo hormônio. A estrutura cristalográfica de muitos LBDs de receptores nucleares, incluindo a do TRa1 de ratos e TRb1 humano, é muito similar. O LBD do TR é composto por 12 a-hélices (H) e 4 folhas b (S) organizadas em 3 camadas (figura 10b) (23,65). A camada central contém o hormônio alojado em seu interior hidrofóbico e 4 a-hélices antiparalelas H5-6, H9 e H10. As a-hélices H1, H2, H3, H4, e S1 formam uma das faces do LBD, e as a-hélices H7, H8, H9, H11 e H12 formam a face oposta (23).
Nesta estrutura, o ligante se aloja na cavidade localizada no interior do LBD. A parte superior desta cavidade é composta por segmentos da H5-6, a parte inferior por partes das H7, H8 e pelo looping entre estas duas hélices. Já as laterais são formadas por segmentos da H2, H3, H11, H12 e pelo looping entre S3 e S4 (23). O volume da cavidade é de 600Å, ou seja, um valor suficiente para alojar os 530Å do hormônio.
A importância do conhecimento da estrutura cristalográfica do TR foi fundamental para a compreensão do seu mecanismo molecular da ação. Desse modo, utilizando-se a estrutura cristalográfica, foi possível realizar uma série de mutações pontuais nos aminoácidos que se encontram na superfície do LBD do TRb1 humano (hTRb1), que levaram à identificação da superfície de interação do TRb1 com os co-ativadores. Como estas mutações foram posicionadas somente na superfície do TR e não em seu interior, a estrutura global do TR não foi rompida, e as alterações na função que por ventura apareceram foram secundárias à perda da função exercida pelo aminoácido mutado. Neste estudo, Feng e cols. demonstraram a participação da hélice 12, e de resíduos da hélice 3 na interação com co-ativadores. Esta região de interação com co-ativadores consiste em uma pequena superfície composta por resíduos das hélices 3, 5, 6 e 12, pois mutações pontuais nestas hélices impedem a ligação dos co-ativadores ao LDB do TR, que, conseqüentemente, perde sua capacidade de ativar a transcrição pelo T3 (66).
Considerando que, por dificuldades técnicas envolvidas na cristalização, a estrutura do TR na ausência do hormônio ainda não foi determinada. Portanto, as alterações conformacionais induzidas pelo ligação do hormônio ao TR não foram ainda determinadas com precisão. Por este motivo, para se ampliar o conhecimento sobre as potenciais mudanças conformacionais do TR na presença e na ausência do ligante, a estrutura critalográfica do TR ligado ao hormônio foi comparada com a do RXR humano, sem este estar ligado ao ácido 9-cis-retinóico (67). Esta comparação revelou que a maioria das hélices do TR e RXR podem ser sobrepostas, e a principal alteração conformacional observada com a presença do hormônio ligado ao TR está na hélice 12. Quando o receptor nuclear está sem o ligante, a hélice 12 encontra-se aberta e, com a ligação do hormônio ao receptor, está hélice encontra-se dobrada sobre o corpo do receptor. Conseqüentemente, neste modelo, a superfície de interação com o co-ativador é formada quando a hélice 12 se fecha sobre o LBD (3,41).
Repressão da Transcrição Mediada pelo Hormônio Tireoideano
Apesar da ativação da transcrição regulada por T3 estar mais bem definida, o hormônio tireoideano também reprime a transcrição de vários genes, entre eles um dos mais importantes são os genes que codificam o Hormônio Liberador de Tirotropina (TRH) e o hormônio estimulante da tireóide (TSH) (31,68,69). Através do mecanismo de feedack, o T3 regula negativamente a atividade transcricional destes genes via elementos responsivos negativos (nTREs) (70). Diferentemente dos elementos responsivos positivos (pTREs), uma seqüência consenso para os nTREs ainda não foi estabelecida. Porém, existem evidências de que os genes alvos podem adotar mecanismos distintos para este tipo de repressão, e que uma interação TR-DNA não seja absolutamente necessária para a repressão pelo T3. No caso dos genes TRH, TSHa e TSHb, observa-se que a transcrição é suprimida pelo T3 e ativada pelo TR quando este não está ligado ao T3. Ademais, é interessante observar que, de maneira oposta ao que ocorre na ativação da transcrição, existem evidências de que os correpressores estão envolvidos na ativação da transcrição por TR sob forma de apo-receptor (68), e os co-ativadores na repressão induzida pelo TR ligado a T3. Desta forma, mutantes de TR que não se interagem com moléculas correpressoras apresentam redução da ativação da transcrição dos genes TRH e TSH na ausência do hormônio, e a super-expressão de NCoR e SMRT provoca o efeito contrário. Além disto, camundongos com deleção do gene que codifica o co-ativador SRC-1 apresentam resistência à supressão da síntese e secreção de TSH pelo T3 (31). Neste mesmo sentido, mutações no TR que impedem a ligação do TR com proteínas co-ativadoras p160 suprimem a repressão mediada pelo T3 no promotor do TSHa, mas não impede a ativação da transcrição mediada pelo TR sem estar ligado ao T3 (68).
Para a regulação da atividade do promotor do TSHa, no qual o TR não se liga diretamente ao DNA, o TR, em solução e não ligado ao T3, recruta os correpressores que, por sua vez, seqüestram as histonas de-acetilases (HDAC) que reprimem a transcrição. O seqüestro destas de-acetilases não permite a condensação da cromatina, favorecendo a ativação da transcrição. Posteriormente, com a ligação do T3 ao TR, ocorre a dissociação do complexo correpressor/ HDAC e TR, que agora passa a recrutar co-ativadores que seqüestram as histonas acetilases (HATs) e outros fatores de transcrição que relaxam a cromatina. Conseqüentemente, a ausência de co-ativadores e HATs acaba por favorecer a repressão dependente de ligante (68). Na repressão da transcrição que não envolve a associação do TR ao DNA, o TR pode se interagir com outras proteínas que estão ligadas diretamente ao DNA, como, por exemplo, o complexo AP-1 (composto pelo dímero de c-fos e c-jun) (71).
Importância da Estrutura no Desenvolvimento de Agonistas e Antagonistas de TR
Muitos dos efeitos farmacológicos dos THs poderiam ser utilizados no tratamento de patologias não relacionadas à tireóide, como, por exemplo, a hiperlipidemia e obesidade (5,72). No entanto, o TH não é utilizado no tratamento destas condições, porque os efeitos benéficos são acompanhados pelo aparecimento de efeitos colaterais importantes, como, por exemplo, taquicardia e arritmias atriais. Logo, análogos do HTs, que promovam os efeitos desejáveis sem induzir as ações deletérias, seriam de grande interesse na área médica.
Como a distribuição e a função das duas isoformas de TR (TRa e TRb) são, em grande parte, distintas e tecido específicas, o desenvolvimento de análogos seletivos para TRb1, que atuam predominantemente no metabolismo e são mais expressos no fígado e muito pouco no coração, podem se constituir uma nova classe de medicamentos para o tratamento por exemplo da obesidade, hipercolesterolemia e níveis elevados de lipoproteína (73).
O conhecimento da estrutura das isoformas a e b do TR permitiu o desenvolvimento de alguns agonistas seletivos para TRß, como, por exemplo, o GC-1 e o KB 141. Em ratos com hipotiroidismo, GC-1, que possui uma afinidade 10 vezes maior para TRß1 que TRa, reduziu os níveis de colesterol e de TSH sem modificar a freqüência cardíaca (74,75). O mesmo foi observado com o KB-141, que se liga à isoforma TRb14 vezes melhor do que à TRa. KB-141 diminuiu os níveis de colesterol plasmáticos em camundongos, ratos e primatas sem causar a taquicardia observada nos animais tratados com T3. Os resultados são animadores, pois, em primatas, o KB-141 diminuiu o colesterol em 35%, a lipoproteína (a) em 50% e o peso corpóreo em 7%, após somente uma semana de tratamento (73).
Os análogos TRb1 seletivos também são úteis na definição das isoformas envolvidas nas diversas funções do HT. Desta forma, com a utilização de GC-1, foi possível demonstrar que a termogênese e a perda óssea induzida por T3 é mediada mais especificamente por TRa com pouca participação do TRb (76,77). Todavia, o interesse não reside somente nos agonistas seletivos, o desenvolvimento de antagonistas do TR podem ser de grande utilidade para o tratamento do hipertiroidismo, principalmente durante os episódios de tireotoxicose quando, em função da meia-vida longa dos hormônios tireoideanos, os efeitos benéficos da inibição da síntese de HT não são obtidos rapidamente. Aliando o conhecimento da relação entre estrutura e função, que mostra a importância da aproximação da hélice 12 sobre o corpo do TR para o recrutamento de co-ativadores e ativação da transcrição, o antagonista do TR deve ser capaz de inserir-se na cavidade ocupada normalmente pelo T3 e possuir uma extensão que impeça a movimentação da hélice 12. Utilizando-se dessa estratégia, pesquisadores da Universidade da Califórnia, São Francisco, desenvolveram o NH-3, um antagonista de TR que se mostrou efetivo tanto em ensaios in vitro como in vivo (78).
Síndrome de Resistência ao Hormônio Tireoideano
A síndrome de resistência ao hormônio tireoideano (RTH-resistance to thyroid hormone) é caracterizada pela resistência à ação do T3, resultando, freqüentemente, em sinais de hipotireoidismo ou eutireoidismo associado a de hipertiroidismo (79). Os indivíduos não tratados freqüentemente mantêm um estado metabólico normal às custas de altos níveis de hormônio tireoideano circulante mantidos pela elevação na secreção de TSH. Entretanto, essa compensação parece ser variável entre os diversos pacientes. Algumas características clínicas comuns a RTH são bócio, retardo mental, déficit de atenção, taquicardia, crescimento e maturação dos ossos alterados e problemas de audição (29,80-82).
A maioria dos pacientes possui resistência generalizada envolvendo os tecidos periféricos e a hipófise. Entretanto, existem pacientes com resistência pituitária ao hormônio tireoideano e responsividade periférica normal (29).
Após a clonagem dos TRs, demonstrou-se que a resistência ao HT está relacionada ao gene TRb. Até o presente, não há qualquer caso de mutações no TRa. Desde então, inúmeros estudos relataram que os indivíduos afetados são heterozigotos para mutações no gene TRb, condizentes com o modo de herança dominante encontrado nesta doença (83,84). A expressão "dominância negativa" é freqüentemente utilizada para caracterizar esta síndrome, para justificar o fato de que a proteína codificada pelo alelo afetado inibe a função da proteína normal. Quase todas as mutações presentes na RTH estão agrupadas em três regiões principais ou hotspots no LBD. Estas mutações alteram uma ou mais características funcionais do receptor, principalmente a afinidade pelo T3 e a ligação com co-reguladores (proteínas co-ativadoras ou co-repressores) (3,5). Entretanto, estas mutações geralmente preservam a capacidade do TR para se ligar ao DNA e formar homo e heterodímeros (3,29,80,81).
O mecanismo molecular envolvido na dominância negativa exercida pelo TR mutado parece ser múltiplo. Como os mutantes para TRb são transcricionalmente inativos, eles podem inibir o TR normal por competirem pela ligação ao TRE. Neste sentido, Nagaya e cols. observaram que mutações introduzidas no DBD do alelo mutante às quais impediam a sua ligação ao DNA atenuavam a atividade dominante negativa (85). Além disto, foi demonstrado que os TRs dominantes negativos se interagem com maior afinidade aos correpressores, de forma que a ligação do hormônio não promoveria a dissociação do correpressor e impediria a ativação da transcrição (86).
Mais recentemente, observamos que a dimerização também está envolvida no mecanismo molecular envolvido com o efeito dominante negativo, uma vez que o efeito dominante negativo do TR G345R ou F451X (mutações descritas na RTH) é atenuado quando se acrescenta a mutação (L422R), que impede a dimerização do receptor (dados não publicados).
Ações Não Genômicas do Hormônio Tireoideano
Não existem dúvidas quanto ao fato de que a maioria dos efeitos dos HTs ocorre via regulação transcricional de genes regulados pelo TRa ou TRb. Entretanto, existem várias evidências de que os HTs, incluindo o T3 e T4, podem exercer alguns de seus efeitos via mecanismos não genômicos, pois são efeitos que ocorrem em frações de segundos e não são inibidos pela adição da ciclohexamida, substância que bloqueia a síntese protéica. Por esta via, os HTs ativam cinases, calmodulina, captação de glicose em vários tecidos e modulação do transporte de cálcio. Este efeito pode estar localizado na membrana plasmática ou na mitocôndria (87). Mais recentemente, por exemplo, foi demonstrado que T4, de forma mais intensa que T3, ativa a cascata de sinalização da MAP cinase (mitogen-activated protein kinase), que, por sua vez, fosforila TR em resíduos de serina localizados no DBD (88). O achado de que o efeito do T4 foi maior do que o de T3 sugere que os receptores de membrana são estruturalmente diferentes dos receptores localizados no núcleo. No entanto, a importância fisiológica destes achados ainda não é totalmente conhecida.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a Cristina Luisa Simeoni pela ajuda na organização deste trabalho e a Rilva Grigório Pinho pelo apoio técnico.
Recebido em 18/10/03
Aceito em 30/10/03
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Endereço para correspondência
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jun 2004 -
Data do Fascículo
Fev 2004
Histórico
-
Recebido
18 Out 2003 -
Aceito
30 Out 2003