Open-access Análise quantitativa dos mecanismos de transferência de força cortante de vigas de concreto armado reforçado com fibras de aço

Quantitative analysis of shear transfer mechanisms in steel fibers reinforced concrete beams

Resumo

O entendimento do comportamento à força cortante de vigas de concreto armado, especialmente as vigas de concreto reforçado com fibras de aço (CRFA), ainda é um desafio para a comunidade científica, devido à complexidade do comportamento dos materiais. No entanto, a evolução da técnica de correlação por imagem digital (CID) permitiu a obtenção de dados experimentais fundamentais para a modelagem do comportamento mecânico do CRFA, contribuindo para um melhor entendimento do problema e dos mecanismos resistentes à força cortante. Neste sentido, o presente estudo avalia oito vigas de concreto armado, com e sem fibras de aço, utilizando a técnica CID para quantificar os mecanismos resistentes, com foco nos modelos que podem representar a contribuição das fibras. Os resultados revelaram que os mecanismos preponderantes no comportamento à força cortante foram o engrenamento dos agregados e as fibras de aço. Este estudo representa um avanço no entendimento mais racional do comportamento à força cortante, assim como identifica lacunas que requerem estudos mais aprofundados, como a influência das fibras em todos os mecanismos resistentes e a formulação da contribuição das fibras de aço.

Palavras-chave: Comportamento à força cortante; Concreto reforçado com Fibras de Aço (CRFA); Mecanismos de resistência; Correlação por Imagem Digital (CID).

Abstract

The shear behavior of reinforced concrete beams, particularly those with steel fiber reinforced concrete (SFRC), remains a challenge for the scientific community, as it involves complex material behavior. However, the advancement of the digital image correlation (DIC) technique has facilitated the acquisition of essential experimental data for modeling the mechanical behavior of SFRC, contributing to a better understanding of the problem and the shear resistance mechanisms. In this study, eight reinforced concrete beams, with and without steel fibers, were evaluated using the DIC technique to quantify the resistance mechanisms, with a focus on models that may represent the contribution of the fibers. The results revealed that the predominant mechanisms in shear behavior were aggregate interlock and the steel fibers. This study also represents a step towards a more rational understanding of shear behavior, while identifying gaps that require further investigation, such as the influence of fibers on all resistance mechanisms and the formulation of the contribution of steel fibers.

Keywords: Shear behavior; Steel Fiber Reinforced Concrete (SFRC); Resistance mechanisms; Digital Image Correlation (CID).

Introdução

O concreto convencional, apesar de suas inúmeras aplicações na engenharia, possui algumas limitações devido à sua baixa resistência à tração. Como alternativa, o concreto reforçado com fibras de aço (CRFA) apresenta um comportamento estrutural caracterizado por uma resistência à tração residual pós-fissuração, resultante da capacidade das fibras em transferir tensões. Uma das grandes vantagens do uso do CRFA é a possível redução do custo da construção, uma vez que pode encurtar o tempo de execução, eliminando ou reduzindo a etapa de arranjo de armadura (Vitor; Santos; Trautwein, 2018; Cavalaro; Blanco; Pieralisi, 2019). Especificamente, a substituição da armadura transversal pelas fibras de aço mostra-se interessante quando se busca reduzir o congestionamento de armaduras. Essa redução ou eliminação da armadura transversal convencional pode ser especialmente útil em obras de caráter arquitetônico, como o exemplo do telhado a aberto de Maison de l’écriture (Figura 1a) na Suíça, onde o uso de 20 kg/m³ de fibras auxiliou nas regiões de difícil execução, reduzindo a necessidade de armaduras convencionais. Outro exemplo é o Parque Oceanográfico de Valencia, na Espanha (Figura 1b), onde a casca da edificação com espessura de 6 centímetros foi feita com uma única camada de tela de aço e concreto com 50 kg/m³ de fibras de aço.

Ao remover a armadura transversal em estruturas mais convencionais, como vigas, é importante estar ciente da possibilidade de ruptura por força cortante, que é considerada um dos modos de falha mais graves para estruturas de concreto armado. Ao contrário da falha por flexão, por exemplo, a ruptura por força cortante não apresenta aviso, o que significa que a estrutura pode estar próxima da ruptura sem sinais visíveis. Portanto, as falhas por força cortante geralmente resultam em perdas drásticas e devem ser evitadas com alta prioridade (Yang; Walraven; Uijl, 2017). Nesse sentido, é fundamental ter uma compreensão precisa da transmissão da força cortante no concreto, utilizando modelos que descrevam de forma realista o comportamento estrutural.

No que se refere ao dimensionamento de elementos de concreto armado, existem várias teorias bem estabelecidas, como o modelo de Biela e Tirante (Ritter, 1899), baseado em considerações de equilíbrio, a teoria do campo de compressão (Compression Field Theory) (Collins e Mitchell, 1991) e os modelos de treliça suavizados (Softened Truss Models) (Pang; Hsu, 1995). Estes modelos podem ser aplicados quando a armadura transversal é fornecida, mas a situação é bem diferente se trata de elementos sem a presença dela. A resistência à força cortante desses elementos tem sido tradicionalmente estimada por meio de expressões puramente empíricas ou semi-empíricas (Dang et al., 2021). O grande problema desse tipo de equação, de acordo com Lantsoght (2019), é que a dispersão dos resultados é alta, uma vez que as equações não são baseadas em um modelo mecânico consistente. Portanto, elas dependem do banco de dados de experimentos para os quais foram originalmente derivadas. No caso específico do concreto reforçado com fibras de aço (CRFA), a situação ainda apresenta uma nova variável ao problema. A incorporação de fibras na matriz do concreto é uma forma eficaz de controlar a abertura de fissuras diagonais induzidas por cisalhamento, aumentando assim a capacidade de transferir tensões de cisalhamento através das fissuras. Consequentemente, a adição de fibras de aço pode aumentar a resistência à força cortante do elemento de concreto armado (Amin; Foster, 2016).

Figura 1 -
Maison de l’écriture (a) e Parque Oceanográfico de Valencia em (b)

O consenso no meio acadêmico é que a força cortante é transmitida por meio de vários mecanismos, ativados a partir do surgimento da fissura diagonal crítica (Yang; Walraven; Uijl, 2017; Lantsogth, 2019):

  1. a altura da zona comprimida que se refere à altura comprimida não fissurada de concreto;

  2. engrenamento dos agregados, relacionado ao atrito entre as paredes da fissura; o efeito de pino que está ligado à armadura longitudinal de tração;

  3. a tensão residual à tração do concreto, presente em trechos quase horizontais da fissura onde há apenas abertura (w); e

  4. ação de arco, que depende da relação a/d (relação vão de cisalhamento por altura útil da viga).

Esses mecanismos estão fortemente inter-relacionados, e a importância relativa de cada um deles tem sido objeto de extenso debate em vigas de concreto convencional, e também em vigas de CRFA (Zarrinpour; Chao, 2017; Gali; Subramaniam, 2019). Nesse contexto, a disponibilidade de modelos matemáticos compostos por mecanismos de resistência auxilia na determinação da contribuição percentual de cada um deles para a resistência total a força cortante. Isso permite ter equações e hipóteses mais realistas, sustentadas por explicações racionais do comportamento real do elemento estrutural.

Uma ferramenta que tem auxiliado no estudo dos mecanismos de transferência de força cortante e permitido o desenvolvimento de pesquisas nos últimos anos é a correlação de imagem digital (CID). A CID é uma técnica que, através de câmeras, permite a coleta de imagens em um intervalo de tempo determinado durante o experimento, que varia de acordo com o tipo de ensaio realizado. Após a coleta, softwares de correlação utilizam algoritmos de rastreamento e operações matemáticas para fornecer os valores necessários para a geração de campos de deslocamento e deformações da superfície estudada (Jones et al., 2018). A metodologia da CID tem se mostrado eficiente no estudo da cinemática da fissuração para o concreto convencional (Cavagnis; Fernández Ruiz; Muttoni, 2015; Belbachir et al., 2020; Garnica, 2018; Cantone et al., 2022) e, mais recentemente, também no CRFA (Zarrinpour; Chao, 2017; Gali e Subramaniam, 2019; Resende et al., 2021). Entretanto, apesar dos avanços, ainda há escassez de dados dessa cinemática e conclusões sobre a atuação dos mecanismos de transferência de força cortante.

Nesse contexto, o presente trabalho concentra-se na quantificação dos mecanismos de transferência de força cortante para o CRFA, avaliando a porcentagem de cada um desses mecanismos e comparando com os valores obtidos experimentalmente. A análise adota equações de modelos bem fundamentados da literatura para o engrenamento dos agregados (Vagg), zona comprimida não fissurada (Vcz), efeito de pino (Vd) e tensão residual (Vres). É dado ênfase à parcela referente às fibras de aço, para a qual dois modelos provenientes do ensaio de arrancamento (pullout) são utilizados. Para tanto, foi utilizada a técnica de correlação por imagem digital (CID), que permite aferir a força cortante a partir dos resultados de abertura (w) e deslizamento (δ) das faces da fissura. A importância deste trabalho reside na análise da contribuição relativa dos diversos mecanismos de transferência de força cortante, comparando o comportamento do concreto com e sem fibras de aço. Além disso, é discutido o aumento de resistência proporcionado pelas fibras em todo o processo de fissuração, não se limitando apenas ao momento de ruptura das vigas.

Referencial teórico

Mecanismos de transferência de força cortante

De acordo com o Comitê 426 da ACI-ASCE (ASCE, 1973), existem mecanismos capazes de transferir esforços entre as seções fissuradas de estruturas de concreto armado submetidas a esforços de cisalhamento. Para um modelo mecânico que explique o fenômeno da ruptura por cisalhamento, é necessário combinar todos os mecanismos responsáveis pela transferência de tensão (Lantsoght, 2019; Belbachir et al., 2020; Bahniuk; Borçato; Pieralisi, 2022): o engrenamento dos agregados (Vagg), que resulta das forças de contato entre os agregados que atravessam a fissura, o efeito de pino (Vd), que decorre da interação entre as barras longitudinais e o concreto que as envolve, a resistência residual na zona de processamento da fratura (Vres), que ocorre devido ao atrito entre os agregados em regiões quase horizontais, e a transferência de tensões através da zona comprimida não fissurada (Vcz). Adicionalmente, em situações em que há proximidade entre o apoio e a região de aplicação de carga, um fenômeno físico secundário, conhecido como efeito de arco (Varc), pode contribuir com a transmissão direta de carregamentos ao apoio (de Sousa; Lantsoght; El Debs, 2020). A Figura 2 ilustra a representação desses mecanismos, conforme explicado.

Figura 2 -
Mecanismos de transferência de força cortante no CRFA

Recentes estudos indicam que a cinemática da fissura possui uma forte relação com a preponderância dos mecanismos resistentes (Huber; Huber; Kollegger, 2019; Lantsoght, 2019; Resende et al., 2021). Por isso, considera-se como variáveis que se inter-relacionam: a cinemática da fissura crítica, o comportamento constitutivo dos mecanismos resistentes e o equilíbrio com o carregamento aplicado. Para isso, é necessário uma discretização física eficiente para cada caso, de forma a analisar os modelos constitutivos dos mecanismos (Zarrinpour; Chao, 2017; Bi et al., 2021).

Assim, a definição de cada um destes mecanismos é dada a seguir.

Engrenamento dos agregados (Vagg)

O engrenamento dos agregados é um mecanismo que ocorre entre as duas superfícies originadas por uma fissura diagonal crítica. A transferência de força cortante é feita pela restrição mecânica das partículas de agregado que se sobressaem de uma face, acarretando em um atrito na face oposta da fissura (Huber; Huber; Kollegger, 2019). Segundo Matos et al. (2020), esse efeito depende da área de contato entre as faces, e consequentemente, da abertura (w) e do deslizamento (δ) da fissura.

De acordo com Huber, Huber e Kollegger (2019) o mecanismo de engrenamento dos agregados pode ser responsável por 35% a 50% da capacidade de carga última de certos elementos estruturais de concreto armado. Yang, Walraven e Uijl (2017) afirmam que, em vigas esbeltas, até 50% da força de cisalhamento pode ser transferida pelas bordas das fissuras graças ao engrenamento dos agregados. Esses mesmos autores também indicam que, no caso de vigas sem armadura transversal, a contribuição do engrenamento dos agregados na resistência ao cisalhamento também pode ser influenciada pela relação a/d.

Efeito de pino (Vd)

O efeito de pino pode ser entendido como a resistência ao cisalhamento dada pela armadura longitudinal de flexão que atravessa as fissuras (Walraven, 1980). Em geral, o efeito de pino não é relevante em elementos sem armadura transversal, devido à sua ação limitada pela resistência à tração da camada de concreto que cobre a armadura.

Resende (2020) propôs a análise do mecanismo a partir da discretização da região de contato entre a barra e o concreto como uma viga bi-engastada. O autor mostra que o uso de fibras de aço aumenta a resistência fornecida pelo efeito de pino e que há um aumento dessa contribuição conforme aumenta a resistência à tração residual do concreto com fibras.

Zona comprimida de concreto não fissurado (Vcz)

Na área comprimida não fissurada acima da fissura diagonal crítica de um elemento em concreto armado, a força cortante é transmitida por meio das tensões principais inclinadas e das tensões de compressão. A integração da tensão de cisalhamento através da espessura da zona comprimida fornece a componente da força cortante resistida pela seção (Vcz). A contribuição da zona comprimida nas vigas é estimada em uma faixa de 20% e 40% (Fenwick; Paulay, 1968; Kim et al., 2018).

Resistência residual à tração do concreto (Vres)

A ideia fundamental desse mecanismo baseia-se de que as fissuras de cisalhamento não são planas, ou seja, sempre existem pequenas áreas de contato entre as duas faces da fissura, permitindo o desenvolvimento de tensões de tração até determinados limites de abertura da fissura. Conforme Cavagnis, Fernández Ruiz e Muttoni (2015), Ruiz, Muttoni e Sagaseta (2015), a tensão residual é predominante na parte superior da fissura de cisalhamento crítica (parte quase horizontal), e é caracterizada por uma resposta de abertura em modo I. Ou seja, a tensão residual está presente nas parcelas onde há somente tração, e portanto, somente abertura de fissura (w).

Efeito de arco (Varc)

A ação em arco pode ser compreendida como o fenômeno no qual as cargas são transmitidas por compressão dentro da estrutura. Em vigas mais esbeltas, o banzo comprimido inclina-se na direção dos apoios e é capaz de transmitir diretamente para estas partes do carregamento. O trabalho de Cavagnis, Fernandes Ruiz e Muttoni (2018a, 2018b) indicam que o fenômeno acontece normalmente nos casos de proximidade entre o apoio e a região de aplicação da carga. A relação entre o vão de cisalhamento e a profundidade (a/d) influencia o modo de falha, conhecido do vale de Kani (Spinella, 2013). A relação limite, segundo Kani (1987), pode ser a/d = 2.5. No entanto, o autor ressalta que o limite (a/d) não é totalmente determinante, e o comportamento mecânico depende de outros fatores, como a taxa de armadura longitudinal.

Contribuição das fibras de aço (Vfib)

Uma forma de representar a contribuição das fibras em função da abertura (w) e deslizamento (δ) é através de equações provenientes de ensaios de arrancamento (pullout). Os modelos consideram a contribuição fornecida pelas fibras, incluindo o efeito da orientação das fibras, e as tensões normais e de cisalhamento que surgem do acoplamento desses mecanismos em termos de processo de fissuração (Kaufmann et al., 2019; Matos et al., 2020).

Correlação por imagem digital

A Correlação de Imagem Digital (CID) possibilita a medição da superfície de uma amostra por meio da comparação de uma imagem de referência não deformada com uma sequência de imagens deformadas. Tal comparação é realizada mediante o rastreamento de pontos ou padrões entre as imagens. Para o registro e o rastreamento das imagens, são empregados pontos padronizados denominados speckles, os quais são distribuídos aleatoriamente na superfície de interesse. Por meio de imagens sucessivas ou vídeos dos ensaios laboratoriais, é possível obter os deslocamentos e campos de deformações da região de interesse. Para tanto, pode-se utilizar uma única câmera para medições em um plano (2D) ou múltiplas câmeras para a obtenção de informações em três dimensões (3D). Um exemplo de aplicação da CID é a aferição dos deslocamentos relativos de fissuras provenientes do esforço cortante de vigas de concreto, onde se utiliza normalmente uma única câmera, já que o problema é essencialmente bidimensional (Jones et al., 2018; Garnica, 2018).

A CID apresenta algumas vantagens importantes em relação às medições tradicionais com LVDT. No caso específico da análise de força cortante, é necessário rastrear a fissura crítica principal. Como não é possível determinar o local exato do início da fissura para posicionar os LVDTs, é necessário avaliar toda uma área de interesse. A CID, por sua vez, permite a obtenção de medições de campo completo e o rastreamento contínuo da evolução de cada fissura individualmente, o que se configura em uma vantagem significativa em relação aos LVDTs (Cavagnis; Fernandes Ruiz; Muttoni, 2018b; Resende, 2020).

Figura 3 -
Aplicações da correlação por imagem digital (CID). a) comparativo entre CID e MEF, b) detecção automática de fissuras e c) análise fotogramétrica da superfície de ruptura de um ensaio push-off

Para representar a robustez do método, a Figura 3 mostra aplicações importantes na engenharia, apresentadas nos últimos anos. Na Figura 3a é feita uma análise de pavimento, onde compara-se os valores do campo de tensões da CID com simulações pelo método dos elementos finitos (MEF). Na Figura 3b a CID é usada na detecção automática de fissuras. Na Figura 3c é apresentada a superfície de ruptura de um de push-off, tanto em 2D quanto em 3D.

Materiais e métodos

Vigas ensaiadas

Os elementos ensaiados neste programa experimental foram 8 vigas de concreto armado, variando o volume de fibras de aço utilizados na dosagem do concreto. Todas as vigas possuíam as mesmas armaduras longitudinal inferior de 2φ de 12.5 mm e longitudinal superior de 2φ de 8.0 mm (ver Figura 4). A seção transversal foi mantida constante em 100 x 200 mm e o vão efetivo em 900 mm. Do total de vigas, duas foram produzidas com concreto sem adição de fibras (C0, sendo V001 e V002), três com adição de 0.5% (em volume) de fibras (C0.5, sendo V051, V052 e V053) e três com adição de 1.0% (em volume) de fibras de aço (C1.0, sendo V101, V102, V103). Para assegurar que a ruptura acontecesse em uma região definida da viga, metade foi armada com estribos de φ5.0 mm a cada 6 cm. A outra metade, sem armadura transversal, foi a seção monitorada com auxílio da metodologia de correlação por imagem digital (CID). Para melhor representação, a Figura 4 mostra um resumo da campanha experimental, onde as dimensões estão em milímetros.

Materiais e dosagem do concreto

O consumo de materiais utilizados neste estudo está resumido na Tabela 2. Para todos os concretos produzidos, o cimento CP II F-32 foi definido como aglomerante, com consumo mantido constante de 468 kg/m³. O traço foi calculado considerando-se um concreto convencional, com base no método do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT) (Tutikian; Helene, 2011). A relação água/cimento (a/c) foi mantida constante em 0.45 para todas as dosagens. Foi selecionada uma areia natural com módulo de finura de 2 e massa específica igual a 2.57 kg/m³ como agregado miúdo. Como agregado graúdo, foi utilizado brita 1 de origem basáltica com diâmetro máximo de 12.7 mm e massa específica de 2.78 kg/m³. O consumo de agregado graúdo variou ligeiramente entre os três traços para corrigir as dosagens que tiveram adição de fibras de aço. As fibras de aço utilizadas foram Dramix® Bekaert 3D 45/30 com extremidades em gancho (as principais características das fibras estão apresentadas na Tabela 3). Para manter a mesma característica no estado fresco (abatimento100 mm +/- 20 mm), foi utilizado o aditivo superplastificante MC-Bauchemie Muraplast FK 25 nas dosagens com adição das fibras de aço. Além disso, os concretos com fibras de aço tiveram o volume de agregados modificado por conta da inserção das fibras (Resende et al., 2021; Gomes; De Resende; Cardoso, 2023; Huber; Huber; Kollegger, 2019; Boulekbache et al., 2012). Para distinguir entre os traços de concretos testados, foram utilizadas a nomenclaturas C0, C0.5 e C1.0 para os concretos sem adição de fibra, com 0.5% de fibras em volume e com 1.0% de fibras em volume, respectivamente.

Figura 4 -
Características das vigas armadas (dimensões em mm)

Tabela 2 -
Consumo de materiais

Tabela 3 -
Especificações da fibra de aço

A moldagem das vigas foi realizada manualmente e foi empregada vibração externa. Esses procedimentos foram mantidos constantes em todas as vigas para não influenciar a orientação das fibras. Todas as vigas foram desmoldados depois de 24 horas, com a cura feita através de molhagem diária durante 21 dias, sendo envoltos em lona para evitar evaporação da água.

Caracterização dos concretos

A caracterização mecânica no estado endurecido de cada traço foi realizada por meio dos seguintes ensaios: resistência a compressão em 8 corpos de provas cilíndricos de φ100x200 mm, conforme a NBR 5739 (ABNT, 2018), e resistência a tração na flexão em 3 corpos de provas prismáticos de 150x150x550 mm, de acordo com a NBR 16940 (ABNT, 2021). Todos esses ensaios foram realizados aos 28 dias de idade. A Tabela 4 apresenta os resultados médios de resistência à compressão (fc), limite de proporcionalidade (fct,fl) e resistências residuais (fR1, fR2, fR3, fR4 ). O coeficiente de variação (CV) também é apresentando entre parênteses para os três traços estudados. Importante apontar que o CV proveniente do ensaio de tração na flexão é reconhecidamente expressivo (DuPont; Vandewalle, 2005; Molins; Aguado; Saludes, 2009; Cavalaro; Aguado, 2014). Entre outras razões, a dispersão dos valores pode ser atribuída à distribuição aleatória das fibras no corpo de prova (Wille; Parra-Montesinos, 2012).

Configuração e procedimento de ensaio

A prensa INSTRON EMIC 23-300, com uma célula de carga de 300 kN de capacidade máxima e precisão de 1%, foi utilizada para realizar o ensaio de flexão de três pontos nas vigas, operando em modo de controle de deslocamento com uma velocidade de 0.02 mm/s. Foi instalado um sensor LVDT para registrar a flecha (deslocamento máximo) no centro do vão efetivo da viga. A Figura 6 ilustra os equipamentos utilizados e sua disposição para o correto registro das imagens durante o ensaio. Além da prensa e LVDT já mencionados, foram instalados uma câmera Canon modelo DSLR EOS Rebel SL3 equipada com uma lente EF-S 40mm e um refletor para favorecer a obtenção de dados com a técnica CID.

Após a filmagem completa do ensaio, utilizou-se o software GOM Correlate® (2019) para obter os campos de deformação e deslocamento, com um subset de tamanho 12 x 12 pixels e um passo de 7 pixels. De forma geral, a metodologia associada à CID apresentada neste trabalho é representada pela Figura 7, a qual apresenta semelhanças com trabalhos recentes que obtiveram resultados satisfatórios (Assis et al., 2022; Košćak et al., 2022; Montoya-Coronado et al., 2023). A partir dos vídeos gravados durante os ensaios nas vigas (Figura 7a), o software GOM correlate foi o responsável pela leitura das variáveis envolvidas nos estudos posteriores (Figura 7b). Por meio do mapeamento das fissuras e das devidas manipulações trigonométricas, os deslocamentos relativos de abertura (w) e deslizamento (δ) das fissuras foram obtidos ao longo do ensaio experimental (Figura 7c).

Tratamento dos resultados

O tratamento dos dados obtidos foi feito através da quantificação dos mecanismos considerados, sendo o engrenamento dos agregados (Vagg), efeito de pino (Vd), zona comprimida não fissurada (Vcz), e tensão residual (Vres), foram utilizados modelos consolidados na literatura. A ação de arco não foi quantificada em virtude da relação a/d ser igual a 2,58, sendo os corpos de prova considerados como esbeltos, sem interferência direta deste mecanismo. O Quadro 1 mostra o resumo das equações utilizadas, e a definição das variáveis envolvidas.

No entanto, modelos que representem a atuação das fibras de aço ainda é objeto de discussão. Para este propósito, são apresentados os modelos de arrancamento de fibra: Pfyl (Pfyl, 2003), e Unified Variable Engagement Model (UVEM) (Htut, 2010). Os 2 modelos equacionam a tensão normal provocada pelas fibras (σcf), conforme dado a seguir.

Tabela 4 -
Resultado da caracterização dos concretos

Figura 6 -
Procedimento de ensaio utilizado na CID

Figura 7 -
Resumo da metodologia, em (a) filmagem dos ensaios, (b) pós processamento no GOM correlate e (c) aberturas e deslizamentos da fissura

Quadro 1 -
Resumo das equações utilizadas e variáveis envolvidas

Modelo de Pfyl

No modelo de Pfyl, são adotadas as seguintes hipóteses:

  • (e) as fibras são consideradas uniformemente distribuídas e orientadas aleatoriamente;

  • (f) a rigidez à flexão das fibras é desprezada e, portanto, a fibra e o carregamento têm a mesma direção;

  • (g) a deformação da matriz é desconsiderada; e

  • (h) a tensão de aderência ao longo do comprimento embutido das fibras é considerado constante.

A tensão normal das fibras de aço possui uma parcela de ativação das fibras, até uma abertura limite wc0 (0 ≤ w ≤ wc0) e outra de arrancamento (wc0 ≤ w ≤ lf/2), da forma (Equação 1):

σ c f = 2 w w c 0 - w w c 0 σ c f 0 0 w w c 0 1 - 2 w l f 2 σ c f 0 w c 0 w l f / 2 Eq. 1

Onde:

w é a abertura de fissura;

wc0 a abertura limite; e

lf o comprimento da fibra;

σcf0 é a tensão da fibra efetiva (Equação 2):

σ c f 0 = n θ f V f τ b f l f d f Eq. 2

Onde:

nθf é a variável que leva em conta a orientação das fibras;

df é o diâmetro da seção transversal das fibras;

Vf o volume de fibra na composição; e

τbf é a tensão de ligação média das fibras (Equação 3):

τ b f = 0,6 f c 2 / 3 Eq. 3

Onde fc é a resistência a compressão média do concreto.

Por fim, a abertura limite wc0 é (Equação 4):

w c 0 = τ b f l f ² d f E f Eq. 4

Onde Ef é o módulo de elasticidade das fibras, e ainda (Equação 5):

n θ f = 1 + c o s θ w π Eq. 5

Com θw sendo o ângulo de arrancamento, dado como (Equação 6):

θ w = a r c t a n δ w Eq. 6

Unified Variable Engagement Model (UVEM)

O UVEM adota as seguintes hipóteses:

  • (a) a resposta global do CRFA é obtida adicionando a contribuição da matriz e do componente de fibra;

  • (b) as fibras são assumidas como tendo uma distribuição uniforme e igual probabilidade de ter qualquer orientação;

  • (c) o arrancamento é assumido como ocorrendo a partir do lado mais curto embutido da fibra, enquanto o lado mais longo fica perfeitamente ligado à matriz circundante (sem deslizamento); e

  • (d) deformações elásticas das fibras são desconsideradas.

A tensão normal das fibras σcf é dada por (Equação 7):

σ c f = n f , U V E M V f l f d f τ b , a v g Eq. 7

Onde nf,UVEM é o fator de orientação das fibras, dado por (Equação 8):

n f , U V E M = a + γ c r i t π 1 - 2 w l f 1 2 - w l f Eq. 8

Sendo (Equação 9):

a = m i n γ c r i t , π 2 Eq. 9

Onde τbf,avg é a tensão média de aderência entre a fibra e a matriz, dada por (Equação 10):

τ b , a v g = τ b 0 + 0,0625 γ c r i t 3 Eq. 10

Onde τb0 é a tensão de aderência quando a fibra está alinhada com a direção de carregamento, que pode ser dada como 0.8√fcm, γcrit é um ângulo crítico de flexão da fibra que representa o ângulo até o qual as fibras contribuem para o mecanismo de transferência de tensão (Equação 11):

γ c r i t = 2 γ m a x π a r c t a n 3,5 w d f 3 Eq. 11

Onde γmax é ângulo máximo de arrancamento, podendo ser π/2.

Similar ao engrenamento dos agregados, a contribuição das fibras foi considerada desde o início da fissura crítica, até a ruptura da viga. Ainda, a aplicação das equações no presente trabalho seguiu a metodologia de Kaufmann et al (2019) e Matos et al. (2020), que consideram a tensão normal proveniente dos modelos citados axial às fibras. Desta forma, e em função do ângulo θw, a tensão pode ser decomposta em tensão normal σf e tangencial τf, como mostra a Figura 8.

Mediante a técnica de correlação por imagem digital (CID), os dados referentes à abertura (w) e ao deslizamento (δ) da fissura crítica de cisalhamento foram obtidos. Com base nesses valores, foi possível calcular os mecanismos de transferência de força cortante das vigas, bem como comparar os resultados obtidos com a força cortante experimentalmente determinada.

Inicialmente são apresentados os resultados ao longo do ensaio para os 2 modelos que representam as fibras de aço: Pfyl, e UVEM. Após isso, os valores de todos os mecanismos de transferência de força cortante são apresentados no instante da ruptura (Vmax). Para esta última parte das análises, as hipóteses adotadas para a apresentação desses resultados foram:

  • (a) a tensão residual (Vres) só é ativada em parcelas quase horizontais das fissuras, onde o deslizamento é nulo ou com valores próximos de 0. Caso a fissura não apresente essa parcela, considera-se que não há esse mecanismo;

  • (b) nas parcelas onde a tensão residual (Vres) era considerada, o engrenamento dos agregados (Vagg) era nulo ou desprezível, para não sobrepor o efeito de transferência por atrito entre as paredes da fissura;

  • (b) a tensão de pino (Vd) é ativada no instante em que a fissura atinge ou surge no nível da armadura; e

  • (c) o engrenamento dos agregados (Vagg), contribuição das fibras (Vfib) e zona comprimida (Vcz) são os mecanismos atuantes do início ao fim da propagação da fissura.

Resultados e discussões

Para efeitos de comparação, a Tabela 5 apresenta os valores máximos de força cortante interna (obtidos dividindo por dois a força aplicada pela prensa no meio do vão da viga) encontrados no instante da ruptura (Vmax). Para esses dados, foram realizados os testes estatísticos ANOVA e Turkey, que revelaram diferenças significativas entre os valores de resistência máxima à força cortante (Vmax), e também entre os deslocamentos relativos, com valor-p ≤ 0.05 para todos os casos.

Figura 8 -
tensão da fibra decomposta em normal e tangencial

Tabela 5 -
Comparativo de valores das vigas para Vmax

A diferença mais significativa observada na Tabela 4 refere-se à magnitude da abertura máxima (wmax) e deslizamento máximo (δmax) entre as vigas com e sem fibras. As vigas V001 e V002 apresentaram ruptura com pouco desenvolvimento dos deslocamentos relativos. Por outro lado, as vigas com maior volume de fibras na composição apresentaram deslocamentos maiores da fissura.

Foi observado um aumento significativo na resistência máxima (Vmax) ao adicionar fibras ao concreto. Esse ganho de resistência foi especialmente expressivo ao comparar as vigas sem e com aquelas conteto 1.0% de fibras, sendo a ressitência média desta última 86.4% maior que a da primeira.

Para continuação das análises, são apresentados os resultados dos 2 modelos que representam a parcela referente ao mecanismo das fibras de aço (Vfib): Pfyl e UVEM. Os resultados são apresentados ao longo do processo de ruptura das vigas, desde o início da fissura diagonal crítica (FDC), até a ruptura, onde ocorre a força cortante máxima resistida pela viga (Vmax). Cavagnis, Fernandez Ruiz e Muttoni (2015) e Garnica (2018) ressaltam a importancia da análise dos mecanismos ao longo do processo de fissuração, para que se possa visualizar o comportamento do mecanismo concomitantemente ao desenvolvimento da fissuração do elemento estrutural. Como nesse primeiro momento o foco é avaliar as equações de contribuição das fibras ao longo do ensaio, as vigas sem fibras (V001 e V002) não foram utilizadas. Assim, a Figura 9 mostra os resultados de força cortante referente às fibras sobre a força cortante experimental (Vfib/V) para as vigas com 0.5% e 1.0% de fibras em volume na composição, bem como uma imagem do instante da ruptura, indicando qual é a fissura diagonal crítica (FDC).

Com relação à Figura 9-a, é possível perceber uma variação expressiva nos valores encontrados pelos modelos adotados, quando comparadas as 3 vigas com 0.5% de fibras. O modelo de Pfyl manteve-se majoritariamente no patamar de valores mais altos para as 3 vigas analisadas, enquanto o UVEM manteve-se, na maior parte do processo, com os valores mais baixos. Na viga V053 os valores tiveram uma tendência decrescente a medida que a força cortante se aproxima de Vmax, diferentemente da viga V052 onde os valores tenderam a um aumento sutil. A variação nos valores de Vfib justifica-se pela cinemática da FDC, que varia entre os elementos estruturais. As equações dos modelos de arrancamento são em função da abertura (w) e deslizamento (δ), e dependendo desses valores medidos, a curva pode ter tendência ascendente ou descendente. Além disso, a propagação da FDC também varia. Quanto mais a fissura propaga, maior a superfície de ativação das fibras. Essas observações corroboram com as afirmativas de Zarrinpour e Chao (2017), Kaufmann et al. (2019) e Bi et al. (2021), sobre a dependência dos mecanismos de transferência e da cinemática da fissuração.

Figura 9 -
Modelos da parcela do mecanismo das fibras para as vigas com 0.5% (a) e 1.0% (b) de fibras na composição, com a indicação da fissura diagonal crítica (FDC)

Além disso, destaca-se para a variação na relação Vfib/Vmax, ao final do ensaio. Avaliando o modelo de Pfyl, por exemplo, para a viga V051 no instante de Vmax, a parcela referente às fibras corresponde a 0.26Vmax, e na V052 é referente a 0.22Vmax. Já na V053 os valores foram praticamente o dobro, sendo 0.45Vmax. Reitera-se a partir destas análises o quanto a cinemática da fissura diagonal crítica influencia na ativação e desenvolvimento dos mecanismos de transferência de força cortante. Visualmente, as vigas V052 e V053 foram similares no instante da ruptura, com ambas tendo fissuras menos desenvolvidas mais próximas à aplicação da força, e a fissura diagonal crítica se desenvolvendo mais próxima ao apoio. Entretanto, a particularidade do desenvolvimento e propagação das fissuras, influenciou diretamente nos valores de aberturas (w) e deslizamentos (δ), e, consequentemente, no valor de Vfib.

O comportamento dos modelos para as vigas com 1.0% de fibras (Figura 9b) também apresentou variações atreladas à cinemática da fissura diagonal crítica. Na viga V101 os modelos mostraram uma contribuição com tendência decrescente das fibras, enquanto na viga V102 foi majoritariamente crescente. Também similar às vigas com 0.5% de fibras de aço (Figura 9a), o modelo UVEM apresentou os menores valores da contribuição do mecanismo durante o ensaio, e nos 3 casos.

Observa-se que o valor do mecanismo referente às fibras de aço não teve um aumento expressivo na sua preponderância, quando comparadas as vigas com 0.5% e 1.0% de fibras de aço. Nesse caso, a última possuía o dobro de fibras na composição, e resistência à força cortante (Vmax) maior que a primeira. Mesmo assim, a relação Vfib/V se manteve com valores baixos, similares às vigas do C0.5.

Conforme o equacionamento dos demais mecanismos de transferência de força cortante apresentados no Quadro 1, a Figura 10 mostra o somatório de todos estes no instante da ruptura (Vmax). Também na Figura 10, foram somados aos demais mecanismos, os 2 modelos para representação de fibras aqui avaliados: modelo de Pfyl (F1) e UVEM (F2).

Observando-se as vigas V001 e V002, sem fibras, percebe-se que a somatória dos mecanismos fica próxima do valor do esforço cortante experimental. Ou seja, as equações utilizadas para o engrenamento dos agregados (Vagg), zona comprimida não fissurada (Vcz), efeito de pino (Vd) e tensão residual (Vres) mostraram-se coerentes.

Ao avaliar a parcela referente a cada um dos mecanismos, nota-se que o efeito de pino (Vd) e a tensão residual (Vres) foram menos representativos que o engrenamento dos agregados e as fibras. De fato, Huber, Huber e Kollegger (2019) e Lantsogth (2019) já haviam apresentado conclusões similares, indicando que para o concreto sem fibras e estribos, o engrenamento dos agregados é o mecanismo preponderante na transferência de força cortante.

A zona comprimida não fissurada (Vcz) foi ligeiramente maior nas vigas do concreto C1.0. Entretanto, esse mecanismo é diretamente relacionado à altura não fissurada da viga, que por sua vez, depende também da cinemática da FDC. Neste trabalho, assim como em Cavagnis, Ruiz e Muttoni (2018a) e Huber, Huber e Kollegger (2019), não houve uma relação direta entre variação dessa altura não fissurada e o volume de fibras na composição.

Figura 10 -
Mecanismos de transferência de força cortante para as vigas de CRFA

No CRFA, as fibras são as principais responsáveis pelo ganho de resistência pós fissuração, e por isso, espera-se que para altos níveis de carregamento, o mecanismo preponderante seja as fibras de aço. Porém, os modelos avaliados não traduziram este comportamento.

Ressalta-se também a parcela relevante referente ao engrenamento dos agregados, de forma geral. Parcela essa, mais acentuada nas vigas sem fibras (V001 e V002), onde o mecanismo representou 0,87Vmax e 0,65Vmax, respectivamente. Observou-se que, na ruptura, a influência do engrenamento dos agregados diminuiu nas vigas de concreto reforçado com fibras em comparação com as vigas de concreto sem fibras. Essa mudança era esperada, considerando que os valores de abertura de fissura foram maiores nas vigas com concreto reforçado com fibras (Zarrinpour; Chao, 2017; Bi et al., 2021). Em situações de maior abertura de fissura, as faces dos planos de ruptura se afastam, perdendo a capacidade de transferir força cortante por meio do engrenamento dos agregados. Destaca-se ainda que a variação no volume de agregados graúdos do traço em detrimento da adição de fibras é substancialmente pequena (até 1% em volume), principalmente quando comparada à dispersão de resultados de modelos mecânicos de engrenamento dos agregados (Matos et al., 2020). Dessa forma, não há interferência na quantificação deste mecanismo devido à essa mudança na composição do material.

Ao passo que a abertura aumenta, o engrenamento dos agregados diminui. Também há uma diminuição gradativa da parcela referente à zona comprimida não fissurada (Vcz), pois a altura vai diminuindo com o desenvolver do processo de fissuração. A tensão residual só é computada quando a fissura possui parcelas quase horizontais, e a ação de pino quando a fissura cruza o nível da armadura longitudinal. É de se esperar, portanto, que as fibras de aço ganhem predominância nos mecanismos de transferência de força cortante, à medida que a fissuração acontece. A curva, portanto, deveria ser crescente dessa contribuição. Ao final do experimento, em altos níveis de carregamento e próximo da ruptura, é racional esperar que as fibras se mostrem preponderantes. Isto é, nas vigas sem fibras, esses níveis de carregamento e abertura de fissuras não chegaram a ser atingidos, indicando que a grande variável responsável por esse desenvolvimento do processo de fissuração, e ganho de resistência, foram as fibras.

Nas vigas V051, V052 e V053, o modelo de Pfyl (F1) apresentou os valores mais altos, contribuindo para que a somatória dos mecanismos se aproximasse mais do valor experimental. O modelo UVEM (F2) apresentou os menores valores da parcela da contribuição das fibras, em todas as análises.

Ao avaliar somente os valores no instante de Vmax, fica mais perceptível que os modelos utilizados podem ter subestimado os valores de força cortante resistido pelas fibras. Ao somar todos os mecanismos, em nenhuma viga com 1.0% de fibras na composição, o valor previsto se aproximou do valor encontrado experimentalmente.

Conclusões

O presente trabalho avaliou e discutiu as parcelas referentes a cada um dos mecanismos de transferência de força cortante de vigas de CRFA. A ênfase foi dada na representação do mecanismo das fibras de aço, já que não existe na literatura uma única forma de representar esse acréscimo de resistência ao concreto. Para que essa análise fosse possível, a técnica da correlação por imagem digital (CID) foi utilizada na aferição da abertura (w) e deslizamento (δ) da fissura diagonal crítica de cisalhamento das vigas.

Os modelos provenientes do ensaio de arrancamento pareceram subestimar os valores da parcela das fibras de aço. Apesar do modelo Pfyl apresentar boas correlações para as vigas do concreto C0.5, os valores foram baixos para as vigas do concreto C1.0. Também ressalta-se que ao observar o comportamento do mecanismo durante o processo de fissuração, os resultados mostram-se menos coerentes com o esperado para a parcela das fibras de aço. Os modelos não mostraram evolução crescente na contribuição relativa das fibras, que espera-se ser o mecanismo predominantes para altos níveis de carregamento.

O engrenamento dos agregados mostrou-se predominante nas vigas sem fibras (V001 e V002), que é uma afirmação bem aceita na literatura. As equações utilizadas para representar os demais mecanismos de transferência de força cortante também mostraram-se coerentes, tendo em vista a somatória dos mesmos ficarem muito próximos ao valor experimental de Vmax.

Ademais, constata-se que as fibras de aço exercem influência nos diversos mecanismos envolvidos na cinemática da fissura diagonal crítica, afetando, inclusive, os valores de abertura e deslizamento no instante da ruptura. É indicado, portanto, conduzir investigações adicionais por meio da metodologia apresentada neste estudo, a fim de aprofundar a compreensão acerca do impacto da incorporação das fibras em cada um dos mecanismos de transmissão de força cortante.

Algumas das principais diferenças nos mecanismos de transferência de força cortante entre as vigas com e sem fibras foram apresentadas. Percebeu-se uma dificuldade em representar a totalidade da força cortante máxima ao se somar os mecanismos atuantes com as equações propostas, principalmente nas vigas do concreto C1.0. As análises apresentadas mostram o estado incipiente da atual pesquisa, que visa contribuir para o entendimento da inserção das fibras de aço no concreto, e como isso afeta cada mecanismo presente na fissura diagonal crítica.

De maneira geral, a metodologia apresentada foi eficiente para atingir o objetivo proposto. A avaliação dos mecanismos de transferência de força cortante através de dados obtidos com a CID mostra resultados promissores. A análise da cinemática da fissura diagonal crítica e seus deslocamentos relativos é um avanço importante para obter modelos que representem o correto comportamento estrutural do CRFA. No entanto, é importante realizar uma avaliação mais cuidadosa para determinar a melhor forma de representar as fibras de aço nos mecanismos de transferência de força cortante.

Agradecimentos

O primeiro autor agradece à CAPES e ao CNPQ pelo apoio financeiro. Todos os autores agradecem ao PPGEC (Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil) e ao CESEC (Centro de Estudos de Engenharia Civil) da UFPR pelo apoio institucional.

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  • Editor: Marcelo Henrique Farias de Medeiros

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2023
  • Aceito
    15 Dez 2023
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