RESUMO
Seiscentos primatas neotropicais foram submetidos a exames post mortem para avaliação da prevalência parasitária de helmintos gastrointestinais. Foram examinados 556 calitriquídeos (Callithrix spp.), 23 bugios (Alouatta guariba), 19 macacos-pregos (Sapajus nigritus), um mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) e um mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas). Do total de 600 animais, foram encontrados espécimes parasitos pertencentes aos filos Acanthocephala, Nemathelmintes e Platyhelminthes (classes Trematoda e Cestoda) em 110 primatas. A prevalência de primatas positivos para, pelo menos, uma espécie de helminto foi de 18,3% (110/600), sendo destes 83,6% (92/110) calitriquídeos, 8,2% (9/110) bugios, 6,4% (7/110) macacos-pregos, 0,9% (1/110) mico-leão-dourado e 0,9% (1/110) mico-leão-da-cara dourada. Em 80,4% (74/92) dos calitriquídeos foram encontrados nematoides Primasubulura sp. e em 1,1% (1/92) nematoides Trypanoxyuris callithrix, em 26,1% (24/92) acantocéfalos (Pachysentis sp.) e em 5,4% (5/92) digenéticos (Platynosomum sp.); em 77,8% (7/9) dos bugios foram encontrados nematoides (Trypanoxyuris minutus), em 11,1% (1/9) acantocéfalos (Pachysentis sp.) e em 11,1% (1/9) cestoides (Bertiella sp.); em 14,3% (1/7) dos macacos-pregos foram encontrados nematoides (Physaloptera sp.), em 28,6% (2/7) acantocéfalos (Prostenorchis sp.) e em 14,3% (1/7) digenéticos (Platynosomum sp.) e no mico-leão-da-cara-dourada foram encontrados acantocéfalos (Prostenorchis sp.). Foi realizado o georreferenciamento dos pontos de encontro dos cadáveres para pontuar a distribuição dos helmintos por região.
Palavras-chave: endoparasitos; parasitismo; macaco; georreferenciamento
ABSTRACT
Six hundred neotropical primates underwent postmortem examinations to evaluate the parasitic prevalence of gastrointestinal helminths. Fifty-five callitrichids tamarins (Callithrix spp.), 23 howlers (Alouatta guariba), 19 nail monkeys (Sapajus nigritus), a golden lion tamarin (Leontopithecus rosalia) and a golden-faced lion tamarin (Leontopithecus chrysomelas) were examined. Parasitic specimens belonging to phylums Acantocephala, Nemathelmintes and Platyhelmintes (Trematoda and Cestoda Classes) were found. The prevalence of primates positive for at least one species of helminth was 18.3% (110/600), of which 83.6% (92/110) callitrichids, 8.2% (9/110) howler monkeys, 6.4% (7/110) capuchin monkeys, 0.9% (1/110) golden lion tamarin and 0.9% (1/110) golden faced lion tamarin. In 80.4% (74/92) of callitrichids nematodes (Primasubulura sp.) were found, and in 1.1% (1/92) nematodes (Trypanoxyuris callithricis), in 26.1% (24/92) acanthocephalus (Pachysentis sp.) and 5.4% (5/92) digenetics (Platynosomum sp.); in 77.8% (7/9) of howler monkeys presented nematodes (Trypanoxyuris minutus), 11.1% (1/9) acanthocephalus (Pachysentis sp.) and 11.1% (1/9) cestoids (Bertiella sp.); in 14.3% (1/7) of capuchin monkeys presented nematodes (Physaloptera sp.), 28.6% (2/7) acanthocephalus (Prostenorchis sp.) and 14.3% (1/7) digenetics (Platynosomum sp.) and in the golden-faced lion tamarin acanthocephalus (Prostenorchis sp.) were found. Georreferencing of the meeting points of the cadavers was performed in order to punctuate the distribution of helminths by region.
Keywords: endoparasites; parasitism; monkey; georeferencing
INTRODUÇÃO
O Brasil é o país que possui a maior riqueza mundial em mamíferos, abrangendo a maior diversidade de primatas não humanos do mundo. Os fragmentos florestais de Mata Atlântica que ocupam desde o nordeste até o sul do país são compostos por espécies nativas e exóticas, das quais 26 encontram-se em alguma categoria de ameaça (Brasil, 2014; Cardoso, 2016; Vale e Prezoto, 2016).
Espécies mais adaptáveis ao convívio humano, como os calitriquídeos, podem facilitar o compartilhamento de agentes patogênicos, como as viroses e parasitoses, dentre essas, inclusive, algumas zoonoses. Considerando a proximidade filogenética que esses primatas mantêm com os seres humanos, a transmissão de patógenos pode resultar em importantes problemas em saúde pública (Paula et al., 2005; Verona, 2008; Johnson-Delaney, 2009; Tavela et al., 2013; Vale e Prezoto, 2015; Fragoso et al., 2017).
A necessidade de novos conhecimentos sobre a biologia parasitária de espécies ameaçadas de extinção vem crescendo concomitantemente à importância de sua conservação. O conhecimento sobre distribuição geográfica, ecologia, hábitos alimentares e fauna helmintológica dos primatas contribui para a aplicação de medidas protetivas mais precisas e eficazes, tanto para animais de cativeiro quanto para os de vida livre. No entanto, estudos envolvendo endoparasitos intestinais e suas consequências para o hospedeiro, assim como o controle desses helmintos em primatas, ainda são escassos, principalmente em espécies identificadas no Brasil (Chiarello et al., 2008; Melo, 2008; Alcântara et al., 2016; Falcão et al., 2018).
MATERIAL E MÉTODOS
Durante o período de 2017 a 2019, foram realizados exames post mortem de primatas não humanos de vida livre, provenientes de fragmentos florestais de Mata Atlântica e áreas urbanas do estado do Rio de Janeiro, que vieram a óbito por causas desconhecidas em logradouros públicos ou particulares e foram encaminhados para exame necroscópico no Laboratório de Saúde Pública do Instituto Municipal de Medicina Veterinária Jorge Vaitsman, Rio de Janeiro, RJ (Lasp/IJV/RJ).
Este estudo obteve aprovação da Comissão de Ética no Uso de Animais (Ceua) da Universidade Federal Fluminense (Ceua/UFF, protocolo nº 6334040618), pelo Sistema de Autorização e Informação em Biodiversidade (Sisbio, protocolo nº 63270-1) e pelo Comitê Científico da Subsecretaria de Vigilância, Fiscalização Sanitária e Controle de Zoonoses do Rio de Janeiro (Subvisa).
Os parasitos coletados foram processados segundo metodologia descrita por Amato et al. (1991), sendo inicialmente fixados em solução de álcool-formaldeído-ácido acético (AFA), com compressão para platelmintos e sem compressão para nematoides e acantocéfalos. Após 24 horas, todos os espécimes foram transferidos para frascos contendo líquido conservante (álcool etílico 70º GL). Para melhor visualização de estruturas morfológicas, os digenéticos, cestoides e acantocéfalos foram corados com carmim acético de Semichon, clarificados em creosoto de faia e montados em preparação definitiva entre lâmina e lamínula em bálsamo do Canadá. Os nematoides foram clarificados com lactofenol e montados em preparação temporária entre lâmina e lamínula.
A determinação taxonômica dos digenéticos foi feita segundo Yamaguti (1971), Gibson et al. (2002) e Jones et al. (2005); dos acantocéfalos, de acordo com Yamaguti (1963) e Petrochenko (1971); e dos nematoides, conforme Yamaguti (1961), Anderson et al. (1974-1983) e Vicente et al. (1997).
As localizações exatas dos pontos de encontro dos primatas foram referenciadas no mapa do estado do Rio de Janeiro para análise da distribuição desses animais e dos helmintos neles encontrados, de acordo com as informações obtidas no momento do encaminhamento do cadáver ao Lasp/IJV/RJ. O georreferenciamento dos dados coletados foi realizado por meio do programa ArcGIS™ v. 10.6.1, cuja licença atualmente pertence ao Laboratório de Pesquisas Hidrogeológicas da Universidade Federal do Paraná (LPH/UFPR). O termo prevalência é usado de acordo com Bush et al. (1997).
RESULTADOS
Foram examinados 600 primatas, e destes, 556 foram identificados como micos calitriquídeos (Callithrix spp.), 23 bugios (Alouatta guariba), 19 macacos-pregos (Sapajus nigritus), um mico-leão-dourado (Leontopithecus rosalia) e um mico-leão-da-cara-dourada (Leontopithecus chrysomelas). Nesses primatas foram encontrados espécimes de parasitos pertencentes aos filos Acanthocephala, Nemathelmintes e Platyhelminthes (classes Trematoda e Cestoda). Dos 600 primatas não humanos examinados, 18,3% (110) estavam positivos para, pelo menos, uma espécie de helminto, sendo desses animais positivos, 83,6% (92/110) calitriquídeos, 8,2% (9/110) bugios, 6,4% (7/110) macacos-pregos, 0,9% (1/110) mico-leão-dourado e 0,9% (1/110) mico-leão-da-cara-dourada (Fig. 1).
Prevalência de primatas neotropicais provenientes do estado do Rio de Janeiro positivos para infecções por helmintos gastrointestinais (Lasp/IJV/RJ).
Em 80,4% (74/92) dos calitriquídeos, foram encontrados nematoides Primasubulura sp.) e em 1,1% (1/92) Trypanoxyuris callithrix, em 26,1% (24/92) foram observados acantocéfalos (Pachysentis sp.) e em 5,4% (5/92) digenéticos (Platynosomum sp.); em 77,8% (7/9) dos bugios, foram encontrados nematoides (Trypanoxyuris minutus), em 11,1% (1/9) acantocéfalos (Pachysentis sp.) e em 11,1% (1/7) cestoides (Bertiella sp.); em 14,3% (1/7) dos macacos-pregos foram encontrados nematoides (Physaloptera sp.), em 28,6% (2/7) acantocéfalos (Prostenorchis sp.) e em 14,3% (1/7) digenéticos (Platynosomum sp.) e no mico-leão-da-cara-dourada foram encontrados acantocéfalos (Prostenorchis sp.). Espécimes de cestoides foram encontrados em dois macacos-pregos e em um mico-leão-dourado, mas a identificação taxonômica não pôde ser concluída devido ao avançado estado de autólise (Fig. 2).
Os principais órgãos acometidos pelo parasitismo foram intestino (108), fígado (6) e estômago (1), sendo detectadas, em 10 calitriquídeos e em um macaco-prego, infecções mistas por diferentes classes de parasitos em intestino e fígado. Os helmintos apresentaram localização de acordo com o grupo taxonômico: os cestoides (Bertiella sp.) e os acantocéfalos (Pachysentis sp. e Prosthenorchis sp.) em intestino delgado, o digenético Platynosomum sp. em fígado, o nematoide Primasubulura sp. em intestino delgado e grosso, o nematoide Trypanoxyuris callithricis em intestino grosso, e o nematoide Physaloptera sp. em estômago (Tab. 1).
Distribuição de helmintos gastrointestinais em diferentes espécies de primatas necropsiados no Lasp/IJV durante o período de 2017 a 2019.
O georreferenciamento dos pontos onde foram encontrados os cadáveres dos primatas indicou a distribuição desses animais no território estadual, incluindo áreas remanescentes de Mata Atlântica e áreas urbanas (Fig. 3). O georreferenciamento para os helmintos identificados evidenciou as regiões com maior potencial de transmissão para cada grupo de parasitos (Fig. 4).
Distribuição espacial dos locais de origem de primatas não humanos parasitados por helmintos e necropsiados no Lasp/IJV durante o período de 2017 a 2019.
Helmintofauna encontrada em primatas neotropicais provenientes do estado do Rio de Janeiro, Brasil, de 2017 a 2019
Distribuição espacial da helmintofauna de primatas neotropicais necropsiados no Lasp/IJV durante o período de 2017 a 2019.
DISCUSSÃO
O número de calitriquídeos (Callithrix spp.) examinados foi significativamente superior ao de outras espécies de primatas estudadas e isso provavelmente é devido a algumas características específicas desse grupo de primatas. Os calitriquídeos são animais de pequeno porte bastante adaptados a pequenos fragmentos de Mata Atlântica, enquanto outras espécies de primatas de grande porte necessitam de áreas muito extensas para manter a sua sobrevivência. Os calitriquídeos são considerados espécies exóticas invasoras no sudeste brasileiro e isso resulta em competição com a fauna local. A alta capacidade de adaptação a esse novo habitat e a proximidade a áreas urbanas e periurbanas garantem atualmente uma posição de destaque desses animais na lista de primatas mais encontrados mortos (Ruiz-Miranda et al., 2006; Vale e Prezoto, 2016; Fragoso et al., 2017).
Por outro lado, a proximidade com humanos pode trazer consequências preocupantes, como o compartilhamento de alguns agentes patogênicos, conforme demonstrado em estudo realizado por Paula et al. (2005) no município de Bauru, SP. Trata-se, portanto, de uma importante questão de saúde pública a ser considerada (Tavela et al., 2013).
Como exemplo de parasitose de caráter zoonótico, pode-se citar o ano de 1967, quando começaram a tornar-se mais frequentes os relatos de casos de parasitismo por Bertiella sp. em seres humanos no Brasil. Esses relatos se estenderam até o ano de 2015, em estudo realizado por Lopes et al. (2015). A infecção humana ocorre pela ingestão acidental de hospedeiros intermediários que participam do ciclo biológico do parasito (Paçô et al., 2003 e Silva et al., 2011; Lopes et al., 2015). No presente estudo, ficou evidenciada a ocorrência de parasito do mesmo gênero em um bugio de vida livre em região serrana do estado do Rio de Janeiro, o que alerta para a possível contaminação ambiental da região.
A análise da helmintofauna encontrada em primatas neotropicais no Rio de Janeiro demonstrou que Primasubulura sp. foi o helminto mais prevalente em primatas do gênero Callithrix spp. (80,4%). Esses dados estão de acordo com aqueles descritos por Tavela et al. (2013), que afirmam ser esse um dos helmintos mais frequentes nesse gênero de primata. Em bugios (Alouatta guariba), o helminto mais prevalente foi Trypanoxyuris minutus (77,8%), o qual costuma ser frequentemente relatado em estudos realizados com primatas, como pôde ser observado por Amato et al. (2002) e Pinto et al. (2013).
Nas últimas décadas, a tecnologia do georreferenciamento tem sido empregada nos mais diversos campos, como na avaliação ambiental (Barcellos et al., 2008). Os dados georreferenciados desses helmintos permitem alertar para as necessidades específicas de cada região, ao traçarem uma metodologia mais específica para cada uma delas e direcionarem a adoção de medidas profiláticas e terapêuticas para animais de cativeiro e para animais de vida livre monitorados, bem como atentar para a possibilidade de transmissão de parasitos zoonóticos em determinada área, além de contribuírem com novos conhecimentos acerca da fauna helmíntica de primatas não humanos do estado do Rio de Janeiro. Conforme pôde ser observado neste estudo (Fig. 4), Trypanoxyuris minutus foi identificado em maior número na região norte do estado, já que são parasitos frequentes em bugios, primatas que habitam áreas de mata mais fechada e topo de árvores.
CONCLUSÕES
A detecção da variedade de formas adultas das infrapopulações de helmintos parasitando primatas não humanos da fauna do estado do Rio de Janeiro contribui significativamente para a ampliação dos conhecimentos acerca dessas espécies de primatas e da riqueza da sua fauna helmintológica. A maior aproximação do homem com os primatas não humanos, resultante do crescente processo de fragmentação da Mata Atlântica, em conjunto com o fato de esses animais serem potenciais hospedeiros de helmintos com caráter zoonótico, alerta para a possibilidade de transmissão de parasitos e outros agentes patogênicos para o homem.
AGRADECIMENTOS
Ao suporte financeiro concedido pela Capes.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
09 Nov 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Oct 2020
Histórico
-
Recebido
28 Dez 2019 -
Aceito
13 Abr 2020