Padronização da monitorização eletrocardiográfica por 24 horas em cães

Standardization of the 24-hour electrocardiographic monitoring in dogs

Padronização da monitorização eletrocardiográfica por 24 horas em cães

[Standardization of the 24-hour electrocardiographic monitoring in dogs]

M. Leomil Neto^*, M.H.M.A. Larsson, L. Pereira, F.S. Brito

Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo

Recebido para publicação em 12 de janeiro de 2000

Recebido para publicação, após modificações, em 16 de janeiro de 2002

*Endereço para correspondência:

Rua Caminho Cinco, 20, Bairro Bortolan

Poços de Caldas, MG

E-mail: [e-mail]

Apoio financeiro: FAPESP

RESUMO

O principal objetivo deste estudo foi propor um padrão normal da monitorização eletrocardiográfica dinâmica em cães das raças Doberman, Boxer e Cocker Spaniel (10 animais de cada raça), possibilitando sua utilização como meio de diagnóstico precoce em cães com cardiomiopatia dilatada. O número de complexos QRS foi maior nos cães Cocker Spaniel. Os batimentos ectópicos ventriculares foram mais freqüentes nos da raça Boxer, entretanto as três raças apresentaram menos de 1% de batimentos ectópicos supraventriculares em relação ao total de batimentos. As freqüências cardíacas mínima, média e máxima foram mais altas na raça Cocker Spaniel. Essa raça permaneceu em taquicardia (freqüência igual ou superior a 120bpm) por maior tempo do que as outras duas raças e em bradicardia (freqüência igual ou menor a 50bpm) por menor tempo, além de apresentar menor quantidade e pausas mais curtas. A variação da freqüência cardíaca demonstrou ser um padrão entre esses animais: na raça Cocker Spaniel, o número de contrações ectópicas isoladas supraventriculares e ventriculares foi inferior a 50 por monitorição de 24 horas; na Boxer, foi inferior a 50 por 24 horas; as assistolias ou pausas maiores do que dois segundos foram freqüentes nas raças Boxer e Doberman e ausentes na Cocker Spaniel; comumente as pausas duraram mais do que três segundos; não se observaram alterações do segmento ST nas três raças.

Palavras-chave: Cão, holter, eletrocardiografia, cardiomiopatia dilatada

ABSTRACT

The normal pattern for dynamic eletrocardiographic monitoring of Doberman, Boxer and Cocker Spaniel dogs, enhancing earlier diagnostic of dilated cardiomyopathy (DCM) was studied. For this, the technique of 24-hour electrocardiographic monitoring was standardized in 10 animals of each referred breeds. QRS complexes were more frequent in Cocker Spaniel than in Doberman and Boxer dogs. Ventricular premature beats were more common in Boxer dogs than in the other two breeds; however, all of then presented less than 1% of supraventricular ectopic beats in relation to the total of beatings. Cocker Spaniel dogs manifested the highest minimum, average and maximum heart rates and remained with heart rates equal or greater than 120bpm longer than Doberman and Boxer dogs otherwise, Cocker Spaniel dogs remained more time than dogs of the other two breeds with heart rate equal or lower than 50bpm. Cocker Spaniel dogs demonstrated, besides less frequently, shorter pauses than Doberman and Boxer dogs did. It was concluded that: a) clinically normal dogs of the studied breeds showed an evident variation of the heart rate; b) the isolate ectopic supraventricular and ventricular contraction were less than 50 during a 24-hour period of monitorization; c) in Boxer dogs, the number of isolated ectopic ventricular beats was less than 50 during a period of 24 hours; d) the periods of assistolia or pauses bigger than two seconds were frequent in Boxer and Doberman dogs and absent in Cocker Spaniel dogs; e) these pauses were commonly greater than three seconds; f) alterations of ST segment were not observed in clinically normal dogs of the three breeds studied.

Keywords: Dog, holter, electrocardiography, dilated cardiomiopathy

INTRODUÇÃO

As cardiomiopatias (CM) são anormalidades estruturais ou funcionais do miocárdio, que se caracterizam pela redução da contractilidade e/ou alterações do preenchimento ventricular e/ou arritmia cardíaca, em ausência de doença valvar adquirida, ou de malformação congênita ou, ainda, de alterações dos vasos sangüíneos do coração. A Organização Mundial de Saúde classifica as cardiomiopatias em primárias (idiopáticas), sendo subdivididas em dilatada, hipertrófica, restritiva ou intermediária, e secundárias a distúrbios endócrinos, nutricionais, tóxicos, infecciosos, inflamatórios e infiltrativos (Ware & Bonagura, 1986).

A cardiomiopatia dilatada ou congestiva caracteriza-se por falência miocárdica biventricular (diminuição da contractilidade) e por arritmias, gerando, por sua vez, aumento dos volumes diastólico e sistólico. Essa modalidade de cardiomiopatia afeta particularmente machos da espécie canina, de raças puras, de porte grande ou gigante, sendo a raça Doberman a que apresenta maior prevalência, seguida pela Boxer e Cocker Spaniel (Miller & Calvert 1992).

A cardiomiopatia dilatada é uma enfermidade de prognóstico reservado, de altas incidência e mortalidade nas raças Doberman, Boxer e Cocker Spaniel, nas raças gigantes (Fila Brasileiro, Dogue-Alemão e São Bernardo) e na Pastor Alemão. Especificamente nas raças Doberman, Boxer e Cocker Spaniel a cardiomiopatia pode ser diagnosticada precocemente pela detecção de alterações eletrocardiográficas como arritmias intermitentes (Fox, 1992; Miller & Calvert, 1992).

A monitorização eletrocardiográfica ambulatorial por período de 24 horas (Sistema Holter) constitui-se em uma modalidade de diagnóstico não invasiva, comumente utilizada em medicina humana para avaliar o ritmo cardíaco em várias situações. A avaliação tem como princípio o registro contínuo do eletrocardiograma, geralmente por período de 24 horas. A interpretação do traçado eletrocardiográfico é feita em conjunto com um relatório de atividades do animal, o que possibilita relacionar as possíveis manifestações clínicas apresentadas pelo paciente com sua atividade física durante o período observado.

Em medicina veterinária o Sistema Holter é indicado para o diagnóstico de possíveis arritmias em pacientes com síncope, isquemia do miocárdio ou cardiomiopatias. Mesmo se o episódio de síncope não ocorrer durante o registro do Holter, informações sobre o ritmo cardíaco podem ser de grande valia para elucidar a sua causa. Tratando-se de arritmias, a monitorização eletrocardiográfica ambulatorial por 24 horas (Sistema Holter) é útil na avaliação da malignidade e freqüência de arritmias atriais e ventriculares paroxísticas em pacientes com cardiomiopatia, em particular nas raças Doberman, Boxer, Cocker Spaniel e nas raças gigantes, bem como detectar arritmias intermitentes características da fase inicial da maior parte das cardiomiopatias dilatadas (Miller & Calvert 1992).

Calvert (1991) recomenda que em Dobermans com menos de 50 contrações ventriculares prematuras (CVP) em 24 horas não se deve descartar uma possível cardiomiopatia em evolução; quando da presença de 50 a 100 CVP em 24 horas deve-se preconizar a reavaliação trimestral e acima de 100 CVP em 24 horas deve-se indicar o tratamento, pois esse valor é considerado anormal.

O presente trabalho teve por objetivo a padronização da monitorização por 24 horas do Sistema Holter em cães, possibilitando a identificação precoce, por meio de alterações nesse padrão, de animais portadores de cardiomiopatia dilatada.

MATERIAL E MÉTODOS

Foram utilizados 30 cães, fêmeas e machos, com idade entre 1 e 7 anos, clinicamente sadios, selecionados pelo Serviço de Cardiologia do Hospital Veterinário da Universidade de São Paulo, sendo 10 animais de cada uma das raças Doberman, Boxer e Cocker Spaniel.

Os animais incluídos no projeto foram avaliados por meio de anamnese, exame físico, hemograma completo, função hepática (dosagem plasmática de AST, ALT e fosfatase alcalina) e função renal (dosagem plasmática de uréia e creatinina). Procederam-se exames radiográfico, eletrocardiográfico, ecocardiográfico e avaliação da pressão arterial por método oscilométrico não invasivo .

Os animais considerados clinicamente sadios foram submetidos à avaliação eletrocardiográfica ambulatorial por 24 horas (Sistema Holter), utilizando para tanto aparelho da marca SPACE LABS modelo 90208, com registro contínuo de dois canais de ECG, gravados em fita cassete (eletromagnética) comum.

O aparelho foi acondicionado em colete de couro, leve e confortável, oferecendo total liberdade de movimentos, com o objetivo de proteger os cabos que eram ligados aos eletrodos adesivos. Este era ligado aos cabos e o horário ajustado (tempo zero). O relatório feito pelo proprietário continha as principais atividades do animal com citação do horário. Ao término de 24 horas, o aparelho era desligado e a fita cassete analisada por meio de decodificação computadorizada, e os resultados apresentados sob a forma de relatórios, determinando-se: o número total de arritmias ectópicas ventriculares, subdividindo-as em isoladas, em ciclos de bigeminismo, acopladas e taquicardia; o número total de arritmias ectópicas supraventriculares, subdividindo-as em isoladas, aos pares e taquicardia; a freqüência cardíaca (mínima, média e máxima); o período de assistolia; e a depressão ou elevação do segmento ST.

A determinação dos valores médios, desvio-padrão e mediana de cada característica da monitorização eletrocardiográfica ambulatorial por 24 horas (Sistema Holter) foi analisada com auxílio de um programa estatístico computadorizado (MINITABâ ,1992). Os dados com distribuição paramétrica foram submetidos à análise de variância e os não paramétricos ao método de Mann Whitney. Quando significativos, médias e medianas foram comparadas pelo teste Duncan.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O número de complexos QRS/h foi de 5897+886 (4965 a 7110), 4232+1172 (3520 a 5769) e 4924+844 (3907 a 6441), respectivamente, em cães das raças Cocker Spaniel, Doberman e Boxer (Tab. 1), maior nos animais da raça Cocker Spaniel quando comparado com os das raças Boxer e Doberman (P<0,05).

As freqüências cardíaca mínima e média (Tab. 1) foram superiores na raça Cocker Spaniel, respectivamente 51+9bpm (39 a 67) e 101+14bpm (84 a 121) em relação às freqüências das raças Doberman e Boxer, respectivamente 40+6bpm (29 a 48) e 39+6bpm (26 a 46) e 86bpm+13 (61 a 103) e 86bpm+12 (73 a 111). Quanto a freqüência cardíaca máxima, a diferença foi significativa somente entre as raças Cocker Spaniel e Doberman, respectivamente 242bpm+10 (218 a 250) e 223bpm+30 (176 a 250). Na raça Boxer o valor foi intermediário, 232bpm+13 (214 a 250).

O porte da raça provavelmente justifica a variação fisiológica das freqüências cardíacas mínima e média. A freqüência cardíaca máxima apresentou menor variação nas raças estudadas.

Observou-se diferença no período em que a freqüência cardíaca foi maior ou igual a 120bpm (período de taquicardia) entre os cães das raças Cocker Spaniel e Doberman (P<0,02) (Tab. 2). Os cães da raça Cocker Spaniel permaneceram durante menos tempo com a freqüência cardíaca abaixo dos 50bpm (menor tempo em bradicardia) do que os cães das raças Doberman e Boxer (P<0,01) (Tab. 3).

Outra característica possível de ser analisada por meio do monitoramento eletrocardiográfico ambulatorial por 24 horas (Sistema Holter) é a presença de assistolias ou pausas maiores que dois segundos. Elas foram observadas em todos os animais das raças Doberman e Boxer e em sete (70%) da raça Cocker Spaniel. Dos sete cães da raça Cocker Spaniel que manifestaram períodos de assistolias, quatro apresentaram menos de cinco pausas, um apresentou 13 pausas e dois mais de 30 períodos de assistolias, sendo a mediana de três pausas durante o registro do Holter e a média da maior pausa de 2,5+0,4 segundos. Na raça Boxer, apenas dois apresentaram menos de 30 pausas, cinco manifestaram mais de 400 períodos de assistolias e em três deles observaram-se mais de 1300 pausas. Nessa raça a mediana foi de 366 pausas por registro e a média da maior pausa de 3,5+1,1 segundos. Na raça Doberman, um revelou menos de cinco pausas, dois manifestaram de 40 a 50 períodos de assistolia e sete apresentaram mais de 120 pausas, sendo dois deles com mais de 1000 pausas. A mediana foi de 141 pausas por registro e a média da maior pausa de 3,3+1,0 segundos. Os cães Cocker Spaniel apresentaram quantidade menor de pausas (P<0,002) e pausas menores (P<0,05) quando comparados com os das raças Doberman e Boxer (Tab. 2 e 3).

As ectopias ventriculares foram mais freqüentes na raça Boxer (7/10) do que nas raças Cocker Spaniel (4/10) e Doberman (1/10). Calculando a relação entre o número de batimentos ectópicos ventriculares e o número total de batimentos (número total de QRS) obtiveram-se, respectivamente, para as raças Cocker Spaniel, Doberman e Boxer medianas de 0 %, 0% e 0,0019 % (Tab. 3). Houve diferença quanto à mediana de ectopias ventriculares apenas entre as raças Doberman e Boxer (P<0,05). Todos os animais da raça Boxer que apresentaram ectopias ventriculares o fizeram de forma isolada, sem manifestar batimentos ectópicos ventriculares em ciclo de bigeminismo, acoplados ou sob a forma de episódios de taquicardia. Dos quatro cães da raça Cocker Spaniel que manifestaram ectopias ventriculares, três o fizeram de forma isolada e apenas um de forma acoplada, enquanto que o único animal da raça Doberman o fez de forma isolada.

Na raça Doberman não se observaram ectopias supraventriculares e apenas um animal da raça Boxer manifestou esse tipo de ectopia. Na raça Cocker Spaniel, dois apresentaram menos de 10 batimentos supraventriculares e os outros dois 63 e 214. Calculando a relação entre o número de batimentos ectópicos supraventriculares e o número total de batimentos, obteve-se a mesma mediana nas três raças (Tab. 3), o que indica não haver diferença entre as raças.

Não se observou nenhum episódio de depressão ou elevação do segmento ST nas raças Cocker Spaniel e Doberman e apenas um cão da raça Boxer apresentou 12 episódios de depressão do segmento ST, indicativa de hipóxia de miocárdio.

O presente estudo confirma os dados de Calvert (1991), o único trabalho presente na literatura que correlacionou cardiomiopatia dilatada com exame Holter, pois 90% dos cães da raça Doberman, clinicamente normais, não apresentaram ectopias ventriculares e o único animal que a manifestou a fez em número de 10. Calvert (1991), além de não avaliar outras características por meio do sistema Holter, também trabalhou com cães sintomáticos, o que impossibilitou o confronto dos dados obtidos neste trabalho com os do autor citado.

Todos os animais do presente estudo apresentaram grande e significativa variação da freqüência cardíaca, oscilando entre 50 e 230bpm, fato não observado em humanos nos quais se admite uma variação de no máximo 50bpm. Os cães das raças Doberman e Boxer apresentaram número elevado de assistolias prolongadas quando comparados aos seres humanos ou mesmo aos cães da raça Cocker Spaniel. Aquelas duas raças são as que, na prática, freqüentemente apresentam morte súbita por taquicardia ventricular (Valvleet et al., 1981; Harpster, 1983; Fox, 1988; Larsson, 1988; Miller & Calvert, 1992; Calvert, 1995). Possivelmente essa grande quantidade de pausas, associada a assistolias prolongadas, seja um dos fatores que facilita a instalação das arritmias.

Além do grande número de pausas, a raça Boxer foi a que normalmente apresentou mais ectopias ventriculares, apesar delas raramente ultrapassarem o número de 50 por registro, o que justifica o fato de alguns animais apresentarem taquicardia ventricular assintomática como única manifestação da cardiomiopatia dilatada (Fox, 1992).

A maioria dos cães da raça Cocker Spaniel apresentou ectopias ventriculares e supraventriculares, entretanto a freqüência cardíaca foi maior e o número de assistolias menor que nos cães das outras raças estudadas, possivelmente explicando o fato da morte súbita ser rara e a evolução da cardiomiopatia dilatada ser lenta nessa raça (Staaden, 1981; Gooding et al.,1982; Pereira, 1998).

CONCLUSÕES

Os resultados permitem concluir que: a- as três raças, em condições normais, apresentam variação evidente de freqüência cardíaca; b- contrações ectópicas isoladas supraventriculares e ventriculares em número maior do que 50 unidades por registro em cães da raça Cocker Spaniel podem ser indicativos de cardiomiopatia; c- contrações ectópicas ventriculares isoladas em número maior que 50 unidades por registro em cães da raça Boxer podem ser indicativos de cardiomiopatia; d- assistolias em pausas maiores que dois segundos em cães da raça Cocker Spaniel podem ser indicativos de cardiomiopatia; e- presença de alterações do segmento ST pode ser indicativo de cardiomiopatia em cães das três raças estudadas.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  17 Jul 2002
• Data do Fascículo
  Abr 2002

Histórico

• Aceito
  16 Jan 2002
• Recebido
  12 Jan 2000